quinta-feira, 9 de junho de 2011

Lua Nova, Capítulos 13 ao 18

13. ASSASSINO 

Se não fosse por Jacob, pensei, sacudindo a cabeça enquanto ia de carro pela estrada ladeada pela floresta até La Push. Ainda não tinha certeza se estava fazendo o que era certo, mas chegara a um denominador comum comigo mesma. Não podia tolerar o que Jacob e os amigos, o bando dele, estavam fazendo. Agora entendia o que ele dissera na noite anterior – que eu talvez não quisesse vê-lo de novo –, e eu podia ter telefonado, como ele sugerira, mas isso parecia covardia. Eu lhe devia ao menos uma conversa frente a frente. Diria na cara dele que eu não podia simplesmente ignorar o que estava acontecendo. Não podia ser amiga de um assassino e não dizer nada, deixar seguir a matança... Isso faria de mim também um monstro. Mas, do mesmo modo, eu não podia deixar de alertá-lo. Tinha de fazer o que pudesse para protegê-lo. Parei perto da casa dos Black com os lábios apertados numa linha severa. Já era bem ruim que meu melhor amigo fosse um lobisomem. Tinha de ser um monstro também? A casa estava escura, nenhuma luz nas janelas, mas eu não me importava de ter de acordá-los. Meu punho bateu na porta da frente com a energia da raiva; o som reverberou pelas paredes. – Entre – ouvi Billy gritar depois de um minuto, e uma luz se acendeu. Girei a maçaneta; estava destrancada. Billy estava encostado a uma porta aberta da pequena cozinha, um roupão sobre os ombros, e ainda não estava em sua cadeira. Quando viu quem era, seus olhos se arregalaram brevemente e seu rosto ficou sério. – Ora, bom dia, Bella. O que está fazendo por aqui tão cedo? – Oi, Billy. Preciso conversar com o Jake... Ele está? – Hmmm... Na verdade não sei – mentiu ele, na maior cara-de-pau. – Sabe o que Charlie está fazendo esta manhã? – perguntei, cansada de embromação.
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– Eu deveria? – Ele e metade dos homens da cidade estão no bosque, armados, caçando lobos gigantes. A expressão de Billy vacilou e depois ficou vazia. – Então, eu gostaria de falar com Jake sobre isso, se não se importa – continuei. Billy franziu os lábios por um longo tempo. – Poderia apostar que ele ainda está dormindo – disse por fim, indicando com a cabeça o minúsculo corredor na saída da sala. – Ele anda chegando tarde ultimamente. O garoto precisa descansar... Acho que não deveria acordá-lo. – É a minha vez – murmurei baixinho enquanto andava para o corredor. Billy suspirou. O quarto minúsculo de Jacob era a única porta no corredor de um metro. Não me incomodei em bater. Abri a porta num rompante; ela se chocou contra a parede com um baque. Jacob – ainda com o mesmo moletom preto cortado que usara na noite anterior – estava deitado em diagonal na cama de casal que tomava todo o quarto, a não ser por alguns centímetros a seu redor. Mesmo assim, não era bastante grande; os pés dele pendiam de uma ponta e a cabeça, da outra. Ele dormia profundamente, ressonando de leve com a boca aberta. O som da porta não o fez nem ao menos tremer.Seu rosto estava tranqüilo com o sono pesado, todos os traços de raiva suavizados. Havia olheiras que eu não tinha percebido antes. Apesar de seu tamanho descomunal, ele agora parecia muito jovem e muito cansado. A piedade tomou conta de mim. Recuei um passo e fechei a porta em silêncio atrás de mim. Billy olhava com curiosidade e reserva enquanto eu voltava devagar para a porta da frente. – Acho que vou deixá-lo descansar um pouco.
Billy assentiu, depois nos olhamos por um minuto. Eu estava morrendo de vontade de perguntar sobre a participação dele naquilo. No que ele achava que o filho tinha se transformado? Mas eu sabia que ele apoiara Sam desde o início, então imaginei que os
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assassinatos não deviam incomodá-lo. Só não podia imaginar como ele justificava isso para si mesmo. Pude ver muitas perguntas para mim nos olhos escuros de Billy, mas ele também não verbalizou nenhuma delas. – Olhe – eu disse, rompendo o intenso silêncio. – Vou ficar lá embaixo, na praia, por um tempo. Quando Jake acordar, diga que estou esperando por ele, está bem? – Claro, claro – concordou Billy. Eu me perguntei se ele realmente faria isso. Bem, se não fizesse, pelo menos eu tinha tentado, não é? Dirigi até First Beach e parei no estacionamento vazio. Ainda estava escuro – o amanhecer melancólico de um dia nublado –, e quando apaguei os faróis ficou difícil enxergar. Tive de deixar meus olhos se acostumarem antes de encontrar o caminho que passava pela alta cerca viva formada pelo mato. Ali estava mais frio, com o vento vindo em chibatadas da água escura, e enfiei as mãos no fundo dos bolsos de meu casaco de inverno. Pelo menos a chuva tinha parado. Desci até a praia na direção do paredão do norte. Não conseguia ver St. James nem as outras ilhas, só o vago contorno do limite da água. Andei com cuidado pelas rochas, atenta aos galhos que podiam me fazer tropeçar. Descobri o que buscava antes de perceber que estava procurando algo. Havia se materializado no escuro quando eu estava a pouca distância: um tronco branco feito osso, enfiado fundo nas pedras. As raízes se retorciam para cima na extremidade voltada para o mar, como uma centena de tentáculos frágeis. Não consegui ter certeza de que fosse a mesma árvore na qual Jacob e eu tivemos nossa primeira conversa – uma conversa que começou a embaralhar tantos fios diferentes em minha vida –, mas parecia estar mais ou menos no mesmo lugar. Sentei-me onde havia me sentado antes e olhei o mar invisível.
Ver Jacob daquele jeito – dormindo inocente e vulnerável – tinha roubado toda a revolta, dissolvido toda a raiva que eu sentia. Eu ainda não podia ignorar o que estava acontecendo, como Billy parecia fazer, mas também não podia condenar Jacob por isso. O
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amor não funciona desse jeito, concluí. Depois que você gosta de uma pessoa, é impossível ser lógica com relação a ela. Jacob era meu amigo, quer tivesse matado alguém ou não. E eu não sabia o que fazer com relação a isso. Quando o imaginei dormindo tão tranqüilo, senti um impulso dominador de protegê-lo. Era completamente ilógico. Ilógico ou não, remoí a lembrança de seu rosto sereno, tentando pensar numa resposta, numa forma de protegê-lo, enquanto o céu aos poucos ficava cinzento. – Oi, Bella. A voz de Jacob veio do escuro e me fez saltar. Era suave, quase tímida, mas eu estava esperando um alerta de sua aproximação pelas pedras ruidosas, então ainda assim ela me sobressaltou. Eu podia ver sua silhueta contra o sol que começava a nascer – ele parecia enorme. – Jake? Ele estava a vários passos de distância, balançando-se com ansiedade de um pé para o outro. – Billy me disse que você apareceu... Não demorou muito, não é? Eu sabia que você podia descobrir. – É, e agora me lembro da história certa – sussurrei. Fez-se silêncio por um bom tempo, e embora ainda estivesse escuro demais para enxergar, minha pele formigou como se os olhos dele examinassem meu rosto. Devia haver luz suficiente para Jacob ler minha expressão porque, quando ele voltou a falar, sua voz de repente estava ríspida. – Você podia ter apenas ligado – disse ele asperamente. Assenti. – Eu sei. Jacob começou a andar pelas pedras. Se eu prestasse muita atenção, podia ouvir o roçar suave de seus pés, junto com o som das ondas. Comigo, as pedras estalavam como castanholas. – Por que você veio? – perguntou ele, sem interromper o andar irritado. – Pensei que seria melhor conversar pessoalmente. Ele bufou.
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– Ah, é muito melhor. – Jacob, tenho que avisar você... – Sobre a guarda florestal e os caçadores? Não se preocupe com isso. Já sabemos. – Não me preocupar? – perguntei, incrédula. – Jake, eles estão armados! Estão montando armadilhas, oferecendo recompensas e... – Sabemos nos cuidar – grunhiu ele, ainda andando. – Eles não vão pegar nada. Só estão dificultando mais a situação... Daqui a pouco vão começar a desaparecer também. – Jake! – sibilei. – Que foi? É só uma realidade. Minha voz estava fraca de revolta. – Como você pode... pensar assim? Você conhece essas pessoas. Charlie está lá! – A idéia revirou meu estômago. Ele parou de repente. – O que mais posso fazer? – retrucou. O sol transformou as nuvens num rosa prateado acima de nós. Agora eu podia ver a expressão dele; era colérica, frustrada, traída. – Poderia... Bom, tentar não ser um... lobisomem? – sugeri num sussurro. Ele lançou as mãos para o alto. – Como se eu tivesse alguma escolha! – gritou. – E como isso ajudaria, se você está preocupada com as pessoas desaparecendo? – Não entendo você. Ele me fitou, os olhos semicerrados e a boca se retorcendo num rosnado. – Sabe o que me deixa tão louco que me dá vontade de vomitar? Eu me encolhi ao ver sua expressão hostil. Ele parecia estar esperando uma resposta, então sacudi a cabeça. – Você é tão hipócrita, Bella... Fica sentada aí, apavorada comigo! Acha que isso é justo? – As mãos dele tremiam de raiva. – Hipócrita? Como ter medo de um monstro faz de mim uma hipócrita?
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– Argh! – grunhiu ele, pressionando as têmporas com os punhos trêmulos e fechando os olhos bem apertados. – Você percebeu o que disse? – O quê? Ele se aproximou dois passos de mim, inclinando-se e me olhando com fúria. – Bem, eu lamento muito não ser o tipo certo de monstro para você, Bella. Acho que não sou tão bom quanto um sanguessuga, não é? Coloquei-me de pé num salto e o encarei de volta. – Não, você não é! – gritei. – Não é o que você é, idiota, é o que você faz! – O que quer dizer? – rugiu ele, todo o corpo tremendo de raiva.Fui inteiramente tomada de surpresa quando a voz de Edward me alertou. “Cuidado, Bella”, avisou a voz aveludada. “Não o pressione demais. Você precisa acalmá-lo.” Ali, nem a voz em minha cabeça fazia sentido. Mas eu o ouvi. Eu faria qualquer coisa por aquela voz. – Jacob – pedi, num tom suave e tranqüilo. – É necessário mesmo matar pessoas, Jacob? Não existe outro jeito? Quer dizer, se vampiros podem achar uma forma de sobreviver sem assassinar gente, você não poderia tentar também? Ele endireitou o corpo com um solavanco, como se minhas palavras lhe tivessem dado um choque elétrico. As sobrancelhas se ergueram e os olhos ficaram arregalados. – Matar gente? – perguntou. – Do que você acha que estávamos falando? Ele não tremia mais. Olhava para mim com uma descrença meio esperançosa. – Eu pensei que estivéssemos falando de seu nojo por lobisomens.
– Não, Jake, não. Não é por você ser um... lobo. Isso não é problema – garanti, e sabia, enquanto pronunciava aquelas palavras, que estava sendo sincera. Não me importava mesmo que ele se
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transformasse em um lobo imenso; ainda era o Jacob. – Se puder pelo menos encontrar um jeito de não machucar as pessoas... É isso que me aborrece. São pessoas inocentes, Jake, gente como Charlie, e não posso virar a cara enquanto você... – É só isso? Mesmo? – ele me interrompeu, um sorriso se abrindo em seu rosto. – Só está com medo porque sou um assassino? É essa a única razão? – Não é o bastante? Ele começou a rir. – Jacob Black, isso não é nada engraçado! – Claro, claro – concordou ele, ainda rindo. Ele deu um passo longo e me pegou em outro abraço cruel de urso. – Com sinceridade, você realmente não se importa que eu me transforme num lobo gigante? – perguntou ele, a voz alegre em meu ouvido. – Não – ofeguei. – Não... consigo... respirar... Jake! Ele me soltou, mas pegou as minhas mãos. – Eu não sou um assassino, Bella. Examinei seu rosto e ficou claro que era verdade. O alívio pulsou em meu corpo. – É verdade? – perguntei. – É – prometeu ele solenemente. Joguei meus braços a seu redor. Isso me lembrou do primeiro dia com as motos – mas ele estava maior e eu agora me sentia ainda mais parecida com uma criança. Como da outra vez, ele afagou meu cabelo. – Desculpe por ter chamado você de hipócrita. – Desculpe por ter chamado você de assassino. Ele riu. Então me ocorreu um pensamento, e me afastei dele para olhar seu rosto. Minhas sobrancelhas se franziram de angústia. – E Sam? E os outros? Ele sacudiu a cabeça, sorrindo como se um fardo imenso tivesse sido tirado de seus ombros.
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– É claro que não. Não se lembra de como nos chamamos? A lembrança era clara – eu estivera pensando naquele dia. – Protetores? – Exatamente. – Mas não entendo. O que está acontecendo no bosque? Os montanhistas desaparecidos, o sangue? De repente seu rosto ficou sério e preocupado. – Estamos tentando fazer nosso trabalho, Bella. Estamos tentando protegê-los, mas sempre chegamos um pouco tarde. – Protegê-los do quê? Há mesmo um urso lá, também? – Bella, querida, só protegemos as pessoas de uma coisa... Nosso único inimigo. É por isso que existimos... porque eles existem. Eu o olhei com a expressão vaga por um segundo antes de entender. Depois o sangue fugiu de meu rosto e um grito de pavor, agudo e sem palavras, saiu de meus lábios. Ele assentiu. – Pensei que, de todas as pessoas, você perceberia o que realmente estava acontecendo. – Laurent – sussurrei. – Ele ainda está aqui. Jacob piscou duas vezes e inclinou a cabeça para o lado. – Quem é Laurent? Tentei organizar o caos em minha cabeça para conseguir responder. – Você sabe... Você o viu na campina. Vocês estavam lá... – As palavras saíram num tom pensativo à medida que tudo se encaixava. – Você estava lá, e evitou que ele me matasse... – Ah, o sanguessuga de cabelo preto? – Ele sorriu, um rosnado breve e feroz. – Era esse o nome dele? Eu estremeci. – O que você estava pensando? – sussurrei. – Ele podia ter matado você! Jake, não percebe como é perigoso... Outro riso me interrompeu. – Bella, um único vampiro não é bem um problema para um bando grande como o nosso. Foi tão fácil que nem deu para a gente se divertir!
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– O que foi tão fácil? – Matar o sanguessuga que ia matar você. Agora, eu não colocaria isso no cômputo dos assassinatos – acrescentou ele depressa. – Os vampiros não contam como pessoas. Eu só pude murmurar as palavras. – Você... matou... Laurent? Ele assentiu. – Bem, foi um esforço coletivo – esclareceu ele. – Laurent está morto? – sussurrei. Sua expressão mudou. – Não está chateada com isso, está? Ele ia matar você... Estava se preparando para matar, Bella, tínhamos certeza disso antes de atacarmos. Você sabe, não é? – Eu sei. Não, não estou chateada... Estou... – Tive de me sentar. Cambaleei um passo para trás até que senti o tronco em minhas pernas, depois desabei nele. – Laurent está morto. Ele não virá atrás de mim. – Não está chateada? Ele não era um de seus amigos nem nada disso, era? – Meu amigo? – Eu o encarei, confusa e tonta de alívio. Comecei a balbuciar, meus olhos ficando enevoados. – Não, Jake. Só estou tão... tão aliviada. Pensei que ele fosse me encontrar... Ficava esperando por ele todas as noites, esperando que se contentasse comigo e deixasse Charlie em paz. Fiquei com tanto medo, Jacob... Mas como? Ele era um vampiro! Como vocês o mataram? Ele era tão forte, tão duro, feito mármore... Ele se sentou a meu lado e pôs o braço enorme ao meu redor para me reconfortar. – É para isso que servimos, Bella. Também somos fortes. Queria que tivesse me dito que estava com tanto medo. Não precisa. – Você não estava lá – murmurei, perdida em pensamentos. – Ah, é verdade.
– Espere, Jake... Mas eu pensei que você soubesse. Ontem à noite você disse que não era seguro para você ficar no meu quarto.
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Pensei que soubesse que um vampiro podia aparecer por lá. Não era disso que estava falando? Ele pareceu confuso por um minuto, depois baixou a cabeça. – Não, não era nada disso que eu estava falando. – Então por que acha que lá não é seguro para você? Ele me olhou com os olhos cheios de culpa. – Não disse que não era seguro para mim. Estava pensando em você. – Como assim? Ele baixou a cabeça e chutou uma pedra. – Há mais de um motivo para eu não poder ficar perto de você, Bella. Um deles é que eu não devia lhe contar nosso segredo; mas a outra parte é que não é seguro para você. Se eu ficar irritado demais... aborrecido demais... você pode se machucar. Pensei nisso com cuidado. – Quando você ficou irritado antes... quando gritei com você... e você estava tremendo...? – É. – Ele baixou o rosto ainda mais. – Foi muita idiotice minha. Preciso me controlar melhor. Jurei que não ia ficar irritado, independentemente do que você me dissesse. Mas... Fiquei tão aborrecido porque ia perder você... Porque você não conseguiria lidar com o que sou... – O que aconteceria... se você ficasse irritado demais? – sussurrei. – Eu me transformaria num lobo – sussurrou ele. – Você não precisa de lua cheia? Ele revirou os olhos. – A versão de Hollywood não é lá muito correta. – Depois ele suspirou e ficou sério de novo. – Não precisa ficar tão estressada, Bells. Vamos cuidar disso. E vamos ficar de olhos especialmente em Charlie e nos outros... Não vamos deixar que nada aconteça a ele. Confie em mim.
