sexta-feira, 3 de junho de 2011

As Crônicas de Nárnia - O Sobrinho do Mago, Capítulos 11 ao 15 (Últimos Capítulos)

11
DIGORY E O TIO EM APUROS


Pode parecer que os animais eram muito burros, por não perceberem logo que tio André era uma criatura da mesma espécie das crianças e do cocheiro. Mas devemos lembrar que os animais nada sabiam a respeito de roupas. Pensaram que a saia de Polly, o terninho de Digory e o chapéu-coco do cocheiro fossem partes de cada um, como as peles e as penas dos bichos. Nem poderiam saber que os três eram da mesma espécie, se não tivessem falado com eles. Mas tio André era bem mais alto do que as crianças e bem mais magro que o cocheiro. Vestia-se de preto de alto a baixo, com exceção do colete branco (já não muito branco) e da juba de seus cabelos (muito desgrenhada, agora); não se assemelhava a nada do que haviam reparado nos outros humanos. É natural que estivessem atrapalhados. Para agravar tudo, tio André parecia não ter o dom da fala.
É verdade que ele tentara dizer algo. Quando o buldogue falou com ele (ou, como pensava, rosnou para ele), o velhote estendeu a mão e arquejou:
– Totó...
Mas os bichos também não eram capazes de compreendê-lo. Não ouviram palavras, mas um ruído sibilante. Talvez tenha sido até bom, pois nenhum cão do meu conhecimento (muito menos um cão falante de Nárnia) gosta de ser tratado de Totó.
Tio André teve um desmaio profundo.
– Está vendo – disse um javali –, não passa de uma árvore. Sempre achei isso. (Lembremo-nos de que ainda não haviam visto uma queda ou um desmaio.)
O buldogue, após farejar tio André por todos os lados, ergueu a cabeça e concluiu:
– É um bicho, um bicho. Sem dúvida. E muito provavelmente do mesmo tipo dos outros três.
– Não concordo – disse um dos ursos. – Um animal não rola desse jeito. Somos animais e não rolamos desse jeito. Ficamos em pé. Assim. – Ficou em pé nas pernas traseiras, deu um passo para trás, tropeçou num galho traseiro e caiu de costas. – A terceira piada, a terceira piada! – gritou a gralha, excitada.
– Pois ainda acho que é uma árvore – disse o javali.
– Se é árvore – disse o outro urso –, deve ter casa de abelhas.
– Tenho a absoluta certeza de que não é uma árvore – opinou o texugo. – Tive a impressão de que ele tentou falar antes de desabar.
– Foi o vento – disse o javali.
– Você não está querendo dizer – disse a gralha ao texugo – que se trata de um animal falante! Ele não disse nada!
– Seja como for – disse á Sra. Elefanta –, deve ser algum tipo de animal. Aquela bola esbranquiçada não é de certo modo uma cara? E aqueles buraquinhos não podem ser olhos e boca? Nariz não tem, é claro... mas quem não tem vistas estreitas sabe muito bem que poucos animais dispõem do que se pode chamar, com propriedade, um Nariz. – E ela espichou a tromba toda, com perdoável orgulho.
– Tenho sérias objeções a fazer com respeito a essa observação – protestou o buldogue.
– Dou meu apoio irrestrito à Sra. Elefanta – afirmou a anta.
– Pois vou dizer uma coisa: talvez seja um animal que não sabe falar, mas pensa que sabe. – O autor dessa opinião brilhante foi o burro.
– Será que ele não pode ficar em pé? – falou a elefanta, pensativamente. Apanhou do chão a massa bamba do tio André, com delicadeza, colocando a “coisa” em posição vertical, mas de cabeça para baixo. Azar. As moedas que sobraram do almoço com a feiticeira rolaram pelo chão. Tio André teve outro desmaio.
– Não disse? – falaram várias vozes. – Não é animal coisa nenhuma. Não tem vida.
– Já disse para vocês que é um animal – disse o buldogue. – Cheirem por si mesmos.
– Cheirar não é tudo – redargüiu a Sra. Elefanta. – Essa é boa! – replicou o buldogue. – Se um sujeito não pode confiar no seu nariz, vai confiar em quê?
– Na cabeça, talvez – disse a Elefanta, com doçura.
– Não aceito de modo algum essa observação – disse o buldogue.
– Enfim, precisamos fazer alguma coisa – respondeu a Sra. Elefanta. – Pois pode tratar-se do vau, e o vau tem de ser mostrado a Aslam. O que acha a maioria? Trata-se de um animal? Ou será alguma coisa feito árvore?
– Árvore! Árvore! – disseram dezenas de vozes. – Muito bem! – falou a Sra. Elefanta. – Já que é árvore, está pedindo para ser plantada. Vamos fazer uma cova.
As toupeiras encarregaram-se dessa parte com presteza. Discutiu-se depois de que lado tio André deveria ser enfiado na cova, e por um triz não foi colocado de cabeça. Diversos animais disseram que as pernas deviam ser galhos e, assim sendo, a coisa cinzenta e fofa (a cabeça) devia ser a raiz. Mas outros opinaram que a forquilha do outro lado estava mais enlameada e era mais longa: deviam ser as raízes. Foi desse modo que o tio André foi plantado de cabeça para cima. Quando terminaram, a terra lhe dava pelos joelhos.
– Está tão murcho! – observou o burro.
– Precisa ser regado – disse a Sra. Elefanta. – Sem querer ofender qualquer um dos presentes, acho que, para essa tarefa, o meu nariz...
– Protesto! – replicou o buldogue.
A elefanta andou com tranqüilidade até o rio, encheu a tromba e voltou a tio André. O sagaz animal lançou litros de água no velho. A água escorria pelas abas da casaca, como se o homem tivesse tomado banho com roupa. Por fim, ele voltou a si. Que despertar indescritível! Mas deixemos que ele medite sobre seus malfeitos (se é que seria capaz de ser tão sensato) e tratemos de coisas mais importantes.
Morango seguiu trotando até encontrar Aslam e os conselheiros. Digory bem sabia que não poderia interromper reunião tão solene, mas não teve necessidade disso. A uma palavra de Aslam, o elefante, os corvos e os outros afastaram-se um pouco. Digory apeou do cavalo e achou-se face a face com Aslam, que era maior, mais belo, mais reluzentemente dourado e ainda mais terrível do que pensara. Não ousou fitá-lo nos olhos.
– Por favor, Sr. Leão... Aslam... Senhor, será que podia... posso eu... por favor... o senhor me daria um fruto desta terra... mágico... que curasse a minha mãe?
Esperava desesperadamente que o Leão dissesse “Sim”; seria pavoroso se dissesse “Não”. Mas, para seu espanto, não foi uma coisa nem outra.
– É este o rapaz – disse Aslam, olhando não para Digory, mas para os conselheiros. – O rapaz que fez isso.
– Oh, e agora? Que será que eu fiz?
– Filho de Adão – falou Aslam –, há uma feiticeira na minha nova terra de Nárnia. Diga a estes bichos como ela chegou aqui.
Dez coisas diferentes passaram como um relâmpago pela cabeça de Digory, que teve o juízo de contar estritamente a verdade.
– Fui eu que a trouxe, Aslam – respondeu, com a voz fraca.
– Com que objetivo?
– Queria que ela saísse do meu próprio mundo e fosse para o dela. Pensei que estivesse no caminho certo.
– Mas como ela foi parar em seu mundo, Filho de Adão?
– Por magia.
O Leão nada disse e Digory sentiu que ainda não dera todas as informações.
– Foi meu tio, Aslam: ele nos enviou para fora do nosso mundo por meio de uns anéis mágicos; eu tinha mesmo de ir, porque Polly foi mandada na frente; aí encontramos a feiticeira num lugar chamado Charn, e ela agarrou-se em nós quando...
– Você encontrou-se com a feiticeira? – perguntou Aslam com uma voz soturna, que encerrava a ameaça de um rosnado.
– Ela despertou – informou Digory com o coração em frangalhos. Ficou branco, branco, e acrescentou: – Quer dizer, eu despertei ela. Queria saber o que aconteceria se eu tocasse o sino. Polly não queria. Não foi culpa dela. Eu... eu briguei com ela. Sei que errei. Acho que fiquei um pouco enfeitiçado pelas palavras escritas debaixo do sino.
