segunda-feira, 13 de junho de 2011

Percy Jackson e o Ladrão de Raios - Capítulos 6 ao 10

SEIS
Minha transformação em senhor do banheiro.

Depois que assimilei o fato de meu professor de latim ser um cavalo, fizemos um
passeio agradável, embora tivesse o cuidado de não andar atrás dele. Havia participado
algumas vezes das rondas com pazinhas para recolher cocô de cachorro na Parada do
Dia de Ação de Graças da loja Macy1s e, lamento dizer, não confiava na parte de trás de
Quíron tanto quanto confiava na da frente.
Passamos pela quadra de vôlei. Diversos campistas se cutucavam. Um deles apontou
para o chifre de minotauro que eu carregava. Um outro disse:
- É ele.
A maioria dos campistas era mais velha que eu. Seus amigos sátiros eram maiores que
Grover, todos trotando de um lado para outro de camisetas cor de laranja do
ACAMPAMENTO MEIO-SANGUE, sem nada para cobrir os traseiros peludos à
mostra. Eu normalmente não era tímido, mas o modo como olhavam para mim me
deixou pouco à vontade. Era como se esperassem que eu desse um salto mortal ou coisa
assim.
Olhei para a casa de fazenda trás de mim. Era muito maior do que eu pensara – quatro
andares, azul-céu com acabamento em branco, como um hotel de veraneio de primeira
classe à beira-mar.
Eu estava conferindo o cata-vento de latão em forma de águia no topo quando algo me
chamou a atenção, uma sombra na janela mais alta do sótão. Alguma coisa havia
mexido na cortina, só por um segundo, e tive a nítida impressão de que estava sendo
observado.
- O que há lá em cima? - perguntei a Quíron. Ele olhou para onde eu estava apontando e
seu sorriso desapareceu:
- Apenas o sótão.
- Mora alguém lá?
- Não - disse em tom definitivo. - Nem uma única coisa viva.
Tive a sensação de que ele falava a verdade. Mas também tinha certeza de que algo
havia mexido naquela cortina.
- Venha, Percy - disse Quíron, o tom despreocupado agora um pouco forçado. - Há
muito para ver.
Caminhamos pelos campos de morangos, onde campistas colhiam alqueires de
morangos enquanto um sátiro tocava uma melodia numa flauta de bambu.
Quíron me contou que o acampamento cultivava uma bela safra para exportar para os
restaurantes de Nova York e para o Monte Olimpo.
- Paga as nossas despesas - explicou. - E os morangos não exigem esforço quase
nenhum.
Ele disse que o sr. D produzia esse efeito sobre plantas frutíferas: elas simplesmente
enlouqueciam quando ele estava por perto. Funcionava melhor com as vinhas, mas o sr.
D estava proibido de cultivá-las, portanto, em vez delas eles plantavam morangos.
Observei o sátiro tocando a flauta. A música fazia com que filas de insetos saíssem dos
canteiros de morangos em todas as direções, como se fugissem de um incêndio.
Imaginei se Grover podia fazer esse tipo mágica com música. Imaginei se ainda estava
dentro da casa, levando broncas do sr. D.
-Grover não vai ter muitos problemas, vai? — perguntei a Quíron. – Quer dizer... ele foi
um bom protetor. Sem dúvida.
Quíron suspirou. Tirou o casaco de tweed e jogou-o por cima do seu lombo de cavalo,
como uma sela.
- Grover sonha alto , Percy. Talvez mais alto do que seria razoável. Para atingir seu
objetivo, ele precisa primeiro demonstrar uma grande coragem tendo sucesso como
guardião, encontrando um novo campista e trazendo-o em segurança à Colina Meio-
Sangue.
- Mas ele fez isso!
- Eu poderia concordar com você - disse Quíron. - Mas não cabe a mim julgar. Dioniso
e o Conselho dos Anciãos de Casco Fendido devem decidir. Receio que possam não ver
essa missão como um sucesso. Afinal, Grover perdeu você em Nova York, há o
desventurado... ahn... destino da sua mãe. E o fato de que Grover estava inconsciente
quando você o arrastou até os limites da propriedade. O conselho pode questionar se
isso demonstra alguma coragem da parte de Grover.
Eu quis protestar. Nada do que acontecera havia sido por culpa de Grover. Também me
sentia muito, muito culpado. Se não tivesse escapado de Grover na estação de ônibus,
ele poderia não ter se envolvido em encrenca.
- Ele vai ter uma segunda chance, não vai?
Quíron retraiu-se.
Infelizmente aquela era a segunda chance de Grover, Percy. Além disso, o conselho não
estava muito ansioso em lhe dar outra oportunidade depois do que aconteceu na
primeira vez, cinco anos atrás.
O Olimpo sabe, eu o aconselhei a esperar mais tempo antes de tentar de novo. Ele ainda
é muito pequeno para a sua idade.
- Que idade ele tem?
- Ah, vinte e oito.
- O quê! E ainda está na sexta série?
- Os sátiros amadurecem no dobro do tempo dos seres humanos, Percy. Grover teve
idade equivalente à de um aluno de escola secundária nos últimos seis anos.
- Que coisa horrível.
- De fato - concordou Quíron. - De qualquer modo, Grover está atrasado, mesmo pelos
padrões de sátiro, e ainda não avançou muito em magia dos bosques. O pobre estava
ansioso por perseguir o seu sonho.
Talvez agora encontre alguma outra carreira...
- Isso não é justo! - disse eu. - O que aconteceu na primeira vez? Foi mesmo assim tão
ruim?
Quíron desviou os olhos depressa.
- Vamos andando?
Mas eu ainda não estava pronto para mudar de assunto. Uma coisa me ocorrera quando
Quíron falou sobre o destino de minha mãe, como se estivesse intencionalmente
evitando a palavra morte. O princípio de uma ideia - uma pequenina e esperançosa
chama - começou a se formar em minha cabeça.
- Quíron - disse eu. - Se os deuses, o Olimpo e tudo isso são reais...
- Sim, criança?
- Isso significa que o Mundo Inferior também é real? A expressão de Quíron se fechou.
- Sim, criança. - Ele fez uma pausa, como se estivesse escolhendo as palavras
cuidadosamente. - Há um lugar para onde vão os espíritos após a morte. Mas por ora...
até que saibamos mais...eu recomendaria que tirasse isso de sua cabeça.
- O que quer dizer com "até que saibamos mais"?
- Venha, Percy. Vamos ver os bosques.
Quando nos aproximamos, me dei conta de como a floresta era enorme. Tomava pelo
menos um quarto do vale, com árvores tão altas e largas que a impressão era de que
ninguém entrara lá desde os nativos americanos.
Quíron disse:
- Os bosques têm provisões, se você quiser tentar a sorte,
- Provisões de quê? – perguntei. - Armado com o quê?
- Você verá. O jogo Capture a Bandeira é na sexta-feira à noite. Você tem a sua própria
espada e escudo?
- Minha própria...?
- Não - disse Quíron. - Não creio que tenha. Acho que o tamanho cinco vai servir. Mais
tarde vou visitar o arsenal.
Quis perguntar que tipo de acampamento de verão tem um arsenal, mas havia muito
mais a pensar, portanto o passeio continuou. Vimos a linha de tiro com arco-e-flecha, o
lago de canoagem, os estábulos (dos quais Quíron parecia não gostar muito), a linha de
lançamento de dardo, o anfiteatro para cantoria e a arena onde Quíron disse que eles
realizavam lutas de espadas e lanças.
- Lutas de espadas e lanças? - perguntei.
- Desafios entre chalés e coisas assim - explicou ele. - Não são letais. Normalmente. Ah,
sim, e há também o
refeitório. Quíron apontou para um pavilhão ao ar livre emoldurado por colunas gregas
brancas sobre uma colina que dava para o mar. Havia uma dúzia de mesas de
piquenique de pedra. Sem telhado. Sem paredes.
- O que vocês fazem quando chove? - perguntei.
Quíron me olhou como se eu tivesse ficado meio maluco.
- Ainda assim temos de comer, não temos?
Resolvi deixar para lá.
Finalmente, ele me mostrou os chalés. Havia doze deles aninhados no bosque junto ao
lago. Estavam dispostos em U, dois na frente e cinco enfileirados de cada lado. E eram,
sem dúvida, o mais estranho conjunto de construções que já vi.
A não ser pelo fato de cada um ter um grande número de latão acima da porta (ímpares
do lado esquerdo, pares do direito), eram totalmente diferentes um do outro. O número
9 tinha chaminés como uma minúscula fábrica. O número 4 tinha tomateiros nas
paredes e uma cobertura feita de grama de verdade. O 7 parecia feito de um ouro sólido
que reluzia tanto à luz do sol que era quase impossível de se olhar. Todos davam para
uma área comum mais ou menos do tamanho de um campo de futebol, pontilhada de
estátuas gregas, fontes, canteiros de flores e um par de cestos de basquete (o que era
mais a minha praia). No centro do campo havia uma enorme área de pedras com uma
fogueira. Muito embora fosse uma tarde quente, o fogo ardia de modo lento. Uma
menina com cerca de nove anos estava cuidando das chamas, cutucando os carvões com
uma vara.
O par de chalés à cabeceira do campo, números 1 e 2, pareciam mausoléus casadinhos,
grandes caixas de mármore branco com colunas pesadas na frente. O chalé l era o maior
e mais magnífico dos doze.
As portas de bronze polido cintilavam como um holograma, de tal modo que, vistas de
ângulos diferentes, raios pareciam atravessá-las. O chalé 2 era de certo modo mais
gracioso, com colunas mais finas encimadas com romãs e flores. As paredes eram
entalhadas com imagens de pavões.
- Zeus e Hera? - adivinhei.
- Correto - disse Quíron.
- Os chalés parecem vazios.
- Diversos chalés estão vazios. è verdade. Ninguém jamais fica no 1 ou 2.
Certo. Então cada chalé tinha um deus diferente como mascote e chalés para os doze
olimpianos. Mas por que alguns estariam vazios?
Parei na frente do primeiro chalé da esquerda, o número 3.
Não era alto e imponente como o chalé 1, mas comprido, baixo e sólido. As paredes
externas eram de pedras cinzentas rústicas salpicadas de pedaços de conchas e coral,
como se as pedras tivessem sido cortadas diretamente do fundo do oceano. Espiei para
dentro da porta aberta e Quíron disse:
- Ih, eu não faria isso!
Antes que ele pudesse me puxar de volta, senti o odor salgado do interior, como o vento
na praia de Montauk. As paredes internas brilhavam como madrepérola. Havia seis
beliches vazios com lençóis de seda virados para baixo. Mas não havia indício de que
alguém já tivesse dormido lá. O lugar parecia tão triste e solitário que fiquei contente
quando Quíron pôs a mão no meu ombro.
- Vamos, Percy.
A maioria dos outros chalés estava abarrotada de campistas.
O numero 5 era vermelho vivo - uma pintura muito malfeita, como se a cor tivesse sido
jogada a esmo com baldes e mãos. O telhado era forrado de arame farpado. Uma cabeça
de javali empalhada estava pendurada acima da porta e seus olhos pareciam me seguir.
Dentro pude ver um bando de meninos e meninas mal-encarados, disputando queda-debraço
e discutindo enquanto o rock tocava às alturas. A mais barulhenta era uma menina
de talvez treze ou quatoreze anos. Usava uma camiseta do ACAMAPMENTO MEIOSANGUE
tamanho GGG embaixo de um casaco camuflado. Ela mirou em mim e
lançou um maldoso olhar de desprezo. Fez lembrar Nancy Bobofit, só que a menina do
acampamento era muito maior e de aparência mais cruel, seu cabelo era comprido,
esticado e castanho, em vez de vermelho.
Continuei andando, tentando ficar longe dos cascos de Quíron.
- Ainda não vimos os centauros – observei.
- Não – disse Quíron chateado. – Infelizmente, meus parentes são uma gente selvagem e
bárbara. Você pode encontrá-los no mato ou em eventos desportivos importantes. Mas
não verá nenhum aqui.
- Você disse que seu nome é Quíron. Você é mesmo...
Ele sorriu para mim.
- O Quíron das histórias? Instrutor de Hércules e tudo aquilo? Sim, Percy, eu sou.
- Mas você não devia estar morto?
Quíron fez uma pausa, como se a pergunta o intrigasse.
- Honestamente, não sei nada sobre devia. A verdade é que eu não posso estar morto.
Entenda, há muitas eras os deuses concederam meu desejo. Pude continuar o trabalho
que adorava. Pude ser um mestre de heróis enquanto a humanidade precisasse de mim.
Ganhei muito com aquele desejo... e renunciei a muito. Mais ainda estou aqui, portanto
só posso presumir que ainda sou necessário.
Pensei sobre ser um professor de três mil anos. Isso não estaria na minha lista das Dez
Coisas Mais Desejadas.
- Isso nunca fica chato?
- Não, não – disse ele. – Horrivelmente deprimente às vezes, mas nunca chato.
- Por que deprimente?
Quíron pareceu ficar com alguma deficiência auditiva de novo.
- Ah, olhe – disse ele. – Annabeth está esperando por nós.

*****

A menina loira que eu conhecera na Casa Grande estava lendo um livro na frente do
último chalé da esquerda, o número 11.
Quando nos aproximamos, ela olhou para mim com um ar crítico, como se ainda
estivesse pensando em como eu babava.
Tentei ver o que ela estava lendo, mas não consegui distinguir o título. Achei que fosse
minha dislexia em ação. Então me dei conta de que o título não era sequer em inglês. As
letras pareciam grego par mim. Quer dizer, literalmente grego. Havia figuras de templos
e estátuas e diferentes tipos de colunas, como em um livro de arquitetura.
- Annabeth – disse Quíron – eu tenho aula de arco-e-flecha para mestres ao meio-dia.
Você cuidaria de Percy a partir daqui?
- Sim, senhor.
- Chalé 11 – disse Quíron para mim, fazendo um gesto em direção à porta. – Sinta-se
em casa.
Entre todos os chalés, o 11 era o que mais parecia um velho chalé comum de
acampamento de verão, com ênfase no velho. A soleira estava desgastada, a pintura
marrom, descascando. Acima do vão da porta havia um daqueles símbolos de médico,
um bastão alado com duas serpentes enroscadas nele. Como é mesmo que chamavam
aquilo...? Um caduceu.
Dentro, estava abarrotado de gente, meninos e meninas, em muito maior número que os
beliches. Sacos de dormir estavam espalhados por todo piso. Parecia um ginásio onde a
Cruz Vermelha estabelecera um centro de refugiados.
Quíron não entrou. A porta era muito baixa para ele. Mas quando os campistas o viram,
todos se puseram em pé e fizeram uma reverência respeitosa.
- Então tudo bem – disse Quíron. – Boa sorte, Percy. Vejo você no jantar.
Ele partiu a galope ruma à linha de arco-e-flecha.
Fiquei em pé no vão da porta, olhando para a garotada. Não estavam mais se curvando.
Olhavam para mim, medindo-me com os olhos. Conheço essa rotina. Havia passado por
ela em muitas escolas.
- Tudo bem? – instigou Annabeth. – Vá em frente.
Então, naturalmente, tropecei ao passar pela porta e fiz um completo papel de bobo.
Houve algumas risadinhas dos campistas, mas nenhum deles disse nada.
Annabeth anunciou:
- Percy Jackson, apresento-lhe o chalé 11.
- Normal ou indeterminado? - perguntou alguém.
Eu não sabia o que dizer, mas Annabeth disse:
- Indeterminado.
Todos gemeram.
Um cara que era um pouco mais velho que o restante chegou para frente.
- Vamos, vamos, campistas. É para isso que estamos aqui. Bem-vindo, Percy. Você
pode ficar com aquele ponto no chão logo ali.
O cara tinha cerca de dezenove anos e parecia muito legal. Era alto e musculoso, com
cabelo com cor de areia aparado curto e um sorriso amigável. Usava uma camiseta
regata laranja, calças cortadas, sandálias e um colar de couro com cinco contas de argila
em cores diferentes. A única coisa perturbadora na sua aparência era uma grossa cicatriz
branca que corria desde logo abaixo do olho direito até o queixo, como um antigo corte
de faca.
- Este é Luke – disse Annabeth, e sua voz pareceu mudar um pouco. Dei uma olhada
nela e poderia ter jurado que estava ficando vermelha. Ela me viu olhando e sua
expressão endureceu de novo. – Ele é seu conselheiro por enquanto.
- Por enquanto? – perguntei.
- Você é indeterminado – explicou Luke pacientemente. – Eles não sabem em que chalé
acomodá-lo, então você está aqui. O chalé 11 recebe todos os recém-chegados, todos os
visitantes. Naturalmente Hermes, nosso patrono, é o deus dos viajantes.
Olhei para o minúsculo espaço de chão que eles me deram. Eu não tinha nada para pôr
ali e marcá-lo como meu, nenhuma bagagem, nenhuma roupa, nenhum saco de dormir.
Apenas o chifre do Minotauro. Pensei em colocá-lo ali, mas então lembrei que Hermes
era também o deus dos ladrões.
Corri os olhos pelos rostos dos campistas, alguns mal-humorados e desconfiados, outros
com um sorriso idiota, alguns me olhando como se esperassem uma oportunidade de
limpar os meus bolsos.
- Quanto tempo vou ficar aqui? – perguntei.
- Boa pergunta – disse Luke. – Até você ser determinado.
- Quanto tempo isso vai levar?
Todos os campistas riram.
- Venha – disse Annabeth. – Vou lhe mostrar o pátio de vôlei.
- Eu já vi.
- Venha.
Ela agarrou meu pulso e me arrastou para fora. Pude ouvir o pessoal do chalé dando
risadas atrás de mim.