Só então, quando Jacob usou o verbo no presente de novo, me ocorreu um pensamento muito óbvio, algo que eu deveria ter
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percebido antes – mas fiquei tão distraída com a idéia de Jacob e os amigos lutando com Laurent que, na hora, esqueci por completo. Vamos cuidar disso. Não tinha acabado. – Laurent está morto – eu disse ofegando, e todo o meu corpo ficou frio como gelo. – Bella? – perguntou Jacob, ansioso, tocando meu rosto pálido. – Se Laurent morreu... há uma semana... então outra coisa está matando as pessoas agora. Jacob assentiu; seus dentes trincaram e ele falou através deles. – Eram dois. Pensamos que a parceira dele fosse querer nos enfrentar... Em nossas histórias, em geral eles ficam muito irritados se você mata seu parceiro... Mas ela continua fugindo e de vez em quando volta. Se soubéssemos o que ela procura, seria mais fácil pegá-la. Mas a atitude dela não faz sentido. Ela fica cercando, como se estivesse testando nossas defesas, procurando um jeito de penetrá-las... Mas para onde? Aonde ela quer ir? Sam acha que ela está tentando nos separar, assim terá mais chance de... A voz dele foi diminuindo, parecia estar vindo de um túnel comprido; eu não conseguia mais distinguir as palavras. Minha testa ficou coberta de gotas de suor e meu estômago se revirava como se eu estivesse com a virose de novo. Exatamente como se estivesse com a virose. Dei as costas para ele depressa e me inclinei sobre o tronco da árvore. Meu corpo se agitou em espasmos inúteis de náusea, o estômago vazio se contraindo com um enjôo de pavor, embora não houvesse nada nele a expulsar. Victoria estava aqui. Procurando por mim. Matando estranhos no bosque. O bosque onde Charlie estava fazendo a busca... Minha cabeça girava de forma nauseante. As mãos de Jacob seguraram meus ombros – impedindo que eu caísse nas pedras à frente. Eu podia sentir seu hálito quente em meu rosto. – Bella? O que foi?
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– Victoria – disse ofegante, assim que consegui tomar fôlego em meio aos espasmos de náusea. Em minha cabeça, Edward rosnou de fúria ao ouvir o nome dela. Senti Jacob me puxar, evitando que eu caísse. Ele me envolveu, desajeitado, em seu colo, pousando minha cabeça desfalecida em seu ombro. Jacob lutava para me equilibrar, impedir que eu desmoronasse, de algum jeito. Ele tirou o cabelo suado de meu rosto. – Quem? – perguntou. – Está me ouvindo, Bella? Bella? – Ela não era companheira de Laurent – gemi no ombro dele. – Eles só eram velhos amigos... – Você quer água? Precisa de um médico? Me diga o que fazer – perguntou ele, frenético. – Não estou passando mal... Estou com medo – expliquei num sussurro. A palavra medo parecia dizer pouco. Jacob afagava minhas costas. – Com medo dessa Victoria? Eu assenti, tremendo. – Victoria é a fêmea ruiva? Eu tremi de novo e choraminguei. – É. – Como você sabe que não é a companheira dele? – Laurent me disse que James era o parceiro dela – expliquei, flexionando de forma automática a mão da cicatriz. Ele pegou meu rosto, segurando-o firme na mão grande. Olhou-me intensamente nos olhos. – Ele contou mais alguma coisa a você, Bella? Isso é importante. Você sabe o que ela quer? – É claro – sussurrei. – Ela quer a mim. Seus olhos se arregalaram, depois se estreitaram em fendas. – Por quê? – perguntou ele.
– Edward matou James – sussurrei. Jacob me segurava com tanta força que não havia necessidade de eu me encolher no buraco; ele me mantinha inteira. – Ela ficou... irritada. Mas Laurent disse que
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ela achava mais justo me matar do que matar Edward. Um parceiro pelo outro. Ela não sabia... ainda não sabe, eu acho... que... que... – Engoli em seco. – Que as coisas não são mais assim conosco. Não para Edward, de qualquer forma. Isso desconcertou Jacob, seu rosto dividido entre várias expressões diferentes. – Foi o que aconteceu? Por isso os Cullen foram embora? – Eu não passo de uma humana, afinal. Nada de especial – expliquei, dando de ombros. Algo como um rosnado – não um rosnado real, só uma aproximação humana – rugiu no peito de Jacob sob meu ouvido. – Se aquele sanguessuga idiota é imbecil o suficiente... – Por favor – gemi. – Por favor. Não. Jacob hesitou, depois assentiu uma vez. – Isso é importante – disse de novo, seu rosto agora sério. – É exatamente disso que precisamos saber. Vamos ter que contar aos outros agora mesmo. Ele se levantou, colocando-me de pé. Manteve as mãos na minha cintura até ter certeza de que eu não cairia. – Estou bem – menti. Ele trocou a cintura por uma de minhas mãos. – Vamos. Jacob me puxou de volta para a picape. – Aonde? – perguntei. – Ainda não sei bem – admitiu. – Vou convocar uma reunião. Ei, espere um minuto aqui, está bem? – Ele me encostou na lateral da picape e soltou minha mão. – Aonde você vai? – Volto já – prometeu. Depois se virou e correu pelo estacionamento, atravessou a estrada e entrou na floresta. Ele deslizou para dentro do bosque, rápido e suave como um cervo. – Jacob! – gritei com a voz rouca, mas ele já havia sumido.
Não era uma boa hora para ficar sozinha. Segundos depois de Jacob não estar mais à vista eu estava com falta de ar. Arrastei-me
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para a cabine de picape e baixei as trancas de uma só vez. Mas não me senti melhor com isso. Victoria já estava me caçando. Por pura sorte ela ainda não me encontrara – sorte e cinco lobisomens adolescentes. Expirei com força. Não importava o que Jacob dissera, era apavorante pensar nele chegando perto de Victoria. Eu não estava nem aí para em que ele podia se transformar quando ficava irritado. Podia vê-la em minha mente, o rosto desvairado, o cabelo como chamas, mortal, indestrutível... Mas, de acordo com Jacob, Laurent estava acabado. Seria mesmo possível? Edward – agarrei automaticamente meu peito – dissera-me como era difícil matar um vampiro. Só outro vampiro poderia fazer isso. E, no entanto, Jake disse que esse era o papel dos lobisomens... Ele disse que ia ficar de olho principalmente em Charlie – que eu devia confiar que os lobisomens manteriam meu pai seguro. Como eu poderia confiar nisso? Nenhum de nós estava seguro! Em especial Jacob, se estava tentando se interpor entre Victoria e Charlie... Entre Victoria e mim. Senti que estava a ponto de vomitar de novo. Uma batida rude na janela do carro me fez gritar de pavor – mas era apenas Jacob, já de volta. Destranquei a porta com os dedos trêmulos e gratos. – Você está mesmo com medo, não? – perguntou ele ao entrar. Assenti. – Não fique assim. Vamos cuidar de você... e de Charlie também. Prometo. – A idéia de você encontrando Victoria é mais apavorante do que a de ela me encontrar – sussurrei. Ele riu. – Devia ter um pouco mais de confiança em nós. Isso é um insulto. Limitei-me a sacudir a cabeça; tinha visto muitos vampiros em ação. – Aonde você foi? – perguntei.
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Ele franziu os lábios e não disse nada. – Que foi? É segredo? Ele franziu a testa. – Não. Mas é meio estranho. Não quero assustar você. – Sabe que a essa altura estou acostumada com coisas estranhas. – Tentei sorrir, sem muito sucesso. Jacob abriu um sorriso com facilidade. – Acho que deve estar mesmo. Tudo bem. Olhe, quando somos lobos, podemos... nos ouvir. Minhas sobrancelhas se uniram de confusão. – Não ouvir sons – continuou ele –, mas podemos ouvir... pensamentos... uns dos outros... independentemente da distância entre nós. Isso ajuda muito quando caçamos, mas é bem chato em outros momentos. É constrangedor... não ter segredos desse jeito. Esquisito, não? – Foi o que você quis dizer ontem à noite, quando falou que ia contar a eles que tinha me visto, embora não quisesse fazer isso? – Você é rápida. – Obrigada. – Também é muito boa com esquisitices. Pensei que isso fosse incomodá-la. – Não é... Bem, você não é a primeira pessoa que conheço que pode fazer isso. Então não é tão estranho para mim. – É mesmo?... Espere... Está falando de seus sanguessugas? – Gostaria que não os chamasse assim. Ele riu. – Que seja. Os Cullen, então? – Só... Só Edward. – Disfarcei ao passar um braço pelo peito. Jacob pareceu surpreso – desagradavelmente surpreso. – Pensei que fossem só histórias. Ouvi lendas sobre vampiros que tinham... umas habilidades a mais, mas achei que fosse apenas mito. – E ainda há alguma história que seja apenas mito? – perguntei com amargura. Ele fez cara feia.
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– Acho que não. Tudo bem, vamos nos encontrar com Sam e os outros no lugar onde pilotamos as motos. Dei a partida no carro e voltamos para a estrada. – Você simplesmente se transformou em lobo agora, para falar com Sam? – perguntei, curiosa. Jacob assentiu, parecendo constrangido. – Procurei ser rápido... Tentei não pensar em você, assim eles não saberiam o que estava acontecendo. Tive medo de que Sam me dissesse para não levá-la. – Isso não teria me impedido. – Eu não conseguia me livrar da idéia que tinha de Sam como um sujeito mau. Meus dentes trincavam sempre que eu ouvia o nome dele. – Bem, isso teria impedido a mim – disse Jacob, agora sombrio. – Lembra que não consegui terminar o que dizia ontem à noite? Que eu não conseguia contar a história toda? – Lembro. Você parecia que ia sufocar ou coisa assim. Ele riu sombriamente. – Chegou perto. Sam me disse que eu não podia contar a você. Ele... é o líder da matilha, sabe como é. Ele é o alfa. Quando ele nos diz para fazer algo, ou não fazer... Quando ele fala sério, bem, não podemos ignorá-lo. – Estranho – murmurei. – Muito – concordou ele. – É uma coisa de lobos. – Hã – foi a melhor resposta em que pude pensar. – É, tem um monte se normas assim... Coisas de lobo. Ainda estou aprendendo. Nem imagino como deve ter sido para Sam, tentando lidar com isso sozinho. Já é bem ruim com toda uma matilha me dando apoio. – Sam estava sozinho?
– Estava. – A voz de Jacob baixou. – Quando eu... mudei, foi o momento mais... horrível, mais apavorante pelo qual já passei... Pior do que qualquer situação que eu pudesse ter imaginado. Mas eu não estava sozinho... Havia vozes lá, em minha cabeça, dizendo o que tinha acontecido comigo e o que eu tinha de fazer. Acho que isso
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evitou que eu enlouquecesse. Mas Sam... – Ele sacudiu a cabeça. – Sam não teve qualquer ajuda. Precisava me adaptar a isso. Quando Jacob explicou tudo desse jeito, foi difícil não sentir compaixão por Sam. Tive de ficar lembrando a mim mesma que não havia mais motivo para odiá-lo. – Eles vão ficar com raiva por eu estar com você? – perguntei. Ele fez uma careta. – É provável. – Talvez eu não deva... – Não, está tudo bem – tranqüilizou-me Jacob. – Você sabe de um monte de informações que podem nos ajudar. Não é uma humana qualquer, ignorante. É como uma... sei lá, espiã ou algo assim. Você esteve por trás das linhas inimigas. Franzi o rosto para mim mesma. Era isso que Jacob queria de mim? Informação privilegiada para ajudar a destruir os inimigos deles? Mas eu não era uma espiã. Não andei coletando esse tipo de informação. As palavras dele já faziam com que eu me sentisse uma traidora. Mas eu queria deter Victoria, não queria? Não. Eu queria que Victoria fosse detida, de preferência antes de me torturar até a morte, esbarrar em Charlie ou matar outro estranho. Eu só não queria que fosse Jacob quem a detivesse, não queria nem mesmo que ele tentasse. Não queria que Jacob estivesse nem a cem quilômetros dela. – É como a história do sanguessuga que lê pensamentos – continuou ele, sem saber de meus devaneios. – É o tipo de conhecimento de que precisamos. É mesmo uma droga que essas histórias sejam verdade. Isso complica tudo. Ei, você acha que essa Victoria tem alguma habilidade especial? – Acho que não – hesitei, depois suspirei. – Ele teria falado nisso.– Ele? Ah, quer dizer Edward... Epa, desculpe. Esqueci. Você não gosta de dizer o nome dele. Nem de ouvir.
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Contraí o abdome, tentando ignorar a pulsação ao redor de meu peito.– Na verdade, não. – Desculpe. – Como você me conhece tão bem, Jacob? Às vezes parece que você consegue ler os meus pensamentos. – Não. Eu só presto atenção. Estávamos na estradinha de terra onde Jacob me ensinara a pilotar a moto. – Aqui está bom? – perguntei. – Claro, claro. Parei e desliguei o motor. – Ainda está muito infeliz, não é? – murmurou ele. Assenti, fitando o bosque sombrio, sem realmente ver nada. – Acha que um dia... quem sabe... você vai ficar melhor? Inspirei devagar, depois soltei o ar. – Não. – Porque ele não era o melhor... – Por favor, Jacob – interrompi, começando num sussurro. – Pode, por favor, não falar nisso? Eu não agüento. – Tudo bem. – Ele respirou fundo. – Desculpe por ter dito alguma coisa. – Não se sinta mal. Se tudo fosse diferente, seria ótimo enfim poder conversar com alguém sobre isso. Ele assentiu. – É, foi difícil para mim esconder um segredo de você por duas semanas. Deve ser um inferno não poder falar com ninguém. – Inferno – concordei Jacob deu uma fungada rápida. – Eles estão aqui. Vamos. – Tem certeza? – perguntei enquanto ele abria a porta. – Talvez eu não devesse estar aqui. – Eles vão superar isso – disse ele, depois sorriu. – Quem tem medo do lobo mau?
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– Rá rá – eu disse. Mas saí da picape contornando às pressas a frente do carro para ficar bem atrás de Jacob. Eu me lembrava muito bem dos monstros gigantes na campina. Minhas mãos tremiam como as de Jacob antes, mas de medo, não de raiva. Jacob pegou minha mão e a apertou. – Lá vamos nós.
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14. FAMÍLIA 

Agachei-me ao lado de Jacob, meus olhos varrendo a floresta em busca dos outros lobisomens. Quando eles apareceram, saindo de entre as árvores, não eram o que eu esperava. Eu tinha a imagem dos lobos em minha cabeça. Esses eram só quatro rapazes grandes e seminus. Novamente, eles me lembraram irmãos, quadrigêmeos. Algo no modo como se movimentaram quase em sincronia para se colocarem do outro lado da estrada, na nossa frente; o fato de todos terem os mesmos músculos longos e arredondados sob a mesma pele moreno-avermelhada, o cabelo idêntico preto curto e o modo como suas expressões mudavam justamente no mesmo momento. Eles olhavam, curiosos e cautelosos. Quando me viram ali, meio escondida ao lado de Jacob, todos ficaram furiosos no mesmo segundo. Sam ainda era o maior, embora Jacob estivesse quase de seu tamanho. Sam não parecia de fato um garoto. Seu rosto era mais velho – não no sentido de rugas ou sinais de envelhecimento, mas na maturidade, na paciência de sua expressão. – O que você fez, Jacob? – perguntou ele. Um dos outros, que não reconheci – Jared ou Paul – disparou por Sam e falou antes que Jacob pudesse se defender. – Por que não consegue seguir as regras, Jacob? – gritou ele, atirando os braços para o alto. – Que diabos você está pensando? Ela é mais importante do que tudo... do que a tribo toda? Mais importante do que as pessoas que estão sendo mortas? – Ela pode ajudar – disse Jacob em voz baixa. – Ajudar! – gritou o rapaz, com raiva. Seus braços começaram a tremer. – Ah, é bem provável mesmo! Tenho certeza de que a amante de sanguessuga está morrendo de vontade de nos ajudar! – Não fale dela desse jeito! – gritou Jacob, irritado pela crítica do rapaz.
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Um tremor percorreu em ondas o corpo do outro, passando pelos ombros e descendo pela coluna. – Paul! Relaxe! – ordenou Sam. Paul sacudiu a cabeça, não em desafio, mas como se tentasse se concentrar. – Meu Deus, Paul – murmurou um dos outros meninos, provavelmente Jared. – Controle-se. Paul girou a cabeça para Jared, os lábios contorcidos de irritação. Depois voltou seu olhar para mim. Jacob deu um passo para se colocar na minha frente. Foi o que bastou. – Isso mesmo, proteja a garota! – rugiu Paul, ultrajado. Outro tremor, outra convulsão percorreu seu corpo. Ele atirou a cabeça para trás, um grunhido rasgando por entre os dentes. – PAUL! – gritaram Sam e Jacob juntos. Paul pareceu tombar para a frente, tremendo com violência. A meio caminho do chão, houve o som alto de algo se rasgando e o menino explodiu. O pêlo prateado-escuro brotou do rapaz, fundindo-se numa forma cinco vezes maior do que ele – uma forma forte e curvada, pronta para atacar. O focinho do lobo recuava nos dentes e outro grunhido rolou por seu peito colossal. Os olhos escuros e coléricos me focalizavam. No mesmo segundo, Jacob atravessou correndo a estrada, direto para o monstro. – Jacob! – gritei. A meio passo, um longo tremor abalou a coluna de Jacob. Ele pulou para a frente, mergulhando de cabeça no ar.