– Enfeitiçado? – perguntou o Leão, na mesma voz soturna.
– Não, agora eu sei que não estava enfeitiçado. Estava só fingindo.
Seguiu-se uma longa pausa. O menino pensava o tempo todo: “Estraguei tudo! Agora não arranjo mais nada para mamãe.”
O Leão voltou a falar, mas não para Digory. – Vejam só, companheiros: antes que o mundo limpo e novo que lhes dei tivesse sete horas de vida, a força do Mal já o invadiu; despertada e trazida até aqui por este Filho de Adão.
Os bichos, até mesmo Morango, olharam todos para Digory, e nesse momento ele desejou que a terra se abrisse e o devorasse. Aslam continuou a falar para os animais:
– Mas não se deixem abater. O mal virá desse mal, mas temos ainda uma longa jornada, e cuidarei para que o pior caia em cima de mim. Por enquanto, providenciemos para que, por muitas centenas de anos, seja esta uma terra de júbilo em um mundo jubiloso. E, como a raça de Adão trouxe a ferida, que a raça de Adão trabalhe para saná-la. Aproximem-se mais os outros dois.
As últimas palavras foram dirigidas a Polly e ao cocheiro, que acabavam de chegar. Polly, olhos e boca, contemplava Aslam, apertando a mão do cocheiro com certa força. Este deu uma olhada para o Leão e tirou a cartolinha; era a primeira vez que o viam sem ela. Sem chapéu, parecia mais jovem e simpático, mais um camponês do que um londrino.
– Meu filho – disse Aslam para o cocheiro. – Há muito tempo que o conheço. Você me conhece?
– Bem, senhor, não – respondeu o cocheiro. – Pelo menos, não no sentido comum. No entanto, se me permite dizer, sinto que o conheço de algum lugar.
– Está certo. Conhece mais do que pensa, e viverá para conhecer-me ainda melhor. Gosta deste lugar?
– Excelente, senhor.
– Gostaria de viver aqui para sempre?
– Bem, o senhor sabe, sou um homem casado, tenho minhas obrigações. Mas se minha mulher estivesse aqui, ó, a gente não voltava nunca mais para Londres. Somos do campo, senhor.
Aslam sacudiu a cabeça felpuda, abriu a boca e proferiu uma única nota longa; não muito alta, mas cheia de poder. O coração de Polly deu um salto; só podia ser um chamado, e, fosse quem fosse que o ouvisse, desejaria obedecer-lhe e (mais ainda) encontraria meios para atendê-lo, não importando quantos mundos se interpusessem.
Assim, apesar de maravilhada, não ficou realmente espantada ou chocada quando de súbito uma jovem senhora, com uma cara boa e honesta, desceu de lugar nenhum e colocou-se a seu lado. Percebeu logo que se tratava da mulher do cocheiro, trazida de nosso mundo não pela força fatigante de um anel mágico, mas de maneira mais veloz, simples e suave, como um pássaro que voa para o ninho. A jovem senhora, pelo jeito, devia estar lavando roupa quando foi chamada, pois usava um avental, as mangas do vestido estavam arregaçadas até os cotovelos, e ela tinha bolhas de sabão nas mãos. Se tivesse tido tempo de colocar a roupa de domingo (e seu chapéu com imitações de cerejas!), sua aparência seria de doer: daquele jeito, chegava a ser elegante.
Pensou que estivesse sonhando. Só por isso não foi correndo perguntar ao marido o que havia acontecido. Quando viu o Leão, começou a duvidar de que era um sonho, mas, surpreendentemente, não demonstrava muito medo. Fez uma reverência pela metade, como as camponesas ainda sabiam fazer naqueles tempos. Depois, foi dar a mão ao cocheiro e ficou olhando em volta com certa candura.
– Meus filhos – disse Aslam, fixando os olhos no casal –, vocês serão os primeiros rei e rainha de Nárnia.
O cocheiro abriu a boca, aparvalhado; a mulher ficou muito vermelha.
– Reinarão sobre estas criaturas e a elas darão nomes, e farão justiça, e as protegerão dos inimigos quando os inimigos vierem. E eles virão, pois há uma feiticeira do mal neste mundo.
O cocheiro engoliu em seco duas ou três vezes e limpou a garganta:
– Com seu perdão, senhor. Muito obrigado, muito obrigado (em meu nome e no de minha esposa)... Mas não sou o sujeito para essa posição. Infelizmente, não tive ensino para isso.
– Bem – disse Aslam –, sabe usar uma pá e uma enxada e arrancar alimento do fundo da terra?
– Isso eu sei, senhor; nasci fazendo isso.
– Pode governar estas criaturas com espírito de bondade e justiça, lembrando-se de que não são escravas, como os bichos mudos do mundo em que nasceram, mas animais falantes e súditos livres?
– Acho que sim – respondeu o cocheiro. – Posso tentar.
– E ensinará seus filhos e netos a procederem do mesmo modo?
– Farei o que puder, senhor, o melhor possível, e ela também, não é, Nelita?
– E não escolherão privilegiados, nem entre os seus próprios filhos, nem entre as outras criaturas, nem deixarão que uns oprimam os outros?
– Nunca poderia tolerar isso, senhor; isso eu sei como fazer – disse o cocheiro. (Enquanto dialogavam, sua voz ia ficando mais pausada e mais rica de inflexões, mais parecida com a voz camponesa do seu tempo de garoto e menos estridente e embolada do que a voz dos trabalhadores da cidade.)
– E se inimigos vierem combater a terra (pois eles virão), será você o primeiro a atacar e o último a bater em retirada?
– Bom, senhor... Um sujeito só pode saber as coisas depois que as experimenta. Até hoje só briguei com os meus próprios punhos. Eu espero... quer dizer... eu tentarei fazer a minha parte.
– Se o fizer, terá feito tudo o que um rei deve fazer. A coroação terá lugar em pouco tempo. Você e seus filhos e seus netos serão abençoados; uns serão reis de Nárnia e outros serão reis das terras que se encontram nas Montanhas do Sul. E você, minha filhinha (virando-se para Polly), seja bem-vinda. Já perdoou o rapaz por seus modos violentos na sala de imagens do palácio maldito de Charn? – já fizemos as pazes, Aslam.
– Muito bem. Quero agora conversar com o rapaz.

12
A AVENTURA DE MORANGO


Digory fechou a boca e apertou os lábios. Seu mal-estar aumentava. Tinha a esperança de que, acontecesse o que acontecesse, não choramingaria, nem faria nada ridículo.
– Filho de Adão, está disposto a desfazer o mal que fez ao meu manso país de Nárnia no dia de seu próprio nascimento?
– Só não sei o que posso fazer. Como o senhor sabe, a rainha fugiu e...
– Perguntei se está disposto? – disse o Leão. – Estou.
Passara-lhe um segundo pela cabeça a tentação boba de responder: “Estou disposto, se o senhor prometer-me ajudar minha mãe.” Mas percebeu a tempo que o Leão não era criatura com a qual se podia fazer barganhas. Porém, quando disse “Estou”, pensou na mãe, nas grandes esperanças que tivera, e em como agora elas estavam para morrer. Sentiu um nó na garganta e lágrimas nos olhos. Deixou escapar, no entanto:
– Mas, por favor, por favor... o senhor não podia me dar qualquer coisa que salvasse minha mãe?
Até aquele instante, só olhara para as patas do
Leão; agora, com o desespero, olhou-o nos olhos. O que viu o surpreendeu mais do que qualquer outra coisa. Pois a face castanha estava inclinada perto do seu próprio rosto e (maravilha das maravilhas) grandes lágrimas brilhavam nos olhos do Leão. Eram lágrimas tão grandes e tão brilhantes, comparadas às de Digory, que por um instante sentiu que o Leão sofria por sua mãe mais do que ele próprio.