*****

Quando estávamos a poucos metros de distancia, Annabeth disse:
- Jackson, voce precisa fazer melhor do que isso.
- O quê?
Ela revirou os olhos e murmurou baixinho:
- Não posso acreditar que achei que voce fosse o cara.
- Qual é o seu problema? – Eu agora estava ficando zangado. – Tudo o que sei é que
matei um sujeito-touro...
- Não fale assim! – disse Annabeth. – Você sabe quantos neste acampamento gostariam
de ter tido a sua chance?
- De ser mortos?
- De enfrentar o Minotauro! Para que voce acha que nós somos treinados?
Eu sacudi a cabeça.
- Olhe, se a coisa contra a qual eu lutei era realmente o Minotauro, o mesmo das
historias...
- Sim.
- Então só existe um.
- Sim.
- E ele morreu, tipo um zilhão de anos atrás, certo? Teseu o matou no labirinto.
Portanto...
- Monstros não morrem, Percy. Eles podem ser mortos. Mas eles não morrem.
- Ah, obrigado. Agora entendi tudo.
- Eles não têm alma, como voce e eu. Voce pode bani-los por algum tempo, talvez até
por todo uma vida, se tiver sorte. Mas eles são forças primitivas. Quíron os chama de
arquétipos. No fim, eles se reconstituem.
Pensei na sra. Dodds.
- Você quer dizer que se eu matei um, acidentalmente, com uma espada....
- A Fúr... Quer dizer, a sua professora de matemática. Está certo. Ela ainda está lá fora.
Você apenas a deixou muito, muito zangada.
- Como você sabe da sra. Dodds?
- Você fala dormindo.
- Você quase a chamou de alguma coisa. Uma Fúria? Elas são torturadoras de Hades,
certo?
Annabeth olhou nervosamente para o chão, como se esperasse que ele se abrisse e a
engolisse.
- Você não deve chamá-las pelo nome, mesmo aqui. Se acabamos tendo de falar nelas,
nós as achamos de as Benevolentes.
- Puxa, existe alguma coisa que se possa dizer sem que haja trovões? – Eu soie
reclamão, até para mim mesmo, mas naquele momento não me importei. – Por que
tenho de ficar no chalé 11, afinal? Por que fica todo mundo amontoado? Há uma porção
de beliches vazios logo ali.
Apontei para os primeiros chalés e Annabeth empalideceu.
- A gente não escolhe simplesmente um chalé, Percy. Depende de quem são seus
progenitores. Ou... o seu progenitor.
Ela olhou fixamente para mim, esperando que eu entendesse.
- Minha mãe é Sally Jackson – disse eu. – Trabalha na doceria da Grande Estação
Central. Pelo menos trabalhava.
- Sinto muito pela sua mãe, Percy. Mas não é isso que eu quis dizer. Estou falando sobre
seu outro progenitor. Seu pai.
- Ele está morto. Não cheguei a conhecê-lo.
Annabeth suspirou. Era claro que já tivera aquela conversa com outras crianças:
- Seu pai não está morto, Percy.
- Como pode dizer isso? Você o conhece?
- Não, é claro que não.
- Então como você pode dizer...
- Porque eu conheço você. Você não estaria aqui se não fosse um de nós.
- Você não sabe nada a meu respeito.
- Não? – Ela ergueu uma sombrancelha. – Aposto que você ficou passando de escola em
escola. Aposto que foi expulso de uma porção delas.
- Como...
- Teve diagnóstico de dislexia. Provavelmente transtorno do déficit de atenção também.
Tentei engolir meu constragimento.
- O que isso tem a ver?
- Tudo junto, é quase um sinal certo. As letras flutuam para fora da página quando você
lê, certo? Isso é porque a sua mente está fisicamente programada para o grego antigo. E
o transtorno do déficit de atenção... você é impulsivo, não consegue ficar quieto na
classe. Isso são os seus reflexos de campo de batalha. Numa luta real, eles o manterão
vivo. Quanto aos problemas de atenção, isso é porque enxerga demais, Percy, e não de
menos. Seus sentidos são mais aprimorados que os de um mortal comum. É claro que os
professores querem que você seja medicado. Eles são em maioria monstros. Não
querem que você os veja como são.
- Você parece... você passou pelas mesmas coisas?
- A maioria das crianças daqui passou. Se você não fosse um de nós, não poderia ter
sobrevivido ao Minotauro, e muito menos à ambrosia e ao néctar.
- Ambrosia e néctar.
- A comida e a bebida que estávamos dando a você para curá-lo. Aquilo teria matado
um garoto normal. Teria transformado seu sangue em fogo e seus ossos em areia e você
estaria morto. Encare os fatos. Você é um meio-sangue.
Um meio-sangue.
Minha cabeça estava girando com tantas perguntas que eu não sabia por onde começar.
- Ora, ora! Um novato!
Eu dei uma olhada. A menina grandalhona do chlá feio e vermelho vinha andando
lentamente em nossa direção. Havia três outras meninas atrás dela, todas grandes, feias
e de aparencia malvada como ela, todas usando casacos camuflados.
- Clarisse – suspirou Annabeth -, por que você não vai polir sua lança ou coisa assim?
- Claro, srta. Princesa – disse a grandalhona. – Para poder atravessar você com ela na
sexta-feira à noite.
- Erre es korakas! – disse Annabeth, o que eu de algum modo entendi que era “Vá para
os corvos!” em grego, embora tivesse a sensação de que devia ser uma praga pior do
que parecia. – Você não tem chance.
- Vamos transformá-la em pó – disse Clarisse, mas seu olho se crispou. Talvez ela não
tivesse certeza de poder cumprir a ameaça. Voltou-se para mim. – Quem é esse nanico?
- Percy Jackson – disse Annabeth -, esta é Clarisse, filha de Ares.
Eu pisquei.
- Tipo... o deus da guerra?
Clarisse sorriu desdenhosa.
- Você tem algum problema com isso?
- Não – disse eu, recobrando minha presença de espírito. – Isso explica o mau cheiro.
Clarisse rosnou.
- Nós temos uma cerimônia de iniciação para novatos, Persiana.
- Percy.
- Seja o que for. Venha, vou lhe mostrar.
- Clarisse... – Annabeth tentou dizer.
- Fique fora disso, espertinha.
Annabeth pareceu ofendida, mas ficou de fora, e eu realmente não queria a ajuda dela.
Eu era o novato. Tinha de construir minha própria reputação.
Entreguei a Annabeth meu chifre de minotauro e me preparei para a luta, mas antes que
eu percebesse Clarisse tinha me segurado pelo pescoço e me arrastava na direção de um
edifício de blocos de concreto que percebi imediatamente que era o banheiro.
Eu chutava e dava murros no ar. Já tinha estado em muitas brigas antes, mas aquela
Clarisse grandalhona tinha mãos de ferro. Arrastou-me para dentro do banheiro das
meninas. Havia uma fileira de vasos sanitários de um lado e uma fileira de chuveiros do
outro. Cheirava como qualquer banheiro público, e eu estava pensando – tanto quanto
podia pensar com Clarisse me arrancando os cabelos – que se aquele lugar pertencia aos
deuses, eles deviam poder comprar privadas melhores.
As amigas de Clarisse estavam todas rindo, e eu tentava encontrar a força que usara para
enfrentar o Minotauro, mas ela simplesmente não estava lá.
- Como se ele fosse dos “Três Grandes” – disse Clarisse, me empurrando em direção a
um dos vasos. – Certo. O Minotauro provavelmente caiu na risada, de tão bobo que ele
parecia.
As amigas abafaram o riso.
Annabeth ficou no canto, observando através dos dedos.
Clarisse me forçou sobre os joelhos e começou a empurrar minha cabeça para dentro do
vaso sanitário, que fedia a canos enferrujados e, bem, ao que vai para dentro de vasos
sanitários. Fiz esforço para manter a cabeça erguida. Estava olhando para a água imunda
e pensando: eu não vou enfiar a cabeça naquilo. Não vou.
Então algo aconteceu. Senti uma pressão violenta na boca do estômago. Ouvi os
encanamentos roncando, os canos estremeceram. A mão de Clarisse no meu cabelo
afrouxou. A água pulou para fora do vaso, formando um arco por cima da minha
cabeça, e em seguida me vi estatelado sobre os ladrilhos do piso do banheiro com
Clarisse berrando atrás de mim.
Eu me virei bem no momento em que a água explodiu para fora do vaso outra vez,
atingindo Clarisse bem no rosto com tanta força que a fez cair de traseiro no chão. A
água continuou jorrando em cima dela como o jato de uma mangueira de incêndio,
empurrando-a para trás, para dentro de um boxe de chuveiro.
Ela se debateu, esbaforida, e as amigas começaram a ir em sua direção. Mas então os
outros vasos também explodiram, e mais seis jorros de água de privada as empurravam
de volta. Os chuveiros também entraram em ação e, em conjunto, todos os dispositivos
lançaram as meninas camufladas para fora do banheiro, fazendo-as rodopiar como
pedaços de lixo sendo removidos com jatos d’água.
Assim que elas foram postas porta afora, sentia a pressão nas minhas entranhas se
aliviar, e a água parou de jorrar tão depressa quanto começara.
O banheiro inteiro estava inundado. Annabeth não tinha sido poupada. Estava toda
molhada e pingando, mas não fora empurrada para fora. Estava de pé exatamente no
mesmo lugar me olhando em estado de choque.
Olhei para baixo e me dei conta de que estava sentado no único ponto seco em todo o
recinto. Havia um círculo de piso seco em volta de mim. Não havia nem uma gota
d’água nas minhas roupas. Nada.
Levantei com as pernas trêmulas.
Annabeth disse:
- Como você...
- Eu não sei.
Caminhamos até a porta. Do lado de fora, Clarisse e as amigas estavam prostadas na
lama e um bando de outros campistas se reunira em volta para olhar, perplexos. O
cabelo de Clarisse estava colado no rosto. O casaco camuflado estava encharcado e ela
cheirava a esgoto. Ela me lançou um olhar de ódio absoluto.
- Você está morto, novato. Está totalmente morto.
Talvez eu devesse ter deixado pra lá, mas disse:
- Quer gargarejar com água da privada de novo, Clarisse? Cale essa boca.
As amigas tiveram de segurá-la. Arrastaram-na para o chalé 5, enquanto os outros
campistas abriam caminho para evitar seus membros que esperneavam.
Annabeth olhou para mim. Eu nãos abia dizer se ela estava apenas enjoada ou zangada
comigo por encharcá-la.
- O que foi? – perguntei. – O que está pensando?
- Estou pensando – disse ela – que quero você no meu time para capturar a bandeira.