Com outro som áspero de algo se rasgando, Jacob também explodiu. Rompeu para fora de sua pele – fragmentos de roupa preta e branca se espalharam no ar. Aconteceu com tanta rapidez que, se eu piscasse teria perdido toda a transformação. Em um segundo era Jacob mergulhando no ar, no outro era o lobo castanho-avermelhado gigantesco – tão imenso que não consegui entender como sua massa
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podia caber dentro de Jacob – lançando-se para a fera prata que estava agachada. Jacob recebeu de frente a investida do outro lobisomem. Seus rosnados furiosos ecoaram como trovão nas árvores. Os farrapos pretos e brancos – restos da roupa de Jacob – flutuaram para o chão onde ele desaparecera. – Jacob! – gritei outra vez, avançando um passo. – Fique onde está, Bella – ordenou Sam. Era difícil ouvi-lo com o rugido dos lobos lutando. Eles se mordiam e se dilaceravam, os dentes afiados lampejando no pescoço do outro. O lobo-Jacob parecia estar em vantagem – era visivelmente maior do que o outro e também parecia ser mais forte. Ele golpeou o lobo cinzento com o ombro repetidas vezes, empurrando-o para as árvores. – Leve-a para a casa de Emily – gritou Sam para os outros meninos, que assistiam ao conflito com uma expressão extasiada. Jacob conseguira empurrar o lobo cinza para fora da estrada e eles desapareceram na floresta, embora o som de seus rosnados ainda fosse alto. Sam correu atrás deles, tirando os sapatos no caminho. Enquanto disparava para as árvores, tremia da cabeça aos pés. O rosnado e os golpes desapareciam ao longe. De repente, o som foi interrompido e o silêncio tomou a estrada. Um dos meninos começou a rir. Eu me virei para o encarar – meus olhos arregalados pareciam paralisados, como se eu não pudesse piscar. O rapaz parecia estar rindo de minha expressão. – Bom, isso é algo que não se vê todo dia – zombou ele.Seu rosto era meio familiar, mais fino que o dos outros... Embry Call. – Eu vejo – murmurou o outro rapaz, Jared. – Todo santo dia. – Ah, Paul não perde as estribeiras todo dia – discordou Embry, ainda rindo. – Talvez dia sim, dia não. Jared parou para pegar um objeto branco no chão. Ele o estendeu para Embry; despencava de sua mão em tiras. – Todo arrebentado – disse Jared. – Billy falou que era o último par que podia comprar... Acho que agora Jacob vai andar descalço.
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– Este sobreviveu – disse Embry, erguendo um tênis branco. – Jake pode pular num pé só – acrescentou ele com uma risada. Jared começou a recolher os vários pedaços de tecido do chão. – Pegue os sapatos de Sam, está bem? Todo o resto vai para o lixo. Embry pegou os sapatos e então andou para as árvores, onde Sam desaparecera. Estava de volta alguns segundos depois com uma bermuda jeans pendurada no braço. Jared pegou os restos rasgados das roupas de Jacob e de Paul e os enrolou numa bola. De repente, pareceu se lembrar de mim. Ele me olhou com cuidado, avaliando-me. – Ei, você não vai desmaiar, vomitar, nem nada disso, não é? – perguntou. – Acho que não – eu disse ofegante. – Você não parece bem. Talvez deve se sentar. – Tudo bem – murmurei. Pela segunda vez em uma manhã, botei a cabeça entre os joelhos. – Jake devia ter nos avisado – reclamou Embry. – Não devia ter metido a namorada nisso. O que ele esperava? – Bom, agora sabem do lobo. – Embry suspirou. – Que ótimo, Jake. Levantei a cabeça para olhar os dois meninos que pareciam estar levando tudo com muita tranqüilidade. – Não estão preocupados com eles? – perguntei. Embry piscou uma vez de surpresa. – Preocupados? Por quê? – Eles podem se machucar! Embry e Jared riram. – Eu espero mesmo que Paul dê uma dentada nele – disse Jared. – Para lhe ensinar uma lição. Fiquei pálida. – Ah, tá! – discordou Embry. – Você viu o Jake? Nem Sam poderia ter se transformado em pleno vôo daquele jeito. Ele viu Paul se descontrolando e precisou de quê, meio segundo para atacar? O cara tem um dom.
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– Paul está lutando há mais tempo. Aposto dez pratas com você como ele deixa uma marca. – Feito. Jake nasceu para isso. Paul não tem a menor chance. Eles trocaram um aperto de mãos, sorrindo. Tentei me consolar com a despreocupação deles, mas não conseguia tirar da cabeça a imagem brutal dos lobisomens em luta. Meu estômago se revirou, dolorido e vazio, minha cabeça doía de preocupação. – Vamos ver Emily. Sabe que vai ter comida lá. – Embry olhou para mim. – Pode nos dar uma carona? – Tudo bem – eu disse com a voz sufocada. Jared ergueu uma sobrancelha. – Talvez seja melhor você dirigir, Embry. Ainda parece que ela pode vomitar. – Boa idéia. Onde está a chave? – perguntou-me Embry. – Na ignição. Embry abriu a porta do carona. – Primeiro as damas – disse alegremente, puxando-me do chão com uma das mãos e me colocando no banco. Ele avaliou o espaço disponível. – Vai ter que ir atrás – disse ele a Jared. – Tudo bem. Tenho estômago fraco. Não quero estar aí dentro quando ela vomitar. – Aposto que ela é mais durona do que isso. Ela anda com vampiros. – Cinco pratas? – perguntou Jared. – Feito. Até me sinto culpado, tirando dinheiro de você assim. Embry entrou e deu a partida no carro enquanto Jared saltou com agilidade na caçamba. Assim que fechou a porta, Embry murmurou para mim: – Não vomite, está bem? Só tenho dez dólares, e se Paul colocar os dentes em Jacob... – Tudo bem – sussurrei. Embry nos levou de volta à aldeia. – Ei, como foi que Jake contornou a injunção mesmo? – A... o quê?
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– Hã, a ordem. Sabe como é, de não dar com a língua nos dentes. Como foi que ele contou a você sobre isso? – Ah, isso – eu disse, lembrando se Jacob tentando cuspir a verdade para mim na noite anterior. – Ele não conseguiu. Eu adivinhei. Embry franziu os lábios, parecendo surpreso. – Hmmm. Acho que você seria capaz. – Aonde estamos indo? – perguntei. – À casa de Emily. Ela é namorada de Sam... Não, agora é noiva, eu acho. Eles vão nos encontrar lá depois que Sam lhes der uma lição pelo que aconteceu agora. E depois que Paul e Jake arrumarem umas roupas novas, se Paul ainda tiver alguma. – Emily sabe dos...? – Sabe. E, olhe, não fique encarando a garota. Isso irrita Sam. Eu franzi a cara para ele. – Por que eu iria encarar? Embry pareceu pouco à vontade. – Como você acaba de ver, ficar entre lobisomens tem seus riscos. – Ele mudou de assunto rapidamente. – Ei, tudo bem com a história do sanguessuga de cabelo preto na campina? Não parecia ser amigo seu, mas... – Embry deu de ombros. – Não, ele não era meu amigo. – Que bom. Não quisemos começar nada, quebrar o pacto, sabe como é. – Ah, sim, uma vez, há muito tempo, Jake me contou sobre o pacto. Por que matar Laurent quebraria o pacto? – Laurent – repetiu ele, bufando, como se fosse engraçado o vampiro ter um nome. – Bom, tecnicamente estávamos no território dos Cullen. Não temos permissão para atacar nenhum deles, dos Cullen pelo menos, fora de nossas terras... A não ser que eles rompam o pacto primeiro. Não sabíamos se o moreno era parente deles ou coisa assim. Parecia que você o conhecia. – Como eles poderiam romper o pacto? – Se mordessem um humano. Jake não estava muito a fim de deixar chegar a esse ponto.
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– Ah. Hmmm, obrigada. Fico feliz por não terem esperado. – O prazer foi nosso. – Ele pareceu dizer isso no sentido literal. Embry passou pela casa mais a leste da estrada antes de entrar em uma rua estreita de terra. – Sua picape é lenta – observou ele. – Desculpe. No final da rua, havia uma casinha mínima que um dia fora cinza. Só existia uma única janela estreita ao lado da porta azul desbotada, mas a jardineira embaixo era cheia de cravos amarelos e laranja, conferindo a todo o lugar uma aparência alegre. Embry abriu a porta e inspirou. – Hmmm, Emily está cozinhando. Jared pulou da traseira da picape e foi para a porta, mas Embry o impediu com a mão no peito. Ele olhou para mim sugestivamente e deu um pigarro. – Eu não trouxe a carteira – disse Jared. – Tudo bem. Não vou esquecer. Eles subiram um degrau e entraram na casa sem bater. Eu os segui com timidez. Como na casa de Billy, a cozinha ocupava a maior parte do cômodo da frente. Uma jovem com pele acobreada e acetinada e cabelos longos, lisos e pretos estava junto à bancada da pia, tirando grandes muffins de um tabuleiro e os colocando num prato de papel. Por um segundo, pensei que o motivo de Embry me dizer para não encará-la fosse ela ser tão bonita. Depois ela perguntou, numa voz melodiosa: “Estão com fome?”, e se virou para nós com um sorriso em metade do rosto. O lado direito de sua face era marcado, do limite do couro cabeludo até o queixo, por três linhas grossas e vermelhas, de cor vívida, embora havia muito estivessem curadas. Uma linha repuxava para baixo o canto de seu olho direito, escuro e quase amendoado, outra retorcia o lado direito da boca numa careta permanente. Grata pelo aviso de Embry, rapidamente desviei os olhos para os muffins em sua mão. Tinham um cheiro maravilhoso – de mirtilos frescos.
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– Ah – disse Emily, surpresa. – Quem é essa? Olhei para cima, tentando focalizar o lado esquerdo de seu rosto. – Bella Swan – disse-lhe Jared, dando de ombros. Ao que parecia, eu já fora assunto de conversa. – Quem mais seria? – Jacob sempre descobre um jeito de quebrar as regras – murmurou Emily. Ela me encarou, e nenhuma das metades de seu rosto antigamente bonito era simpática. – Então, é a garota do vampiro. Eu enrijeci. – Sim. Você é a garota do lobo? Ela riu, assim como Embry e Jared. O lado esquerdo de seu rosto ficou amistoso. – Acho que sou. – Ela se virou para Jared. – Cadê Sam? – Bella, hã, surpreendeu Paul esta manhã. Emily revirou o olho bom. – Ah, Paul – ela suspirou. – Acha que vão demorar muito? Eu estava começando com os ovos. – Não se preocupe – disse-lhe Embry. – Se eles se atrasarem, não vamos deixar que nada se desperdice. Emily riu e abriu a geladeira. – Sem dúvida – concordou. – Bella, está com fome? Pode pegar um muffin. – Obrigada. – Peguei um no prato e comecei a mordiscar as beiradas. Era delicioso e caiu bem em meu estômago sensível. Embry pegou o terceiro dele e atirou na boca enorme. – Deixe alguns para seus irmãos – repreendeu Emily, batendo na cabeça dele com a colher de pau. A palavra me surpreendeu, mas para os outros passou despercebida. – Porco – comentou Jared. Encostei-me na bancada e olhei os três brincarem como uma família. A cozinha de Emily era um lugar agradável, iluminada, com armários brancos e piso de madeira clara. Numa mesinha redonda, um jarro rachado de porcelana azul e branca estava abarrotado de flores silvestres. Embry e Jared pareciam inteiramente à vontade ali.
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Emily misturava uma quantidade imensa de ovos, várias dúzias, numa tigela grande e amarela. Estava com as mangas da blusa lavanda arregaçadas, e pude ver que as cicatrizes se estendiam por seu braço e iam até as costas da mão direita. Andar com lobisomens tinha mesmo seus riscos, como Embry dissera. A porta da frente se abriu e Sam passou por ela. – Emily – disse ele, e havia tanto amor em sua voz que fiquei sem graça, sentindo-me invasiva, enquanto o observava atravessar a sala em apenas um passo e pegar o rosto dela nas mãos largas. Ele se inclinou e beijou suas cicatrizes escuras na bochecha direita antes de beijar seus lábios. – Ei, parem com isso – reclamou Jared. – Estou comendo. – Então cale a boca e coma – sugeriu Sam, beijando outra vez a boca arruinada de Emily. – Argh – gemeu Embry. Aquilo era pior do que um filme romântico; era tão real que soava alto com alegria, vida e amor verdadeiro. Baixei meu bolinho e cruzei os braços no peito vazio. Olhei as flores, tentando ignorar a paz completa do momento dos dois e o latejar deplorável de minhas feridas. Fiquei grata por ser distraída quando Jacob e Paul passaram pela porta, depois fiquei chocada quando vi que eles estavam rindo. Enquanto eu olhava, Paul deu um soco no ombro de Jacob, que, em troca, deu-lhe um murro nos rins. Eles riram de novo. Os dois pareciam estar ilesos. Jacob esquadrinhou a sala, os olhos parando quando me viram encostada, desajeitada e deslocada, na bancada do canto mais distante da cozinha. – Ei, Bells – cumprimentou-me alegremente. Pegou dois bolinhos ao passar pela mesa e parou a meu lado. – Desculpe por antes – murmurou. – Como está? – Não se preocupe, estou bem. Bolinhos gostosos. – Peguei o meu de novo e recomecei a mordiscar. Meu peito pareceu melhorar assim que Jacob ficou perto de mim. – Ah, cara! – gemeu Jared, interrompendo-nos.
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Eu olhei. Ele e Embry estavam examinando uma linha rosada e fraca no antebraço de Paul. Embry sorria, exultante. – Quinze dólares – disse ele em júbilo. – Você fez aquilo? – sussurrei para Jacob, lembrando-me da aposta. – Eu mal toquei nele. Estará ótimo ao pôr-do-sol. – Ao pôr-do-sol? – Olhei a marca no braço de Paul. Estranho, mas parecia ter semanas. – Coisa de lobo – sussurrou Jacob. Assenti, tentando não deixar transparecer meu espanto. – Você está bem? – perguntei a ele em voz baixa. – Nem um arranhão. – Sua expressão era presunçosa. – Ei, caras – disse Sam em voz alta, interrompendo as conversas no cômodo pequeno. Emily estava junto ao fogo, mexendo a mistura de ovos numa caçarola grande, mas Sam ainda estava com a mão na parte de baixo das costas dela, num gesto inconsciente. –Jacob tem informações para nós. Paul não pareceu surpreso. Jacob já devia ter explicado a ele e a Sam. Ou... eles simplesmente tinham ouvido os pensamentos dele. – Sei quem a ruiva quer. – Jacob dirigiu as palavras a Jared e a Embry. – Era o que eu estava tentando dizer antes. – Ele chutou a perna da cadeira em que Paul e sentara. – E? – perguntou Jared. A cara de Jared ficou séria. – Ela está tentando vingar o companheiro... Só que não era o sanguessuga moreno que nós matamos. Os Cullen pegaram o parceiro dela ano passado e agora ela está atrás de Bella. Aquilo não era novidade para mim, mas ainda assim estremeci. Jared, Emily e Embry me encararam, boquiabertos de surpresa. – Ela é só uma menina – protestou Embry. – Eu não disse que fazia sentido. Mas é por isso que a sanguessuga estava tentando passar por nós. Ela está indo para Forks. Eles continuaram a me encarar, de boca ainda escancarada, por um longo tempo. Abaixei a cabeça.
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– Excelente – disse por fim Jared, um sorriso começando a se formar nos cantos da boca. – Temos uma isca. Com uma velocidade espantosa, Jacob pegou um abridor de latas na bancada e o atirou na direção da cabeça dele. A mão de Jared fez um movimento mais rápido do que eu achava possível e ele pegou o objeto pouco antes de atingir seu rosto. – Bella não é uma isca. – Você entendeu o que eu quis dizer – disse Jared, sem se deixar abalar. – Então vamos mudar nossos padrões – disse Sam, ignorando a briga dos dois. – Vamos tentar deixar algumas brechas e ver se ela cai. Teremos de nos dividir, e não gosto disso. Mas se ela está mesmo atrás de Bella, não deve tentar tirar proveito da divisão de nosso grupo. – Quil está quase se juntando a nós – murmurou Embry. – Então vamos poder nos dividir igualmente. Todos baixaram a cabeça. Olhei para Jacob e ele estava desanimado, como ficara na tarde anterior, do lado de fora da casa dele. Por mais confortáveis que estivessem com seu destino, ali, na cozinha animada, nenhum daqueles lobisomens queria o mesmo para o amigo. – Bom, não vamos contar com isso – disse Sam em voz baixa, e continuou no volume normal. – Paul, Jared e Embry ficaram no perímetro mais externo, e Jacob e eu, no interno. Vamos atacar quando ela cair na armadilha. Percebi que Emily não gostou particularmente de que Sam estivesse no grupo menor. Sua preocupação me fez olhar para Jacob, apreensiva também. Sam entendeu meu olhar. – Jacob acha que seria melhor se você passasse o maior tempo possível em La Push. Ela não ia saber onde encontrar você com tanta facilidade, só por precaução. – E Charlie? – perguntei.