– Meu filho, meu filho, eu sei. A dor é grande. Só você e eu nesta terra sabemos disso. Sejamos compassivos um com o outro. Mas tenho de pensar em centenas de anos da vida de Nárnia. A feiticeira que trouxe para este mundo ainda voltará a Nárnia. Mas não precisa ser já. É meu desejo plantar em Nárnia uma árvore da qual ela não ousará aproximar-se durante anos e anos. Assim, esta terra conhecerá uma longa e luminosa manhã antes que qualquer nuvem obscureça o sol. E você deverá trazer-me a semente dessa árvore.
– Sim, senhor. – Digory não sabia o que iria fazer, mas naquele momento teve a certeza de que, fosse como fosse, seria capaz de fazê-lo. O Leão respirou fundo, inclinou ainda mais a cabeça e deu-lhe um beijo de Leão. O menino sentiu instantaneamente que havia conquistado uma nova força e uma nova coragem.
– Meu filho, vou dizer-lhe o que deverá fazer. Olhe para o oeste e diga-me o que vê.
– Vejo montanhas enormes, Aslam. Vejo este rio caindo através de penhascos, numa grande cachoeira. E além há colinas verdes e florestas. E ainda mais além há altíssimas cordilheiras que parecem negras. E mais longe, muito mais longe, há colossais montanhas cobertas de neve. E além delas não há mais nada, só o céu.
– Enxerga bem. Escute: a terra de Nárnia termina onde está a cachoeira; lá em cima, ia estará fora de Nárnia, em pleno Ermo ocidental. Deverá atravessar aquelas montanhas até encontrar um vale verde com um lago azul, cercado de montanhas de gelo. No fim do lago há um monte verde e escarpado. No cume desse monte há um jardim. No centro do jardim há uma árvore. Apanhe uma maçã dessa árvore e traga a fruta para mim.
– Sim, senhor. – Digory não tinha a menor idéia de como subir até a cachoeira e achar o caminho entre aquelas montanhas todas; mas, se revelasse isso, poderia parecer desculpa para não ir. Disse apenas o seguinte:
– Espero, Aslam, que não esteja com muita pressa. Levarei algum tempo para ir e voltar.
– Filho de Adão, você terá ajuda. – Aslam voltou-se para o cavalo, que durante esse tempo ouvira a conversa com um ar de quem não está entendendo muito.
– Meu amigo – disse Aslam ao cavalo –, gostaria de ser um cavalo alado?
Você precisava ter visto o cavalo sacudindo a crina, com as ventas infladas, dando uma boa pata da no chão. É claro que ele gostaria de ser um cavalo alado! Mas disse apenas:
– Se quiser, Aslam... se quiser mesmo... mas não sei por que seria eu... não sou um cavalo muito inteligente.
– Seja alado. Seja você o pai de todos os cavalos voadores – rugiu Aslam, com uma voz que sacudiu a terra. – Seu nome é Pluma.
O cavalo passarinhou, como já devia ter passarinhado nos infelizes tempos do cabriolé. Ergueu-se e esticou o pescoço para trás, como se um inseto picasse seus ombros. Depois, assim como os bichos brotaram da terra, dos ombros de Pluma brotaram asas, que se estenderam e cresceram, maiores que asas de cisnes, de águias, maiores que asas de anjos nos vitrais das igrejas. As penas eram castanhas e acobreadas. Pluma deu um grande salto e subiu. Dez metros acima, bufou, relinchou e curveteou. Depois de dar uma volta em círculo, pousou na terra, as quatro patas de uma vez, parecendo muito espantado, mas muito contente.
– Gostou, Pluma? – perguntou Aslam. – Bom, muito bom, Aslam.
– Levaria este Filho de Adão nas costas às montanhas de que falei?
– Agora? Imediatamente? – perguntou Morango... ou Pluma. – Ora essa! Venha, pequeno. Já tive coisas como você nas minhas costas. Há muito, muito tempo. Quando havia pastos verdes, e açúcar.
– Que estão as duas Filhas de Eva cochichando aí? – perguntou Aslam, voltando-se subitamente para Polly e para a mulher do cocheiro, que ia eram muito amigas.
– Se o senhor permite – disse a rainha Helena (assim se chamava agora a mulher do cocheiro) –, acho que a menina adoraria ir também, se não criar problema.
– O que acha, Pluma? – indagou o Leão.
– Oh, não me importo de levar dois, quando são pequeninos. Só espero que o elefante também não queira ir conosco.
Não era essa a vontade do elefante, e o novo rei de Nárnia ajudou as duas crianças a montar, quer dizer, deu um bom impulso em Digory e colocou Polly na garupa com toda a delicadeza, como se fosse feita de porcelana.
– Tudo certo, Morango... quer dizer, Pluma.
– Não voe alto demais – advertiu Aslam. – Não
tente passar por cima dos cumes das montanhas geladas. Busque os vales verdes. Sempre há um modo de atravessar a cordilheira. Partam com a minha bênção.
– Oh, Pluma! – exclamou Digory, inclinando-se para dar um tapinha carinhoso no pescoço lustroso do cavalo. – Que coisa fabulosa! Segure firme em mim, Polly.
No instante seguinte, a terra começou a distanciar-se deles, enquanto Pluma, como um imenso pombo, circulava duas vezes para tomar altura, antes de partir em vôo direto para o oeste. Polly mal podia enxergar lá embaixo o rei e a rainha; o próprio Aslam não passava de uma mancha brilhante na relva verde. O vento golpeava-lhes o rosto, e as asas de Pluma começaram a bater cadenciadamente.
Já de cima podiam ver Nárnia inteira, com suas campinas de muitas cores, seus rochedos, prados e árvores, seu rio deslizando como uma fita de mercúrio. Em poucos instantes já sobrevoavam os cumes das colinas baixas. À esquerda, as montanhas eram bem mais altas, mas sempre podiam ver, através de brechas, as terras azuladas do sul.
– Olhe lá na frente! – disse Digory.
Uma grande muralha de penhascos levantava-se diante deles. A luz do sol dançando na grande cachoeira quase os ofuscava. Já voavam tão alto que o roncar das quedas d’água parecia um leve ruído, mas ainda não tinham alcançado os penhascos.
– Temos de fazer alguns ziguezagues – disse Pluma. – Segurem firme.
O ar ia ficando mais frio e podiam ouvir os gritos das águias embaixo.
– Olhe para trás, olhe! – disse Polly.
Lá estava todo o vale de Nárnia, estendendo-se até onde se podia distinguir o brilho do mar. Já estavam tão altos que podiam avistar as montanhas denteadas surgindo além das charnecas do norte e, ao sul, planícies que pareciam de areia.
– Gostaria que alguém pudesse dizer-nos que lugares são esses – falou Digory.
– Acho que eles ainda não são – comentou Polly –, quer dizer, não há ninguém neles, nada aconteceu ainda. O mundo começou hoje.
– Pois é, mas as pessoas chegarão lá, e aí virão as histórias, entende?
– Bem, para mim, acho ótimo que ainda não tenham chegado. Ninguém tem de aprender o que ainda não aconteceu... batalhas, datas... essa chatice toda.
Estavam acima dos penhascos e, em poucos minutos, o vale de Nárnia sumiu atrás deles. Voavam sobre um país selvagem, de montes escarpados e florestas escuras, seguindo ainda o curso do rio. Mas o sol agora feria-lhes os olhos e já não podiam ver com nitidez naquela direção. O sol descambou lentamente, até que o céu do ocidente parecia uma fornalha de ouro derretido. Por fim escondeu-se por trás de um pico que se recortava no fulgor como uma figura de papelão.
– Não está muito quentinho aqui em cima – disse Polly.
– E as minhas asas estão começando a doer – disse Pluma. – Não vejo nenhum sinal do vale com o lago. Que tal se baixássemos e procurássemos um bom lugar para passar a noite? Não é necessário atingir o lugar esta noite.
– Certo – concordou Digory. – Além do mais, não está na hora do jantar?
Pluma foi descendo, descendo. O ar tornava-se mais quente. Depois de tantas horas sem ouvir nada, a não ser as batidas das asas de Pluma, era agradável ouvir de novo os ruídos familiares e terrestres – o marulhar do rio no leito pedrento e o ranger das árvores ao vento suave. Um cheiro cálido de terra cozida pelo sol e de relvados e flores chegou até eles. Pluma afinal aterrissou. Digory ajudou Polly a desmontar. Era um prazer esticar as pernas.