SETE
Meu jantar se esvai em fumaça.
A notícia do incidente no banheiro se espalhou na mesma hora. Aonde quer que eu
fosse, os campistas apontavam para mim e murmuravam algo sobre água de vaso
sanitário. Ou talvez apenas olhassem para Annabeth, que ainda estava bastante
encharcada.
Ela me mostrou mais alguns lugares: a oficina de metais (onde as crianças forjavam as
próprias espadas), a sala de artes e ofícios (onde os sátiros jateavam com areia uma
estátua gigante de um home-bode) e a parede para escalada, que na verdade consistia
em duas paredes que se sacudiam violentamente, deixavam cair rochas, espalhavam
lava e colidiam uma com a outra se a gente não chegasse ao topo bem depressa.
Finalmente retornamos ao lado de canoagem, de onde a trilha levava de volta aos
chalés.
- Tenho treinamento – disse Annabeth secamente. – O jantar é às sete e meia. Você só
tem de seguir o pessoal do chalé até o refeitório.
- Annabeth, desculpe pelos sanitários.
- Não importa.
- Não foi minha culpa.
Ela me olhou com ar cético e me dei conta de que tinha sido minha culpa. Eu havia feito
a água jorrar no banheiro. Não entendia como. Mas os vasos tinham respondido a mim.
Era como se eu fosse um dos canos.
- Você precisa falar com o Oráculo – disse Annabeth.
- Quem?
- Não quem. O quê. O Oráculo. Vou pedir a Quíron.
Olhei para o lago, desejando que alguém me desse uma resposta direta pelo menos uma
vez.
Eu não esperava que alguém estivesse olhando de volta para mim do fundo, portanto
meu coração deu um pulo quando notei duas meninas adolescente sentadas de pernas
cruzadas na base do píer, cerca de seis metros abaixo. Vestiam jeans e camisetas verdes
cintilantes, e os cabelos castanhos flutuavam soltos em volta dos ombros enquanto
peixinhos passavam por entre eles. Elas sorriram e acenaram como se eu fosse um
amigo há muito perdido.
Eu não sabia que outra coisa fazer. Acenei de volta.
- Não as encoraje – advertiu Annabeth. – As náiades são flertadoras incontroláveis.
- Náiades – repeti, sentindo-me completamente estupefado. – Já chega. Quero ir para
casa agora.
Annabeth franziu as sobrancelhas.
- Você não percebe, Percy? Você está em casa. Este é o único lugar na terra seguro para
crianças como nós.
- Você quer dizer crianças mentalmente perturbadas?
- Eu quero dizer não-humanas. Não totalmente humanas, de qualquer modo. Meio
humanas.
- Meio humanas e meio o quê?
- Acho que você sabe.
Eu não queria admitir, mas sabia, sim. Senti um formigamento nos membros, uma
sensação que às vezes me tomava quando minha mãe falava sobre meu pai.
- Deusas – disse eu. – Meio deusas.
Annabeth assentiu.
- Seu pai não está morto, Percy. Ele é um dos olimpianos.
- Isso é... loucura.
- Será? Qual é a coisa mais comum que os deuses faziam nas velhas historias? Eles
andavam por aí se apaixonando por seres humanos e tendo filhos com eles. Você pensa
que eles mudaram os hábitos nos últimos poucos milênios?
- Mas isso são apenas... – Eu quase disse mitos de novo. Então me lembrei do aviso de
Quíron de que daqui a dois mil anos eu poderia ser considerado um mito. – Mas se
todos aqui são meio deuses...
- Semideuses – disse Annabeth. – Esse é o termo oficial. Ou meio-sangues.
- Então quem é seu pai?
As mãos dela se apertaram em volta da balaustrada do píer. Tive a sensação de que
acabara de tocar em um assunto delicado.
- Meu pai é um professor em West Point – disse ela. – Não vejo desde que era muito
pequena. Ele ensina História Americana.
- Ele é humano.
- O quê? Está pensando que tem de ser um deus homem encontrando uma mulher
humana atraente, e não o contrário? Sabe que isso é machismo?
- Então quem é sua mãe?
- Chalé 6.
- O que significa?
Annabeth endireitou o corpo.
- Atena. Deusa da sabedoria e da guerra.
Certo, pensei. Por que não?
- E meu pai?
- Indeterminado – disse Annabeth, como eu lhe disse antes. Ninguém sabe.
- A não ser a minha mãe. Ela sabia.
- Talvez não, Percy. Os deuses nem sempre revelam sua identidade.
- Meu pai teria revelado. Ele a amava.
Annabeth me deu uma olhada cautelosa. Ela não queria acabar com as minhas ilusões.
- Talvez você esteja certo. Talvez ele vá enviar um sinal. Esse é o único modo de saber
com certeza: seu pai tem de mandar a você um sinal reclamando você como filho. Às
vezes isso acontece.
- Quer dizer que às vezes não acontece?
Annabeth correu a palma da Mao pela balaustrada.
- Os deuses são atarefados. Eles têm uma porção de filhos, e nem sempre... Bem, às
vezes eles não se importam conosco, Percy. Eles nos ignoram.
Pensei em algumas das crianças que tinha visto no chalé de Hermes, adolescentes que
pareciam mal-humorados e deprimidos, como se estivessem esperando por um chamado
que nunca viria. Conhecera crianças assim na Academia Yancy, descartadas para
internatos por pais ricos que não tinham tempo para lidar com elas. Mas os deuses
deviam se comportar melhor.
- Então eu estou encalhado aqui – disse eu. – É isso? Pelo resto da minha vida?
- Depende – disse Annabeth. – Alguns campistas só ficam no verão. Se você é filho de
Afrodite ou Demetra, provavelmente não é uma força realmente poderosa. Os monstros
podem ignorá-lo, e então você pode se arranjar com alguns meses de treinamento de
verão e viver no mundo mortal pelo resto do ano. Mas, para alguns de nós, sair é
perigoso demais. Temos de ficar o ano inteiro. No mundo mortal, atraímos monstros.
Eles percebem nossa presença. Vêm nos desafiar. Na maioria das vezes eles nos
ignoram ate termos idade suficiente para causar problemas – cerca de dez ou onze anos,
mas depois disso muitos dos semideuses vêem para cá ou são mortos. Alguns
conseguem sobreviver no mundo exterior e se tornam famosos. Acredite, se eu lhe
contasse os nomes você os conheceria. Alguns nem sequer se dão conta de que são
semideuses. Mas poucos, muito poucos são assim.
- Então os monstros não podem entrar aqui?
Annabeth sacudiu a cabeça.
- Não, a não ser que sejam intencionalmente mantidos nos bosques ou convocados por
alguém de dentro.
- Por que alguém ia querer convocar um monstro?
- Para pratica de lutas. Para pregar peças.
- Pregar peças?
- A questão é que as fronteiras são fechadas para manter os mortais e os monstros de
fora. Do lado de fora, os mortais olham para o vale e não vêem nada de inusitado,
apenas plantações de morangos.
- Então... você é uma campista de ano inteiro?
Annabeth assentiu. De dentro da gola da camiseta ela puxou um colar de couro com
cinco contas de argila de cores diferentes. Era exatamente como o de Luke, só que o de
Annabeth também tinha um grande anel de ouro enfiado, como um anel de faculdade.
- Estou aqui desde que tinha sete anos – disse ela. – Todo mês de agosto, no ultimo dia
da sessão de verão, a gente ganha uma conta por sobreviver mais um ano. Estou aqui há
mais tempo que a maioria dos conselheiros, e eles estão todos na faculdade.
- Por que veio tão jovem?
Ela girou o anel no colar.
- Não é da sua conta.
- Ah. – Fiquei ali por um minuto em um silêncio constrangedor. – Então... Eu poderia
simplesmente sair andando daqui agora mesmo, se quisesse?
- Seria suicídio, mas você poderia, com a permissão do sr. D ou de Quíron. Mas eles
não dariam permissão até o final da sessão de verão, a não ser...
- A não ser?
- Que lhe seja concedida uma missão. Mas isso dificilmente acontece. Na ultima vez...
A voz dela foi sumindo. Pude perceber pelo seu tom de voz que a ultima vez não tinha
ido muito bem.
- Antes, quando estava doente no quarto – disse eu -, quando você dava de comer aquela
coisa...
- Ambrosia.
- É. Você me perguntou algo sobre o solstício de verão.
Os ombros de Annabeth se contraíram.
- Então você sabe alguma coisa?
- Bem... não. Na minha antiga escola, ouvi por acaso Grover e Quíron conversando
sobre isso. Grover mencionou o solstício de verão. Ele disse algo como não termos
muito tempo, por causa do prazo final. O que isso queria dizer?
Ela apertou os punhos.
- Eu gostaria de saber. Quíron e os sátiros, eles sabem, mas não contaram para mim.
Algo está errado no Olimpo, algo muito importante. Na ultima vez em que estive lá,
parecia tudo tão normal.
- Você esteve no Olimpo?
- Alguns de nós, campistas de ano inteiro... Luke, Clarisse, eu e poucos outros... fizemos
uma excursão durante o solstício de inverno. É quando os deuses fazem sua grande
assembléia anual.
- Mas... como chegou lá?
- Pela Ferrovia de Long Island, é claro. Você desce na Estação Penn. Empire State,
seiscentésimo andar. – Ela me olhou como quem tinha certeza de que eu já sabia disso.
– Você é nova-iorquino, certo?
- Ah, com certeza. – Até onde eu sabia, havia apenas cento e dois andares no Empire
States, mas decidi não comentar isso.
- Logo depois da visita – continuou Annabeth -, o tempo ficou esquisito, como se os
deuses tivessem começado a brigar. Uma ou duas vezes desde então, ouvi sátiros
conversando. O máximo que posso deduzir é que algo importante foi roubado. E, se não
for devolvido até o solstício de verão, vai haver problemas. Quando você veio, eu estava
esperando... quer dizer... Atena pode se entender com qualquer um, a não ser Ares. E, é
claro, ela tem uma rivalidade com Poseidon. Mas, quer dizer, fora isso, pensei que
poderíamos trabalhar juntos. Pensei que você pudesse saber alguma coisa.
Sacudi a cabeça. Gostaria de poder ajudá-la, mas estava com fome, cansado e
mentalmente sobrecarregado demais para fazer mais perguntas.
- Preciso conseguir uma missão – murmurou Annabeth consigo mesma. – Eu não sou
jovem demais. Se eles ao menos me contassem qual é o problema.
Senti cheiro de churrasco vindo de algum lugar por perto. Annabeth deve ter ouvido
meu estômago roncar. Disse-me para ir em frente, que me alcançaria depois. Eu a deixei
no píer, correndo o dedo pela balaustrada como se estivesse desenhando um plano de
batalha.
*****
De volta ao chalé 11, todo mundo estava falando e se divertindo, esperando o jantar.
Pela primeira vez, notei que muitos campistas tinham feições parecidas: narizes
pontudos, sobrancelhas arqueadas, sorrisos maliciosos. Eram o tipo de criança que os
professores classificariam como encrenqueiros. Felizmente, ninguém prestou muita
atenção em mim quando fui até meu lugar no chão e me deixei cair com o chifre de
minotauro.
O conselheiro, Luke, se aproximou. Ele também tinha a aparência familiar de Hermes.
Estava desfigurada pela cicatriz na face direita, mas o sorriso estava intacto.
- Arranjei um saco de dormir para você – disse ele. – E, aqui, furtei para você alguns
artigos de toalete da loja do acampamento.
Não deu para saber se ele estava brincando quanto àquela parte de furtar.
Eu disse:
- Obrigado.
- Sem problemas. – Luke sentou-se ao meu lado, descansando as costas contra a parede.
– Primeiro dia difícil?
- Meu lugar não é aqui – disse eu. – Nem mesmo acredito em deuses.
- É – disse ele. – Foi assim que todos nós começamos. E depois que você começa a
acreditar neles? Não fica nem um pouco mais fácil.
A amargura em sua voz me surpreendeu, porque Luke parecia ser o tipo de cara
despreocupado. Parecia ser capaz de lidar com qualquer coisa.
- Então seu pai é Hermes? – perguntei.
Ele puxou um canivete de mola do bolso de trás, e por um segundo, pensei que fosse me
destripar, mas ele apenas raspou o barro da sola da sandália.
- É, Hermes.
- O mensageiro com asas nos pés.
- É ele. Mensageiros. Medicina. Viajantes, mercadores, ladrões. Qualquer um que use as
estradas. É por isso que você está aqui, desfrutando a hospitalidade do chalé 11. Hermes
não é exigente com relação a quem apadrinha.
Entendi que Luke não queria me chamar de joão-ninguém. Apenas tinha muita coisa na
cabeça.
- Você já encontrou seu pai? – perguntei.
- Uma vez.
Esperei, pensando que, se ele quisesse me contar, contaria. Aparentemente não.
Imaginei se a historia tinha alguma coisa a ver com como ele conseguira aquela cicatriz.
Luke ergueu os olhos e conseguiu sorrir.
- Não se preocupe com isso, Percy. A maioria dos campistas aqui é boa gente. Afinal,
somos uma grande família, certo? Cuidamos um do outro.
Ele parecia entender o quanto me sentia perdido e eu estava grato por isso, porque um
cara mais velho como ele – mesmo sendo um conselheiro – devia estar evitando um
secundarista chato como eu. Mas Luke me dera as boas-vindas ao chalé. Até mesmo
furtara alguns artigos de toalete, o que era a coisa mais simpática que alguém fizera por
mim o dia inteiro.
Decidi fazer a minha ultima grande pergunta, aquela que vinha me incomodando a tarde
toda.
- Clarisse, de Ares, debochou sobre eu ser um dos “Três Grandes”. Depois,
Annabeth...ela falou duas vezes que eu poderia ser “o cara”. Disse que devo falar com o
Oráculo. O que quer dizer isso tudo?
Luke fechou o canivete.
- Odeio profecias.
- O que quer dizer?
Seu rosto deu uma estremecida em volta da cicatriz.
- Digamos apenas que eu compliquei as coisas para todos os outros. Nos últimos dois
anos, desde quando me dei mal em minha viagem ao Jardim das Hespérides, Quíron não
autorizou mais nenhuma missão. Annabeth está morrendo de vontade de sair para o
mundo. Ela importunou tanto Quíron que ele finalmente disse que já conhecia o seu
destino. Recebera uma profecia do Oráculo. Não quis contar tudo a ela, mas disse que
Annabeth ainda não estava destinada a sair numa missão. Tinha de esperar até... alguém
especial vir para o acampamento.
- Alguém especial?
- Não se preocupe com isso garoto – disse Luke. – Annabeth quer pensar que todo
campista novo que chega aqui é o presságio que ela está esperando. Agora vamos, é
hora do jantar.
No momento em que ele disse isso, uma trombeta soou a distancia. De algum modo eu
sabia que era feita com uma concha de caramujo, apesar de nunca ter ouvido uma antes.
Luke gritou:
- Onze, reunir!
O chalé inteiro, cerca de vinte de nós, formou uma fila no pátio. Enfileiramo-nos por
ordem de antigüidade, portanto é claro que eu era o ultimo. Vieram campistas também
de outros chalés, com exceção dos três vazios no fim e do chalé 8, que parecia normal
durante o dia mas agora começava a ter um brilho prateado à medida que o sol se punha.
Marchamos colina acima até o pavilhão do refeitório. Sátiros vieram da campina e
juntaram-se a nós. Náiades emergiram do lago de canoagem. Algumas outras meninas
saíram dos bosques – e quando digo dos bosques, quero dizer dos bosques mesmo. Vi
uma menina de nove ou dez anos fundir-se da lateral de um bordo e vir saltitando colina
acima.
Ao todo, havia talvez uma centena de campista, algumas dúzias de sátiros e uma dúzia
de ninfas e náiades variadas.
No pavilhão, tochas ardiam em volta das colunas de mármore. Um fogo central
queimava em um braseiro de bronze do tamanho de uma banheira. Cada chalé tinha sua
própria mesa, coberta com uma toalha branca com detalhes roxo. Quatro meses estavam
vazias, mas a do chalé 11 era superlotada. Tive de me espremer na ponta de um banco,
com metade do traseiro de fora.
Vi Grover sentado à mesa 12, e um par de meninos loiros gorduchos bem parecidos
com o sr. D. Quíron ficou em pé ao lado, pois a mesa de piquenique era muito pequena
para um centauro.
Annabeth sentou-se à mesa 6 com um bando de crianças atléticas de aparência séria,
todas com olhos cinzentos e cabelo loiro da cor do mel.
Clarisse sentou-se atrás de mim à mesa de Ares. Parecia recuperada do banho, pois
estava rindo e arrotando ao lado das amigas.
Finalmente, Quíron bateu o casco contra o piso de mármore do pavilhão e todos se
calaram. Ele ergueu um copo.
- Aos deuses!
Todos ergueram os copos.
- Aos deuses!
Ninfas do bosque avançaram com bandejas de comida: uvas, maçãs, morangos, queijo,
pão fresco e, sim, churrasco! Meu copo estava vazio, mas Luke disse;
- Fale com ele. Qualquer coisa que queria. Não alcoólica, é claro.
- Cherry Coke – falei.
O copo se encheu de líquido espumante cor de caramelo.
Então tive uma idéia.
- Cherry Coke azul.
O refrigerante assumiu um tom berrante de cobalto.
Tomei um gole cauteloso. Perfeito
Fiz um brinde à minha mãe.
Ela não se foi, disse a mim mesmo. De qualquer modo, não para sempre. Ela está no
Mundo Inferior. E, se ele é um lugar real, então algum dia...
- Vai, Percy – disse Luke, me passando uma travessa de peito defumado.
Enchi meu prato e estava prestes a dar uma grande garfada quando notei que todos se
levantavam, levando os pratos para o fogo no centro do pavilhão. Imaginei se estavam
indo buscar a sobremesa ou coisa assim.
- Venha – disse-me Luke.
Quando cheguei mais perto, vi que todos estavam pegando algo do prato e jogando
dentro do fogo, o morango mais maduro, a fatia mais suculenta de carne, o pão mais
quente e mais amanteigado.
Luke murmurou ao meu ouvido:
- Oferendas queimadas para os deuses. Eles gostam do cheiro.
- Fala sério!
O olhar dele me advertiu a não debochar daquilo, mas não pude deixar de me perguntar
por que um ser imortal, todo-poderoso, gostaria do cheiro de comida queimada.
Luke aproximou-se do fogo, inclinou a cabeça e atirou um cacho de uvas gordas e
vermelhas.
- Hermes.
Eu era o próximo.
Eu gostaria de saber o nome de qual deus eu devia dizer.
Acabei fazendo um pedido silencioso. Quem quer que seja, conte-me. Por favor.
Empurrei uma grande fatia de peito para as chamas.
Quando inalei um pouco de fumaça, não engasguei
Não parecia nem um pouco cheiro de comida queimada. Cheirava a chocolate quente e
brownies recém-assados, hambúrgueres grelhados e flores silvestres, e uma centena de
outras coisas boas que não deviam combinar, mas combinavam. Dava até para acreditar
que os deuses podiam viver daquela fumaça.
Depois que todos voltaram aos lugares e terminaram de comer, Quíron bateu novamente
o casco para chamar nossa atenção.
O sr. D levantou-se com um enorme suspiro.
- Sim, suponho que deva dizer olá a todos vocês, moleques. Bem, olá. Nosso diretor de
atividades, Quíron, diz que a próxima captura da bandeira será na sexta-feira.
Atualmente, o chalé 5 detém os lauréis.
Um monte de aplausos disformes se ergueu da mesa de Ares.
- Pessoalmente – continuou o sr. D -, não me importo nem um pouco, mas
congratulações. Também devo lhes dizer que temos um novo campista hoje. Peter
Johnson.
Quíron murmurou alguma coisa.
- Ahn, Percy Jackson – corrigiu o sr. D. – Está certo. Viva, e tudo o mais. Agora vão
correndo para a sua fogueira boba. Andem.
Todos aplaudiram. Dirigimo-nos para o anfiteatro, onde o chalé de Apolo liderou a
cantoria. Cantamos canções de acampamento sobre os deuses, comemos besteiras e nos
divertimos, e o engraçado foi que não senti ninguém mais olhando para mim. Era como
estar em casa.
Mais à noite, quando as fagulhas da fogueira se enroscavam em um céu estrelado, a
trombeta de caramujo soou de novo, e todos nós formamos filas para voltar aos nossos
chalés. Não me dei conta de como estava exausto até desmoronar em meu saco de
dormir emprestado.
Meus dedos se fecharam em volta do chifre do Minotauro. Pensei em minha mãe, mas
tive bons pensamentos: o sorriso dela, as histórias que lia para mim antes de dormir
quando eu era pequeno, o jeito como me dizia para não deixar os percevejos morderem.
Quando fechei os olhos, adormeci instantaneamente.
Assim foi meu primeiro dia no Acampamento Meio-Sangue.
Queria ter sabido antes que em tão pouco tempo passaria a gostar do meu novo lar.

OITO
Nós capturamos uma bandeira.
Em poucos dias me acomodei em uma rotina que parecia quase normal, se
descontarmos o fato de que eu tinha aulas com sátiros, ninfas e um centauro.
Todas as manhãs estudava grego antigo com Annabeth e conversávamos sobre deuses e
deusas no presente, o que era um pouco estranho. Descobri que Annabeth estava certa a
respeito de minha dislexia: o grego antigo não era tão difícil de ler. Pelo menos, não
mais difícil que inglês. Depois de algumas manhãs eu já conseguia ler sem muita dor de
cabeça algumas linhas de Homero, tropeçando aqui e ali.
No resto do dia eu alternava atividades ao ar livre, procurando alguma coisa em que
fosse bom. Quíron tentou me ensinar arco-e-flecha, mas descobrimos bem depressa que
eu não dava para aquilo. Ele não reclamou nem mesmo quando teve de arrancar de sua
cauda uma flecha perdida.
Corrida? Eu também não era bom. As instrutoras, as ninfas do bosque, me faziam comer
poeira. Disseram-me para não me preocupar com isso. Tiveram séculos de práticas
fugindo de deuses apaixonados. Mas ainda assim era meio humilhante ser mais lento
que uma árvore.
E as lutas? Esqueça. Toda vez que ia para a esteira, Clarisse acabava comigo.
“E vem mais por aí, seu Mané”, murmurava ao meu ouvido.
A única coisa em que eu era mesmo excelente era canoagem, e essa não era o tipo de
habilidade de herói que as pessoas esperavam do cara que venceu o Minotauro.
Sabia que os campistas mais velhos e os conselheiros me observavam, tentando concluir
quem era meu pai, mas não estava sendo fácil para eles. Eu não era tão forte quanto os
garotos de Ares, nem tão bom em arco-e-flecha quanto os garotos de Apolo. Não tinha a
perícia de Hefesto com metais ou – os deuses me livrem – o jeito de Dionísio com as
vinhas. Luke me disse que eu podia ser filho de Hermes, uma espécie de pau para toda
obra, mestre nada. Mas eu tinha a sensação de que ele só estava tentando me fazer sentir
melhor. Na verdade, também não sabia o que fazer comigo.
A despeito disso tudo, eu gostava do acampamento. Eu me acostumei com a neblina
matinal sobre a praia, com o cheiro dos campos de morangos à tarde e até com os ruídos
esquisitos dos monstros nos bosques à noite. Eu jantava com o chalé 11, empurrava
parte da minha refeição para o fogo e tentava sentir alguma conexão com meu
verdadeiro pai. Não vinha nada. Apenas aquela sensação morna que eu sempre tive, a
lembrança do seu sorriso. Tentei não pensar demais em minha mãe, mas ficava
matutando: se deuses e monstros eram reais, se todas aquelas coisas mágicas eram
possíveis, certamente haveria algum jeito de salvá-la, de trazê-la de volta...
Comecei a entender o ressentimento de Luke e como ele parecia magoado com o pai,
Hermes. Certo, talvez os deuses tivessem tarefas importantes a fazer. Mas não poderiam
fazer uma visita de vez enquando, trovejar ou alguma coisa? Dionísio podia fazer Diet
Coke aparecer do nada. Por que meu pai, quem quer que fosse, não podia fazer aparecer
um telefone?

*****

Quinta-feira à tarde, três dias depois de chegar ao Acampamento Meio-Sangue, tive
minha primeira aula de esgrima. Todos do chalé 11 se reuniram na grande arena
circular, onde Luke seria nosso instrutor.
Começamos com estocadas e cutiladas básicas, usando bonecos recheados de palha com
armaduras gregas. Acho que fui bem. Pelo menos entendi o que devia fazer e meus
reflexos foram bons.
O problema era que eu não conseguia encontrar uma lâmina que se adaptasse às minhas
mãos. Eram pesadas demais, leves demais ou compridas demais. Luke fez o melhor que
pôde para me ajudar, mas concordou que nenhuma das lâminas de prática parecia
funcionar para mim.
Passamos adiante, para duelo em duplas. Luke anunciou que seria meu parceiro, já que
era a minha primeira vez.
- Boa sorte – disse um dos campistas. – Luke é o melhor espadachim dos últimos
trezentos anos.
- Talvez ele pegue leve comigo – comentei.
O campista riu, desdenhoso.
Luke me mostrou as estocadas, paradas e defesas com escudo do jeito difícil. A cada
golpe eu estava um pouco mais surrado e contundido.
- Mantenha a guarda alta, Percy – dizia ele, e então me atingia com força nas costelas
usando a parte chata da lâmina. – Não, não tanto assim! – Plaft! – Ataque! – Plaft! –
Agora, recue! – Plaft!
Quando ele pediu um tempo, eu estava empapado de suor. Todos correram para o isopor
de bebidas. Luke despejou água gelada em cima da própria cabeça, o que me pareceu
uma ótima idéia. Fiz a mesma coisa.
Na mesma hora me senti melhor. A força percorreu novamente os meus braços. A
espada não parecia mais tão difícil de manejar.
- O.k., todo mundo em circulo! – ordenou Luke. – Se Percy não se importar, vou fazer
uma pequena demonstração.
Incrível, pensei. Vamos todos assistir enquanto Percy é triturado.
Os garotos de Hermes se reuniram em volta. Estavam todos contendo o riso. Imaginei
que já tinham passado por aquilo e mal podiam esperar para ver Luke me usar como
saco de pancadas. Ele disse a todos que ia mostrar uma técnica para desarmar o
oponente: como girar a lâmina do inimigo com a parte chata da própria espada para que
ele não tenha alternativa a não ser deixar a arma cair.
- Isso é difícil – enfatizou. – Já usaram contra mim. Não riam de Percy agora. A maioria
dos espadachins precisa trabalhar anos para dominar essa técnica.
Ele demonstrou o movimento para mim em câmera lenta. Como previsto, a espada
pulou da minha mão.
- Agora, em tempo real – disse ele depois que recuperei minha arma. – Vamos fazer o
movimento até que um de nós tenha sucesso. Pronto, Percy?
Eu assenti, e Luke veio para cima de mim. De algum modo, eu o impedi de golpear o
cabo da minha espada. Meus sentidos se aguçaram. Vi seus ataques chegando. Eu
rebati. Dei um passo à frente e tentei minha própria estocada. Luke a revidou
facilmente, mas notei uma mudança em seu rosto. Seus olhos se estreitaram, e ele
começou a me pressionar com mais força.
A espada estava pesando em minha mão. Mas equilibrada. Eu sabia que era apenas uma
questão de segundos antes que Luke me derrubasse, então decidi: Que se dane!
Tentei a manobra para desarmar.
Minha lâmina atingiu a base da de Luke e eu a girei, pondo todo o meu peso em um
golpe para baixo.
Plem!
A espada de Luke retiniu contra as paredes. A ponta da minha lâmina estava a dois
centímetros do seu peito desprotegido.
Os outros campistas ficaram em silencio.
Baixei a minha espada.
- Ahn, sinto muito.
Por um momento, Luke ficou perplexo demais para falar.
- Sinto muito? – Seu rosto marcado abriu-se num sorriso. – Pelos deuses, Percy, você
sente muito? Mostre-me aquilo de novo!
Eu não queria. A rápida explosão de energia maníaca me abandonara completamente.
Mas Luke insistiu.
Dessa vez, não houve disputa. No momento em que nossas espadas entraram em
contato, Luke atingiu o cabo da minha, que saiu deslizando pelo chão.
Depois de uma longa pausa, alguém do público disse:
- Sorte de principiante?
Luke enxugou o suor da testa. Ele me avaliou com um interesse totalmente novo.
- Talvez – disse. – Mas fico pensando o que Percy poderia fazer com uma espada
equilibrada...