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– As finais do basquete universitário ainda estão acontecendo – disse Jacob. – Acho que Billy e Harry podem manter Charlie por aqui quando ele não estiver no trabalho. – Espere – disse Sam, erguendo a mão. Seu olhar disparou por Emily e voltou para mim. – Isso é o que Jacob acha melhor, mas você tem de decidir sozinha. Deve pesar com muita seriedade os riscos das duas opções. Você viu hoje de manhã como as coisas podem muito bem ficar perigosas aqui, com que rapidez elas saem do controle. Se você escolher ficar conosco, não posso dar nenhuma garantia quanto a sua segurança. – Não vou machucá-la – murmurou Jacob, baixando a cabeça. Sam agiu como se não o tivesse ouvido. – Se houver outro lugar em que se sinta segura... Mordi o lábio. Onde eu poderia ir sem colocar mais ninguém em perigo? Rejeitei a idéia de envolver Renée nisso – colocando-a perto do alvo, que era eu... – Não quero levar Victoria a mais nenhum lugar – sussurrei. Sam assentiu. – É verdade. É melhor tê-la aqui, onde podemos dar um fim nisso.Eu vacilei. Não queria Jacob ou qualquer um deles tentado dar um fim em Victoria. Olhei para o rosto de Jacob; estava relaxado, quase o mesmo de que eu me lembrava, antes do início dessa história de lobo, e completamente despreocupado com a idéia de caçar vampiros. – Vai tomar cuidado, não é? – perguntei, um perceptível nó na garganta. Os meninos explodiram em uivos altos de diversão. Todos riram de mim – exceto Emily. Ela me olhou nos olhos e de repente pude ver a simetria por baixo de sua deformidade. Seu rosto ainda era bonito e vivo com uma preocupação ainda mais feroz do que a minha. Tive de desviar os olhos antes que o amor por trás daquela preocupação começasse a me machucar de novo.
– A comida está pronta – ela anunciou então, e a conversa sobre estratégia ficou para trás. Os rapazes correram para cercar a
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mesa, que parecia minúscula e sob o risco de ser esmagada por eles, e devoraram em tempo recorde a panela gigante com os ovos que Emily colocara no centro. Emily comeu encostada na bancada, como eu – evitando o tumulto à mesa – e os observou com olhos afetuosos. Sua expressão dizia de modo claro que aquela era sua família. De modo geral, não era exatamente o que eu esperava de um bando de lobisomens. Passei o dia em La Push, a maior parte dele na casa de Billy. Ele deixou um recado no telefone de Charlie e na delegacia, e Charlie apareceu lá pela hora do jantar com duas pizzas. Ainda bem que ele levou duas grandes; Jacob comeu sozinho uma inteira. Vi Charlie nos olhando com desconfiança a noite toda, em especial o tão mudado Jacob. Ele perguntou sobre o cabelo; Jacob deu de ombros e lhe disse que era mais conveniente. Eu sabia que assim que Charlie e eu fôssemos para casa, Jacob ia sair – sair para correr por ai como um lobo, como fizera inúmeras vezes o dia todo. Ele e os irmãos mantinham uma vigilância constante, procurando algum sinal da volta de Victoria. Mas desde que eles a afugentaram da estação de águas na noite anterior – caçaram-na meio caminho até o Canadá, de acordo com Jacob –, ela ainda não fizera outra incursão. Eu não tinha esperança alguma de que ela simplesmente desistisse. Não tinha esse tipo de sorte. Jacob me acompanhou até a picape depois do jantar e se encostou na janela, esperando que Charlie arrancasse primeiro. – Não tenha medo hoje à noite – disse, enquanto Charlie fingia ter problemas com o cinto de segurança. – Vamos estar lá fora, vigiando. – Não vou me preocupar comigo – garanti. – Você é uma boba. Caçar vampiros é divertido. É a melhor parte de toda essa confusão. Sacudi a cabeça. – Se sou uma boba, então você é perigosamente desequilibrado. Ele riu.
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– Bella, benzinho, vá descansar um pouco. Você parece exausta. – Vou tentar. Charlie buzinou, impaciente. – A gente se vê amanhã – disse Jacob. – Venha logo. – Virei. Charlie me seguiu para casa. Prestei pouca atenção nas luzes em meu retrovisor. Em vez disso, eu me perguntava onde estava Sam, Jared, Embry e Paul, correndo pela noite. Perguntava-me se Jacob já havia se encontrado com eles. Quando chegamos em casa, disparei para a escada, mas Charlie estava bem atrás de mim. – O que está havendo, Bella? – perguntou antes que eu pudesse escapar. – Pensei que Jacob fosse parte de uma gangue e vocês dois tivessem brigado. – Fizemos as pazes. – E a gangue? – Não sei... Quem consegue entender os adolescentes? Eles são um mistério. Mas conheci Sam Uley e a noiva dele, Emily. Eles me pareceram muito legais. – Dei de ombros. – Deve ter sido um mal-entendido. A expressão dele mudou. – Não sabia que ele e Emily tinham oficializado. Isso é ótimo. Pobrezinha. – Sabe o que aconteceu com ela? – Foi atacada por um urso, ao norte, na temporada de desova do salmão... Um acidente horrível. Agora já tem mais de um ano. Soube que Sam ficou muito perturbado. – É horrível – eu fiz eco. Mais de um ano atrás. Aposto que significava que aconteceu quando só havia um lobisomem em La Push. Estremeci ao pensar em como Sam devia se sentir sempre que olhava o rosto de Emily.
Naquela noite, fiquei acordada na cama por um bom tempo tentando entender o dia que tivera. Lembrei-me do jantar com Billy, Jacob e Charlie e da longa tarde na casa dos Black, esperando
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ansiosamente ouvir algo de Jacob, voltei até a cozinha de Emily, ao pavor da briga dos lobos, à conversa com Jacob na praia. Pensei no que Jacob dissera de manhã, sobre a hipocrisia. Pensei nisso por um longo tempo. Eu não gostava de pensar que era hipócrita, mas que sentido tinha mentir para mim mesma? Enrosquei-me apertada como se fosse uma bola. Não, Edward não era um assassino. Mesmo em seu passado mais sombrio, ele nunca fora um assassino de inocentes, pelo menos. Mas e se ele tivesse sido? E se, na época em que o conheci, ele fosse exatamente como qualquer outro vampiro? E se as pessoas estivessem desaparecendo no bosque, como agora? Será que isso teria me afastado dele? Sacudi a cabeça com tristeza; o amor é irracional, lembrei a mim mesma. Quanto mais você ama alguém, menos tudo faz sentido. Rolei na cama e tentei desviar o pensamento – pensei em Jacob e nos irmãos, correndo pela escuridão. Dormi imaginando os lobos, invisíveis na noite, protegendo-me do perigo. Quando sonhei, eu estava na floresta de novo, mas não andava. Segurava a mão marcada de Emily e estávamos de frente para as sombras, esperando, ansiosas, nossos lobisomens voltarem para casa.
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15. PRESSÃO 

Eram as férias de primavera em Forks, de novo. Quando acordei na manhã de segunda-feira, fiquei deitada na cama alguns segundos absorvendo a idéia. Nas férias anteriores, eu também tinha sido caçada por um vampiro. Esperava que isso não fosse algum tipo de tradição se estabelecendo. Eu já estava me adaptando ao ritmo da vida em La Push. Passei a maior parte do domingo na praia, enquanto Charlie ficou com Billy na casa dos Black. Para Charlie eu estava com Jacob, mas Jacob tinha outras coisas para fazer, então andei por ali sozinha, guardando dele o segredo. Quando Jacob apareceu para ver como eu estava, pediu desculpas por ter me deixado tão de lado. Disse-me que sua rotina nem sempre era tão louca, mas, até que Victoria parasse, os lobos estavam em alerta vermelho. Agora, quando andávamos pela praia, ele sempre segurava minha mão. Isso me fez refletir no que Jared tinha dito, sobre Jacob envolver a “namorada” na história. Achei que isso era exatamente o que parecia para quem via de fora. Como Jake e eu sabíamos qual era a realidade, não devia deixar que esse tipo de suposição me incomodasse. E talvez não incomodasse, se eu não soubesse que Jacob adoraria que nosso relacionamento fosse o que aparentava. Mas eu gostava da mão dele aquecendo a minha, e não protestei. Trabalhei na loja terça de tarde – Jacob me seguiu na moto para ter certeza de que eu chegaria em segurança – e Mike percebeu. – Está namorando aquele garoto de La Push? O do segundo ano? – perguntou ele, sem conseguir disfarçar o ressentimento na voz. Dei de ombros. – Não no sentido técnico da palavra. Mas passo a maior parte do tempo com Jacob. Ele é meu melhor amigo. Os olhos de Mike se estreitaram com astúcia.
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– Não se engane, Bella. O cara é louco por você. – Eu sei – suspirei. – A vida é complicada. – E garotas são cruéis – disse Mike em voz baixa. Também achei a conclusão óbvia. Naquela noite, Sam e Emily se reuniram comigo e com Charlie para a sobremesa na casa de Billy. Emily levou um bolo que teria conquistado um homem mais durão do que Charlie. Pude ver, enquanto a conversa fluía naturalmente por um leque de assuntos fortuitos, que qualquer preocupação que Charlie pudesse ter guardado a respeito de gangues em La Push se dissolvia. Jake e eu saímos de lá cedo, para ter alguma privacidade. Fomos para a garagem dele e nos sentamos no Rabbit. Jacob recostou a cabeça, o rosto tenso de exaustão. – Você precisa dormir um pouco, Jake. – Vou encontrar tempo. Ele pegou minha mão. Sua pele ardia na minha. – Essa é uma daquelas coisas de lobo? – perguntei a ele. – Quer dizer, o calor. – É. Somos um pouco mais quentes do que as pessoas normais. Cerca de 42, 43 graus. Nunca mais fico frio. Poderia ficar desse jeito – ele gesticulou para o peito nu – numa nevasca e não me incomodaria. Os flocos de neve virariam chuva onde eu estivesse. – E vocês todos se curam rápido... Isso também é coisa de lobo? – É, quer ver? É bem legal. – Seus olhos se abriram e ele sorriu. Estendeu o braço por mim, abrindo o porta-luvas, e vasculhou ali por um minuto. Sua mão apareceu com um canivete. – Não, não quero ver! – gritei assim que percebi em que ele estava pensando. – Guarde isso! Jacob riu, mas devolveu o canivete a seu lugar. – Tudo bem. Mas isso de nos curarmos é bom. Não se pode procurar nenhum médico quando se tem uma temperatura que devia significar que está morto.
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– Não, acho que não. – Pensei nisso por um minuto. – ...E ser tão grande... também faz parte disso? É por isso que todos vocês se preocupam com Quil? – Isso e o fato de que o avô de Quil disse que o garoto pode fritar um ovo na testa. – A expressão de Jacob ficou desanimada. – Agora não deve levar muito tempo. Não existe uma idade exata... Só vai se formando, se formando e de repente... – Ele se interrompeu, parando por um momento antes de voltar a falar. – Às vezes, se você fica muito aborrecido ou coisa assim, isso pode desencadear tudo mais cedo. Mas eu não estava aborrecido com nada... Estava feliz. – Ele riu com amargura. – Por causa de você, principalmente. Foi por isso que não aconteceu comigo mais cedo. Em vez disso, a coisa ficou se formando dentro de mim... eu era como uma bomba-relógio. Sabe o que disparou tudo? Voltei do cinema e Billy disse que eu parecia estranho. Foi só isso, mas eu simplesmente rompi. E depois eu... eu explodi. Quase arranquei a cara dele... Do meu pai! – Ele estremeceu e seu rosto ficou branco. – É tão ruim assim, Jake? – perguntei com ansiedade, desejando ter uma maneira de ajudá-lo. – Você está infeliz? – Não, não estou infeliz – disse-me ele. – Não estou mais. Não agora, que você sabe. Mas antes foi difícil. – Ele se inclinou de modo que seu rosto pousou no alto de minha cabeça. Jacob ficou em silêncio por um momento, e me perguntei no que ele estava pensando. Talvez eu não quisesse saber. – Qual é a parte mais difícil? – sussurrei, ainda querendo poder ajudar.
–A parte mais difícil é me sentir... fora de controle – disse ele devagar. – Sentir que não consigo ter certeza sobre mim mesmo... Como se talvez você não devesse estar comigo, como se ninguém devesse. Como se eu fosse um monstro que pode machucar alguém. Você viu Emily. Sam perdeu o controle só por um segundo...E ela estava perto demais. Agora não há nada que ele possa fazer para consertar isso. Ouço os pensamentos dele... Sei como se sente... Quem quer ser um pesadelo, um monstro? E, depois, o modo como acontece comigo com tanta facilidade, o modo como sou melhor
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nisso do que os outros... Isso me torna menos humano do que Embry ou Sam? Às vezes tenho medo de estar perdendo a mim mesmo. – É difícil? Encontrar a si mesmo de novo? – No começo – disse ele. – É preciso alguma prática para ir e voltar. Mas é mais fácil para mim. – Por quê? – perguntei. – Porque Ephraim Black era o avô de meu pai e Quil Ateara era o avô de minha mãe. – Quil? – perguntei, confusa. – O bisavô dele – esclareceu Jacob. – Quil que você conhece é meu primo em segundo grau. – Mas por que importa quem foram seus bisavós? – Porque Ephraim e Quil eram do último bando. Levi Uley era o terceiro. Está em meu sangue, dos dois lados. Nunca tive nenhuma chance. Assim como Quil não tem chance. Sua expressão era triste. – Qual é a melhor parte? – perguntei, na esperança de animá-lo. – A melhor parte – disse ele, de repente sorrindo de novo – é a velocidade. – Melhor do que as motos? Ele assentiu, entusiasmado. – Não tem comparação. – A que velocidade você pode...? – Correr? – ele completou minha pergunta. – Bem rápido. Como posso estimar? Nós alcançamos... qual era o nome dele? Laurent? Imagino que isso signifique mais para você do que para outra pessoa. Significava algo para mim. Eu não conseguia imaginar aquilo – os lobos correndo mais rápido do que um vampiro. Quando os Cullen corriam, a velocidade os deixava quase invisíveis. – Agora me conte uma coisa que eu não sei – disse ele. – Sobre vampiros. Como você conseguiu ficar com eles? Não ficou apavorada. – Não – eu disse com rispidez.
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Meu tom de voz o deixou pensativo por um momento. – Diga, por que afinal seu sanguessuga matou aquele James? – perguntou ele de repente. – James estava tentando me matar... Era uma espécie de jogo para ele. Ele perdeu. Lembra a primavera passada, quando fiquei no hospital em Phoenix? Jacob respirou fundo. – Ele chegou assim tão perto? – Chegou muito, muito perto. – Afaguei a cicatriz. Jacob percebeu, porque segurava a mão que mexi. – O que é isso? – Ele trocou de mãos, examinando minha mão direita. – É a sua cicatriz engraçada, a fria. – Ele a olhou mais de perto, com outros olhos, e ofegou. – Sim, é o que você está pensando – eu disse. – James me mordeu. Seus olhos se arregalaram e seu rosto assumiu uma cor estranha e pálida sob a superfície avermelhada. Ele parecia estar a ponto de vomitar. – Mas se ele mordeu você...? Você não devia ser...? – disse baixinho. – Edward me salvou duas vezes – sussurrei. – Ele sugou o veneno... Sabe como é, como se faz com uma cascavel. – Eu me contorcia enquanto a dor açoitava as bordas do buraco. Mas não fui a única a me contorcer. Pude sentir todo o corpo de Jacob tremendo ao lado do meu. Até o carro sacudia. – Cuidado, Jake. Calma. Relaxe. – É – ele arfava. – Calma. – Ele sacudiu a cabeça rapidamente. Depois de um momento, só as mãos tremiam. – Você está bem? – Estou, quase. Me conte outra coisa. Me dê algo mais em que pensar.–O que quer saber? – Não sei. – Ele estava de olhos fechados, concentrado. – Acho que os dons extras. Algum dos outros Cullen tem... talento a mais? Como ler pensamentos?
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Hesitei por um segundo. Essa parecia uma pergunta que ele faria a sua espiã, e não à amiga. Mas qual era o sentido de esconder o que eu sabia? Agora não importava e ajudaria Jacob a se controlar. Então falei depressa, a imagem do rosto arruinado de Emily em minha mente e os pêlos dos meus braços se arrepiando. Não podia imaginar como o lobo avermelhado caberia dentro do Rabbit – Jacob destruiria a oficina toda se se transformasse naquele instante. – Jasper pode... algo como controlar as emoções das pessoas que estão perto dele. Não de uma forma ruim, só acalmá-las, esse tipo de coisa. Isso ajudaria muito Paul – acrescentei, brincando sem jeito. – E Alice pode enxergar o que vai acontecer. O futuro, mas não definitivamente. O que ela vê muda quando alguém muda de rumo... Como quando ela me viu morrendo... e me viu me tornando um deles. Duas coisas que não aconteceram. E uma que jamais acontecerá. Minha cabeça começou a girar – parecia que eu não conseguia inspirar oxigênio suficiente. Não tinha pulmões. Jacob agora estava completamente controlado, quase imóvel a meu lado. – Por que você faz isso? – perguntou ele. Ele puxou de leve meu braço, o que estava junto a meu peito, e depois desistiu quando não o afrouxei com facilidade. Nem percebi que o havia mexido. – Você faz isso quando está aborrecida. Por quê? – Dói pensar neles – sussurrei. – É como se eu não conseguisse respirar... Como se estivesse me desfazendo em pedaços... – Era estranho o quanto eu agora podia contar a Jacob. Não tínhamos mais segredos. Ele afagou meu cabelo. – Está tudo bem, Bella, está tudo bem. Não vou falar nisso de novo. Desculpe. – Estou bem – eu disse, ofegando. – Acontece o tempo todo. Não é sua culpa. – Somos uma dupla transtornada, não é? – disse Jacob. – Nenhum de nós consegue se manter inteiro. – É patético – concordei, ainda sem fôlego.