O vale onde haviam descido estava no âmago das montanhas; cumes nevados, um deles de aspecto róseo pelo reflexo do sol poente, erguiam-se à frente.
– Que fome! – exclamou Digory.
– É só servir-se – falou Pluma, dando uma boa dentada na relva. Levantou a cabeça, ainda mastigando, e acrescentou: – Venham logo. Não façam cerimônia. Dá e sobra para todos.
– Acontece uma coisa, Pluma: nós não comemos capim.
– Hum, hum – murmurou Pluma, falando de boca cheia. – Não sei então o que vai ser. Excelente capim!
Digory e Polly olharam um para o outro, desanimados.
– Francamente, acho que alguém devia ter providenciado a nossa comida.
– Tenho certeza de que Aslam teria feito isso... se vocês tivessem pedido.
– Ele não saberia sem que a gente pedisse?
– Claro – respondeu o cavalo. – Mas acho que gosta que peçam.
– Que vamos fazer?
– Só sei que não sei – respondeu Pluma, ainda de boca cheia. – A não ser que vocês experimentem esta relvazinha. Talvez gostem mais do que imaginam.
– Oh, não banque o bobo – falou Polly, batendo com o pé. – Gente humana não pode comer relva, assim como você não pode comer costeletas.
– Por favor, Polly, não fale em costeletas – disse Digory – ; a coisa fica ainda pior.
Digory acabou achando que o melhor a fazer era o seguinte: Polly usaria o anel para ir até em casa e traria de lá alguma coisa. Ele não podia, pois prometera a Aslam desincumbir-se da missão. Polly respondeu que não o deixaria, e Digory concordou que era uma atitude muito digna da parte dela.
– Ah, acabei de lembrar que ainda tenho aquele saco de puxa-puxas no bolso. É melhor do que nada.
– Muito melhor! Mas tenha cuidado: não vá tocar no anel.
Foi uma tarefa difícil e delicada, mas acabaram conseguindo realizá-la. O saco de papel estava todo grudento: era mais difícil tirar o saco de papel dos puxa-puxas do que tirar os puxa-puxas do saco de papel. Certos adultos preferem não comer nada a comer puxa-puxas como aqueles.
Eram nove ao todo. Digory teve a brilhante idéia de comerem quatro cada um e plantar o nono.
– Se a barra de ferro virou poste, por que isso não pode virar um pé de puxa-puxa?
Fizeram uma pequena cova na relva e enterraram um pedaço do puxa-puxa. Comeram então os outros, o mais lentamente que a fome lhes permitia. Foi uma refeição pobre, mesmo contando todo o papel que tiveram de engolir.
Pluma deitou-se após terminar seu excelente jantar. Os meninos estenderam-se de encontro a seu corpo quente, um de cada lado, e ficaram bem agasalhados sob suas asas. As estrelas jovens do
novo mundo iam surgindo enquanto eles conversavam sobre tudo o que acontecera. Digory contou sobre as suas esperanças de obter algo para a sua mãe e como, em vez disso, fora enviado àquela missão... Repetiram um para o outro todos os sinais pelos quais reconheceriam o local que buscavam: o lago azul e a colina com o jardim. A conversa já começava a esfriar, quando Polly subitamente se sentou, completamente acordada, e disse: “Quieto!”
Todos ficaram atentos.
– Deve ser o vento nas árvores – disse Digory. – Não tenho certeza – disse Pluma. – Ouçam de novo. Por Aslam, é alguma coisa.
O cavalo levantou-se nas patas com uma barulhada convulsa. As crianças também puseram-se de pé. Pluma andou para cá e para lá, bufando e relinchando. Os outros dois, nas pontas dos pés, olharam atrás de todas as moitas e árvores. Começaram a pensar que haviam imaginado coisas. Polly chegou a ter certeza de ter visto uma forma alta e escura, deslizando depressa no sentido oeste. Nada descobriram. Pluma deitou-se de novo e agasalhou as crianças sob as asas. Dormiram. Pluma permaneceu acordado por muito mais tempo, mexendo com as orelhas no escuro, dando às vezes um repelão no pêlo como se houvesse moscas. Por fim, acabou também adormecendo.

13
UM ENCONTRO INESPERADO


– Acorde, Digory; acorde, Pluma – chamou a voz de Polly. – O puxa-puxa virou árvore. E a manhã não podia ser mais linda.
O sol matinal jorrava sobre a floresta; a relva estava cinza de orvalho; as teias de aranha pareciam de prata. Bem debaixo destas, estava uma arvorezinha de madeira escura, do tamanho de uma macieira. As folhas eram esbranquiçadas e pareciam artificiais; estava carregadinha de frutas, que lembravam um pouquinho as tâmaras.
– Oba! – gritou Digory. – Mas vou dar um mergulho primeiro. – E saiu a toda a velocidade, atravessando as moitas floridas, até a beira do rio. Você já tomou banho em rio de montanha? Em rio que corre em cachoeiras sobre pedras vermelhas, azuis, amarelas? E o sol em cima? É tão bom quanto o mar; chega a ser quase melhor.
Digory teve de vestir-se novamente sem se enxugar, mas valeu a pena. Quando ele voltou, Polly foi ao rio e tomou seu banho; pelo menos, foi o que disse ter feito, mas, não tendo sido nunca boa nadadora, é possível... Vamos deixar isso para lá. Pluma também visitou o rio: bebeu água, sacudiu a crina e relinchou com vontade várias vezes.
Depois as crianças deram atenção à árvore de puxa-puxa. A fruta era uma delícia. Não tinha exatamente o gosto de puxa-puxa; era mais ma cia, com mais caldo, mas o sabor lembrava o de puxa-puxa.
Pluma também fez uma boa refeição matinal; provou um puxa-puxa e gostou, mas (disse), àquela hora da manhã, capim era melhor. Com alguma dificuldade, as crianças montaram e a jornada recomeçou.
Foi até melhor que no dia anterior. Em parte, porque todos se sentiam muito bem, em parte
porque o sol nascente estava às suas costas, e tudo fica mais bonito quando o sol está atrás da gente. Foi uma cavalgada maravilhosa. As grandes montanhas brancas erguiam-se em todas as direções. Os vales eram tão verdes, os riachos que tombavam das geleiras para os rios maiores eram tão azuis... Parecia que sobrevoavam jóias gigantescas. Teriam preferido que essa parte da aventura se prolongasse. Daí a pouco, entretanto, estavam farejando o vento e perguntando “Que é isso?”, “Estão sentindo esse cheiro?” “De onde está vindo?”. Pois um aroma celestial, cálido e dourado, como se viesse das mais gostosas frutas e das mais belas flores do mundo, chegava até eles, proveniente de algum lugar mais adiante.
– O perfume vem do vale do lago – afirmou Pluma.
– É isso – disse Digory. – Olhe ali uma colina verde no finzinho do lago. E repare como a água é azul.
– Só pode ser o lugar.
Pluma foi descendo em círculos largos. Os cumes gelados elevavam-se cada vez mais altos. O ar ficou mais suave e morno, tão leve que trazia lágrimas aos olhos. Pluma agora planava com as asas estendidas, sem movimento, os cascos prontos para a aterrissagem. A colina verde aproximava-se a grande velocidade. Pouco depois, aterrava na encosta, com certa dificuldade. As crianças pularam fora, caindo sem se machucar na relva gostosa e levantando-se ofegantes.
Não faltava muito para que chegassem ao topo da colina. Começaram a escalada. Pluma equilibrava-se com o auxílio das asas, esvoaçando um pouco aqui e ali. No alto da montanha havia um muro de relva. No centro, cresciam árvores. As folhas não eram apenas verdes, mas também azuis e prateadas quando o vento as agitava. Os viajantes alcançaram o topo e foram seguindo o muro de relva; estavam quase completando a volta quando encontraram os portões: altos portões de ouro, fechados, virados para o oriente.