*****

Sexta-feira à tarde. Eu estava sentado com Grover perto do lago, descansando de uma
experiência quase fatal no muro de escalada. Grover subira até o topo como um bode
montanhês, mas a lava por pouco não me atingiu. Minha camisa ficou com buracos
fumegantes. Os pêlos dos meus antebraços ficaram chamuscados.
Sentamos no píer, olhando as náiades que teciam cestos embaixo d’água, até que reuni
coragem para pergunta a Grover como tinha sido a conversa com o sr. D.
Seu rosto assumiu um tom doentio de amarelo.
- Ótima – disse. – Legal mesmo.
- Então sua carreira ainda está nos trilhos?
Ele me lançou um olhar nervoso.
- Quíron c-contou a você que eu quero uma licença de buscador?
- Bem... não. – Eu não tinha idéia do que era uma licença de pesquisador, mas aquele
não parecia ser o momento certo para perguntar. – Ele só me disse que você tinha
grandes planos, sabe... e que precisava de reconhecimento por completar uma tarefa.
Então você conseguiu?
Grover baixou os olhos para as náiades.
- O sr. D suspendeu o julgamento. Disse que ainda não fracassei nem tive sucesso com
você, portanto nossos destinos ainda estão ligados. Se você ganhar uma missão, eu for
junto para protegê-lo e nós dois voltarmos vivos, então talvez ele considere a tarefa
concluída.
Meu ânimo melhorou.
- Bem, isso não é mau, certo?
- Bééé-é-é! Ele poderia igualmente ter me transferido para o serviço de limpeza de
estábulos. As chances de você ganhar uma missão... e mesmo se ganhasse, por que
haveria de querer que eu fosse junto?
- É claro que eu ia querer você junto!
Grover continuou olhando melancolicamente para a água.
- Tecer cestas... Deve ser bom ter uma habilidade útil.
Tentei convencê-lo de que ele tinha uma porção de talentos, mas isso só o fez parecer
ainda mais infeliz. Conversamos sobre canoagem e esgrima por algum tempo, e então
debatemos os prós e os contras dos diferentes deuses. Por fim, perguntei-lhe sobre os
quatro chalés vazios.
- O número 8, o prateado, pertence a Ártemis – disse ele. – Ela jurou ser virgem para
sempre. Portanto, é claro, sem filhos. O chalé é honorário, entende? Se ela não tivesse
um ficaria zangada.
- Sim, certo. Mas os outros três, os que ficam no fim. São os Três Grandes?
Grover ficou tenso. Estávamos chegando perto de um assunto delicado.
- Não. Um deles, o de número 2, é de Hera – disse ele. – É outra coisa honorária. Ela é a
deusa do casamento, portanto é claro que não iria sair por aí tendo casos com mortais.
Isso é serviço do marido dela. Quando falamos dos Três Grandes, queremos dizer os
três irmãos poderosos, os filhos de Cronos.
- Zeus, Poseidon e Hades.
- Certo. Você sabe. Depois da grande batalha com os Titãs, eles tomaram o mundo do
pai e tiraram a sorte para decidir quem ficava com o quê.
- Zeus ficou com o céu – lembrei. – Poseidon, com o mar, Hades, com o Mundo
Inferior.
- A-hã.
- Mas Hades não tem chalé aqui.
- Não. Também não tem um trono no Olimpo. Ele, bem, fica na dele lá embaixo no
Mundo Inferior. Se tivesse um chalé aqui... – Grover estremeceu. – Bem, isso não seria
agradável. Vamos deixar assim.
- Mas Zeus e Poseidon... os dois tinham zilhões de filhos nos mitos. Por que os cahlés
deles estão vazios?
Grover se balançou de um casco para outro, pouco à vontade.
- Há cerca de sessenta anos, depois da Segunda Guerra Mundial, os Três Grandes
combinaram que não iriam procriar mais nenhum herói. Os filhos deles eram poderosos
demais. Estavam interferindo muito no curso dos eventos humanos, causando muitas
carnificinas. A Segunda Guerra Mundial, sabe, foi basicamente uma luta entre os filhos
de Zeus e Poseidon, de um lado, e os filhos de Hades do outro. O lado vencedor, Zeus e
Poseidon, obrigou Hades a fazer um juramento junto com eles: nada de casos com
mulheres mortais. Todos juraram sobre o rio Styx.
Um trovão.
- Esse é o juramento mais sério que se pode fazer – disse eu.
Grover assentiu.
- E os irmãos mantiveram a palavra, sem filhos?
O rosto de Grover se anuviou.
- Há dezessete anos, Zeus retornou aos maus hábitos. Havia uma estrela de tevê com um
penteado alto e armado, estilo anos 80... Ele simplesmente não conseguiu evitar.
Quando o bebê nasceu, uma menininha chamada Thalia... Bem, o rio Styx é sério no
que diz respeito a promessas. Zeus se safou com facilidade porque é imortal, mas
causou um destino terrível para sua filha.
- Mas isso não é justo! Não foi culpa da menininha.
Grover hesitou.
- Percy, os filhos dos Três Grandes são mais poderosos que os outros meios-sangues.
Eles têm uma aura forte, um odor que atrai monstros. Quando Hades descobriu a
respeito da criança, não ficou muito feliz com o fato de Zeus ter quebrado o juramento.
Hades libertou os piores monstros do Tártaro para atormentar Thalia. Um sátiro foi
designado para ser guardião dela quando completou doze anos, mas não havia nada que
pudesse fazer. Ele tentou escoltá-la para cá com outros meios-sangues com quem ela
fizera amizade. Eles quase conseguiram. Chegaram até o topo da colina.
Ele apontou para o outro lado do vale, para o pinheiro onde eu enfrentara o Minotauro.
- As três Benevolentes estavam atrás deles com um bando de cães infernais. Estavam
quase sendo alcabçados quando Thalia disse a seu sátiro que levasse os outros dois
meios-sangues para um lugar seguro enquanto ela tentava conter os monstros. Estava
ferida e cansada, e não desejava viver como um animal caçado. O sátiro não queria
deixá-la, mas não conseguiu fazê-la mudar de idéia e tinha de proteger os outros. Assim,
Thalia defendeu-se no final sozinha, no topo daquela colina. Quando ela morreu, Zeus
se apiedou dela. Transformou-a naquele pinheiro. Seu espírito ainda ajuda a proteger as
fronteiras do vale. É por isso que a colina é chamada Colina Meio-Sangue.
Olhei para o pinheiro distante.
A história me fez sentir oco, e também culpado. Uma menina da minha idade se
sacrificara para salvar os amigos. Enfrentara todo um exército de monstros. Perto disso,
minha vitória sobre o Minotauro não parecia grande coisa. Perguntei a mim mesmo se
agindo diferente poderia ter salvado minha mãe.
- Grover, os heróis realmente partiram em missões para o Mundo Inferior?
- Algumas vezes – disse ele. – Orfeu. Hércules. Houdini.
- E chegaram a trazer alguém de volta da morte?
- Não. Nunca. Orfeu chegou perto.... Percy, você não está pesando mesmo em...
- Não – menti. – Estava só imaginando. Então... um sátiro é sempre designado para
guardar um semideus?
Grover me estudou cauteloso. Eu não o tinha convencido de que desistira da idéia do
Mundo Inferior.
- Nem sempre. Vamos disfarçados para uma porção de escolas. Tentamos farejas os
meios-sangues que tenham atributos de grandes heróis. Se encontramos um com uma
aura muito forte, como uma criança dos Três Grandes, alertamos Quíron. Ele tenta ficar
de olho neles, já que podem causar problemas realmente enormes.
- E você me encontrou. Quíron disse que você achava que eu poderia ser algo especial.
Grover soou como se eu acabasse de atraí-lo para uma armadilha.
- Eu não... Ora, escute, não pense assim. Se você fosse... você sabe... jamais lhe
permitiriam uma missão, e eu jamais teria a minha licença. Você provavelmente é filho
de Hermes. Ou talvez até de um dos deuses menores, como Nêmesis, a deusa da
vingança. Não se preocupe, ta?
Percebi que ele estava tentando tranqüilizar mais a si mesmo que a mim.