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– Pelo menos temos um ao outro – disse ele, claramente reconfortado com a idéia. Eu também fiquei reconfortada. – Pelo menos temos isso – concordei. E quando estávamos juntos, era ótimo. Mas Jacob tinha uma tarefa horrível e perigosa que se sentia compelido a realizar, e assim eu ficava sozinha com freqüência, presa em La Push para minha segurança, sem nada a fazer para manter minha mente livre de qualquer preocupação. Eu me sentia estranha, sempre ocupando espaço na casa de Billy. Fiquei estudando para outra prova de cálculo marcada para a semana seguinte, mas só consegui me dedicar à matemática por algum tempo. Quando parecia óbvio que eu não estava fazendo nada, sentia-me obrigada a conversar com Billy – a pressão das regras normais da sociedade. Mas Billy não era de preencher os longos silêncios, então a estranheza continuava. Tentei ficar na casa de Emily na tarde de quarta-feira, só para variar. No inicio foi um pouco legal. Emily era uma pessoa alegre que nunca parava sentada. Eu vagava atrás dela enquanto ela se movimentava pela casinha e pelo jardim, esfregando um chão sem sujeira alguma, arrancando um matinho minúsculo, consertando uma dobradiça quebrada, puxando um fio de lã de uma tapeçaria antiga e, ainda, sempre cozinhando. Ela reclamava um pouco do aumento do apetite dos rapazes devido a toda a correria extra, mas era fácil ver que não se importava de cuidar deles. Não era difícil ficar com ela – afinal, éramos agora duas garotas de lobos. Mas Sam apareceu depois que eu estava ali havia algumas horas. Fiquei apenas tempo suficiente para me certificar de que Jacob estava bem e que não havia novidades, depois tive de fugir. Ficava mais difícil suportar a aura de amor e felicidade que os cercava em doses concentradas, sem mais ninguém por perto para diluí-la. Então isso me fez vagar pela praia, andar pelo crescente rochoso de um lado para outro, sem parar.
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Ficar sozinha não me fazia bem. Graças à nova franqueza com Jacob, eu falara e pensara nos Cullen um pouco demais. Por mais que tentasse me distrair – e eu tinha muito em que pensar: estava sincera e desesperadamente preocupada com Jacob e seus irmãos-lobos; estava apavorada por Charlie e pelos outros, que pensavam estar caçando animais; estava cada vez mais envolvida com Jacob sem sequer ter tomado uma decisão consciente sobre progredir nessa direção, e não sabia o que fazer a esse respeito –, nenhuma dessas preocupações tão reais, tão prementes e tão merecedoras de minhas reflexões conseguia afastar minha mente da dor em meu peito por muito tempo. Por fim, eu nem conseguia mais andar, porque não conseguia respirar. Sentei-me num trecho de pedras quase secas e me encolhi como uma bola. Jacob me encontrou desse jeito e eu sabia, pela expressão dele, que ele entendia. – Desculpe – disse ele na mesma hora. Jacob me puxou do chão e me abraçou. Só então percebi que estava com frio. Seu calor me fez tremer, mas, enfim, com ele ali, eu conseguia respirar. – Estou estragando suas férias de primavera – Jacob acusou a si mesmo enquanto voltávamos pela praia. – Não está, não. Eu não tinha nenhum plano. De qualquer jeito, acho que não gosto de férias de primavera. Amanhã vou tirar a manhã de folga. Os outros podem correr sem mim. Vamos fazer algo divertido. Naquele momento a palavra parecia deslocada em minha vida, era quase incompreensível, bizarra. – Divertido? – Diversão é exatamente do que você precisa. Hmmm... – Ele olhou as ondas cinzentas e oscilantes, refletindo. Enquanto seus olhos examinavam o horizonte, ele teve um lampejo de inspiração. – Já sei! – disse, exultante. – Outra promessa a ser cumprida. – De que você está falando?
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Ele soltou minha mão e apontou para a extremidade sul da praia, onde a meia-lua rochosa e plana terminava de encontro aos penhascos acima do mar. Eu olhei, sem compreender. – Não prometi que ia levar você para mergulhar do penhasco? Eu tremi. – É, vai estar muito frio... Mas não tão frio quanto hoje. Consegue sentir o clima mudando? A pressão? Amanhã estará mais quente. Preparada? A água escura não era nada convidativa e, daquele ângulo, o penhasco parecia ainda mais alto do que antes. Mas já fazia dias que eu não ouvia a voz de Edward. Isso devia ser parte do problema. Eu era viciada no som de minhas ilusões. Tudo piorava quando eu passava muito tempo sem elas. Pular de um penhasco certamente remediaria essa situação. – Claro, preparada. Diversão. – É um encontro – disse ele, e colocou o braço em meus ombros. – Tudo bem... Agora vamos dormir um pouco. – Eu não gostava do modo como as olheiras estavam começando a parecer permanentes na pele de Jacob. Na manhã seguinte, acordei cedo e coloquei uma muda de roupa na picape. Tinha a sensação de que Charlie aprovaria os planos de hoje tanto quanto teria aprovado a motocicleta. A idéia de me distrair de todas as preocupações quase me animou. Talvez pudesse mesmo ser divertido. Um encontro com Jacob, um encontro com Edward... Ri sombriamente para mim mesma. Jake podia dizer o que quisesse sobre sermos um par transtornado – eu é que era transtornada de verdade. Fazia os lobisomens parecerem quase normais.
Esperava que Jacob me encontrasse na frente da casa, como sempre fazia quando a picape barulhenta anunciava minha chegada. Como não estava ali, imaginei que ainda estivesse dormindo. Eu
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esperaria – deixar que descansasse o máximo que conseguisse. Ele precisava dormir, e isso daria tempo para o dia esquentar um pouco. Mas Jake estava certo sobre o clima; mudara à noite. Uma camada densa de nuvens agora pesava na atmosfera, tornando-a quase abafada; estava quente e sufocante sob o cobertor cinza. Deixei meu suéter no carro. Bati de leve na porta da casa. – Entre, Bella – disse Billy. Ele estava à mesa da cozinha, comendo cereais frios. – Jake está dormindo? – Hã, não. – Ele baixou a colher e suas sobrancelhas se uniram. – O que houve? – perguntei. Sabia, pela expressão dele, que algo acontecera. – Embry, Jared e Paul deram com um rastro fresco de manhã cedo. Sam e Jake foram ajudar. Sam estava esperançoso... Ela seguiu para o lado das montanhas. Ele acha que têm uma boa probabilidade de terminar com isso. – Ah, não, Billy – sussurrei. – Ah, não. Ele soltou uma risada grave e baixa. – Gosta tanto assim de La Push que quer estender sua sentença aqui? – Não brinque, Billy. É apavorante demais para isso. – Tem razão – concordou ele, ainda complacente. Era impossível interpretar seus olhos de ancião. – Essa é esperta. Mordi o lábio. – Não é tão perigoso para eles como você pensa. Sam sabe o que está fazendo. É consigo mesma que você deve se preocupar. A vampira não quer lutar contra eles. Só está tentando encontrar um jeito de passar por eles... e chegar a você. – Com Sam sabe o que está fazendo? – perguntei, deixando de lado a preocupação dele comigo. – Eles só mataram um vampiro... Pode ter sido por sorte. – Nós levamos o que fazemos muito a sério, Bella. Nada foi esquecido. Tudo de que precisamos saber foi transmitido de pai para filho por gerações.
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Isso não me reconfortou como ele provavelmente pretendia. A lembrança de Victoria, louca, furtiva e letal, era forte demais em minha mente. Se ela não conseguisse passar pelos lobos, acabaria mesmo tentando enfrentá-los. Billy voltou para seu café-da-manhã; eu me sentei no sofá e zapeei pelos canais de tevê. Não durou muito tempo. Comecei a me sentir presa na salinha, claustrofóbica, aborrecida com o fato de que não podia enxergar através de janelas com cortinas. – Vou para a praia – disse a Billy de maneira abrupta e corri porta afora. Ficar ao ar livre não ajudou tanto quanto eu esperava. As nuvens faziam pressão com um peso invisível, que impedia que a claustrofobia passasse. A floresta parecia estranhamente vazia enquanto eu seguia a pé para a praia. Não vi nenhum bicho – nem passarinhos nem esquilos. Também não consegui ouvir ave nenhuma. O silêncio era sinistro; não havia sequer o som do vento nas árvores. Eu sabia que era tudo resultado do clima, mas ainda assim fiquei tensa. A pressão da atmosfera, pesada e quente, era perceptível até para meus fracos sentidos humanos e sugeria alguma coisa maior no departamento “tempestade”. Um olhar para o céu reforçou essa teoria; as nuvens avançavam indolentes, apesar de não haver vento no nível do solo. As nuvens mais próximas eram de um cinza esfumaçado, mas por entre elas eu podia ver outra camada, que era de um roxo horrível. O céu tinha um plano feroz para aquele dia. Os animais deviam estar se protegendo. Assim que cheguei à praia, quis não ter ido – já estava cheia daquele lugar. Estivera ali quase todos os dias, andando sozinha. Aquilo era muito diferente de meus pesadelos? No entanto, aonde mais eu iria? Arrastei-me até o tronco e me sentei na ponta para me encostar nas raízes emaranhadas. Olhei pensativa para o céu furioso, esperando que as primeiras gotas rompessem a imobilidade.
Tentei não pensar no perigo que Jacob e seus amigos corriam. Porque nada podia acontecer com Jacob. A idéia era insuportável. Eu já havia perdido muito – o destino levaria os últimos restos de paz
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que haviam ficado para trás? Isso parecia injusto, sem lógica. Mas talvez eu tivesse violado alguma regra desconhecida, atravessando um limite que me condenara. Talvez fosse um erro me envolver tanto com mitos e lendas, dar as costas a meu mundo humano. Talvez... Não. Não ia acontecer nada com Jacob. Eu precisava acreditar nisso ou não conseguiria mais viver. – Argh! – grunhi e pulei do tronco. Não conseguia ficar sentada; era pior do que andar. Já estava contando que ouviria Edward aquela manhã. Parecia ser a única maneira de tornar suportável viver aquele dia. O buraco inflamara nos últimos dias, como se estivesse se vingando do tempo em que a presença de Jacob o domara. As bordas ardiam. As ondas ficaram maiores enquanto eu andava, começando a quebrar nas rochas, mas ainda não havia vento. Senti-me presa ao chão pela pressão da tempestade. Tudo girava a meu redor, mas era perfeitamente tranqüilo onde eu estava. O ar tinha uma suave carga elétrica – eu podia sentir a estática em meu cabelo. Mais ao longe, as ondas estavam mais furiosas do que junto à praia. Eu podia vê-las quebrando na linha dos penhascos, espalhando pelo céu grandes nuvens brancas de espuma. Ainda não havia movimento no ar, embora as nuvens agora se agitassem com mais rapidez. Era uma visão sinistra – como se as nuvens se mexessem por vontade própria. Tremi, apesar de saber que era só um truque da pressão. Os penhascos eram uma lâmina preta contra o céu claro. Olhando-os, lembrei-me do dia em que Jacob contou sobre Sam e a “gangue” dele. Pensei nos meninos – os lobisomens – atirando-se no ar vazio. A imagem das figuras espiralando em queda ainda era nítida em minha mente. Imaginei a total liberdade da queda... Imaginei como a voz de Edward ficaria em minha cabeça – furiosa, aveludada, perfeita... O ardor no peito incendiou-se em agonia. Tinha de haver uma forma de extingui-lo. A dor ficava mais insuportável a cada segundo. Olhei os penhascos e as ondas que quebravam. Bem, por que não? Por que não extinguir a dor agora mesmo?
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Jacob me prometera um mergulho do penhasco, não foi? Só porque ele não estava disponível eu deveria desistir da distração de que precisava tanto – ainda mais necessária porque Jacob estava lá fora, arriscando sua vida? Arriscando-a, essencialmente, por mim. Se não fosse por mim, Victoria não estaria matando pessoas por aqui... Estaria em outro lugar, longe. Se algo acontecesse com Jacob, seria por minha culpa. Essa percepção me apunhalou fundo e me fez correr para a estrada que levava à casa de Billy, onde minha picape esperava. Eu conhecia a rua que passava mais perto dos penhascos, mas tive de procurar o pequeno caminho que me levaria à pedra. Enquanto seguia, tentei encontrar desvios ou bifurcações, sabendo que Jake tinha planejado me levar na pedra mais baixa ao invés de no topo, mas o caminho seguia numa linha reta e estreita até a beira, sem me deixar opções. Não tive tempo para encontrar um jeito de descer – a tempestade se aproximava rapidamente. O vento, enfim, começava a me tocar, as nuvens pesando mais próximas do chão. Assim que cheguei ao local onde a estrada de terra se abria num precipício de pedra, as primeiras gotas irromperam e se esparramaram em meu rosto. Não foi difícil convencer a mim mesma de que não tinha tempo para procurar outro caminho – eu queria pular do topo. Essa era a imagem que se fixara em minha mente. Eu queria a longa queda que me daria a sensação de voar. Sabia que aquela era a atitude mais idiota e mais imprudente que já tomara. Pensar nisso me fez sorrir. A dor já estava cedendo, como se meu corpo soubesse que a voz de Edward estava a apenas segundos de mim... O mar parecia muito distante, de certo modo mais distante do que antes, quando estava no caminho, entre as árvores. Fiz uma careta quando pensei na possível temperatura da água. Mas não ia deixar que isso me impedisse. O vento agora soprava com mais força, chicoteando a chuva em redemoinhos ao meu redor.
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Dei um passo para a beirada, sem tirar os olhos do espaço vazio à frente. Os dedos de meus pés já tateavam às cegas, acariciando a beira da pedra quando a encontraram. Respirei fundo e prendi o ar... Esperando. “Bella.” Eu sorri e soltei a respiração. Sim? Não respondi em voz alta, por medo de que minha voz dispersasse a bela ilusão. Ele parecia tão real, tão próximo. Só quando me reprovava desse jeito eu podia ouvir a verdadeira lembrança de sua voz – a textura aveludada e a entonação musical que compunha a mais perfeita das vozes. “Não faça isso”, pediu ele. Você quis que eu fosse humana, lembrei a ele. Bem, assista. “Por favor. Por mim.” Mas você não vai ficar comigo de nenhuma outra maneira. “Por favor.” Era só um sussurro na pancada de chuva que agitou meu cabelo e ensopou minhas roupas – deixando-me tão molhada que era como meu segundo salto do dia. Fiquei na ponta dos pés. “Não, Bella!” Ele agora estava com raiva, e isso era adorável. Sorri e levantei os braços, como se fosse mergulhar, erguendo o rosto para a chuva. Mas aquilo estava arraigado demais dos anos de natação na piscina pública – primeiro o pé, primeira vez. Inclinei-me para a frente, agachando-me para tomar mais impulso. E me atirei do penhasco. Gritei ao cair pelo espaço aberto como um meteoro, mas foi um grito de alegria, não de medo. O vento impunha resistência, tentando em vão lutar com a gravidade indomável, empurrando-me e me fazendo girar em espiral como um foguete atingindo a terra. Sim! A palavra ecoou em minha cabeça enquanto eu cortava a superfície da água. Era gelada, mais fria do que eu temia, e, no entanto, o frio só aumentou meu prazer.
Estava orgulhosa de mim à medida que mergulhava mais fundo na água escura e congelante. Não senti nem um segundo de pavor –
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só pura adrenalina. Na verdade, a queda não fora nada assustadora. Onde estava o desafio? Foi então que a correnteza me pegou. Fiquei tão preocupada com a altura dos penhascos, com o perigo evidente de suas faces elevadas e escarpadas, que nem pensei na água escura que me aguardava. Nunca imaginei que a verdadeira ameaça estivesse espreitando muito abaixo de mim, sob as ondas que se erguiam. Parecia que as ondas lutavam comigo, lançando-me de um lado para outro como se estivessem decididas a me dividir, cortando-me pelo meio. Eu sabia a maneira certa de evitar uma corrente marinha: nadar paralelamente à praia em vez de lutar para chegar à margem. Mas o conhecimento de pouco me valeu, já que não sabia para que lado estava a praia. Eu nem sabia dizer para que lado estava a superfície. A água furiosa era negra em todas as direções; não havia qualquer claridade que me orientasse para cima. A gravidade era onipotente quando competia com o ar, mas não significava nada nas ondas – eu não sentia um empuxo para baixo, não afundava em nenhuma direção. Só sentia o bater da corrente que me arremessava em círculos, feito uma boneca de trapos. Lutei para manter presa a respiração, para manter meus lábios fechados em torno de minha última reserva de oxigênio. Não me surpreendeu que minha ilusão de Edward estivesse ali. Ele me devia muito, considerando que eu estava morrendo. Fiquei surpresa por estar tão certa disso. Ia me afogar. Estava me afogando. “Continue nadando!”, implorou Edward com urgência em minha cabeça. Para onde? Não havia nada a não ser a escuridão. Não havia para onde nadar. “Pare com isso!”, ordenou ele. “Não se atreva a desistir!” O frio da água entorpecia meus braços e minhas pernas. Eu não sentia o açoite tanto quanto antes. Agora era mais uma vertigem, um giro desamparado na água.