Até aquele momento, creio que Pluma e Polly esperavam poder entrar lá dentro com Digory. Mas já não pensavam assim. Não poderia haver outro lugar tão evidentemente privado quanto aquele. Logo se via que pertencia a outra pessoa. A menos que tivesse alguma missão muito especial, ninguém entraria ali, a não ser um tolo. Compreendendo que os outros deveriam ficar do lado de fora, Digory avançou sozinho para os portões.
Ao se aproximar, verificou que havia algo escrito ali, com letras de prata sobre ouro. Os dizeres eram mais ou menos os seguintes:
Entre pelos portões de ouro ou não, Apanhe o meu fruto para outro ou não. Aquele que roubar ou escalar os meus muros, Encontrará desespero, junto com o desejo do seu coração.
“Apanhe o meu fruto para outro”, disse Digory para si mesmo. “É isso que vou fazer. Significa que eu mesmo não posso comer o fruto, acho. Só não sei o que significam as linhas de baixo. Entre pelos portões de ouro. Ora, quem iria escalar um muro, podendo entrar pelo portão! Mas como se abre o portão?” Colocou a mão na placa de ouro e instantaneamente o portão se abriu, sem um ruído.
O lugar lá dentro era ainda muito mais privado do que parecia pelo lado de fora. Caminhou com solenidade, olhando para os lados. Tudo es tava quieto. Mesmo o ruído da fonte no centro do pomar era mínimo. O perfume o rodeava: era um lugar feliz, mas muito grave.
Reconheceu logo a árvore que procurava, por encontrar-se no centro do jardim e também porque as grandes maçãs de prata projetavam uma luz própria nos lugares sombrios não atingidos pela luz solar. Caminhou em linha reta até a árvore, apanhou uma maçã e colocou-a no bolso. Não sem olhar para ela e cheirá-la antes de guardá-la.
Foi um erro. Uma sede e uma fome terríveis apoderaram-se dele, uma vontade alucinante de provar do fruto. Havia grande quantidade de maçãs. Faria mal comer uma? Afinal de contas, o aviso no portão podia não ser precisamente uma ordem; podia ser somente um conselho. E quem liga para conselhos? E, mesmo que fosse uma ordem, seria uma desobediência comer uma maçã? Já observara a primeira ordem: “para outro”.
Olhou através dos galhos para o alto da árvore. Acima de sua cabeça, um pássaro maravilhoso estava empoleirado. Digo “empoleirado” porque parecia quase adormecido. Só uma frestinha de um olho estava aberta. Era maior do que uma águia, com o peito cor-de-açafrão, a crista escarlate, a cauda púrpura.
Mais tarde, ao contar a história, ele costumava dizer: “O pássaro estava mostrando que todo o cuidado é pouco em lugares encantados. Nunca se sabe quem está observando.”
Creio eu, no entanto, que Digory não teria de modo algum colhido a maçã para si mesmo. Coisas como NÃO FURTAR eram naquele tempo mui to mais entranhadas nas cabeças dos meninos do que hoje. Mas, quem pode ter certeza?
Estava para voltar ao portão quando parou para dar uma olhada em torno. Foi um choque terrível. Não estava só. A poucos metros dali, avistou a feiticeira. Acabara de atirar fora o miolo de um fruto que havia comido. O suco da maçã era mais forte do que se podia esperar e marcara com medonha mancha a boca da feiticeira. “Entrou pulando o muro”, pensou logo Digory. E concluiu que era verdade o que estava escrito quanto a encontrar, junto com o desejo do coração, o desespero. Pois a feiticeira parecia mais poderosa, mais orgulhosa, mais vitoriosa, mas a sua face era de uma brancura mortal, branca como o sal.
Digory pensou tudo isso num relâmpago. Virou nos calcanhares e saiu correndo a caminho do portão. A feiticeira seguiu-o. Quando ele passou, o portão fechou-se imediatamente, sozinho. Foi a oportunidade de ganhar a corrida, mas não por muito tempo. Logo que chegou perto dos outros, gritando “Depressa, Polly, Pluma!”, a feiticeira já galgara o muro, ou o pulara, e estava bem atrás dele novamente.
– Fique onde está! – gritou Digory, voltando-se para encará-la. – Ou vamos desaparecer. Não se aproxime mais um dedo.
– Não seja bobo! – disse a feiticeira. – Por que está fugindo de mim? Não quero fazer-lhe mal. Se não quiser ouvir-me, deixará de aprender uma coisa que o fará feliz para o resto da vida.
– Muito obrigado, não quero ouvir coisa nenhuma.
Mas ouviu.
– Sei a missão que o trouxe aqui – continuou a feiticeira. – Era eu que estava perto de vocês na noite passada, ouvindo tudo. Você colheu o fruto do jardim. Está no seu bolso. E vai levá-lo, sem provar dele, para o Leão: para que ele coma o fruto; para que ele use o fruto. Simplório! Sabe que fruto é este? É a maçã da eterna juventude. Sei por ter provado, e também já sei que jamais ficarei velha ou morrerei. Coma a maçã, rapaz, coma a maçã... e viveremos os dois eternamente e seremos reis deste mundo... ou do seu próprio mundo, se resolver voltar para lá.
– Muito obrigado. Acho que não vou querer ficar vivo depois que os outros todos que conheço já tiverem ido. Prefiro viver o tempo normal, morrer e ir para o céu.
– Mas... e a sua mamãe, que você diz adorar? – Que tem minha mãe com isto?
– Não está vendo, bobo, que uma mordida nessa maçã pode curar a sua mãe? Está no seu bolso. Aqui estamos por nossa conta. O Leão está muito longe. Use seu poder mágico e volte para o seu mundo. Daqui a um minuto poderá estar ao lado de sua mãe, dando-lhe a maçã. Cinco minutos depois, ela ganhará novas cores no rosto. Dirá para você que a dor passou. Depois dirá que se sente mais forte. E adormecerá. Pense nisso. Horas de sono natural, sem dor, sem drogas. No dia seguinte todos falarão no milagre da cura. Tudo ficará perfeito outra vez. Terá novamente um lar feliz. E você poderá ser como os outros rapazes.
– Oh! – balbuciou Digory, colocando a mão na testa como se estivesse ferido. Sabia que tinha de fazer uma escolha terrível.
– Que fez o Leão por você? Tem de ser escravo dele? O que ele poderá fazer quando você estiver no seu mundo? E o que irá pensar sua mãe se souber que teve nas mãos o poder que a salvaria? E o que daria vida ao coração partido de seu pai? Vai preferir, então, executar missões para um animal selvagem em um mundo estranho, um mundo com o qual nada tem a ver?
– Eu... eu não acho que ele seja um animal selvagem – respondeu Digory, com a voz ressequida. – Ele é... bem, não sei...
– Então ele é uma coisa ainda pior. Olhe o que já fez de você! Um rapaz sem coração! E o que faz a todos os outros que o atendem. Que rapaz mau! Prefere deixar a mãe morrer do que...
– Oh, cale a boca! – pediu o infeliz, com a mesma voz. – Acha que eu não sinto? Mas é que prometi...
– Mas não sabia o que estava prometendo!
– Nem mamãe – disse ele, achando as palavras com dificuldade – iria gostar... faz questão de que eu cumpra as minhas promessas... isso tu do... não furtar... tudo. Se ela estivesse aqui, não deixaria...
– Mas ela nem precisa saber! – falou a feiticeira, com uma doçura impossível de se imaginar em alguém com aquela face. – Não é preciso dizer como obteve a maçã! Seu pai também não precisa saber. Ninguém no seu mundo precisa saber de nada. Você nem precisa levar a menina de volta!
Foi o erro fatal da feiticeira. Digory sabia perfeitamente que Polly poderia voltar sozinha, com seu próprio anel. Mas, pelo jeito, a feiticeira não estava a par disso. A mesquinharia da sugestão – deixar Polly sozinha – mostrava que as outras palavras eram falsas e vazias. E, mesmo do fundo de sua infelicidade, sua mente ficou clara e ele disse, em voz firme e alta:
– Escute: o que é que há? Por que está agora tão preocupada com a minha mãe? Que armadilha é esta?
– Boa! – sussurrou-lhe Polly ao ouvido. – Rápido! Vamos partir imediatamente. – Só ficara calada todo aquele tempo porque não era a sua mãe que estava morrendo.