*****

Naquela noite após o jantar havia muito mais agitação que de costume.
Finalmente, era hora da captura da bandeira.
Quando os pratos foram levados embora, a trombeta de caramujo soou e todos nos
postamos junto às nossas mesas.
Os campistas gritaram e aplaudiram quando Annabeth e dois de seus irmãos entraram
correndo no pavilhão, carregando um estandarte de seda. Tinha cerca de três metros de
comprimento, reluzindo em cinza, com a pintura de uma coruja em cima de uma
oliveira. Do lado oposto do pavilhão, Clarisse e as amigas entraram correndo com outro
estandarte, de tamanho idêntico, mas vermelho-brilhante, com a pintura de uma lança
sanguinolenta e uma cabeça de javali.
Virei-me para Luke e gritei por cima do barulho:
- Aquelas são as bandeiras?
- Sim.
- Ares e Atena sempre lideram as equipes?
- Nem sempre – disse ele. – Mas freqüentemente.
- Então, se um outro chalé capturar uma delas, o que vocês fazem, pintam de novo a
bandeira?
Ele sorriu ironicamente.
- Você vai ver. Primeiro temos de conseguir uma.
- De que lado nós estamos?
Ele me deu uma olhada astuta, como se soubesse algo que eu não sabia. A cicatriz em
seu rosto o fazia parecer quase mau à luz das tochas.
- Fizemos uma aliança temporária com Atena. Esta noite, tiraremos a bandeira de Ares.
E você vai ajudar.
As equipes foram anunciadas. Atena tinha feito uma aliança com Apolo e Hermes, os
dois chalés maiores. Aparentemente, haviam trocados privilégios – horários de
chuveiro, escala de deveres, as melhores posições nas atividades – a fim de ganhar
apoio.
Ares tinha se aliado a todos os outros: Dionisio, Demeter, Afrodite e Hefesto. Pelo que
eu tinha visto, os campistas de Dionisio eram na verdade bons atletas, mas havia apenas
dois deles. Os de Demeter tinham ligeira vantagem em habilidades na natureza e
atividades ao ar livre, mas não eram muito agressivos. Como os filhos e filhas de
Afrodite eu não estava muito preocupado. Eles, na maioria das vezes, esperavam
sentados todas as atividades acabarem e iam conferir seus reflexos no lago, penteavam
os cabelos e fofocavam. Os de Hefesto não eram bonitos, e havia apenas quatro deles,
mas eram grandes e corpulentos de tanto trabalhar na oficina de metais o dia inteiro.
Poderiam ser um problema. Com isso, é claro, restava o chalé de Ares: uma dúzia dos
maiores, mais feios e mais perversos garotos e garotas de Long Island, ou de qualquer
outro lugar no planeta.
Quíron bateu o casco no mármore.
- Heróis! – anunciou. – Vocês conhecem as regras. O riacho é o limite. A floresta inteira
está valendo. Todos os itens mágicos são permitidos. A bandeira deve ser ostentada de
modo destacado e não deve ter mais de dois guardas. Os prisioneiros podem ser
desarmados, mas não podem ser amarrados ou amordaçados. Não é permitido matar
nem aleijar. Servirei de juiz e médico do campo de batalha. Armem-se!
Ele estendeu as mãos e as mesas subitamente se cobriram de equipamentos: capacetes,
espadas de bronze, lanças, escudos de couro de boi recobertos de metal.
- Uau! – falei. – Temos mesmo que usar isso?
Luke olhou para mim como se eu estivesse louco.
- A não ser que você queira ser espetado pelos seus amigos do chalé. Aqui... Quíron
achou que estes devem lhe servir. Você ficará na patrulha da fronteira.
Meu escudo era do tamanho de uma tabela de basquete da NBA, com um grande
caduceu no meio. Pesava cerca de um milhão de quilos. Eu poderia muito bem usá-lo
como prancha de snowboard, mas tinha esperanças de que ninguém tivesse expectativas
reais de que eu corresse com aquilo. Meu capacete, como todos os capacetes do lado de
Atena, tinha um penacho de crina azul no topo. Ares e seus aliados tinham penachos
vermelhos.
Annabeth gritou:
- Equipe azul, para frente!
Aplaudimos e agitamos nossas espadas, e a seguimos para baixo pelo caminho para os
bosques do sul. A equipe vermelha gritou nos provocando enquanto seguia em direção
ao norte.
Consegui alcançar Annabeth sem tropeçar em meu próprio equipamento.
- Ei!
Ela continuou marchando.
- Então, qual é o plano? – perguntei. – Tem alguns itens mágicos para me emprestar?
A mão dela se desviou para o bolso, como se estivesse com medo de que eu roubasse
alguma coisa.
- Só digo para ter cuidado com a lança de Clarisse. Você não vai querer que aquela
coisa toque em você. Fora isso, não se preocupe. Vamos tomar a bandeira de Ares. Luke
determinou sua tarefa?
- Patrulha de fronteira, seja lá o que isso for.
- É fácil. Fique junto ao riacho, mantenha os vermelhos longe. Deixe o resto comigo.
Atena sempre tem um plano.
Ela seguiu adiante, me deixando na poeira.
- Certo – murmurei. – Fico contente por me querer na sua equipe.
Era uma noite quente e úmida, grudenta. Os bosques estavam escuros, com vaga-lumes
aparecendo e sumindo. Annabeth me designou para um pequeno regato que rumorejava
por cima de algumas pedras, depois ela e o restante da equipe se espalharam entre as
árvores.
Ali sozinho, com meu grande capacete de penacho azul e meu enorme escudo, me senti
um idiota. A espada de bronze, como todas as espadas que eu experimentara até então,
parecia mal equilibrada. O cabo de couro pesava em minha mão como uma bola de
boliche.
Não havia como alguém me atacar de verdade, não é? Quer dizer, o Olimpo tinha de ter
responsabilidade, certo?
Longe, a trombeta de caramujo soou. Ouvi brados e gritos nos bosques, metais
chocando-se, gente lutando. Um aliado de Apolo de penacho azul passou por mim
correndo como um cervo, pulou o regato e desapareceu em território inimigo.
Essa é boa, pensei. Vou ficar de fora da diversão, como sempre.
Então ouvi um som que me deu um calafrio na espinha, um rosnado canino grave em
algum lugar por perto.
Ergui o escudo instintivamente; tinha a sensação de que alguma coisa estava me
espreitando.
Então o rosnado parou. Senti a presença recuando.
Do outro lado do regato, a vegetação rasteira explodiu. Cinco guerreiros de Ares saíram
gritando e berrando da escuridão.
- Acabem com o Mané! – berrou Clarisse.
Seus olhos feios de porco faiscaram nas fendas do capacete. Ela brandiu uma lança de
um metro e meio de comprimento, a ponta de metal farpado lançando chispas de luz
vermelha. Seus irmãos só tinham espadas de bronze comuns – não que isso me fizesse
sentir melhor.
Eles atacaram cruzando o regato. Não havia ajuda à vista. Eu podia correr. Ou podia me
defender contra a metade do chalé de Ares.
Consegui me esquivar do golpe do primeiro garoto, mas aqueles caras não eram
estúpidos como o Minotauro. Eles me cercaram, e Clarisse investiu contra mim com sua
lança. Meu escudo desviou a ponta, mas senti um formigamento doloroso em todo o
corpo. Meus cabelos se eriçaram. O braço que segurava o escudo ficou dormente e o ar
queimou.
Eletricidade. Aquela lança estúpida era elétrica. Eu recuei.
Outro cara de Ares me golpeou no peito com a parte mais grossa da espada e eu caí.
Eles podiam ter me chutado até eu virar geléia, mas estavam muito ocupados rindo.
- Façam um corte no cabelo dele – disse Clarisse. – Agarrem o cabelo dele.
Consegui me pôr de pé. Ergui a espada, mas Clarisse a jogou violentamente para o lado
com sua lança, e fagulhas voaram. Agora meus braços estavam dormentes.
- Ah, uau! – disse Clarisse. – Estou com medo desse cara. Realmente apavorada.
- A bandeira está para lá – disse a ela. Queria parecer zangado, mas acho que não
consegui.
- É – disse um dos irmãos dela. – Mas, veja bem, nós não nos importamos com a
bandeira. A gente se importa com um cara que fez o pessoal do nosso chalé de idiota.
- Vocês não precisam de mim para isso. – Provavelmente não foi a coisa mais esperta a
dizer.
Dois deles vieram para cima de mim. Recuei em direção ao regato, tentei erguer meu
escudo, mas Clarisse era muito rápida. Sua lança me pegou bem nas costelas. Se eu não
estivesse usando uma armadura blindada, teria virado churrasco no espeto. Do jeito que
foi, a ponta elétrica quase fez meus dentes saltarem da boca com o choque. Um de seus
colegas de chalé desferiu a espada contra o meu braço, fazendo um bom talho.
Ver meu próprio sangue me deixou zonzo – quente e frio ao mesmo tempo.
- Sem aleijar – consegui dizer.
- Oops – disse o cara. – Acho que perdi meu direito à sobremesa.
Ele me empurrou para o regato e eu caí espalhando água. Todos riram. Calculei que
assim que acabassem de se divertir eu iria morrer. Mas então algo aconteceu. A água
pareceu despertar meus sentidos, como se eu tivesse acabado de comer um saco duplo
das jujubas da minha mãe.
Clarisse e seus companheiros de chalé entraram no regato para me pegar, mas eu me pus
de pé para recebê-los. Sabia o que fazer. Desferi a parte chata da minha espada contra a
cabeça do primeiro cara e arranquei seu capacete. Atingi-o com tanta força que pude ver
seus olhos tremendo enquanto ele desmoronava na água.
O Feio Número 2 e o Feio Número 3 vieram para cima de mim. Golpeei um no rosto
com o escudo e usei a espada para decepar o penacho da crina do outro. Os dois
recuaram depressa. O Feio Número 4 não pareceu muito ansioso para atacar, mas
Clarisse continuava vindo, a ponta da lança crepitando de eletricidade. Assim que ela
investiu, peguei a vara da lança entre a borda do meu escudo e a minha espada, e a parti
como se fosse um graveto.
- Ah! – berrou ela. – Seu idiota! Seu verme com bafo de cadáver!
Ela provavelmente ainda teia dito coisas piores, mas eu a golpeei entre os olhos com a
base da espada e a joguei cambaleando de costas para fora do regato.
Então ouvi gritos exultantes, e vi Luke correndo em direção à linha limite com o
estandarte da equipe vermelha erguido alto. Vinha flanqueado por alguns garotos de
Hermes, cobrindo a sua retirada, e alguns Apolos atrás dele, combatendo os garotos de
Hefesto. O pessoal de Ares se levantou e Clarisse resmungou uma praga estupefata.
- Uma armadilha! – berrou. – Foi uma armadilha.
Eles saíram cambaleando atrás de Luke, mas era tarde demais. Todo mundo convergiu
para o regato enquanto Luke atravessava para território amigo. Nosso lado explodiu em
vivas. O estandarte vermelho tremulou e ficou prateado. O javali e a lança foram
substituídos por um enorme caduceu, o símbolo do chalé 11. Todos da equipe azul
ergueram Luke nos ombros e começaram a carregá-lo. Quíron saiu a meio galope do
bosque e soprou a trombeta de caramujo.
O jogo terminara. Tínhamos vencidos.
Eu estava prestes a me juntar à comemoração quando a voz de Annabeth, bem a meu
lado no regato, disse:
- Nada mau, herói.
Eu olhei, mas ela não estava lá.
- Onde diabo aprendeu a lutar assim? – perguntou ela. O ar tremulou e Annabeth se
materializou, segurando um boné de beisebol dos Yankees como se tivesse acabado de
tirá-lo da cabeça.
Senti que estava ficando zangado. Não fiquei nem mesmo perturbado com o fato de ela
estar invisível um segundo antes.
- Você armou isso para mim – disse eu. – Você me pôs aqui porque sabia que Clarisse
viria atrás de mim, enquanto você mandava Luke dar a volta pelos flancos. Já tinha tudo
preparado.
Annabeth encolheu os ombros.
- Eu disse para você. Atena sempre, sempre tem um plano.
- Um plano para que eu fosse reduzido a pó.
- Eu vim o mais rápido que pude. Estava pronta para entrar na briga, mas... – Ela
encolheu os ombros. – Você não precisava de ajuda.
Então ela reparou no braço ferido:
- Como arranjou isso?
- Corte de espada – disse eu. – O que você acha?
- Não. Era um corte de espada. Olhe só.
O sangue se fora. No lugar do rasgo enorme havia uma longa cicatriz branca, e mesmo
estava desaparecendo. Enquanto eu olhava, ela se transformou em uma cicatriz pequena
e sumiu.
- Eu... eu não entendo – disse.
Annabeth raciocinava com empenho. Eu quase podia ver as engrenagens girando. Ela
baixou os olhos para os meus pés, depois para a lança quebrada de Clarisse e disse:
- Saia da água, Percy.
- O que...
- Apenas saia.
Saí do regato e logo me senti extremamente cansado. Meus braços começaram a ficar
dormentes de novo. Minha descarga de adrenalina me abandonou. Quase caí, mas
Annabeth me segurou.
- Oh, Styx – praguejou ela. – Isso não é bom. Eu não queria... Eu pensei que podia ser
Zeus...
Antes que eu pudesse perguntar o que ela queria dizer, ouvi o rosnado canino de novo,
porem muito mais perto. Um uivo cortou a floresta.
A comemoração dos campistas cessou imediatamente. Quíron bradou alguma coisa em
grego antigo que eu, só mais tarde me daria conta, tinha entendido perfeitamente:
- Preparem-se! Meu arco!
Annabeth sacou a espada.
Sobre as pedras, logo acima de nós, havia um cão preto de tamanho de um rinoceronte,
com olhos vermelhos como lava e presas que pareciam punhais.
Estava olhando diretamente para mim.
Ninguém se moveu exceto Annabeth, que gritou:
- Percy, corra!
Ela tentou se interpor entre mim e o cão, mas o bicho foi rápido demais. Pulou por cima
dela – uma enorme sombra com dentes – e, assim que me atingiu, quando cambaleei
para trás e senti as garras afiadas como navalhas rasgando minha armadura, houve uma
cascata de sons de pancadas, como quarenta pedaços de papel sendo rasgados um após o
outro. Um amontoado de flechas brotou no pescoço do cão. O monstro caiu morto aos
meus pés.
Por algum milagre eu ainda estava vivo. Não quis olhar embaixo das ruínas da minha
armadura esfrangalhada. Meu peito parecia morno e molhado, e eu sabia que estava
gravemente ferido. Mais um segundo e o monstro teria me transformado em quarenta e
cinco quilos de carne fatiada.
- Di immortales! – disse Annabeth. – Aquilo é um cão infernal dos Campos de Punição.
Eles não... eles não deviam...
- Alguém o convocou – disse Quíron. – Alguém de dentro do acampamento.
Luke se aproximou, o estandarte esquecido em suas mãos, o momento de glória
acabado.
Clarisse berrou:
- É tudo culpa do Percy! Percy o convocou!
- Fique quieta, criança – ordenou-lhe Quíron.
Nós assistimos enquanto o cão infernal se dissolvia em sombra e era absorvido pela
terra até desaparecer.
- Você está ferido – disse-me Annabeth. – Rápido, Percy, entre na água.
- Eu estou bem.
- Não, você não está – disse ela. – Quíron, veja isto.
Eu estava cansado demais para discutir. Voltei para dentro do regato, o acampamento
inteiro reunido à minha volta.
No mesmo instante me senti melhor. Pude perceber os cortes em meu peito se fechando.
Alguns dos campistas sufocaram um grito.
- Olhem, eu... eu não sei por quê – falei, tentando me desculpar. – Sinto muito.
Mas eles não estavam olhando minhas feridas cicatrizarem. Olhavam para algo acima
da minha cabeça.
- Percy – disse Annabeth apontando. – Ahn...
Quando olhei para cima, o sinal já estava desaparecendo, mas ainda pude distinguir o
holograma de luz verde, girando e cintilando. Uma lança de três pontas: um tridente.
- Seu pai – murmurou Annabeth. – Isso realmente não é bom.
- Está determinado – anunciou Quíron.
Por toda a minha volta, os campistas começaram a se ajoelhar, até mesmo o chalé de
Ares, embora não parecessem muito felizes com isso.
- Meu pai? – perguntei, completamente perplexo.
- Poseidon – disse Quíron. – Senhor dos Terremotos. Portador das Tempestades. Pai dos
Cavalos. Salve, Perseu Jackson, Filho do Deus do Mar.

NOVE
Oferecem-me uma missão.
Na manhã seguinte, Quíron me mudou para o chalé 3.
Não tive de compartilhá-lo com ninguém. Tinha espaço à vontade para todas as minhas
coisas: o chifre do Minotauro, um conjunto de roupas de reserva e uma sacola de artigos
de toalete. Ia me sentar à minha própria mesa de jantar, escolhia todas as minhas
atividades, determinava o “apagar das luzes” sempre que tinha vontade e não ouvia mais
ninguém.
E me sentia totalmente infeliz.
Bem quando começava a me sentir aceito, a sentir que tinha um lar no chalé 11 e
poderia ser um garoto normal – ou tão normal quanto é possível quando se é um meiosangue
-, fui separado como se tivesse alguma doença rara.
Ninguém mencionou o cão infernal, mas tive a sensação de que estavam todos falando
sobre isso pelas minhas costas. O ataque assustara todo mundo. Ele mandou duas
mensagens: a primeira, que eu era filho do Deus do mar; a segunda, que os monstros
não mediriam esforços para me matar. Podiam ate invadir um acampamento que sempre
foi considerado seguro.
Os outros campistas mantinham distância de mim na medida do possível. O chalé 11
estava agitado demais para receber aula de esgrima junto comigo depois do que eu
fizera com o pessoal de Ares no bosque, e assim minhas aulas com Luke passaram a ser
particulares. Ele me exigia mais do que nunca, e não tinha medo de me machucar.
- Você vai precisar de todo o treinamento que puder obter – prometeu, enquanto
trabalhávamos com espadas e tochas flamejantes. – Agora vamos tentar de novo aquele
golpe de decapitar víboras. Mais cinqüenta repetições.
Annabeth ainda me ensinava grego pela manhã, mas aprecia distraída. A cada vez que
eu dizia alguma coisa, ela fechava a cara, como se eu tivesse acabado de lhe dar um
soco.
Depois das aulas, ela ia embora resmungando consigo mesma:
- Missão... Poseidon?... Grande porcaria... Preciso de um plano...
Até Clarisse mantinha distância, embora os olhares venenosos deixassem claro que
queria me matar por ter quebrado sua lança mágica. Queria que ela simplesmente
gritasse, me desse um soco ou coisa assim. Era melhor me meter em brigar todos os dias
a ser ignorado.

*****

Soube que alguém no acampamento andava ressentido comigo, porque uma noite entrei
no meu chalé e achei um jornal horrível jogado porta adentro, um exemplar do New
York Daily News, aberto na página Metrópole. Levei quase uma hora para ler a matéria,
porque quanto mais ficava zangado mais as palavras pareciam flutuar na página.
MENINO E SUA MÃE AINDA DESAPARECIDOS DEPOIS DE ESTRANHO
ACIDENTE DE CARRO
Por Ellen Smythe
Sally Jackson e seu filho Percy ainda não foram encontrados uma semana depois de
seu misterioso desaparecimento. O carro da família, um Camaro 1978, totalmente
queimado, foi descoberto no ultimo sábado em uma estrada ao norte de Long Island
com o teto arrancado e o eixo dianteiro quebrado. O carro havia capotado e derrapado
por várias centenas de metros antes de explodir.
Mãe e filho tinham ido passar um fim de semana em Montauk, mas saíram às pressas,
sob circunstâncias misteriosas. Pequenos sinais de sangue foram encontrados no carro
e perto da cena do desastre, mas não havia outros indícios dos Jackson desaparecidos.
Residentes da área rural declararam não ter visto nada de inusitado por volta da hora
do acidente.
O marido da sra. Jackson, Gabe Ugliano, alega que o enteado, Percy Jackson, é uma
criança problemática que foi expulsa de inúmeros internatos e demonstrou tendências
violentas no passado.
A polícia não diz se o filho Percy é suspeito do desaparecimento da mãe, porém não
descarta a hipótese de crime. Abaixo estão fotografias recentes de Sally Jackson e
Percy. A polícia solicita a qualquer pessoa que tenha alguma informação que ligue
gratuitamente para o disque-denúncia de crimes, a seguir.
O número do telefone estava circulado com marcador preto.
Amarrotei o jornal e joguei fora, depois me joguei em meu beliche no meio do chalé
vazio.
“Apagar das luzes”, disse para mim mesmo, arrasado.