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Mas eu o ouvi. Obriguei meus braços a continuarem estendidos, minhas pernas a baterem com mais força, embora a cada segundo eu tomasse um rumo diferente. Aquilo não devia estar adiantando nada. Que sentido tinha? “Lute!”, gritou ele. “Que droga, Bella, continue lutando.” Por quê? Não queria mais lutar. E não era a vertigem, nem o frio, nem o fracasso dos braços à medida que os músculos desistiam de exaustão que me deixava contente por ficar onde estava. Eu estava quase feliz por aquilo ter acabado. Era uma morte mais fácil do que as outras que enfrentei. Estranhamente em paz. Pensei por pouco tempo nos clichês, sobre como você devia ver sua vida passar diante dos olhos. Eu tinha muito mais sorte. Quem afinal queria ver uma reprise? Foi ele que eu vi, e não tive vontade de lutar. Era muito claro, muito mais definido do que qualquer lembrança. Meu subconsciente guardara Edward em detalhes impecáveis, poupando-o para este último momento. Pude ver seu rosto perfeito como se ele estivesse mesmo ali; o tom exato de sua pele gélida, o formato de seus lábios, a linha de seu queixo, o cintilar dourado de seus olhos furiosos. Ele estava com raiva, naturalmente, por eu desistir. Seus dentes estavam trincados e as narinas infladas de cólera. “Não! Bella, não!” Minhas orelhas foram inundadas de água gélida, mas a voz dele era mais clara do que nunca. Ignorei as palavras e me concentrei no som de sua voz. Por que eu lutaria se estava tão feliz ali? Mesmo enquanto meus pulmões ardiam, querendo mais ar, e minhas pernas doíam do frio gelado, eu estava contente. Tinha me esquecido de como era verdadeira felicidade. Felicidade. Isso tornava toda a história de morrer bastante suportável.
A correnteza venceu nesse momento, lançando-me repentinamente contra algo rígido,uma rocha invisível no escuro. Atingiu-me com força no peito, golpeando-me como uma barra de
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ferro, e o ar fugiu de meus pulmões, escapando numa nuvem espessa de bolhas prateadas. A água inundou minha garganta, sufocando e queimando. A barra de ferro pareceu me arrastar, puxando-me para longe de Edward, mais fundo nas sombras, para o fundo do mar.

16. PÁRIS 

Naquele momento, minha cabeça surgiu na superfície. Foi muito desorientador. Eu tinha certeza de que estava afundando. A correnteza não ia amainar. Jogava-me de encontro a outras pedras; elas batiam no meio de minhas costas bruscamente, de um jeito cadenciado, arrancando a água de meus pulmões. Eu esguichava um volume inacreditável, torrentes eram despejadas de minha boca e do nariz. O sal ardia, meus pulmões queimavam, minha garganta estava cheia demais de água para que eu pudesse tomar fôlego e as pedras machucavam minhas costas. De algum modo fiquei num lugar só, embora as ondas ainda oscilassem em volta de mim. Só o que eu conseguia ver em toda parte era água, chegando a meu rosto. – Respire! – ordenou uma voz, louca de ansiedade, e senti uma pontada cruel de dor quando a reconheci, porque não era a de Edward. Eu não conseguia obedecer. O aguaceiro que saía de minha boca não parou por tempo suficiente para que eu tomasse fôlego. A água escura e gelada encheu meu peito, queimando. A pedra bateu nas minhas costas de novo, bem entre as omoplatas, e outra torrente de água abriu caminho para fora de meus pulmões. – Respire, Bella! Vamos! – pediu Jacob. Pontos pretos floresceram em minha visão, aumentando cada vez mais, obstruindo a luz. A pedra me atingiu outra vez. A pedra não era fria como a água; estava quente em minha pele. Percebi que era a mão de Jacob, tentando expulsar a água de meus pulmões. A barra de ferro que me arrastara do mar também era... quente... Minha cabeça girava, os pontos pretos cobriam tudo...
Então eu estava morrendo de novo? Não gostei disso – não era tão bom como da última vez. Agora só estava escuro, não havia nada digno de se ver. O som das ondas quebrando desapareceu na
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escuridão e tornou-se um silvo tranqüilo e uniforme que parecia vir de dentro de meus ouvidos... – Bella? – perguntou Jacob, a voz ainda tensa, mas não nervosa como antes. – Bells, querida, está me ouvindo? Os assuntos em minha cabeça zuniam e rolavam de uma forma nauseante, como se tivessem se unido à água agitada... – Quanto tempo ela ficou inconsciente? – perguntou alguém. A voz que não era de Jacob me surpreendeu, lançou-me numa consciência mais focalizada. Percebi que estava parada. A correnteza não me puxava – o balanço estava dentro de minha cabeça. A superfície sob meu corpo era plana e imóvel. Senti-a granulosa em meus braços nus. – Não sei – disse Jacob, ainda frenético. Sua voz estava muito perto.Mãos, tão quentes que tinham de ser as dele, tiraram o cabelo molhado de meu rosto. – Alguns minutos? Não levei muito tempo para trazê-la até a praia.O silva baixo em meus ouvidos não era das ondas – era o ar entrando e saindo de meus pulmões novamente. Cada respiração queimava – as vias aéreas estavam tão sensíveis que pareciam ter sido esfregadas com palha de aço. Mas eu estava respirando. E congelando. Mil gotas geladas e afiadas golpeavam meu rosto e meus braços, aumentando ainda mais o frio. – Ela está respirando. Vai voltar a si. Mas precisamos tirá-la do frio. Não estou gostando da cor dela... – Desta vez, reconheci a voz de Sam. – Acha que tem algum problema movê-la? – Ela não machucou as costas nem nada quando caiu? – Não sei. Eles hesitaram. Tentei abrir os olhos. Precisei de um minuto, mas pude ver as nuvens escuras e roxas atirando a chuva gelada em mim. – Jake? – grasnei. O rosto dele escondeu o céu.
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– Ah! – falou ele ofegante, o alívio tomando suas feições. Os olhos estavam molhados de chuva. – Ah, Bella! Você está bem? Pode me ouvir? Algum lugar dói? – S-só m-minha garganta – gaguejei, os lábios tremendo de frio. – Então vamos tirar você daqui – disse Jacob. Ele passou os braços sob meu corpo e me ergueu sem esforço algum, como se pegasse uma caixa vazia. Seu peito estava nu e quente; ele curvou os ombros para me proteger da chuva. Minha cabeça tombou em seu braço. Olhei inexpressivamente a água furiosa, batendo na areia atrás dele. – Você a pegou? – ouvi Sam perguntar. – Peguei, deixe comigo. Volte para o hospital. Encontro você lá mais tarde. Obrigado, Sam. Minha cabeça ainda girava. De início, não compreendi nenhuma das palavras dele. Sam não respondeu. Não houve qualquer som, e eu me perguntei se ele já havia ido embora. A água lambia e revolvia a areia atrás de nós enquanto Jacob me carregava dali, como se estivesse com raiva por eu ter escapado. Enquanto olhava para a frente, exausta, uma centelha de cor atraiu meus olhos sem foco – um pequeno lampejo de fogo dançava na água escura, longe, na baía. A imagem não fez sentido e me perguntei até que ponto eu estava consciente. Minha cabeça girou com a lembrança da água negra e agitada – de ficar tão perdida que não conseguia achar o acima ou o abaixo. Tão perdida... Mas de algum modo Jacob... – Como você me encontrou? – Minha voz arranhou. – Estava procurando você – disse-me Jacob. Ele estava quase correndo, na chuva, subindo a praia na direção da estrada. – Segui as marcas dos pneus até sua picape, depois ouvi você gritar... – Ele estremeceu. – Por que você pulou, Bella? Não percebeu que estava vindo um furacão? Não podia ter esperado por mim? – A raiva enchia sua voz à medida que o alívio desaparecia. – Desculpe – murmurei. – Fui uma idiota.
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– É, você foi realmente idiota – concordou ele, gotas de chuva se desprendendo de seu cabelo quando ele assentiu. – Olhe, importa-se de poupar essas idiotices para quando eu estiver por perto? Não vou poder me concentrar se achar que está pulando de penhascos pelas minhas costas. – Claro – concordei. – Tudo bem. – Eu parecia uma fumante inveterada. Tentei dar um pigarro... depois tremi; pigarrear foi como cravar uma faca na garganta. – O que aconteceu hoje? Vocês... encontraram? – Era minha vez de estremecer, embora não estivesse mais com tanto frio, colada ao corpo ridiculamente quente dele. Jacob sacudiu a cabeça. Ainda corria ao seguir pela estrada até sua casa. – Não. Ela fugiu para a água... Nela os sanguessugas têm vantagem. Foi por isso que corri para casa... Tive medo de que ela voltasse a nado. Você passa muito tempo na praia... – Ele se interrompeu com um nó na garganta. – Sam voltou com você... Está todo mundo em casa também? – Esperava que não estivessem mais procurando por ela. – É. Mais ou menos. Tentei entender a expressão dele, os olhos semicerrados na chuva que martelava. O olhar de Jacob estava tenso de preocupação ou dor.As palavras que antes não tinham feito sentido de repente ficaram claras. – Você disse... hospital. Antes, ao Sam. Alguém se machucou? Ela lutou contra vocês? – Minha voz saltou uma oitava, parecendo estranha com a rouquidão. – Não, não. Quando voltamos, Em estava esperando com a notícia. É Harry Clearwater. Ele teve um ataque cardíaco hoje de manhã. – Harry? – sacudi a cabeça, tentando absorver o que ele dizia. – Ah, não! Charlie já sabe. – Sabe. Ele também está lá, com meu pai. – Harry vai ficar bem? Os olhos de Jacob ficaram tensos de novo.
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– Agora não parece muito bem. De repente, senti-me nauseada de culpa – sentia-me verdadeiramente péssima pelo mergulho idiota do penhasco. Ninguém precisava se preocupar comigo agora. Que hora mais absurda para ser imprudente. – O que posso fazer? – perguntei. Naquele momento, a chuva parou. Só percebi que já estávamos na casa dos Black quando ele passou pela porta. A tempestade martelava o telhado. – Você pode ficar aqui – disse Jacob ao me colocar no sofá pequeno. – Estou falando sério... Bem aqui. Vou pegar umas roupas secas.Deixei que meus olhos se adaptassem à sala escura enquanto Jacob disparava para o quarto. A sala abarrotada parecia tão vazia sem Billy, quase desolada. Era de algum modo estranho agourenta – provavelmente só porque eu sabia onde ele estava. Jacob voltou segundos depois. Atirou em mim uma pilha de roupas cinza, de algodão. – Vão ficar enormes em você, mas é o melhor que tenho. Vou, hã, lá fora para você trocar de roupa. – Não vai a lugar nenhum. Ainda estou cansada demais para me mexer. Só fique aqui comigo. Jacob se sentou no chão perto de mim, as costas encostadas no sofá. Perguntei-me quando ele tinha dormido pela última vez. Parecia tão exausto quanto eu. Ele encostou a cabeça na almofada ao lado da minha e bocejou. – Acho que posso descansar um pouquinho... Seus olhos se fecharam. Deixei que os meus olhos se fechassem também. Coitado do Harry. Coitada se Sue. Eu sabia que Charlie ia ficar ao lado dele. Harry era um de seus melhores amigos. Apesar do pessimismo de Jake, eu esperava fervorosamente que Harry superasse tudo. Pelo bem de Charlie. Por Sue, Leah e Seth...
O sofá de Billy ficava bem ao lado do aquecedor e eu agora estava quente, apesar das roupas ensopadas. Meus pulmões doíam de
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um jeito que me empurrava para a inconsciência ao invés de me manter acordada. Perguntei-me vagamente se era errado dormir... Ou estava ficando sonolenta por causa das concussões...? Jacob começou a ressonar suave e o som era tranqüilizador como uma cantiga de ninar. Dormi logo. Pela primeira vez em muito tempo meu sonho foi normal. Só um passeio borrado por lembranças antigas – visões ofuscantes do sol de Phoenix, o rosto de minha mãe, uma frágil casa na árvore, uma manta desbotada, uma parede de espelhos, uma chama na água escura... Esquecia-me de cada uma delas assim que a imagem mudava. A última foi a única que se fixou em minha mente. Não tinha significado – só um cenário num palco. Uma saca à noite, uma lua pintada pendurada no céu. Vi a garota de camisola debruçar no parapeito e falar consigo mesma. Sem significado... Mas quando aos poucos voltei à consciência, Julieta ficou em minha mente. Jacob ainda dormia; desabara no chão e sua respiração era profunda e uniforme. A casa agora estava mais escura do que antes, era um breu do lado de fora da janela. Eu estava rígida, mas aquecida e quase seca. Minha garganta ardia cada vez que eu respirava. Ia ter de me levantar – pelo menos para beber algo. Mas meu corpo só queria ficar deitado ali, sem forças, para nunca mais se mexer.Em vez de me mexer, pensei mais um pouco em Julieta. Imaginei o que ela teria feito se Romeu a deixasse, não porque fosse proibido, mas por perder o interesse. E se Rosalina lhe tivesse dado atenção e ele mudasse de idéia? E se, em vez de se casar com Julieta, ele simplesmente sumisse? Pensei que sabia como Julieta se sentiria. Ela não voltaria para sua antiga vida, não mesmo. Não teria sequer se mudado, disso eu tinha certeza. Mesmo que tivesse vivido até ficar velha e grisalha, cada vez que fechasse os olhos teria sido o rosto de Romeu que veria por trás das pálpebras. No fim das contas, já teria aceitado isso.
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Imaginei se ela teria se casado com Páris no final, só para agradar aos pais, para manter a paz. Não, era provável que não, concluí. Por outro lado, a história não falava muito de Páris. Ele era só um estorvo – um substituto, uma ameaça, um prazo final para forçar a mão dela. E se ele fosse mais do que isso? E se Páris tivesse sido amigo de Julieta? Seu melhor amigo? E se ele fosse o único a quem ela pudesse fazer confidências sobre toda a história arrasadora com Romeu? A única pessoa que a entendia de verdade e a fazia se sentir quase humana de novo? E se ele fosse paciente e gentil? E se ele cuidasse dela? E se Julieta soubesse que não podia viver sem ele? E se ele realmente a amasse e quisesse que ela fosse feliz? E... E se ela amasse Páris? Não como Romeu. Nada disso, claro. Mas o bastante para querer que ele também fosse feliz? A respiração lenta e profunda de Jacob era o único som na sala – como uma cantiga de ninar cantarolada para uma criança, como o som baixo de uma cadeira de balanço, como o bater de um relógio antigo quando não se tem necessidade de ir a lugar nenhum... Era o som do conforto. Se Romeu tivesse mesmo partido, para nunca mais voltar, teria feito diferença Julieta ter aceitado ou não a oferta de Páris? Talvez ela devesse ter tentado se adaptar aos pedaços de vida que restaram. Talvez fosse o mais perto da felicidade que ela chegaria. Suspirei, depois gemi quando o suspiro arranhou minha garganta. Eu estava incluindo informações demais na história. Romeu não mudaria de idéia. É por isso que as pessoas ainda se lembravam do nome dele, sempre em par com o dela: Romeu e Julieta. Por isso era uma boa história. “Julieta leva um fora e fica com Páris” nunca teria sido um sucesso.
Fechei os olhos e fiquei à deriva de novo, deixando que minha mente vagasse para longe da peça idiota em que eu não queria mais pensar. Em vez dela, pensei na realidade – em pular do penhasco e no erro insensato que aquilo fora. E não só o penhasco, mas as motos e toda aquela maluquice irresponsável de dublê de cinema. E se
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acontecesse algum acidente comigo? O que seria de Charlie? O ataque cardíaco de Harry colocara tudo em perspectiva para mim. Perspectiva que eu não queria ver, por que – se admitisse a verdade – significaria ter mudado. Eu conseguiria mudar? Talvez. Não seria fácil; na realidade, seria uma desgraça completa desistir de minhas alucinações e tentar ser adulta. Mas talvez eu devesse fazer isso. E talvez conseguisse. Se tivesse Jacob. Não podia decidir naquela hora. Doía demais. Pensei em outro assunto. Imagens de minha proeza impensada da tarde rolaram por minha cabeça enquanto eu tentava encontrar algo agradável em que pensar... A sensação do ar quando caí, a escuridão da água, a surra da correnteza... O rosto de Edward... Demorei-me nisso por um bom tempo. As mãos quentes de Jacob, tentando me fazer voltar à vida... A chuva atirada das nuvens arroxeadas... O estranho fogo nas ondas... Havia algo familiar naquele lampejo de cor acima da água. É claro que não podia ser fogo... Meus pensamentos foram interrompidos pelo barulho de um carro na lama da rua. Ouvi-o parar na frente da casa e suas portas começaram ma se abrir e se fechar. Pensei em me sentar, depois decidi pelo contrário. Era fácil identificar a voz de Billy, mas ele a mantinha incomumente baixa, então era só um murmúrio aborrecido. A porta se abriu e a luz foi acesa. Pisquei, sem enxergar por um instante. Jake acordou assustado, ofegando, e pôs– se de pé num salto. – Desculpe – grunhiu Billy. – Acordamos vocês? Meus olhos focalizaram devagar o rosto dele, e depois, quando consegui ler sua expressão, encheram-se de lágrimas. – Ah, não, Billy! – gemi. Ele assentiu devagar, a expressão dura de pesar. Jake correu até o pai e pegou sua mão. De repente, a dor tomou seu rosto como o de uma criança – pareceu estranho, no alto daquele corpo de homem.