– Monte – disse Digory, colocando-a na garupa de Pluma e pulando também para cima do cavalo, que abriu logo as asas.
– Vá! Vá! – bradou a feiticeira. – Mas lembre-se de mim, criança, quando for um velhinho moribundo. Lembre-se de que jogou fora o dom da eterna juventude!
Já estavam tão alto que mal a escutavam. Também a feiticeira não perdeu mais tempo: foi vista partindo na direção norte.
Queriam chegar a Nárnia antes do anoitecer. Digory não disse palavra durante o vôo, e os outros se sentiram meio sem jeito de falar com ele. Parecia triste e não estava muito seguro de ter feito a coisa certa. Só teve certeza quando se lembrou das lágrimas nos olhos de Aslam.
Pluma voou o dia todo, no mesmo ritmo e sem descansar. Seguiu o curso do rio, cruzou as montanhas, sobrevoou as colinas arborizadas e a grande queda d’água, até onde as florestas de Nárnia eram sombreadas pelo colossal penhasco. Quando o céu se avermelhava ao pôr-do-sol, viram um lugar com muitas criaturas reunidas à beira de um rio. Não demoraram a descobrir o próprio Aslam no meio delas. Pluma planou, esticou as quatro patas, fechou as asas e aterrou a meio galope.
As crianças saltaram. Todos os animais, anões, sátiros, ninfas abriram caminho para que Digory passasse. O menino caminhou diretamente para Aslam, estendeu-lhe a fruta e disse:
– Aqui está a maçã que o senhor queria.

14
PLANTA-SE UMA ÁRVORE



– Agiu bem – disse Aslam, sacudindo a terra com a vibração de sua voz.
Todos os narmanos ouviram aquelas palavras, e Digory percebeu que aquela história seria transmitida de pai a filho por centenas de anos e talvez para sempre. Mas não corria o risco de sentir-se presunçoso por isso, pois estava frente a frente com Aslam. Podia agora olhar nos olhos do Leão. Esquecera seus problemas e sentia-se feliz.
– Agiu bem, Filho de Adão – disse o Leão outra vez. – Para obter este fruto, passou fome e sede e derramou lágrimas. Só a sua mão lançará a semente da árvore que protegerá Nárnia. Semeie a maçã perto do rio, onde a terra é macia.
Digory assim fez. Estavam todos tão quietos que se pôde ouvir o baque da maçã no barro.
– Está lançada – disse Aslam. – Passemos à coroação do rei Franco de Nárnia e da rainha Helena.
Só então as crianças notaram o casal. Vestiam belas e estranhas roupagens. Quatro anões seguravam o manto do rei, e quatro ninfas, o manto da rainha. Traziam as cabeças descobertas, mas Helena soltara os cabelos e tinha agora uma aparência muito melhor. Mas não eram os cabelos e as vestimentas que os tornavam tão diferentes. As fisionomias apresentavam uma expressão diferente, principalmente a do rei. Sumira de seu rosto a rispidez e a astúcia adquiridas nas duras ruas de Londres. O que se via era a coragem e a bondade que sempre possuíra. A causa disso talvez fosse a atmosfera do mundo novo, ou a convivência com Aslam, ou as duas coisas.
– Palavra – disse o cavalo para Polly –, meu velho patrão mudou quase tanto quanto eu! Agora é mesmo um patrão de verdade.
– Está certo – falou Polly –, mas não precisa zumbir no meu ouvido; faz cócegas.
Aslam disse:
– Desfaçam o emaranhado que vocês fizeram com aquelas árvores.
Só então Digory percebeu que quatro árvores tinham sido amarradas, a fim de formar uma espécie de jaula. Os dois elefantes e alguns anões desfizeram os laços. Havia três coisas lá dentro: a primeira era uma pequena árvore que parecia de ouro; a segunda era uma árvore nova que parecia de prata; mas a terceira era uma coisa lamentável, de roupas enlameadas, toda arqueada entre as duas. Digory exclamou:
– Puxa! É o tio André!
Temos de voltar um pouco atrás para explicar o que se passou. Os bichos, como sabemos, tinham tentado plantá-lo e regá-lo. Quando voltou a si, tio André se viu empapado, atolado na terra até os quadris e cercado de animais selvagens. Não é de espantar que tenha começado a berrar e uivar. Foi de certo modo uma boa coisa, pois isso afinal convenceu a todos (principalmente o javali) de que estava vivo. Então, eles o desenterraram (suas calças estavam daquele jeito!). Logo que livrou as pernas, tio André tentou fugir, mas uma rápida trombada do elefante enlaçou-lhe a cintura. Decidiram todos que deveria ser posto a salvo em algum lugar até o retorno de Aslam. E foi assim que fizeram uma espécie de gaiola ou cesto em torno dele. E ofereceram-lhe alimentos.
O burro juntou grandes montes de cardos, atirando-os lá dentro; tio André pareceu indiferente aos cardos. Os esquilos fizeram um bombardeio de nozes, mas o tio, cobrindo a cabeça com as mãos, evitou as nozes. Vários pássaros atiraram-lhe minhocas. O urso foi o mais gentil. Tendo encontrado antes uma colméia de abelhas, em vez de servir-se, o que faria com grande contentamento, trouxe-a para tio André. Foi o pior da festa; a colméia bateu na cara do homem (nem todas as abelhas estavam mortas). O urso, que pouco se importaria com uma colméia na cara, não podia entender por que tio André recuou tão depressa e se jogou ao chão. Azar: caiu em cima dos cardos. “De qualquer forma – como disse o javali –, um bom bocado de mel entrou na boca da criatura, e isso deverá fazer-lhe algum bem.” já estavam gostando do bicho estranho e esperavam que Aslam lhes permitisse ficar com ele. Alguns mais inteligentes já achavam que os ruídos que saíam de sua boca, pelo menos alguns, tinham sentido. E deram-lhe o nome de Conhaque, pois era esta a palavra que saía com mais freqüência da boca de tio André.
Por fim, à noite, tiveram de deixá-lo. Aslam passou o dia todo atarefado, instruindo o rei e a rainha, sem poder ocupar-se do “pobre e velho Conhaque”. Fome ele não passou, com aquelas nozes todas e com as bananas e maçãs atiradas aos montes; mas não se pode dizer que tenha tido uma noite agradável.
– Tragam aquela criatura – disse Aslam.
Um dos elefantes levantou tio André com a tromba e o colocou aos pés do Leão. O homem estava apavorado demais para mover-se.
– Por favor, Aslam – falou Polly –, poderia dizer uma coisa que... desapavorasse ele? E depois poderia dizer algo que o impedisse de voltar a este lugar?
– E acha que ele ainda quer voltar? – indagou Aslam.
– O caso é que ele quer mandar outra pessoa; está muito entusiasmado com a barra de ferro que virou poste e acha...
– O que ele está pensando é uma grande tolice – interrompeu Aslam. – Este mundo só estará explodindo de vida por poucos dias, pois a canção com que o chamei à vida ainda vibra no ar e retumba na terra. Não será por muito tempo. Mas não posso dizer isso a este velho pecador, como também não posso consolá-lo; ele mesmo se colocou fora do alcance da minha voz. Se eu lhe falasse, ouviria apenas rosnados e rugidos. Oh, Filhos de Adão, com que esperteza vocês se defendem daquilo que lhes pode fazer o bem! Mas eu lhe ofertarei a única dádiva que é capaz de receber.
Inclinou a grande cabeça, quase com tristeza, e soprou no rosto aterrorizado do feiticeiro.
– Durma. Afaste-se por algumas horas de todos os tormentos que forjou para si mesmo.
Tio André caiu embolado, já de olhos cerrados, e começou a ressonar tranqüilamente.
– Levem-no e deixem que durma em paz. Agora, anões, mostrem que são bons joalheiros: quero que façam duas coroas reais.