*****

Naquela noite, tive meu pior pesadelo até então.
Eu corria pela praia no meio de uma tempestade. Dessa vez, havia uma cidade atrás de
mim. Não Nova York. O panorama era diferente: os edifícios eram mais afastados uns
dos outros, havia palmeiras e colinas baixas a distância.
Cem metros adiante, na arrebentação, dois homens estavam brigando. Pareciam
lutadores de tevê, musculosos, com barbas e cabelos compridos. Ambos usavam túnicas
gregas esvoaçantes, uma guarnecida de azul, a outra, de verde. Atracavam-se, lutavam,
chutavam e davam cabeçadas, e a cada vez que tocavam, caíam raios, o céu escurecia e
ventos sopravam.
Eu precisava detê-los. Não sabia por quê. Mas, quanto mais eu corria, mais o vento me
empurrava de volta, até eu correr sem sair do lugar, os calcanhares se enterrando
inultimente na areia.
Por cima do rugido da tempestade, pude ouvir o de túnica azul gritando para o de túnica
verde: Devolva! Devolva! Era como se uma criança do jardim-de-infância estivesse
brigando por causa de um brinquedo.
As ondas ficaram maiores, arrebentando na praia e me borrifando com sal.
Eu gritei: Parem com isso! Parem de brigar!
O chão estremeceu. Risadas vieram de algum lugar embaixo da terra, e uma voz
profunda e maligna me gelou o sangue.
Venha para baixo, pequeno herói, a voz sussurrou. Venha para baixo!
A areia se abriu embaixo de mim numa fenda que ia direto ao centro da Terra. Meus pés
escorregaram e as trevas me engoliram.
Acordei, certo de que estava caindo.
Ainda estava na cama, no chalé 3. Meu corpo me dizia que já era manhã, mas estava
escuro lá fora e o trovão ribombava pelas colinas. Uma tempestade estava se formando.
Isso eu não havia sonhado.
Ouvi um som oco à porta, o som de um casco batendo na soleira.
- Entre.
Grover trotou para dentro, parecendo preocupado.
- O sr. D quer vê-lo.
- Por quê?
- Ele quer matar... quer dizer, é melhor deixar que ele conte.
Eu me vesti, agitado, e fui, certo de que estava em uma grande encrenca.
Havia dias eu estava esperando uma convocação para a Casa Grande. Agora que tinha
sido declarado filho de Poseidon, um dos Três Grandes deuses que não deveriam ter
filhos, imaginei que o simples fato de estar vivo já fosse um crime. Os outros deuses
provavelmente haviam debatido sobre o melhor jeito de me punir por existir, e agora o
sr. D estava pronto para dar seu veredicto.
Acima do estreito de Long Island, o céu parecia uma sopa de tinta em ponto de fervura.
Uma cortina brumosa de chuva vinha em nossa direção. Perguntei a Grover se
precisávamos de um guarda-chuva.
- Não – disse ele. – Aqui nunca chove, anão ser que queiramos.
Apontei a tempestade.
- Então o que diabo é aquilo?
Ele olhou, preocupado, para o céu.
- Vai passar em volta de nós. O mau tempo sempre faz isso.
Percebi que ele estava certo. Fazia uma semana que estava ali e nunca vira o tempo
fechado. As poucas nuvens de chuva que tinha notado contornavam os limites do vale.
Mas aquela tempestade... aquela era imensa.
Na arena de vôlei as crianças do chalé de Apolo jogavam uma partida matinal contra os
sátiros. Os gêmeos de Dionisio caminhavam em volta dos campos de morangos fazendo
as plantas crescerem. Todos estavam cuidando de suas tarefas normais, mas pareciam
tensos. Estavam de olho na tempestade.
Grover e eu caminhamos até a varanda da frente da Casa Grande. Dionísio estava
sentado à mesa de pinoche com sua Diet Coke, usando a camisa havaiana com listras de
tigre, exatamente como no meu primeiro dia. Quíron estava do outro lado da mesa em
sua falsa cadeira de rodas. Jogavam contra oponentes invisíveis – duas mãos de cartas
flutuavam no ar.
- Bem, bem – disse o sr. D sem erguer os olhos. – Nossa pequena celebridade.
Eu aguardei.
- Chegue mais perto – disse o sr. D. – E não espere que eu me prostre diante de você,
mortal, só porque o velho Barbas de Craca é seu pai.
Uma rede de raios brilhou através das nuvens. Um trovão fez tremerem as janelas da
casa.
- Blablablá – disse Dionisio.
Quíron fingiu interesse em suas cartas de pinoche. Grover se encolheu junto ao gradil,
os cascos batendo para a frente e para trás.
- Se as coisas fossem do meu jeito – disse Dionisio -, eu faria suas moléculas
irromperem em chamas. Nós varreríamos as cinzas e estaríamos livres de um monte de
problemas. Mas Quíron parece achar que isso seria contra a minha missão neste
acampamento maldito: manter vocês, moleques, a salvo do mal.
- Combustão espontânea é uma forma de mal, sr. D – interveio Quíron.
- Bobagem – disse Dionisio. – O menino não sentiria nada. No entanto, eu concordei em
me conter. Estou pensando em transformar você em um golfinho em vez disso, e
mandá-lo de volta para seu pai.
- Sr. D... – advertiu Quíron.
- Ora, está bem – cedeu Dionisio. – Há mais uma opção. Mas é uma insensatez
descomunal. – Dionsio levantou-se, e as cartas dos jogadores invisíveis caíram sobre a
mesa. – Estou indo ao Olimpo para uma reunião de emergência. Se o menino ainda
estiver aqui quando eu voltar, vou transformá-lo em um nariz-de-garrafa do Atlântico.
Entendeu? E Perseu Jackson, se você for mesmo esperto, verá que se trata de uma
escolha muito mais sensata do que aquela que Quíron imagina.
Dionísio pegou uma carta, torceu-a e ela se transformou em um retângulo de plástico.
Cartão de crédito? Não. Um passe de segurança.
Ele estalou os dedos.
O ar pareceu se dobrar e se curvar em volta dele. Ele transformou-se em um holograma,
depois em um vento e depois desapareceu, deixando para trás apenas o cheiro de uvas
recém-prensadas.
Quíron sorriu para mim, mas parecia cansado e tenso.
- Sente-se, Percy, por favor. Grover também.
Nós obedecemos.
Quíron pôs suas cartas na mesa. A mão vencedora que ele não chegara a usar.
- Diga-me, Percy – disse ele. – O que você fez com o cão infernal?
Só de ouvir o nome, eu estremeci.
Quíron provavelmente queria que eu dissesse: Ora, aquilo não foi nada. Costumo
comer cães infernais no café-da-manhã. Mas eu não estava com vontade de mentir.
- Ele me apavorou – falei. – Se vocês não o tivessem acertado, eu estaria morto.
- Você vai enfrentar coisas piores, Percy. Muito piores, antes de terminar.
- Terminar... o quê?
- Sua missão, é claro. Você vai aceitá-la?
Dei uma olhada para Grover, que estava cruzando os dedos.
- Ahn, senhor, ainda não me contou qual será.
Quíron fez uma careta.
- Bem, essa é a parte difícil, os detalhes.
Um trovão irrompeu pelo vale. As nuvens de tempestade haviam agora chegado ao
limite da praia. Até onde eu podia ver, o céu e o mar estavam fervendo juntos.
- Poseidon e Zeus – disse eu. – Eles estão lutando por algo valioso... algo que foi
roubado, não estão?
Quíron e Grover trocaram olhares.
- Como você sabe disso?
Senti o rosto quente. Desejei não ter aberto meu bocão.
- Desde o Natal o tempo está esquisito, como se o mar e o céu estivessem brigando.
Então falei com Annabeth, e ela tinha ouvido alguma coisa sobre um roubo. E ...
também andei sonhando umas coisas.
- Eu sabia – disse Grover.
- Quieto, sátiro – ordenou Quíron.
- Mas essa é a missão dele! – Os olhos de Grover estavam brilhantes de excitação. –
Tem de ser!
- Só o Oráculo pode determinar. – Quíron alisou a barba eriçada. – No entanto, Percy,
você está correto. Seu pai e Zeus estão tendo sua pior disputa em séculos. Estão lutando
por uma coisa valiosa que foi roubada. Para ser preciso: um relâmpago.
Eu ri nervoso
- Um o quê?
- Não brinque com isso – advertiu Quíron. – Não estou falando de um ziguezague
recoberto de papel-alumínio como você vê em peças da escola. Estou falando de um
cilindro de bronze celestial de alto grau, com sessenta centímetros de comprimento,
arrematado em ambos os lados com explosivos de nível deífico.
- Ah.
- O raio-mestre de Zeus – disse Quíron, agora ficando emocionado. – O símbolo de seu
poder, conforme o qual todos os outros raios são moldados. A primeira arma feita pelos
Ciclopes para a guerra contra os Titãs, que decepou o cume do Monte Etna e
arremessou Cronos para fora do seu trono; o raio-mestre, que acumula potência
suficiente para fazer as bombas de hidrogênio dos mortais parecerem fogos de artifícios.
- E ele desapareceu?- Roubaram – disse Quíron.
- Quem roubaram?
- Quem roubou – corrigiu Quíron. Uma vez professor, sempre professor. – Você.
Meu queixo caiu.
- Pelo menos – Quíron ergueu uma das mãos -, é isso que Zeus pensa. Durante o
solstício de inverno, na última assembléia dos deuses, Zeus e Poseidon tiveram uma
discussão. As tolices de sempre: “A Mãe Rhea sempre gostou mais de você”, “Os
desastres aéreos são mais espetaculares que os marítimos” etc. Mais tarde, Zeus se deu
conta de que o seu raio-mestre havia desaparecido, levado da sala do trono bem debaixo
do seu nariz. No mesmo instante culpou Poseidon. Agora, um deus não pode usurpar
diretamente o símbolo de poder de outro deus – isso é proibido pela mais antiga das leis
divinas. Mas Zeus acredita que seu pai convenceu um herói humano a pegá-lo.
- Mas eu não...
- Paciência, e escute, criança – disse Quíron. – Zeus tem boas razões para suspeitar. As
forjas dos Ciclopes ficam embaixo do oceano, o que dá a Poseidon alguma influencia
sobre os fabricantes dos raios do seu irmão. Zeus acredita que Poseidon pegou o raiomestre
e está agora mandando os Ciclopes construírem secretamente um arsenal de
cópias ilegais, que poderiam ser usadas para derrubar Zeus do seu trono. A única coisa
de que Zeus não tinha certeza era qual herói Poseidon usara para roubar o raio. Agora
Poseidon declarou abertamente que você é filho dele. Você estava em Nova York nas
férias de inverno. Poderia facilmente ter se infiltrado no Olimpo. Zeus acredita que
encontrou o seu ladrão.
- Mas eu nunca estive no Olimpo! Zeus está maluco!
Quíron e Grover olharam nervosamente para o céu. As nuvens não pareciam estar se
separando à nossa volta, como Grover prometera. Estavam vindo para cima do nosso
vale, fechando-nos dentro dele como uma tampa de caixão.
- Ahn, Percy...? – disse Grover. – Nós não usamos essa palavra que começa com m para
descrever o Senhor do Céu.
- Paranóico, quem sabe – sugeriu Quíron. – Mas, por outro lado, Poseidon já tentou
derrubar Zeus antes. Acredito que essa foi a pergunta 38 da sua prova final... – Ele
olhou para mim como quem realmente esperava que e me lembrasse da pergunta 38.
Como podia alguém me acusar de roubar a arma de um deus? Eu não conseguia nem
furtar um pedaço de pizza da mesa de pôquer de Gabe sem ser pego. Quíron estava
esperando por uma resposta.
- Alguma coisa a ver com uma rede de ouro? – adivinhei. – Poseidon, e Hera, e alguns
outros deuses... eles, tipo, prenderam Zeus numa armadilha e não o deixaram sair até ele
prometer ser um soberano melhor, certo?
- Correto – disse Quíron. – E Zeus nunca mais confiou em Poseidon desde então.
Poseidon, é claro, nega ter roubado o raio-mestre. Ele se ofendeu com a acusação. Os
dois vêm discutindo o tempo todo há meses, com ameaças de guerra. E agora você
apareceu – a famosa gota-d’água.
- Mas eu sou apenas uma criança!
- Percy – interveio Grover -, se você fosse Zeus, e já achasse que o seu irmão estava
planejando derrubá-lo, e então subitamente admitisse que havia quebrado o juramento
sagrado que fizera depois da Segunda Guerra Mundial e que era pai de um novo herói
mortal que poderia ser usado como uma arma contra você... Isso não o deixaria com a
pulga atrás da orelha?
- Mas eu não fiz nada. Poseidon – meu pai -, ele realmente não mandou roubar o raiomestre,
mandou?
Quíron suspirou.
- A maioria dos observadores inteligentes concordaria que o roubo não faz o estilo de
Poseidon. Mas o Deus do Maré orgulhoso demais para tentar convencer Zeus disso.
Zeus exigiu que Poseidon devolva o raio até o solstício de verão. Isso será em 21 de
junho, dez dias a contar de agora. Poseidon quer um pedido de desculpas por ser
chamado de ladrão até essa mesma data. Eu tinha esperanças de que a diplomacia
prevalecesse, que Hera ou Demeter ou Héstia fariam os dois irmãos verem a razão. Mas
a sua chegada inflamou o gênio de Zeus. Agora nenhum dos dois deuses quer recuar. A
não ser que alguém intervenha, a não ser que o raio-mestre seja encontrado e devolvido
a Zeus antes do solstício, haverá guerra. E você sabe como poderia ser uma guerra total,
Percy?
- Ruim ? – adivinhei.
- Imagine o mundo em caos. A natureza em guerra consigo mesma. Os olimpianos
forçados a escolher lados entre Zeus e Poseidon. Destruição. Carnificina. Milhões de
mortos. A civilização ocidental transformada em um campo de batalha tão grande que
fará a Guerra de Tróia parecer uma luta de balões d’água.
- Ruim – repeti.
- E você, Percy Jackson, será o primeiro a sentir a ira de Zeus.
Começou a chover. Os jogadores de vôlei interromperam o jogo e olhavam perplexo
para o céu.
Eu havia trazido a tempestade para a Colina Meio-Sangue, Zeus estava punindo o
acampamento inteiro por minha causa. Eu estava furioso.
- Então eu tenho de encontrar aquele raio estúpido – disse. – E devolvê-lo a Zeus.
- Que melhor oferenda de paz – disse Quíron -, do que fazer filho de Poseidon devolver
o que é de Zeus?
- Se não está com Poseidon, onde está essa coisa?
- Eu creio que sei. – A expressão de Quíron era soturna. – Parte da profecia que recebi
anos atrás... bem, algumas frases fazem sentido para mim, agora. Mas, antes que eu
possa dizer mais, você precisa aceitar oficialmente a missão. Você precisa procurar o
conselho do Oráculo.
- Por que você não pode dizer de antemão onde está o raio?
- Porque, se eu fizer isso, você ficará assustado demais para aceitar o desafio.
Eu engoli em seco.
- Boa razão.
- Então você concorda?
Olhei para Grover, que assentiu encorajadoramente.
Fácil para ele. Era a mim que Zeus queria matar.
- Está bem – disse eu. – É melhor do que ser transformado em um golfinho.
- Então é hora de você consultar o Oráculo – disse Quíron. – Vá para cima, Percy
Jackson, para o sótão. Quando descer d novo, presumindo que ainda esteja lúcido,
conversaremos mais.

*****

Quatro lances acima, a escada terminava embaixo de um alçapão verde.
Puxei o cordão. A porta se abriu e uma escada de madeira caiu ruidosamente no lugar.
O ar morno que vinha de cima cheirava a mofo, madeira podre e mais alguma coisa...
um cheiro que me lembrou a aula de biologia. Répteis. O cheiro de serpentes.
Prendi a respiração e subi.
O sótão estava atulhado de sucata de heróis gregos: suportes de armaduras cobertos de
teias de aranha; escudos outrora brilhantes cheios de adesivos dizendo ÍTACA, ILHA
DE CIRCE E TERRA DAS AMAZONAS. Sobre uma mesa comprida estavam
amontoados potes de vidro cheios de coisas em conserva – garras peludas decepadas,
enormes olhos amarelos e diversas outras partes de monstros. Um troféu empoeirado na
parede parecia ser uma cabeça de serpente gigante, mas com chifres e uma arcada
completa de dentes de tubarão. Uma placa dizia: CABEÇA N. 1 DA HIDRA,
WOOSSTOCK, N.Y., 1969.
Junto à janela, sentado em uma banqueta de madeira com três pernas, estava o suvenir
mais pavoroso de todos: uma múmia. Não do tipo enfaixada em panos, mas um corpo
humano feminino, ressecado até ficar só a casca. Usava um vestido de verão estampado
em batique, com uma porção de colares de contas e uma bandana por cima de longos
cabelos pretos. A pele do rosto era fina e parecia couro por cima do crânio, e os olhos
eram fendas brancas vítreas, como se os olhos de verdade tivessem sido substituídos por
bolas de gude; devia estar morta fazia muito, muito tempo.
Olhar para ela me deu arrepios nas costas. E isso foi antes de ela se endireitar na
banqueta e abrir a boca. Uma névoa verde jorrou da garganta da múmia, serpenteando
pelo chão em anéis grossos, sibilando como vinte mil cobras. Tropecei em mim mesmo
tentando chegar até o alçapão, mas ele se fechou com uma batida. Dentro da minha
cabeça, ouvi uma voz, deslizando por um ouvido e se enroscando por meu cérebro: Eu
sou o espírito de Delfos, porta-voz das profecias de Febo Apolo, assassino da poderosa
Píton. Aproxime-se, você que busca, e pergunte.
Eu quis dizer: Não, obrigado, porta errada, só estava procurando o banheiro. Mas me
forcei a respirar fundo.
A múmia não estava viva. Era algum tipo de receptáculo horripilante para uma outra
coisa, o poder que girava em espiral à minha volta na névoa verde. Mas sua presença
não parecia maligna, como a da professora demoníaca de matemática, a sra. Dodds ou a
do Minotauro. Era mais como as Três Parcas que eu tinha visto tricotando o fio de lã ao
lado da banca de frutas da rodovia: antiga, poderosa e, sem duvida, não-humana. E
também não parecia especialmente interessada em me matar.
Reuni coragem para perguntar:
- Qual é o meu destino?
A névoa rodopiou, mais densa, juntando-se bem na minha frente e em volta da mesa
com os potes que continham partes de monstros em conserva. De repente, havia quatro
homens sentados à volta da mesa, jogando cartas. Os rostos ficaram mais nítidos. Era
Gabe Cheiroso e seus cupinchas.
Meus punhos se contraíram, embora eu soubesse que aquele jogo de pôquer não podia
ser real. Era uma ilusão, feita d névoa.
Gabe voltou-se para mim e falou na voz rouca do Oráculo: Você irá para o oeste, e irá
enfrentar o deus que se tornou desleal.
O cupincha da direita ergueu os olhos e disse com a mesma voz: Você irá encontrar o
que foi roubado, e o verá devolvido em segurança.
O da esquerda colocou três fichas na mesa, depois disse: Você será traído por aquele
que o chama de amigo.
Por fim Eddie, o zelador do nosso edifício, preferiu a por sentença de todas: E, no fim,
irá fracassar em salvar aquilo que mais importa.
As figuras começaram a se dissolver. De início fiquei atordoado demais para dizer
alguma coisa, mas quando a névoa recuou, enrolando-se como uma enorme serpente
verde e deslizando de volta para dentro da boca da múmia, eu gritei:
- Espere! O que quer dizer? Que amigo? O que não vou conseguir salvar?
A cauda da serpente de névoa desapareceu na boca da múmia. Ela se reclinou de volta
contra a parede. A boca fechou-se bem apertada, como se não tivesse sido aberta em
cem anos. O sótão ficou silencioso de novo, abandonado, nada além de uma sala cheia
de suvenires.
Tive a sensação de que poderia ficar lá parado até juntar teias de aranha também, e não
ficaria sabendo mais nada.
Minha audiência com o Oráculo estava encerrada.