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Sam estava bem atrás de Billy, empurrando a cadeira pela porta. Sua serenidade habitual sumira no rosto agoniado. – Lamento tanto – sussurrei. Billy assentiu. – Vai ficar difícil por aqui. – Onde está Charlie? – Seu pai ainda está no hospital, com Sue. Há muitas... providências a serem tomadas. Engoli em seco. – É melhor eu voltar lá – murmurou Sam, e ele saiu rapidamente. Billy afastou sua mão da de Jacob, passou pela cozinha e foi para o quarto. Jake o encarou por um minuto, depois voltou a se sentar no chão a meu lado. Colocou o rosto nas mãos. Afaguei seus ombros, desejando conseguir pensar em algo para dizer. Depois de um longo tempo, Jacob pegou minha mão e a levou ao rosto. – Como está se sentindo? Você está bem? Eu devia ter levado você a um médico ou coisa assim. – Ele suspirou. – Não se preocupe comigo – grasnei. Ele girou a cabeça para me olhar. Seus olhos estavam vermelhos. – Você não parece muito bem. – Acho que também não me sinto muito bem. – Vou pegar sua picape e levá-la para casa... Convém estar lá quando Charlie voltar. – Tudo bem. Fiquei apática no sofá enquanto esperava por ele. Billy estava em silêncio no outro cômodo. Eu me sentia uma enxerida, olhando pelas frestas para uma tristeza que não era minha.
Jake não demorou muito. O ronco do motor da picape interrompeu o silêncio antes do que eu esperava. Sem dizer nada, ele me ajudou a sair do sofá, mantendo o braço em meu ombro quando o ar frio do lado de fora me fez tremer. Assumiu o banco do motorista
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sem pedir e me puxou para junto de si, para manter o braço firme à minha volta. Encostei a cabeça em seu peito. – Como você vai para casa? – perguntei. – Não vou. Ainda não pegamos a sanguessuga, lembra? Meu tremor seguinte nada teve a ver com o frio. Depois disso, a viagem foi silenciosa. O ar gelado me despertou. Minha mente estava alerta, funcionando muito bem e muito rápido. E se acontecesse? Qual era a atitude certa a tomar? Agora eu não conseguia imaginar minha vida sem Jacob – eu me encolhia de medo só de tentar pensar nisso. De certo modo, ele esse tornara essencial para minha sobrevivência. Mas deixar a situação como estava... era crueldade, como Mike dissera? Lembrei-me de ter desejado que Jacob fosse meu irmão. Agora percebia o que eu de fato queria era reivindicá-lo para mim. Não parecia nada fraternal quando ele me segurava daquele jeito. Era apenas gostoso – quente, reconfortante e familiar. Seguro. Jacob era um porto seguro. Eu podia reivindicar meus direitos. Tinha poder para isso. Tinha de dizer tudo a ele, sabia disso. Era a única maneira de ser justa. Precisava explicar direito, para que ele soubesse que eu não estava me recompondo, que ele era bom demais para mim. Ele já sabia que eu estava arrasada, essa parte não o surpreenderia, mas ele precisava saber a extensão disso. Tinha de admitir até mesmo que estava louca – explicar sobre as vozes que ouvia. Ele precisava saber de tudo antes de tomar uma decisão. Mas, mesmo quando reconheci essa necessidade, sabia que ele me aceitaria, apesar de tudo. Ele sequer pensaria duas vezes. Teria de me comprometer com isso – comprometer o máximo de mim que ainda restava, cada um de meus fragmentos. Era a única maneira de ser justa com Jacob. Será que eu faria isso? Conseguiria?
Seria tão errado tentar fazer Jacob feliz? Mesmo que o amor que eu sentia por ele não passasse de um eco fraco do que eu era capaz de amar, mesmo que meu coração estivesse muito longe,
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vagando e lamentando por meu Romeu volúvel, seria assim tão errado? Jacob parou o carro em frente à casa escura e desligou o motor, então, de repente, fez-se silêncio. Como tantas outras vezes, ele agora parecia estar sintonizado com meus pensamentos. Ele passou o outro braço em mim, apertando-me contra seu peito, prendendo-me a ele. Mais uma vez, era gostoso. Quase como ser uma pessoa inteira de novo. Achei que Jake estivesse pensando em Harry, mas ele falou e sua voz tinha um tom de desculpas. – Me perdoe. Sei que você não sente o mesmo que eu sinto, Bells. Juro que não ligo. Só estou tão feliz por você estar bem que poderia até cantar... E isso é uma coisa que ninguém quer ouvir. – Ele soltou seu riso rouco em minha orelha. Minha respiração se acelerou um pouco, arranhando as paredes da garganta como areia. Edward, embora indiferente, não gostaria que, dadas as circunstâncias, eu fosse o mais feliz possível? Não restaria amizade suficiente para ele querer o melhor para mim? Achei que sim. Ele não me negaria isso: dar ao meu amigo Jacob só um bocadinho do amor que ele não queria. Afinal, não era o mesmo amor. Jake apertou o rosto quente contra minha cabeça. Se eu virasse o rosto de lado – se colocasse meus lábios em seu ombro nu... Eu sabia exatamente, sem dúvida alguma, o que viria a seguir. Seria muito fácil. Não haveria necessidade de explicações naquela noite. Mas eu conseguiria fazer isso? Conseguiria trair meu coração ausente para salvar minha vida patética? Borboletas assaltaram meu estômago quando pensei em virar a cabeça. E depois, tão clara como se eu corresse um perigo imediato, a voz aveludada de Edward sussurrou em meu ouvido. “Seja feliz”, disse-me. Fiquei paralisada.
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Jacob sentiu-me enrijecer e me soltou automaticamente, estendendo a mão para a porta. Espere, eu queria dizer. Só um minuto. Mas eu ainda estava paralisada, ouvindo o eco da voz de Edward em minha cabeça. O ar frio da tempestade soprou pela cabine da picape. – OH! – A respiração escapou de Jacob como se alguém tivesse socado seu estômago. – Mas que droga! Ele bateu a porta e girou a chave na ignição no mesmo instante. As mãos tremiam tanto que não sei como ele conseguiu. – Que foi? Ele acelerou demais o motor; o carro engasgou e morreu. – Vampiro – ele soltou. O sangue fugiu de minha cabeça e me deixou tonta. – Como você sabe? – Porque posso sentir o cheiro! Droga! Os olhos de Jacob estavam desvairados, disparando pela rua escura. Ele mal parecia perceber os tremores que percorriam seu corpo.– Me transformar ou tirá-la daqui? – sibilou para si mesmo. Ele me olhou por uma fração de segundo, vendo meus olhos apavorados e o rosto branco, depois olhou a rua de novo. – Muito bem. Tirar você daqui. O motor pegou com um ronco. Os pneus cantaram enquanto ele manobrava, virando para nossa única rota de fuga. Os faróis varreram a calçada, iluminando a linha da floresta nos fundos, e finalmente refletiram num carro estacionado do outro lado da rua. – Pare! – disse ofegante. Era um carro preto – um carro que eu conhecia. Eu podia não entender nada de automóveis, mas conhecia tudo daquele carro em particular. Era um Mercedes S55 AMG. Eu sabia a potência e a cor de seu interior. Sabia a sensação do motor poderoso roncando no chassi. Conhecia o cheiro penetrante dos bancos de couro e sabia como os vidros muito escuros faziam o meio-dia parecer o crepúsculo através daquelas janelas. Era o carro de Carlisle.
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– Pare! – pedi de novo, dessa vez mais alto, porque Jacob disparava com o carro rua abaixo. – O quê?! – Não é Victoria. Pare, pare! Quero voltar. Ele pisou no freio com tanta força que tive de segurar no painel.– O quê? – perguntou, estupefato. Ele me encarou com pavor nos olhos. – É o carro de Carlisle! São os Cullen. Eu conheço o carro. Ele me olhou inexpressivamente e um tremor violento sacudiu seu corpo. – Ei, calma, Jake. Está tudo bem. Não há perigo, entendeu? Relaxe. – É, calma. – Ele ofegou, baixando a cabeça e fechando os olhos. Enquanto ele se concentrava em não explodir num lobo, olhei o carro preto pelo vidro traseiro. Era só Carlisle, disse a mim mesma. Não espere mais do que isso. Talvez Esme... Pare agora mesmo, disse a mim mesma. Só Carlisle. Isso já é muito. Mais do que eu esperava ter de novo. – Tem um vampiro na sua casa – sibilou Jacob. – E você quer voltar?Olhei para ele, sem querer desviar os olhos do Mercedes – com medo de que ele desaparecesse no segundo em que eu virasse a cabeça. – Claro – eu disse, minha voz vazia devido à surpresa com a pergunta dele. Era claro que eu queria voltar. A expressão de Jacob enrijeceu enquanto eu o fitava, congelando na máscara amarga que eu pensava ter ido embora para sempre. Pouco antes de ele colocar a máscara, percebi o espasmo de traição que cintilou em seus olhos. Suas mãos ainda tremiam. Ele parecia dez anos mais velho que eu. Ele respirou fundo. – Tem certeza de que não é um truque? – perguntou numa voz lenta e pesada. – Não é um truque. É Carlisle. Me leve de volta!
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Um tremor percorreu seus ombros largos, mas os olhos estavam fixos e sem emoção. – Não. – Jake, está tudo bem... – Não. Volte sozinha, Bella. Sua voz foi como um tapa – eu me encolhi quando o som me atingiu. Seu maxilar se contraía e relaxava. – Olhe, Bella – disse ele na mesma voz dura. – Não posso voltar. Com ou sem pacto, há um inimigo meu lá. – Não é assim... – Tenho que contar a Sam agora. Isso muda a situação. Não podemos ser pegos no território deles. – Jake, isso não é uma guerra! Ele não me ouviu. Colocou o carro em ponto morto e pulou fora, o motor ligado. – Tchau, Bella – gritou por sobre o ombro. – Espero realmente que você não morra. Jake disparou para o escuro, tremendo tanto que sua silhueta parecia borrada; desapareceu antes que eu pudesse abrir a boca para chamá-lo de volta. O remorso me prendeu no banco do carro por um longo segundo. O que eu acabara de fazer com Jacob? Mas não pôde me prender por muito tempo. Escorreguei pelo banco e engatei a marcha no carro. Minhas mãos tremiam quase tanto quanto as de Jake, e precisei de um minuto de concentração. Depois manobrei a picape com cuidado e voltei para casa. Estava muito escuro quando apaguei os faróis. Charlie tinha saído com tanta pressa que esquecera de deixar a luz da varanda acesa. Senti uma pontada de dúvida, olhando a casa imersa nas sombras. E se fosse mesmo um truque? Olhei de novo e carro preto, quase invisível na noite. Não. Eu conhecia aquele carro.
Mesmo assim, minhas mãos tremiam ainda mais do que antes quando peguei a chave no alto da porta. Quando segurei a maçaneta
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para destrancá-la, ela girou facilmente em minha mão. Deixei a porta se abrir. O corredor estava escuro. Quis gritar uma saudação, mas minha garganta estava seca demais. Eu parecia nem conseguir respirar direito. Dei um passo para dentro e tateei em busca do interruptor. Estava muito escuro – como a água negra... Onde estava o interruptor? Exatamente como a água negra, como a chama laranja bruxuleando de maneira impossível. Chama que não podia ser fogo, mas o quê...? Meus dedos percorreram a parede, ainda procurando, ainda tremendo... De repente, algo que Jacob dissera à tarde ecoou em minha cabeça, enfim eu entendia... Ela fugiu para a água, disse ele. Nela os sanguessugas têm vantagem. Foi por isso que corri para casa... Tive medo de que ela voltasse a nado. Minha mão ficou paralisada em sua busca, todo o meu corpo imóvel, enquanto eu percebia por que reconhecera a estranha cor laranja na água. O cabelo de Victoria, esvoaçando caótico ao vento, a cor do fogo...Ela estivera ali. Bem ali, na reserva, comigo e com Jacob. Se Sam não estivesse lá, se estivéssemos só os dois...? Eu não conseguia respirar nem me mexer. A luz se acendeu, embora minha mão paralisada ainda não tivesse encontrado o interruptor. Pestanejei na claridade repentina e vi que havia alguém ali, esperando por mim.



17. VISITANTE 

Imóvel e branca de uma forma que não era natural, com os grandes olhos escuros atentos em meu rosto, minha visitante esperava completamente parada no meio do corredor, linda além da imaginação. Meus joelhos tremeram por um segundo e eu quase caí. Depois me atirei para ela. – Alice, ah, Alice! – gritei, enquanto me jogava. Tinha esquecido como Alice era dura; era como correr direto para um muro de cimento. – Bella? – havia um misto estranho de alívio e confusão em sua voz. Abracei-a, ofegando, tentando sentir o máximo possível o cheiro de sua pele. Não era igual a nada – não era floral nem picante, nem cítrico nem almiscarado. Nenhum perfume no mundo podia se comparar àquilo. Minha memória não lhe fazia justiça. Não percebi quando o ofegar se transformou em algo mais – só vi que estava chorando quando Alice me arrastou para o sofá da sala e me colocou em seu colo. Era como me enroscar numa pedra fria, ma uma pedra que contornava confortavelmente o formato de meu corpo. Ela afagou minhas costas num ritmo suave e esperou que eu me controlasse. – Eu... Desculpe – balbuciei. – Estou tão... feliz... por ver você! – Está tudo bem, Bella. Está tudo bem. – Sim – chorei. E pela primeira vez parecia estar mesmo. Alice suspirou. – Tinha me esquecido de como você é cheia de vida – disse ela, e sua voz era de reprovação. Olhei-a através dos olhos chorosos. O pescoço de Alice estava rígido, afastando-se de mim, os lábios apertados com firmeza. Seus olhos estavam negros como breu.
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– Ah! – ofeguei quando percebi o problema. Ela estava com sede. E eu tinha um cheiro apetitoso. Já havia algum tempo que eu não precisava pensar nesse tipo de coisa. – Desculpe. – A culpa é minha. Faz muito tempo que não caço. Eu não devia ficar com tanta sede. Mas hoje estava com pressa. – O olhar que ela me dirigiu depois foi feroz. – Por falar nisso, poderia me explicar como você está viva? Isso chamou minha atenção num instante e o choro cessou. Logo percebi o que devia ter acontecido e por que Alice estava ali. Engoli em seco com ruído. – Você me viu cair. – Não – discordou ela, semicerrando olhos. – Vi você pular. Franzi os lábios ao tentar pensar numa explicação que não parecesse maluca. Alice sacudiu a cabeça. – Eu disse a ele que isso ia acontecer, mas ele não acreditou em mim. “A Bella prometeu.” – A imitação era tão perfeita que fiquei paralisada de choque enquanto a dor rasgava meu peito. – “Não fique olhando o futuro dela também.” – Ela continuou a citá-lo. – “Já causamos muitos danos.” Mas não estar olhando não quer dizer que eu não veja – continuou ela. – Eu não a estava vigiando, eu juro, Bella. Mas já estou sintonizada em você... Quando a vi pular, nem pensei, só peguei um avião. Sabia que chegaria tarde demais, mas não podia não fazer nada. Então cheguei aqui, pensando que talvez pudesse ajudar Charlie de alguma maneira, e você apareceu de carro. Ela sacudiu a cabeça, desta vez confusa. Sua voz era tensa. – Eu a vi entrar na água e esperei que saísse, mas isso não aconteceu. O que houve? E como você pôde fazer isso com Charlie? Não pára para pensar no que causaria a ele? E a meu irmão? Você tem alguma idéia do que Edward... Então a interrompi, assim que disse o nome dele. Eu a deixaria continuar, mesmo depois de ter percebido que ela estava entendendo errado, só para ouvir o perfeito tom de sino de sua voz. Mas era hora de interromper. – Alice, eu não estava tentando me suicidar.
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Ela me olhou, em dúvida. – Está dizendo que não pulou de um penhasco? – Não, mas... – Fiz uma careta. – Era só para me divertir. Sua expressão endureceu. – Vi alguns amigos de Jacob pulando do penhasco – insisti. – Pareceu... divertido e eu estava entediada... Ela esperou. – Não pensei que a tempestade fosse afetar a correnteza. Na verdade, nem pensei muito na água. Alice não se convenceu. Estava claro que ela ainda pensava que eu tentara me matar. Decidi mudar o rumo da conversa. – Então, se me viu mergulhando, por que não viu Jacob? Ela inclinou a cabeça, distraída. Eu continuei. – É verdade que eu provavelmente teria me afogado se Jacob não tivesse pulado atrás de mim. Bom, tudo bem, não há dúvidas disso. Mas ele pulou e me tirou de lá, e acho que me levou de volta à praia, mas a essa altura eu estava meio desligada. Não devo ter ficado mais de um minuto embaixo da água até ele me pegar. Como você não viu isso? Ela franziu o cenho, perplexa. – Alguém tirou você de lá? – Sim. Jacob me salvou. Olhei com curiosidade enquanto um leque enigmático de emoções passava por seu rosto. Algo a estava incomodando – sua visão incompleta? Mas eu não tinha certeza. Depois, deliberadamente, ela se inclinou e farejou meu ombro. Fiquei paralisada. – Não seja ridícula – murmurou ela, farejando-me mais um pouco.–O que está fazendo? Ela ignorou minha pergunta. – Quem estava com você lá fora agora mesmo? Parecia que estavam discutindo.