Um bando inimaginável de anões correu na direção da Árvore Dourada. Antes que se pudesse dizer faca, arrancaram as folhas e alguns galhos. Só então as crianças perceberam que a árvore era realmente de ouro, e do melhor. Só poderia ter nascido das moedas caídas do bolso de tio André. Como por milagre foram surgindo montes de lenha seca, uma pequena bigorna, martelos, foles e tenazes. Como os anões gostavam desse trabalho! Num instante o fogo crepitava, os foles sopravam, o ouro derretia-se, os martelos retiniam. Duas toupeiras trouxeram um monte de pedras preciosas. Em pouco tempo, duas coroas tomavam forma nas mãos dos hábeis joalheiros. Não coisas pesadonas e feias como as coroas modernas, mas aros leves, delicados e bem torneados, que podiam ser de fato usados com elegância. A coroa do rei era adornada de rubis; a da rainha, de esmeraldas.
Depois de esfriadas as coroas no rio, Aslam ordenou que Franco e Helena se ajoelhassem diante dele. Colocou-lhes as coroas na cabeça e disse:
– Levantem, rei e rainha de Nárnia, pai e mãe de numerosos reis de Nárnia e das Ilhas e de Arquelândia.
Todos fizeram o que podiam: deram vivas, relincharam, ladraram, bateram palmas com as asas... O casal permaneceu em pé com toda a solenidade, demonstrando uma certa timidez que os fazia mais nobres. E Digory, que continuava aplaudindo, ouviu a voz profunda de Aslam:
– Vejam!
Toda a multidão virou a cabeça e respirou fundo, jubilosamente. Adiante viram uma árvore que não se encontrava ali um momento antes. Devia ter crescido em silêncio, mas com a rapidez de uma bandeira que se desfralda. De seus ramos parecia projetar-se luz e não sombra. Maçãs de prata repontavam de todas as folhas, como estrelas. Mas era o perfume, mais que a luz, que provocava suspiros. Tão intenso era que, por um momento, ninguém conseguiu pensar em nada.
– Filho de Adão – falou Aslam –, você fez um bom trabalho. E vocês, narnianos, cuidem, antes de tudo, desta árvore, que é o seu escudo. A feiticeira de que lhes falei fugiu para o norte do mundo. Lá viverá e ficará mais forte em magia negra. No entanto, enquanto esta árvore florir, jamais voltará a Nárnia. Não ousará aproximar-se cem quilômetros da árvore, pois seu perfume, que é alegria, vida e saúde para vocês, é morte, horror e desespero para ela.
Todos contemplavam solenemente a árvore, quando Aslam se virou subitamente para as crianças, lançando fulgores dourados da juba:
– O que foi, crianças? – Havia percebido que Polly e Digory cochichavam.
Digory, vermelho como um pimentão, respondeu:
– Oh, Aslam, esqueci de contar. A feiticeira já comeu uma destas maçãs, da mesma espécie. Polly contou o resto:
– Assim, Aslam – concluiu ela –, achamos que deve haver algum engano, e que o perfume da árvore não vai fazer mal a ela.
– Por quê, Filha de Eva?
– Bem, ela comeu uma fruta.
– Filha, é por isso mesmo que agora a feiticeira tem pavor das outras frutas. É o que acontece aos que colhem e comem frutos fora do tempo e sem boa intenção.
– Ah, estou entendendo – disse Polly. – Como ela comeu a maçã sem boa intenção, não ficará sempre jovem e tudo...
Aslam sacudiu a cabeça:
– Infelizmente, ficará sempre jovem e tudo o mais. As coisas funcionam de acordo com o que são. Ela possui o poder e a perenidade de uma deusa. Mas a eternidade com um coração mau é a perenidade da desgraça. Todos conquistam o que desejam, mas nem sempre se satisfazem com isso.
– Eu mesmo... quase comi uma maçã – disse Digory.
– O fruto sempre age, filho, mas não age no sentido da felicidade para aqueles que o arrancam em causa própria. Se um narniano roubasse um fruto e aqui o plantasse, protegeria Nárnia, mas transformaria este país em um império poderoso e cruel como Charn. E a feiticeira procurou tentá-lo de outro modo, não é, meu filho?
– Sim, Aslam. Queria que eu levasse uma fruta para minha mãe.
– Você a teria curado, se o fizesse; mas não teria conquistado a alegria, nem a sua, nem a dela. Chegaria o tempo em que se arrependeriam.
Digory ficou mudo, pois as lágrimas o agitavam, desfeitas as esperanças de salvar a mãe. No entanto, ao mesmo tempo, sabia que o Leão sabia o que teria acontecido, e que deviam existir coisas mais pavorosas do que a morte de quem se ama. Aslam falava agora quase em murmúrios:
– É o que teria acontecido com o fruto roubado, meu filho. Mas não é o que acontecerá. O que lhe darei agora há de trazer-lhe a alegria. Em seu mundo, o fruto não trará a vida eterna, mas terá o poder de curar. Vá. Colha um fruto da árvore.
Por um segundo Digory não entendeu nada. Era como se o mundo estivesse virado pelo avesso. Depois, como se sonhasse, caminhou para a árvore. O rei e a rainha e as criaturas todas o aplaudiam. Colheu a maçã e guardou-a no bolso. Depois, voltou até Aslam.
– Por favor, posso ir para casa agora? Esquecera-se de dizer “obrigado”, mas Aslam compreendeu que ele estava agradecido.

15
FIM DESTA HISTÓRIA E COMEÇO DE TODAS AS OUTRAS


– Não precisam de anéis quando estou com vocês – falou a voz de Aslam.
As crianças piscaram e olharam em volta. Estavam novamente no Bosque entre Dois Mundos. Tio André, estendido no chão, continuava a dormir. Aslam, ao lado, dizia:
– Devem voltar agora, mas há duas coisas a que devem prestar atenção: um aviso e uma ordem. Olhem.
Viram um pequeno vazio na relva.
– Quando aqui estiveram da última vez, esse vazio era um lago; quando mergulharam nele, chegaram a um mundo onde um sol moribundo iluminava as ruínas de Charn. Já não há lago. Aquele mundo acabou, como se jamais tivesse existido. Que a raça de Adão e Eva receba esse aviso.
– Mas a gente é tão ruim como as pessoas de Charn? – indagou Polly.
– Ainda não, Filha de Eva. Ainda não. Mas estão caminhando para isso. Não é impossível que um homem perverso de sua raça descubra um segredo tão pavoroso quanto o da Palavra Execrável, e use esse segredo para destruir todas as coisas vivas. Breve, muito breve, antes que envelheçam, grandes nações em seu mundo serão governadas por tiranos parecidos com a imperatriz Jadis: indiferentes à alegria, à justiça e ao perdão. Avisem seu mundo deste grande perigo. E a ordem é esta: logo que puderem, tomem do tio os anéis mágicos e os enterrem, para que ninguém volte a usá-los.
As crianças olhavam para a face do Leão enquanto ele pronunciava essas palavras. De repente (nunca souberam como aconteceu), foi como se a face de Aslam se tornasse um mar de ouro no qual flutuavam; inexprimível força e ternura passavam por eles e por dentro deles; e sentiram que jamais na vida haviam sido realmente felizes, bons ou sábios, nem mesmo vivos e despertos, até aquele momento. A lembrança desse instante permaneceu com eles para sempre; enquanto viveram, se alguma vez se sentiam tristes, amedrontados ou irados, a lembrança daquela bondade dourada retornava, dando-lhes a certeza de que tudo estava bem. E sabiam que podiam encontrá-la ali perto, numa esquina ou atrás de uma porta.
Um minuto depois, os três (tio André já acordado) despencaram no barulho e no cheiro forte de Londres.
Achavam-se na calçada, diante da casa dos Ketterley. Tudo como antes, menos a feiticeira, o cavalo e o cocheiro. Faltava a barra no poste; lá estavam os restos do cabriolé; e lá também estava a multidão. Todos falavam, e pessoas ajoelhavam-se diante do policial ferido, perguntando: “Como está?”, “Sente-se melhor?”, “A ambulância estará aqui num instantinho”.
– Puxa! – disse Digory para si mesmo. – Parece que a aventura toda aconteceu num abrir e fechar de olhos.