*****

- E então? – Quíron me perguntou.
Desabei em uma cadeira à mesa de pinoche. – Ela disse que eu devia recuperar o que foi
roubado.
Grover se inclinou para frente, mascando animado os restos de uma lata de Diet Coke.
- Isso é ótimo!
- O que foi que o Oráculo disse exatamente? - pressionou Quíron. – Isso é importante.
Meus ouvidos ainda estavam tinindo com a voz reptiliana.
- Ela... ela disse que eu iria para o oeste e enfrentaria um deus que se tornou desleal.
Recuperaria o que foi roubado e devolveria em segurança.
- Eu sabia – disse Grover.
Quíron não pareceu satisfeito.
- Mais alguma coisa?
Eu não queria contar a ele.
Que amigo iria me trair? Eu não tinha tantos assim.
E a última sentença – eu fracassaria em salvar o que mais importa. Que tipo de Oráculo
me mandaria em uma missão e me diria, Ah, a propósito, você vai se dar mal.
Como eu poderia confessar aquilo?
- Não – falei. – Isso é tudo.
Ele estudou meu rosto.
- Muito bem, Percy. Mas saiba disto as palavras do Oráculo freqüentemente têm duplo
sentido. Não se fie demais nelas. A verdade nem sempre fica clara até que os eventos
aconteçam.
Tive a sensação de que ele sabia que eu estava escondendo algo ruim, e tentava fazer
com que eu me sentisse melhor.
- Certo – falei, ansioso por mudar de assunto. – Então, aonde vou? Quem é esse deus no
oeste?
- Ah, pense, Percy – disse Quíron. – Se Zeus e Poseidon enfraquecem um ao outro
numa guerra, quem tem a ganhar com isso?
- Algum outro que queira tomar o poder? – adivinhei.
- Sim, exatamente. Alguém que guarda um ressentimento, alguém que está infeliz com a
parte que lhe coube desde que o mundo foi dividido eras atrás, cujo reinado se tornará
poderoso com a morte de milhões. Alguém que odeia os irmãos por forçá-lo a um
juramento de não ter mais filhos, um juramento que ambos quebraram.
Pensei nos meus sonhos, na voz maligna que falara do fundo da terra.
- Hades.
Quíron assentiu.
- O Senhor dos Mortos é a única possibilidade.
Grover babou um pedaço de alumínio pelo canto da boca.
- Opa, espere aí. O-o quê?
- Uma das Fúrias veio trás de Percy – lembrou Quíron. – Ela observou o rapaz até ter
certeza da sua identidade, e então tentou matá-lo. As Fúrias obedecem a um só senhor:
Hades.
- Sim, mas... mas Hades odeia todos os heróis – protestou Grover. – Especialmente se
tiver descoberto que Percy é filho de Poseidon...
- Um cão infernal conseguiu entrar na floresta – continuou Quíron. – Eles só podem ser
convocados dos Campos da Punição, e ele tinha de ser convocado por alguém de dentro
do acampamento. Hades deve ter um espião aqui. Ele deve suspeitar que Poseidon
tentará usar Percy para limpar seu nome. Hades gostaria muito de matar esse jovem
meio-sangue antes que ele possa assumir a missão.
- Boa – murmurei. – São dois dos deuses mais importantes querendo me matar.
- Mas uma missão para... – Grover engoliu em seco. – Quer dizer, o raio-mestre não
poderia estar em algum lugar como o Maine? O Maine é muito agradável nesta época
do ano.
- Hades enviou u protegido para roubar o raio-mestre – insistiu Quíron. – Ele o
escondeu no Mundo Inferior, sabendo muito BM que Zeus culparia Poseidon. Não
pretendo entender perfeitamente os motivos do Senhor dos Mortos ou por que ele
escolheu esta época para começar uma guerra, mas uma coisa é certa: Percy precisa ir
ao Mundo Inferior; encontrar o raio-mestre e revelar a verdade.
Um fogo estranho queimou em meu estômago. O mais esquisito era que não se tratava
de medo. Era expectativa. O desejo de vingança. Hades tentara me matar três vezes até
agora, com a Fúria, o Minotauro e o cão infernal. Por sua culpa minha mãe desaparecera
em um clarão. Agora ele tentava enquadrar eu e meu pai por um roubo que não
tínhamos cometido.
Eu estava pronto para enfrentá-lo.
Além disso, se minha mãe estava no Mundo Inferior...
Epa, rapaz!, disse a pequena parte do meu cérebro que ainda estava lúcida. Você é um
garoto. Hades é um deus.
Grover estava tremendo. Tinha começado a comer cartas de pinoche como se fossem
batatinhas fritas.
O pobre sujeito precisava completar uma missão comigo para obter sua licença de
buscador, o que quer que fosse isso, mas como poderia lhe pedir que participasse
daquilo, principalmente sabendo que o Oráculo dissera que eu ia fracassar? Era suicídio.
- Olhe, se nós abemos que é Hades – disse a Quíron -, Zeus ou Poseidon poderiam
descer ao Mundo Inferior e fazer rolar algumas cabeças.
- suspeitar e saber não são o mesmo – disse Quíron. – Além disso, mesmo que
suspeitem de Hades... imagino que Poseidon suspeite.. os outros deuses não poderiam
recuperar o raio por si mesmos. Deuses não podem entrar nos territórios um do outro a
não ser que sejam convidados. Essa é outra regra muito antiga. Heróis, por outro lado,
têm certos privilégios. Podem ir a qualquer lugar, desafiar qualquer um, desde que
sejam corajosos e fortes o bastante para fazê-lo. Nenhum deus pode ser
responsabilidade pelos atos de um herói. Por que acha eu os deuses sempre agem por
intermédio de seres humanos?
- Você está dizendo que estou sendo usado.
- Estou dizendo que não é por acaso que Poseidon o assumiu agora. É uma jogada muito
arriscada, mas ele está em uma situação desesperadora. Precisa de você.
Meu pai precisa de mim.
As emoções giraram dentro de mim como pedaços de vidro em um caleidoscópio. Eu
não sabia se sentia ressentimento, gratidão, alegria ou raiva. Poseidon me ignorara por
doze anos. Agora de repente, precisava de mim.
Olhei para Quíron.
- Você sabia o tempo todo que eu era filho de Poseidon, não é?
- Tinha minhas suspeitas. Como eu disse... também falei com o Oráculo.
Tive a sensação de que havia muita coisa que ele não estava me contando sobre sua
profecia, mas percebi que não poderia me preocupar com aquilo naquela hora. Afinal,
eu também estava sonegando informações.
- Então, deixe-me entender direito – falei. – Preciso ir para o Mundo Inferior e
confrontar o Senhor dos Mortos.
- Confere – disse Quíron.
- Para encontrar a arma mais poderosa do universo.
- Confere.
- E levá-la de volta ao Olimpo antes do solstício de verão, daqui a dez dias.
- Isso mesmo.
Olhei para Grover, que engoliu o ás de copas.
- Cheguei a mencionar que o Maine é muito agradável nesta época do ano? – perguntou
ele de um jeito cansado.
- Você não precisa ir – disse a ele. – Não posso lhe exigir isso.
- Ah... – Ele se balançou de um casco para o outro. – Não... é só que os sátiros, e os
lugares embaixo da terra... bem...
Ele respirou fundo, depois se pôs de pé, sacudindo os pedaços de cartas e alumínio da
camiseta.
- Você salvou a minha vida, Percy. Se... se está falando sério em querer que eu vá junto,
não vou deixá-lo na mão.
Fiquei tão aliviado que tive vontade de chorar, embora não achasse isso muito heróico.
Grover era o único amigo que já tivera por mais que alguns meses. Não sabia muito
bem o que um sátiro poderia fazer contra as forças dos mortos, mas me senti melhor
sabendo que ele estaria comigo.
- Juntos até o fim, homem-bode. Eu me virei para Quíron. – Então, para onde vamos? O
Oráculo só disse para ir para oeste.
- A entrada para o Mundo Inferior fica sempre no oeste. Muda de lugar de era em era,
como o Olimpo. Atualmente, é claro, fica nos Estados Unidos.
- Onde?
Quíron pareceu surpreso.
- Pensei que fosse óbvio. A entrada para o Mundo Inferior fica em Los Angeles.
- Ah – falei. – Claro. Então é só pegar um avião...
- Não! – gritou Grover. – Percy, o que está pensando? Alguma vez na vida já esteve em
um avião?
Sacudi a cabeça, sem graça. Minha mãe nunca me levara para lugar algum de avião. Ela
sempre dizia que não tínhamos dinheiro pra isso. Além disso, os pais dela tinham
morrido em um desastre de avião.
- Percy, pense – disse Quíron. – Você é filho do Deus do Mar. O rival mais rancoroso
do seu pai é Zeus, Senhor do Céu. Sua mãe sabia muito bem que não podia confiar você
a um avião.
Acima de nós, relâmpagos estalaram. O trovão ribombo.
- Certo – disse eu, determinado a não olhar para a tempestade. – Então, viajarei por
terra.
- Certo – disse Quíron. – Dois parceiros poderão acompanhá-lo. Grover é um. O outro
já se apresentou como voluntário, se você aceitar a ajuda dela.
- Puxa – falei, fingindo surpresa. – Quem mais seria bastante estúpido para se apresentar
para uma missão como essa?
O ar tremulou atrás de Quíron.
Annabeth se tornou visível, enfiando o boné dos Yankees no bolso de trás.
- Eu estava esperando há muito tempo por uma missão, cabeça de alga – disse ela. –
Atena não é fã de Poseidon, mas se você vai salvar o mundo, sou a melhor pessoa para
impedir que estrague tudo.
- Se é você quem diz. Tem algum plano, sabidinha?
As bochechas dela coraram.
- Você quer a minha ajuda ou não?
A verdade é que eu queria. Precisava de toda a ajuda que pudesse encontrar.
- Um trio – disse eu. – Isso vai dar certo.
- Excelente – disse Quíron. – Esta tarde podemos levar vocês no máximo até o terminal
de ônibus em Manhattan. Depois disso, estarão por conta própria.
Um relâmpago. A chuva desabou sobre as campinas que jamais deveriam ver um
temporal violento.
- Não há tempo a perder – disse Quíron. – Acho que todos vocês devem fazer as malas.

DEZ
Eu destruo um ônibus.
Não precisei de muito tempo para fazer as malas. Decidi deixar o cifre do Minotauro no
meu chalé, então só restaram uma muda extra de roupas e uma escova de dentes para
enfiar numa mochila que Grover encontrara para mim.
A loja do acampamento me emprestou cem dólares em dinheiro mortal e vinte dracmas
de ouro. Essas moedas eram grandes como um biscoito gigante, tinham imagens de
diversos deuses gregos estamapadas de um lado e o Edifício Empire States do outro. Os
dracmas dos mortais antigos eram de prata, Quíron nos contou, mas os olimpianos
nunca usavam nada menos que ouro puro. Quíron disse que as moedas poderiam vir a
calhar para transações não-mortais – o que quer que isso significasse. Ele deu a
Annabeth e a mim um cantil de néctar e um saco hermético cheio de quadradinhos de
ambrosia, para usar somente em emergências, se fôssemos gravemente feridos. Aquilo
era o alimento dos deuses, Quíron lembrou. Iria nos curar de qualquer ferimento, mas
era letal para mortais. Em excesso, poderia deixar um meio-sangue com muita, muita
febre. Uma overdose nos faria pegar fogo, literalmente.
Annabeth carregava seu boné mágico dos Yankees, que era, ela me contou, um presente
da mãe pelo seu décimo segundo aniversario. Ela levou um livro sobre a famosa
arquitetura clássica, escrito em grego antigo, para ler quando estivesse entediada, e
carregava uma comprida faca de bronze escondida na manga da camisa. Eu tinha
certeza de que a faca ia nos causar problemas na primeira vez em que passássemos por
um detector de metais.
Grover estava com seus pés falsos e calças para passar por ser humano. Usava uma
touca verde estilo rastafári, porque, quando chovia, seu cabelo encaracolado se
achatava, deixando aparecer a ponta dos chifres. Sua mochila berrante, alaranjada,
estava cheia de sucata de metal e maçãs para o lanche. Em seu bolso havia um conjunto
de flautas de bambu que o papai-bode esculpira para ele, muito embora ele só
conhecesse duas músicas: o Concerto para Piano n° 12, de Mozart, e So Yesterday, de
Hilary Duff, e ambas soassem muito mal em flautas de bambu.
Acenamos em despedida para os outros campistas, demos uma última olhada para os
campos de morangos, o oceano e a Casa Grande, depois subimos a Colina Meio-Sangue
até o alto pinheiro que outrora fora Thalia, filha de Zeus.
Quíron nos esperava em sua cadeira de rodas. Ao lado dele estava o surfista que eu
tinha visto quando me recuperava no quarto doente. De acordo com Grover, o cara era
chefe de segurança do acampamento. Supostamente, tinha olhos espalhados pelo corpo
inteiro para jamais ser pego de surpresa. Naquele dia, no entanto, usava uniforme de
chofer, então só pude ver os olhos extras das mãos, do rosto e do pescoço.
- Este é Argos – disse Quíron. – Vai levar vocês de carro até a cidade e, ahn, bem, ficar
de olho em tudo.
Ouvi passos atrás de nós.
Luke veio correndo colina acima, carregando um par de tênis de basquete.
- Ei! – ofegou ele. – Ainda bem que alcancei vocês.
Annabeth corou, como sempre acontecia quando Luke estava por perto.
- Só queria desejar boa sorte – disse ele para mim. – E pensei... ahn, quem sabe você
poderia usar isso.
Ele me entregou os tênis, que pareciam bastante normais. Tinham até cheiro de normais.
Luke disse:
- Maia!
Asas brancas de ave brotaram dos calcanhares, deixando-me tão surpreso que os deixei
cair. Os tênis bateram as asas no chão até que estas se dobraram e desapareceram.
- Impressionante! – disse Grover.
Luke sorriu.
- Ajudaram muito quando eu estava na minha missão. Presente do papai. É claro, eu não
os uso muito hoje em dia... – Sua expressão tornou-se triste.
Eu não sabia o que dizer. Já era bem legal o fato de Luke ter ido se despedir. Tinha
receio de que ele estivesse magoado comigo por ter ganho tanta atenção nos últimos
dias. Mas ali estava ele, com um presente mágico... Aquilo me fez corar quase tanto
quanto Annabeth.
- Ei, cara, obrigado.
- Escute, Percy... – Luke pareceu sem graça. – Todos esperam muito de você. Então,
apenas... mate alguns monstros por mim, ok?
Trocamos um aperto de mãos. Luke afagou a cabeça de Grover entre os chifres e depois
deu um grande abraço em Annabeth, que pareceu que ia desmaiar.
Depois que Luke se foi, eu disse a ela:
- Você está com a respiração acelerada.
- Não estou, não.
- Você o deixou capturar a bandeira em seu lugar, não foi?
- Ai... por que mesmo eu quero ir a algum lugar com você, Percy?
El desceu batendo os pés para outro lado da colina, onde um utilitário esportivo branco
esperava no acostamento da estrada. Argos a seguiu, balançando as chaves do carro.
Peguei os tênis voadores e tive uma súbita sensação ruim. Olhei para Quíron.
- Eu não vou poder usar isso, não é?
Ele sacudiu a cabeça.
- A intenção de Luke foi boa, Percy. Mas subir para o ar.... não seria muito inteligente
de sua parte.
Eu assenti, desapontado, mas então tive uma idéia.
- Ei, Grover. Você quer um apetrecho mágico?
Seus olhos se iluminaram.
- Eu?
Rapidamente, amarramos os tênis por cima dos seus falsos pés, e o primeiro meninobode
voador do mundo estava pronto para o lançamento.
- Maia! – bradou.
Ele se ergueu do chão muito bem, mas então tombou de lado e sua mochila arrastou-se
pela grama. Os tênis alados ficaram corcoveando para o alto e para baixo como
minúsculos cavalos selvagens.
- Prática – gritou Quíron para ele. – Você só precisa de prática.
- Aaaaaa! – Grover saiu voando de lado colina baixo, como um cortador de grama
ensandecido, em direção à van.
Antes que eu pudesse segui-lo, Quíron segurou meu braço.
- Eu devia tê-lo treinado melhor, Percy – disse ele. – Se ao menos tivesse tido mais
tempo. Hércules, Jasão... todos receberam mais treinamento.
- Tudo bem. Só queria....
Eu me interrompi pois estava prestes a soar como uma criança mimada. Queria que meu
pai tivesse me dado uma coisa mágica legal para ajudar na minha missão, algo tão bom
quanto os tênis voadores de Luke ou o boné invisível de Annabeth.
- Onde estou com a cabeça? – exclamou Quíron. – Não posso deixar você ir sem isso.
Ele puxou uma caneta do bolso do casaco e me entregou. Era uma esferográfica
descartável comum, tinta preta, tampa removível. Custava provavelmente trinta
centavos.
- Puxa disse eu. – Obrigado.
- Percy, isto foi um presente de seu pai. Guardei durante anos, sem saber que era você
que eu estava esperando. Mas a profecia agora está clara para mim. Você é o escolhido.
Lembrei-me da excursão ao Metropolitan Museum of Art, quando reduzi a Poá a sra.
Dodds. Quíron me jogara uma caneta que se transformou em espada. Será que aquilo
era...?
Tirei a tampa, e a caneta ficou mais comprida e pesada em minha mão. Em meio
segundo eu estava segurando uma reluzente espada de bronze com lâmina de fio duplo,
cabo envolvido em couro e uma guarda chata rebitada com pinos de ouro. Era a
primeira arma que realmente parecia equilibrada em minha mão.
- A espada tem uma história longa e trágica, sobre a qual não precisamos falar – contoume
Quíron. – Seu nome é Anaklusmos.
- Contracorrente – traduzi, surpreso que o grego antigo me tenha vindo tão fácil.
- Mas só a use para emergências – disse Quíron, e apenas contra monstros. Nenhum
herói deve ferir mortais, só se for absolutamente necessário, é claro, mas esta espada
não os feriria em nenhum caso.
Olhei para a lâmina cruelmente afiada.
- Como assim, não feriria mortais? Como ela pode não ferir?
- A espada é de bronze celestial. Forjada pelos Ciclopes, temperada no coração do
monte Etna, resfriada no rio Lete. É mortífera para monstros, para qualquer criatura do
Mundo Inferior, desde que não matem você primeiro. Mas a lâmina passará através de
mortais como uma ilusão. Eles não são bastante importantes para serem mortos pela
lâmina. E devo avisá-lo: como um semideus, você pode ser morto tanto por armas
celestiais quanto por armas normais. Você é duas vezes mais vulnerável.
- Bom saber.
- Agora recoloque a tampa na caneta.
Encostei a tampa da caneta na ponta da espada e instantaneamente Contracorrente
encolheu e se transformou de novo em uma esferográfica. Enfiei-a no bolso um pouco
nervoso, porque na escola tinha a fama de perder canetas.
- Não há riscos – disse Quíron.
- De quê?
- De perder a caneta – disse ele. – É encantada. Sempre vai reaparecer no seu bolso.
Experimente.
Eu estava desconfiado, mas atirei a caneta o mais longe que pude colina abaixo e a vi
desaparecer na grama.
- Pode levar alguns instantes – disse Quíron. – Agora verifique o bolso.
Sem dúvida, a caneta estava lá.
- Certo, isso é muito legal – admiti. – Mas e se um mortal me vir puxando uma espada?
Quíron sorriu.
- A Névoa é algo poderoso, Percy.
- A Névoa?
- Sim. Leia a Ilíada. Está cheia de referências a isso. Sempre que elementos divinos ou
monstruosos se misturam com o mundo mortal, eles geram a Névoa, que tolda a visão
dos seres humanos. Você verá as coisas exatamente como são, sendo um meio-sangue,
mas os seres humanos interpretarão tudo de modo muito diferente. É realmente incrível
até que ponto os seres humanos podem ir para adaptar as situações à sua concepção de
realidade.
Pus Contracorrente de volta no bolso.
Pela primeira vez, senti a missão como algo real. Eu estava de fato deixando a Colina
Meio-Sangue. Estava indo para o oeste sem nenhuma supervisão de adulto, sem um
plano B, nem mesmo um telefone celular. (Quíron disse que os telefones podiam ser
rastreados por monstros; se usasse um, seria pior do que lançar um foguete de
sinalização.) Eu não tinha nenhuma arma mais poderosa do que uma espada para
combater monstros e chegar à Terra dos Mortos.
- Quíron... – falei. – Quando você diz que os deuses são imortais... quer dizer, havia um
tempo antes deles, certo?
- Quatro era antes deles, na verdade. O Tempo dos Titãs foi a Quarta Era, às vezes
chamada de Era de Ouro, o que sem dúvida é um nome impróprio. Esta época, a época
da civilização ocidental e reinado de Zeus, é a Quinta Era.
- Então como era... antes dos deuses?
Quíron contraiu os lábios.
- Nem mesmo eu sou bastante velho para me lembrar disso, criança, mas sei que era um
tempo de trevas e selvageria para os mortais. Cronos, o Senhor dos Titãs, chamou seu
reinado de Era de Ouro porque os homens viviam em inocência e livres de todo o
conhecimento. Mas isso era mera propaganda. O rei Titã não se importava nada com
sua espécie a não ser para servir de aperitivo, ou como fonte de entretenimento. Foi só
no início do reinado do Senhor Zeus, quando Prometeu, o bom Titã, trouxe o fogo para
a humanidade, que sua espécie começou a evoluir, e mesmo então Prometeu foi
estigmatizado como pensador radical. Zeus o castigou severamente, como você deve se
lembrar. É claro, por fim os deuses se interessaram pelos seres humanos, e nasceu a
civilização ocidental.
- Mas agora os deuses não podem morrer, certo? Quero dizer, enquanto a civilização
ocidental estiver viva, eles estarão vivos. Assim... mesmo se eu fracassar, nada pode
acontecer de tão ruim a ponto de estragar tudo, certo?
Quíron me deu um sorriso melancólico.
- Ninguém sabe quanto tempo a Era do Ocidente irá durar, Percy. Os deuses são
imortais, sim. Mas os Titãs também eram imortais. Eles ainda existem, trancados em
suas várias prisões, forçados a suportar dores e castigos infinitos, com o poder reduzido,
mas ainda muito vivos. Que as Parcas não permitam que os deuses sofram tal maldição,
ou que retornemos às trevas e aos caos do passado. Tudo o que podemos fazer, criança,
é seguir nosso destino.
- Nosso destino... presumindo que saibamos qual é.
- Relaxe – disse-me Quíron. – Mantenha as idéias no lugar. E lembre-se, você pode
estar a ponto de evitar a maior guerra da história humana.
- Relaxe – disse eu. – Estou muito relaxado.
Quando cheguei ao pé da colina, olhei para trás. Sob o pinheiro que outrora era Thalia,
filha de Zeus, Quíron estava em plena forma de homem-cavalo, segurando no alto seu
arco em saudação. Uma típica despedida do acampamento de verão pelo seu típico
centauro.

*****

Argos nos levou para fora da zona rural em direção ao oeste de Long Island. Era
esquisito estar novamente em uma auto-estrada, com Annabeth e Grover sentados ao
meu lado como se fôssemos caronas normais. Depois de duas semana na Colina Meio-
Sangue, o mundo real parecia uma fantasia. Surpreendi-me olhando para cada
McDonald’s, cada criança no banco traseiro do carro dos pais, cada cartaz e cada
shopping center.
- Até agora, tudo bem – disse a Annabeth. – Quinze quilômetros e nem um único
monstro.
Ela me lançou um olhar irritado.
- Falar desse jeito traz má sorte, cabeça de alga.
- Ajude-me a lembrar: por que você me odeia tanto?
- Eu não odeio você.
- Posso estar enganado.
Ela dobrou o boné de invisibilidade.
- Olhe... é só que não deveríamos nos dar bem, ok? Nossos pais são rivais.
- Por quê?
Ela suspirou.
- Quantas razões você quer? Uma vez minha mãe pegou Poseidon com a namorada dele
no templo de Atena, o que é superdesrespeitoso. Outra vez, Atena e Poseidon
competiram para ser o deus patrono da cidade de Atenas. Seu pai criou uma estúpida
fonte de água salgada como presente. Minha mãe criou a oliveira. As pessoas viram que
o presente dela era melhor, portanto deram à cidade o nome dela.
- Elas realmente devem gostar de azeitonas.
- Ah, deixa pra lá.
- Agora, se ela tivesse inventado a pizza... isso eu poderia entender.
- Eu disse: deixa pra lá.
No assento dianteiro, Argos sorriu. Ele não disse nada, mas olho azul na sua nuca
piscou para mim.
O trânsito ficou lento no Queens. Quando chegamos a Manhattan já era pôr-do-sol e
começava a chover.
Argos nos largou na Estação Greyhound no Upper East Side, não longe do apartamento
de minha mãe e Gabe. Em uma caixa de correio, preso com fita adesiva, havia um
folheto encharcado com meu retrato: VOCÊ VIU ESTE MENINO?
Eu o arranquei antes que Annabeth e Grover pudessem vê-lo.
Argos descarregou nossas malas, certificou-se de que havíamos conseguido as
passagens de ônibus e então foi embora, o olho nas costas de sua mão se abrindo para
nos observar enquanto tirava o carro do estacionamento.
Pensei em como estava perto do meu velho apartamento. Em um dia normal, minha mãe
estaria chegando em casa da doceria mais ou menos naquela hora. Gabe Cheiroso
provavelmente estava lá, jogando pôquer, sem nem sentir a falta dela.
Grover pôs sua mochila nos ombros. Olhou rua abaixo, na direção em que eu estava
olhando.
- Quer saber por que ela se casou com ele, Percy?
Olhei para ele.
- Você está lendo a minha mente ou coisa assim?
- Só as suas emoções. – Ele encolheu os ombros. – Acho que me esqueci de contar que
os sátiros podem fazer isso. Você estava pensando na sua mãe e no seu padrasto, certo?
Eu assenti, me perguntando o que mais Grover teria esquecido de contar.
- Sua mãe se casou com gabe por você – Grover me contou. – Você o chama de
“Cheiroso”, mas não tem idéia. O cara tem essa aura... Eca, eu posso sentir o cheiro dele
daqui. Posso sentir vestígios do cheiro dele em você, e já faz uma semana que você
esteve perto dele.
- Obrigado – falei. – Onde fica o chuveiro mais próximo?
- Você devia ser grato, Percy. Seu padrasto tem um cheiro tão repulsivamente humano
que pode mascarar a presença de qualquer semideus. Assim que inalei o ar dentro do
seu Camaro, eu soube: Gabe esteve encobrindo seu cheiro por anos. Se você não tivesse
morado com ele durante todos os verões, provavelmente teria sido encontrado por
monstros muito tempo atrás. Sua mãe ficou com ele para proteger você. Era uma
senhora esperta. Devia amar muito você para aturar aquele cara... se é que isso o faz se
sentir melhor.
Não fazia, mas me forcei para não demonstrar. Eu a varei de novo, pensei. Ela nãos e
foi.
Fiquei imaginando se Grover ainda podia ler as minhas emoções, confusas como
estavam. Estava grato por ele e Annabeth estarem comigo, mas me sentia culpado
porque não fora sincero com eles. Não lhes contara a verdadeira razão de ter dito sim
para aquela missão maluca.
A verdade era que eu não me importava em recuperar o relâmpago de Zeus, em salvar o
mundo ou mesmo em ajudar meu pai a sair da encrenca. Quanto mais pensava nisso,
mas me ressentia de Poseidon por nunca ter me visitado, nunca ter ajudado a minha
mãe, nunca se quer mandado uma droga de cheque de pensão alimentícia. Ele só me
reconhecera porque tinha um serviço a ser feito.
Eu só me preocupava com minha mãe. Hades a levara injustamente, e Hades iria
devolvê-la.
Você será traído por aquele que chama de amigo, sussurrou o Oráculo em minha
mente. E, no fim, irá fracassar em salvar aquilo que mais importa.
Cale a boca, respondi.

*****

A chuva continua caindo.
Ficamos impacientes esperando o ônibus e decidimos brincar de footbag com uma das
maçãs de Grover. Annabeth foi incrível. Ela era capaz de arremeter a maçã com o
joelho, com o cotovelo, com o ombro, ou o que fosse. Eu mesmo não era de todo ruim.
O jogo terminou quando arremessei a maçã para Grover e ela chegou perto demais da
sua boca. Em uma megamordida de bode, nossa footbag desapareceu – miolo,
pedúnculo e tudo.
Grover enrubesceu. Ele tentou se desculpar, mas Annabeth e eu estávamos muito
ocupados dando risada.
Finalmente o ônibus chegou. Enquanto estávamos na fila para embarcar, Grover
começou a olhar em volta, farejando o ar do jeito como farejava seu lanche favorito na
cantina da escola – enchiladas.
- O que foi isso? – perguntei.
- Não sei – disse ele, tenso. – Talvez não seja nada.
Mas podia perceber que era alguma coisa. Também comecei a olhar para trás por cima
do ombro.
Fiquei aliviado quando afinal embarcamos e encontramos lugar juntos na parte de trás
do ônibus. Guardamos nossas mochilas. Annabeth batia nervosamente seu boné dos
Yankees na coxa.
Quando os últimos passageiros subiram, Annabeth apertou com força o meu joelho.
“Percy”.
Uma senhora acabava de embarcar no ônibus. Usava vestido de veludo amarrotado,
luvas de renda e chapéu laranja, tricotado e disforme, que encobria seu rosto, e
carregava uma grande bolsa de lã estampada. Quando ergeu a cabeça seus olhos pretos
faiscaram, e meu coração deu um pulo.
Era a sra. Dodds. Mais velha, mas enrugada, mas sem dúvida a mesma cara maligna.
Eu me encolhi no assento.
Atrás dela subiram mais duas senhoras: uma de chapéu verde, outra de chapéu roxo. A
não ser por isso, eram parecidíssimas com a sra. Dodds – as mesmas mãos
encarquilhadas, as mesmas bolsas de lã, os mesmo vestidos de veludo enrugados. Um
trio de avós demoníacas.
Elas se sentaram na fileira da frente, logo atrás do motorista. As duas no corredor
cruzaram as pernas bem na passagem, formando um X. Aquilo era bastante normal, mas
enviava uma mensagem clara: ninguém sai.
O ônibus partiu da estação e seguimos pelas ruas escorregadias de Manhattan.
- Ela não ficou morta muito tempo – disse eu, tentando impedir minha voz de tremer. –
Achei que você tivesse dito que eles podem ser afastados por toda uma vida.
- Eu disse, se você tiver sorte – disse Annabeth. – Você obviamente não tem.
- Todas as três – choramingou Grover. – Di immortales!
- Está tudo bem – disse Annabeth, obviamente se empenhando em pensar. – As Fúrias.
Os três piores monstros do Mundo Inferior. Sem problemas. Sem problemas. Vamos
simplesmente saltar pelas janelas.
- Não abrem – gemeu Grover.
- Uma saída nos fundos? – sugeriu ela.
Não havia nenhuma. E, mesmo que houvesse, não teria ajudado. Àquela altura,
estávamos na Nona Avenida, em direção ao Túnel Lincoln.
- Elas não vão nos atacar com testemunhas em volta – disse eu. – Ou vão?
- Os mortais não têm bons olhos – lembrou-me Annabeth. – Seus cérebros só podem
processar o que eles vêem através da Névoa.
- Eles vão ver três velhas nos matando, não vão?
Ela pensou a respeito.
- Difícil dizer. Mas não podemos contar com a ajuda de mortais. Talvez uma saída de
emergência no teto...?
Chegamos ao Túnel Lincoln, e o ônibus ficou às escuras a não ser pelas luzes do
corredor. Estava assustadoramente silencioso sem o ruído da chuva.
A sra. Dodds se levantou. Com uma voz inexpressiva, como se tivesse ensaiado aquilo,
ela anunciou para o ônibus inteiro:
- Preciso usar o toalete.
- Eu também – disse a segunda irmã.
- Eu também – disse a terceira irmã.
Todas elas começaram a se aproximar pelo corredor.
- Já sei – disse Annabeth. – Percy, pegue meu chapéu.
- O quê?
- É você que elas querem. Fique invisível e siga pelo corredor. Deixe que elas passem
por você. Talvez você possa chegar até a frente e escapar.
- Mas vocês...
- Há uma pequena possibilidade de que elas não reparem em nós – disse Annabeth. –
Você é filho de um dos Três Grandes. Seu cheiro deve encobrir o nosso.
- Não posso abandonar vocês.
- Não se preocupe conosco – disse Grover. – Vá!
Minhas mãos tremiam. Eu me senti um covarde, mas peguei o boné dos Yankees e pus
na cabeça.
Quando olhei para baixo, meu corpo não estava mais ali.
Comecei a me esgueirar pelo corredor. Consegui passar dez fileiras, depois me esquivei
para um assento vazio bem quando as Fúrias passaram.
A sra. Dodds parou, farejando, e olhou diretamente para mim. Meu coração estava
disparado.
Parecia não ter visto nada. Ela e as irmãs continuaram andando.
Eu estava livre. Cheguei até a frente do ônibus. Já estávamos quase saindo do Túnel
Lincoln. Estava a ponto de apertar o botão de parada de emergência quando ouvi
lamentos abomináveis vindos da fileira do fundo.
As velhas não eram mais velhas. Os rostos ainda eram os mesmos – acho que seria
impossível ficarem mais feios -, mas os corpos haviam murchado e tinham o aspecto de
um couro marrom sobre formas de bruxas, com asas de morcego e mãos e pés como
garras de gárgulas. As bolsas viraram chicotes chamejantes.
As Fúrias cercaram Grover e Annabeth estalando os chicotes e sibilando:
- Onde está? Onde?
As outras pessoas no ônibus estavam gritando, escondendo-se em seus bancos. Certo,
elas viram alguma coisa.
- Ele não está aqui! – gritou Annabeth. – Saiu!
As Fúrias ergueram os chicotes.
Annabeth sacou a faca de bronze. Grover agarrou uma lata da sua sacola de lanches e se
preparou para jogá-la.
O que eu fiz a seguir foi tão impulsivo e perigoso que eu merecia ser o rei do transtorno
do déficit de atenção do ano.
O motorista do ônibus estava distraído, tentando enxergar o que estava acontecendo
pelo espelho retrovisor.
Ainda invisível, agarrei o volante e dei um tranco para a esquerda. Todos gritaram ao
serem jogados para a direita, e ouvi o que esperava ser o som das três Fúrias esmagadas
contra as janelas.
- Ei! – gritou o motorista. – Ei! Oaaa!
Ele lutou para segurar o volante. O ônibus chocou-se com a lateral do túnel, o metal
arrastado pela parede lançando fagulhas um quilômetro atrás de nós.
Saímos de lado do túnel, de volta à tempestade, com pessoas e monstros arremessados
de um canto a outro do ônibus e carros jogados de lado como se fossem pinos de
boliche.
De algum modo o motorista achou uma saída. Arremessamo-nos para fora da autoestrada,
passamos méis dúzia de semáforos e acabamos disparando por uma daquelas
estradas rurais de New Jersey, nas quais não dá para acreditar que exista tanto nada do
outro lado do rio quando se deixa Nova York. Havia bosques à nossa esquerda e o rio
Hudson à direita, e o motorista parecia se desviar na direção do rio.
Outra grande idéia: aperto o freio de emergência.
O ônibus gemeu, traçou um circulo completo sobre o asfalto molhado e se chocou
contra as árvores. As luzes de emergência se acenderam. A porta se abriu. O motorista
foi o primeiro a sair, com os passageiros gritando enquanto fugiam em pânico atrás
dele. Subi no assento do motorista e deixei-os passar.
As Fúrias retomaram o equilíbrio. Estalaram os chicotes para Annabeth enquanto ela
brandia a faca e gritava em grego antigo que recuassem. Grover atirava latas.
Olhei para a porta aberta. Eu estava livre para partir, mas não podia abandonar meus
amigos. Tirei o boné invisível.
- Ei!
As Fúrias se viraram, mostrando as presas amareladas para mim, e a saída de repente
me pareceu uma excelente idéia. A sra. Dodds avançou de modo arrogante pelo
corredor, como costumava fazer em classe, pronta para entregar meu F na prova de
matemática. Cada vez que ela estalava o chicote, chamas vermelhas dançavam pelo
couro farpado.
Suas duas irmãs horrorosas pularam para cima dos assentos de ambos os lados e se
arrastaram na minha direção como dois lagartos enormes e asquerosos.
- Perseu Jackson – disse a sra.Dodds com um sotaque que vinha de algum lugar mais
distante do que o sul da Geórgia. – Você ofendeu os deuses. Você deve morrer.
- Eu gostava mais de você como professora de matemática – falei.
Ela rosnou.
Annabeth e Grover se aproximaram com cautela por trás das Fúrias, procurando uma
passagem.
Tirei a esferográfica do bolso e a destampei. Contracorrente se alongou e virou uma
reluzente espada de fio duplo.
As Fúrias hesitaram.
A sra. Dodds já havia sentido a lamina de Contracorrente antes. Obviamente não gostou
de vê-la de novo.
- Renda-se agora – sibilou. – E não sofrerá o tormento eterno.
- Boa tentativa – disse a ela.
- Percy, cuidado! – gritou Annabeth.
A sra. Dodds lançou seu chicote em volta da mão com a qual eu segurava a espada,
enquanto as Fúrias em cada lado pularam em cima de mim.
Era como se minha mão estivesse envolta em chumbo derretido, mas consegui não
soltar Contracorrente. Atingi a Fúria da esquerda com o cabo e a mandei cambaleando
de costas para a poltrona. Virei e fiz um corte na Fúria da direita. Assim que a lamina
entrou em contato com o pescoço dela, ela gritou e explodiu em pó. Annabeth agarrou a
sra. Dodds em um golpe de luta e a atirou para trás, enquanto Grover arrancava o
chicote de suas mãos.
- Ai! – gritou ele. – Ai! Quente! Quente!
A Fúria que eu havia atingido com o cabo da espada veio de novo para cima de mim,
garras à mostra, mas desferi um golpe com Contracorrente e ela estourou como um saco
cheio de bolinhas de isopor.
A sra. Dodds estava tentando tirar Annabeth das costas. Ela esperneou, arranhou,
sibilou e mordeu, mas Annabeth se agarrou firme enquanto Grover amarrava suas
pernas com seu próprio chicote. Depois os dois a empurraram de costas para o corredor.
A sra. Dodds tentou se erguer, mas não havia espaço para ela bater as asas de morcego,
portanto continuou caindo.
- Zeus o destruirá! – prometeu ela. – Hades terá sua alma!
- Braccas meas vescimini! – gritei.
Eu não sabia muito bem de onde viera o latim. Acho que queria dizer: “Coma as minhas
calças!”
Um trovão sacudiu o ônibus. Os cabelos se eriçaram na minha nuca.
- Fora! – gritou Annabeth para mim. – Agora!
Não era necessário.
Corremos para fora e encontramos os outros passageiros andando de uma lado para
outro, atordoados, discutindo com o motorista ou correndo em círculos e gritando: “Nós
vamos morrer!” Um turista de camisa com estampa havaiana e uma câmara bateu uma
foto minha antes que eu pudesse pôr a tampa na minha espada.
- Nossas malas! – Grover se deu conta. – Nós deixamos nossas...
BUUUUUUM!!
As janelas do ônibus explodiram enquanto os passageiros corriam para se abrigar. Um
relâmpago rasgara uma enorme cratera no teto, mas um lamento furioso lá dentro me
disse que a sra. Dodds ainda não estava morta.
- Corram! – disse Annabeth. – Ela está chamando reforços! Temos de sair daqui!
Mergulhamos para dentro dos bosques enquanto a chuva despencava torrencialmente,
com o ônibus em chamas atrás de nós e nada à frente a não ser trevas.'

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