Muitos procuravam Jadis e o cavalo. Ninguém tomou conhecimento das crianças, pois ninguém percebeu que tinham ido e voltado. Quanto a tio André, pelo estado de suas roupas e pela cara cheia de mel, não poderia ter sido reconhecido por ninguém. Felizmente a porta da frente estava aberta e a empregada continuava lá, apreciando a confusão (que dia fabuloso teve a moça!), e assim as crianças não tiveram dificuldade de empurrar tio André para dentro, antes que fizessem qualquer pergunta.
Ele correu pelas escadas, à frente; as crianças temeram que demandasse o sótão para esconder os anéis restantes. Mas não precisavam preocupar-se. Tio André procurava uma garrafa escondida no guarda-roupa. Saiu de roupão e foi direto para o banheiro.
Digory perguntou a Polly:
– Será que você pode apanhar os outros anéis? Quero ver mamãe.
– Perfeito. A gente se vê mais tarde. – E Polly subiu para o sótão.
Digory respirou fundo e, na ponta dos pés, dirigiu-se ao quarto da mãe. Muitas vezes a vira naquela mesma atitude, afundada nos travesseiros, o rosto pálido e magro de trazer lágrimas aos olhos. O menino tirou do bolso a Maçã da Vida.
Assim como a feiticeira parecia diferente em nosso mundo, também o fruto do jardim da montanha parecia diferente. Havia muitas coisas coloridas no quarto, é claro: a colcha, o papel de parede, a luz do sol na vidraça, e a bonita blusa azul da mãe do menino. Mas, quando Digory retirou a maçã do bolso, essas coisas todas nem pareciam ter cor. Até a luz do sol parecia mortiça. O fulgor da maçã lançava estranhas luzes no teto. Nada mais merecia ser olhado, e nem era mesmo possível olhar para outra coisa. E o perfume da maçã era como se a janela daquele quarto desse para o paraíso.
– Oh, meu querido, que linda!
– Quer comer a maçã agora, por favor?
– Será que o médico vai aprovar? – indagou ela. – Pensando bem, acho que ele não vai se importar. O menino descascou a fruta e deu à mãe em pequenos pedaços. Antes que ela terminasse, sorriu, mergulhou a cabeça nos travesseiros e adormeceu. Um sono natural e bom, sem necessidade daquelas drogas medonhas, era (Digory o sabia) o que a mãe mais queria no mundo.
Certo de que ela já se achava melhor, beijou-a no rosto de leve, saiu do quarto com o coração aos pinotes, levando o miolo da maçã. Durante o resto do dia, ao olhar para as coisas, todas tão comuns e sem magia, não chegou a ter grandes esperanças. Esta, a esperança, só veio quando se lembrou dos olhos de Aslam.
À tarde, enterrou o miolo da maçã no quintal. No dia seguinte, quando o médico chegou para a visita diária, Digory inclinou-se no balaústre da escada para ouvir. O doutor dizia para tia Leta:
– Minha senhora, é o caso mais extraordinário de toda a minha carreira. Parece até um milagre. Não diga nada ao menino por enquanto; não é bom criar falsas esperanças. Mas, na minha opinião... – e a voz do médico ficou muito baixa para ser ouvida.
Digory foi ao quintal e assobiou para Polly o sinal secreto (ela não pudera aparecer no dia anterior).
– E a sua mãe? – perguntou logo a menina, de cima do muro.
– Acho... acho que vai dar tudo certo. Mas, desculpe, prefiro não tocar no assunto por enquanto. E os anéis?
– Peguei todos. Olhe, não há perigo, estou usando luvas. Vamos enterrá-los.
– Vamos. Marquei o lugar onde enterrei ontem o miolo da maçã.
Polly desceu do muro e foram até o lugar. A marca seria desnecessária: já alguma coisa nascia da terra. Não tão rapidamente como em Nárnia, é claro.
Arranjaram uma colher de pedreiro e enterraram os anéis, inclusive os que usaram, num círculo em torno do broto.
Uma semana depois, sem dúvida nenhuma, a mãe de Digory achava-se melhor. Mais duas semanas, já podia sentar-se no jardim. Um mês mais tarde, toda a casa estava mudada. Tia Lera fez tudo o que a convalescente pediu: janelas foram abertas, reposteiros foram recolhidos para aclarar os quartos, havia flores por todos os cantos, coisas mais gostosas para comer, e a mãe voltou a cantar ao piano. Às vezes brincava de tal jeito com as crianças, que tia Lera dizia:
– Você, Mabel, é mais criança do que as crianças.
Quando as coisas vão mal, parece que vão de mal a pior durante certo tempo; mas quando começam a ir bem, parecem cada vez melhores.
Depois de seis semanas dessa vida feliz, chegou da índia uma carta do pai do Digory. O já velho tio-avô Kirke havia morrido; pelo jeito, o pai agora estava riquíssimo. Iria aposentar-se e deixar a índia para sempre. Morariam na grande casa de campo, da qual Digory ouvira falar a vida inteira mas na qual jamais pusera os olhos: o casarão com armaduras, estábulos, canis, bosques, parreiras e montanhas lá no fundo. Digory sentiu que seriam para sempre felizes. Mas devo contar para você mais duas coisas.
Polly e Digory continuaram grandes amigos e encontravam-se quase todas as férias na casa de campo. Foi aí que ela aprendeu a montar, a nadar, a tirar leite, a fazer bolo e a subir em montanhas.
Em Nárnia, os bichos viveram em grande tranqüilidade: a feiticeira não apareceu para perturbar a paz, nem nenhum outro inimigo, durante centenas de anos. O rei Franco, a rainha Helena e os filhos viveram felizes em Nárnia. Os meninos casaram-se com ninfas e as meninas com deuses da floresta e do rio. O poste que a feiticeira plantara sem querer brilhava noite e dia na floresta narniana; o lugar passou a chamar-se Ermo do Lampião. Quando, anos mais tarde, outra criança de nosso mundo chegou a Nárnia, numa noite de neve, a luz ainda estava acesa. Essa aventura está de certo modo ligada às outras que estou acabando de contar.
Foi assim: o miolo da maçã plantado por Digory no quintal transformou-se numa linda árvore. Crescendo no solo de nosso mundo, muito longe da voz de Aslam e do ar novo de Nárnia, não deu frutos que fizessem reviver uma pessoa doente, como aconteceu com a mãe de Digory, embora suas maçãs fossem mais belas do que todas as outras da Inglaterra, incrivelmente salutares, mas não de todo mágicas.
Mas dentro dela, na sua própria seiva, a árvore (por assim dizer) nunca se esqueceu da árvore de Nárnia à qual pertencera. Às vezes balançava-se misteriosamente, quando não havia vento soprando. Creio que nesses instantes havia altos ventos em Nárnia.
De qualquer forma, viu-se mais tarde que a árvore guardava magia em sua madeira. Pois quando Digory era um homem de meia-idade (um famoso professor, dado a grandes viagens), já proprietário da mansão dos Ketterley no campo, uma grande tempestade derrubou a árvore. Como não lhe agradasse a idéia de cortá-la e aproveitar a lenha na lareira, o professor utilizou parte da madeira para fazer um guarda-roupa, que foi levado para a casa de campo.
Apesar de ele próprio não ter descoberto as propriedades mágicas do guarda-roupa, outra pessoa o fez. Foi esse o começo de todas as idas e vindas entre Nárnia e o nosso mundo, que estão contadas em outros livros.
Quando Digory e seus pais foram morar na grande casa de campo, levaram tio André. Pois o pai do menino dissera: “Devemos evitar que o velho faça alguma bobagem, e não é direito que a coitada da tia Lera carregue-o sempre nas costas.”
Tio André nunca mais na vida se meteu em feitiçarias. Tinha aprendido sua lição. Com o correr dos anos, passou a ser mais simpático e menos egoísta. Mas sempre gostou de levar as visitas à sala para contar-lhes secretas histórias de uma dama misteriosa, pertencente a uma família real estrangeira, com quem ele andara às voltas pela cidade de Londres.
– Um demônio de temperamento – dizia ele. – Mas que mulher, meu amigo, que mulher!


Fim do Vol. I

Próximo volume:
O Leão, o Feiticeiro e o Guarda-Roupa

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