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– Jacob Black. Ele é... meio que meu melhor amigo, eu acho. Pelo menos era... – Pensei na raiva de Jacob, na expressão de traído. E me perguntei o que ele era para mim. Alice assentiu, aparentando preocupação. – O que foi? – Não sei – disse ela. – Não tenho certeza do que isso significa. – Bom, pelo menos não estou morta. Ela revirou os olhos. – Ele foi um tolo por pensar que você podia sobreviver sozinha. Nunca vi ninguém com tamanha tendência à idiotice letal. – Eu sobrevivi – assinalei. Ela estava pensando em outra coisa. – Então, se a correnteza era muito forte para você, como esse Jacob conseguiu? – Jacob é... forte. Ela ouviu a relutância em minha voz e suas sobrancelhas se ergueram. Mordi o lábio por um segundo. Era um segredo ou não? E, se fosse, a quem eu devia maior fidelidade? A Jacob ou a Alice? Era difícil demais guardar segredos, concluí. Jacob sabia de tudo, então por que Alice não poderia saber também? – Olhe, bom, ele é... algo como um lobisomem – admiti depressa. – Os quileutes se transformam em lobos quando há vampiros por perto. Eles conhecem Carlisle de muito tempo atrás. Você estava com Carlisle na época? Alice olhou pasma para mim por um momento, depois se recuperou, piscando rapidamente. – Bom, acho que isso explica o cheiro – murmurou ela. – Mas explicaria o que eu não vi? – Ela franziu o cenho, a testa de porcelana se vincando. – O cheiro? – repeti. – Você esta com um cheiro horrível – disse ela distraída, ainda de testa franzida. – Um lobisomem? Tem certeza?
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– Muita – garanti, tremendo ao me lembrar de Paul e de Jacob lutando na estrada. – Acho que você não estava com Carlisle na última vez que houve lobisomens aqui em Forks, não é? – Não. Ainda não o tinha encontrado. – Alice estava perdida em pensamentos. De repente, seus olhos se arregalaram e ela se virou para me fitar com uma expressão de choque. – Seu melhor amigo é um lobisomem? Eu assenti num tom tímido. – Há quanto tempo? – Não muito – disse num tom defensivo. – Ele só virou lobisomem há algumas semanas. Ela fez uma cara feia para mim. – Um lobisomem jovem? Pior ainda! Edward tinha razão... Você é um imã para o perigo. Não devia ficar longe de problemas? – Não há nada de errado com os lobisomens – grunhi, magoada por seu tom crítico. – Até que eles se zanguem. – Ela sacudiu a cabeça categoricamente. – Faça como bem entender, Bella. Qualquer outro seria melhor depois que os vampiros saíram da cidade. Mas você tem que começar a sair com os primeiros monstros que encontra. Eu não queria discutir com Alice – ainda estava tremendo de alegria por ela estar realmente ali de verdade, por eu poder tocar sua pele de mármore e ouvir sua voz de sino dos ventos – mas ela estava completamente equivocada. – Não, Alice, os vampiros não foram embora... Quer dizer, não todos. É esse o problema. Se não fosse os lobisomens, Victoria já teria me pegado. Bem, se não fosse por Jake e os amigos dele, acho que Laurent teria me pegado antes dela, então... – Victoria? – sibilou ela. – Laurent? Eu assenti, um tanto alarmada pela expressão de seus olhos negros. Apontei para o peito. – Ímã para o perigo, lembra? Ela sacudiu a cabeça de novo. – Conte tudo... Desde o começo.
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Eu atenuei o começo, pulando a parte das motos e das vozes, mas contei-lhe tudo mais até a malfadada aventura daquele dia. Alice não gostou de minha explicação boba para o tédio e o penhasco, então acelerei para a chama estranha que vira na água e o que achava que significava. Nessa parte do relato, os olhos dela se estreitaram quase em fendas. Era estranho vê-la tão... tão perigosa – como uma vampira. Engoli em seco e continuei com o restante sobre Harry. Ela ouviu minha história sem interromper. De vez em quando, sacudia a cabeça, e o vinco em sua testa se aprofundava até dar a impressão de estar permanentemente entalhado no mármore de sua pele. Ela não falou e, por fim, fiquei em silêncio, de novo tomada de tristeza pelo falecimento de Harry. Pensei em Charlie; ele chegaria logo em casa. Em que condições estaria? – Nossa partida não lhe fez nenhum bem, não foi? – murmurou Alice.Dei uma risada – foi um som um tanto histérico. – Mas isso nunca teve importância, não é? Até parece que vocês partiram para o meu bem. Por um momento, Alice olhou para o chão. – Bem... Acho que hoje agi por impulso. Não devia ter me intrometido. Pude sentir o sangue fugindo de meu rosto. Meu estômago despencou. – Não vá, Alice – sussurrei. Meus dedos se fecharam na gola de sua blusa branca e comecei a sentir falta de ar. – Por favor, não me deixe. Os olhos dela se arregalaram. – Tudo bem – disse ela, enunciando cada palavra com vagarosa precisão. – Não vou a lugar nenhum esta noite. Respire fundo. Tentei obedecer, embora quase não conseguisse localizar meus pulmões. Ela olhava meu rosto enquanto eu me concentrava em minha respiração. Alice esperou para comentar até que eu estivesse mais calma.–Você está horrível, Bella.
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– Eu me afoguei hoje – lembrei a ela. – É mais do que isso. Você está péssima. Eu me encolhi. – Olhe, estou fazendo o melhor que posso. – O que quer dizer? – Não tem sido fácil. Estou me esforçando. Ela franziu o cenho. – Eu disse a ele – falou consigo mesma. – Alice – suspirei –, o que você achava que ia encontrar? Quer dizer, fora a minha morte? Esperava me ver saltitando por aí e assoviando musiquinhas animadas? Você me conhece bem. – Conheço. Mas eu tinha esperanças. – Então acho que a idiotice não é exclusividade minha. O telefone tocou. – Deve ser Charlie – eu disse, cambaleando de pé. Peguei a mão de pedra de Alice e a arrastei comigo até a cozinha. Eu não ia deixar que ela saísse de minha vista. – Charlie? – atendi ao telefone. – Não, sou eu – disse Jacob. – Jake! Alice examinou minha expressão. – Só queria saber se ainda está viva – disse Jacob com amargura. – Eu estou bem. Eu lhe disse que não era... – Tá. Entendi. Tchau. Jacob desligou o telefone. Eu suspirei e joguei a cabeça para trás, encarando o teto. – Isso vai ser um problema. Alice apertou minha mão. – Eles não estão animados com minha presença aqui. – Não especialmente. Mas não é da conta deles. Alice passou o braço à minha volta. – Então, o que vamos fazer agora? – refletiu. Ela parecia falar consigo mesma por um momento. – Providências a tomar. Pontas soltas a amarrar.
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– Que providências? Seu rosto de repente era cauteloso. – Não sei bem... Preciso ver Carlisle. Ela iria embora logo? Meu estômago desabou. – Não pode ficar? – pedi. – Por favor. Só um pouquinho. Senti tanto sua falta. – Minha voz falhou. – Se acha que é uma boa idéia. – Os olhos dela estavam tristes. – Acho. Você pode ficar aqui... Charlie ia adorar. – Eu tenho uma casa, Bella. Assenti, decepcionada porém resignada. Ela hesitou, avaliando-me. – Bem, preciso pelo menos pegar uma mala de roupas. Eu a abracei. – Alice, você é o máximo! – E acho que vou precisar caçar. Imediatamente – acrescentou ela numa voz tensa. – Epa. – Recuei um passo. – Pode ficar longe de problemas por uma hora? – perguntou ela, descrente. Depois, antes que eu pudesse responder, ergueu um dedo e fechou os olhos. Seu rosto ficou suave e inexpressivo por uns segundos. Os olhos se abriram e ela respondeu à própria pergunta. – Sim, você ficará bem. Pelo menos esta noite. – Ela fez uma careta. Mesmo fazendo caretas, parecia um anjo. – Vai voltar? – perguntei, numa voz fininha. – Prometo... Daqui a uma hora. Olhei o relógio acima da mesa da cozinha. Ela riu e se inclinou rapidamente para me dar um beijo no rosto. Depois partiu. Respirei fundo. Alice voltaria. De repente me senti muito melhor. Eu tinha muito o que fazer para me manter ocupada enquanto esperava. Um banho sem dúvida era o primeiro compromisso na agenda. Cheirei meus ombros enquanto me despia, ma não consegui sentir nada além de cheiro de mar e algas marinhas. Perguntei-me o que Alice quis dizer sobre eu estar cheirando mal.
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Depois do banho, voltei para a cozinha. Não encontrei nenhum sinal de que Charlie comera recentemente, e ele decerto estaria faminto quando voltasse. Cantarolei comigo mesma, desafinada, ao zanzar pela cozinha. Enquanto o guisado da terça-feira rodava no microondas, preparei o sofá com lençóis e um travesseiro velho. Alice não precisaria daquilo, mas Charlie precisaria ver. Tive o cuidado de não olhar o relógio. Não havia motivo para começar a entrar em pânico; Alice prometera. Comi às pressas, sem sentir o gosto do jantar – só sentia a dor enquanto a comida descia por minha garganta áspera. Estava mesmo era com sede; quando terminei, devia ter bebido quase dois litros de água. A quantidade de sal em meu organismo me desidratara. Fui tentar ver tevê enquanto esperava. Alice já estava ali, sentada na cama improvisada. Seus olhos eram de um caramelo líquido. Ela sorriu e deu um tapinha no travesseiro. – Valeu. – Você chegou cedo – eu disse, exultante. Sentei-me ao lado dela e encostei a cabeça em seu ombro. Ela pôs os braços frios em volta de mim e suspirou. – Bella. O que vamos fazer com você? – Não sei – admiti. – Eu tenho mesmo tentado ao máximo. – Acredito. Ficamos em silêncio. – Ele... ele... – Respirei fundo. Era mais difícil dizer o nome em voz alta, ainda que eu já fosse capaz de pensar nele. – Edward sabe que está aqui? – Não pude deixar de perguntar. Afinal, a dor era minha. Lidaria com ela quando Alice fosse embora, prometi a mim mesma, e senti náusea ao pensar nisso. – Não. Só havia um jeito de isso ser verdade. – Ele não está com Esme e Carlisle? – Ele os visita de meses em meses.
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– Ah! – Ele ainda devia estar desfrutando de suas distrações. Concentrei minha curiosidade num assunto mais seguro. – Você disse que veio de avião... De onde veio? – Eu estava em Denali. Visitando a família de Tanya. – Jasper está aqui? Ele veio com você? Ela sacudiu a cabeça. – Ele não aprova que eu interfira. Nós prometemos... – Ela se interrompeu, depois o tom de voz mudou. – E você acha que Charlie não vai se importar por eu estar aqui? – perguntou, parecendo preocupada. – Charlie acha você maravilhosa, Alice. – Bom, isso nós estamos prestes a descobrir. Com precisão, alguns segundos depois eu ouvi a viatura parar na entrada de carros. Dei um salto e corri para abrir a porta. Charlie se arrastava devagar pela calçada, a cabeça baixa e os ombros caídos. Avancei para me encontrar com ele; ele só me viu quando abracei sua cintura. Ele retribuiu o abraço impetuosamente. – Lamento muito por Harry, pai. – Vou sentir muita saudade dele – murmurou Charlie. – Como está Sue? – Ela parece tonta, como se ainda não tivesse assimilado o fato. Sam vai ficar com ela... – O volume de sua voz diminuiu e sumiu. – Aquelas pobres crianças. Leah é só um ano mais velha do que você, e Seth só tem 14... – Ele sacudiu a cabeça. Ele manteve os braços firmes em volta de mim quando voltou a andar rumo à porta. – Hmmm, pai? – Achei melhor alertá-lo. – Não vai adivinhar quem está aqui. Ele me olhou sem expressão. Virou a cabeça e viu o Mercedes do outro lado da rua, a luz da varanda refletida na pintura preta e reluzente. Antes que ele pudesse reagir, Alice estava na soleira da porta.– Oi, Charlie – disse ela numa voz contida. – Desculpe por ter vindo em má hora.
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– Alice Cullen? – Ele olhou a figura magra diante dele como se duvidasse do que seus olhos lhe diziam. – Alice, é você? – Sou eu – confirmou ela. – Estava por perto. – Carlisle está...? – Não, estou sozinha. Alice e eu sabíamos que ele na verdade não estava perguntando por Carlisle. O braço dele apertou mais forte meu ombro. – Ela pode ficar aqui, não pode? – pedi. – Já convidei. – Claro que sim – disse Charlie mecanicamente. – Adoraríamos se ficasse, Alice. – Obrigada, Charlie. Sei que é um momento terrível. – Não, está tudo bem. Vou ficar muito ocupado fazendo o que puder pela família de Harry; será ótimo para Bella ter alguma companhia. – Tem jantar para você na mesa, pai – eu lhe disse. – Obrigado, Bell. – Ele me abraçou mais uma vez antes de se arrastar para a cozinha. Alice voltou ao sofá e eu a segui. Desta vez, foi ela quem me puxou para o seu ombro. – Você parece cansada. – É – concordei, e dei de ombros. – É isso que as experiências de quase-morte fazem comigo... E, então, o que Carlisle pensa de você estar aqui? – Ele não sabe. Ele e Esme estavam numa viagem de caça. Vou saber dele daqui a alguns dias, quando ele voltar. – Mas você não vai contar a ele... Quando ele aparecer de novo? – perguntei. Ela sabia que agora eu não estava falando de Carlisle. – Não. Ele arrancaria minha cabeça – disse Alice, carrancuda. Soltei uma risada, depois suspirei.
Não queria dormir. Queria ficar acordada a noite toda conversando com Alice. E para mim não fazia sentido estar cansada, depois de ter ficado o dia inteiro no sofá de Jacob. Mas o afogamento realmente exigira muito de mim, e meus olhos não iam ficar abertos.
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Pousei a cabeça em seu ombro de pedra e vaguei para um esquecimento mais tranqüilo do que eu podia esperar. Acordei cedo, de um sono profundo e sem sonhos, sentindo-me descansada, porém tensa. Eu estava no sofá, enfiada sob os cobertores que colocara ali para Alice, e pude ouvi-la falando com Charlie na cozinha. Parecia que Charlie preparava o café-da-manhã para ela. – Foi tão ruim, Charlie? – perguntou Alice de um modo delicado, e a princípio pensei que eles estivessem falando dos Clearwater. Charlie suspirou. – Muito ruim. – Conte-me tudo. Quero saber exatamente o que aconteceu quando partimos. Houve uma pausa enquanto uma porta de armário era fechada e um queimador era apagado no fogão. Esperei, encolhendo-me. – Nunca me senti tão impotente – começou Charlie devagar. – Não sabia o que fazer. Aquela primeira semana... Pensei que ia ter que hospitalizá-la. Ela não comia nem bebia nada, não queria se mexer. O Dr. Gerandy despejava palavras como “catatônica”, mas eu não o deixei subir para vê-la. Tive medo de que isso a assustasse. – Ela superou? – Pedi para Renée vir e levá-la para a Flórida. Eu simplesmente não queria ser o responsável... Se ela tivesse de ir para um hospital ou coisa assim. Pensei que ficar com a mãe a ajudaria. Mas quando começamos a guardar as roupas dela, ela despertou, agitadíssima. Nunca tinha visto Bella ter um ataque daquele. Ela nunca foi de ter acessos de raiva, mas, meu Deus, ficou furiosa. Atirava as roupas por toda parte e gritava que não podíamos obrigá-la a ir embora... E depois, enfim, começou a chorar. Pensei que aquele seria o momento da virada. Não discuti quando ela insistiu em ficar aqui... e ela parecia ter melhorado no começo... Charlie parou. Era difícil ouvir aquilo, sabendo quanta dor eu causara a ele.
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– Mas? – incitou Alice. – Ela voltou à escola e ao trabalho, comia, dormia e fazia o dever de casa. Respondia quando alguém lhe fazia uma pergunta direta. Mas estava... vazia. Seus olhos eram inexpressivos. Havia um monte de pequenos detalhes... Ela não ouvia mais música; encontrei um monte de CDs quebrados no lixo. Ela não lia; não ficava na sala quando a tevê estava ligada, não que antes ela visse muita tevê. Finalmente eu entendi... Ela estava evitando tudo o que podia lembrá-la... dele. Charlie continuou: – Mal conversávamos; estava tão preocupado em dizer algo que a aborrecesse... Coisas mínimas a faziam se retrair... E ela nunca dizia nada espontaneamente. Só respondia se eu lhe fizesse uma pergunta. Ficava sozinha o tempo todo. Não retornava os telefonemas dos amigos e depois de um tempo eles pararam de ligar. Parecia a noite dos mortos-vivos aqui. Eu ainda a ouço gritando enquanto dorme... Quase pude vê-lo tremendo. Também tremi, lembrando. E depois suspirei. Eu não o enganara em nada, nem por um segundo. – Sinto muito, Charlie – disse Alice, a voz abatida. – Não é culpa sua. – O modo como disse isso deixou perfeitamente claro que ele considerava alguém responsável. – Você sempre foi uma boa amiga para ela. – Mas agora ela parece melhor.
– É. Desde que começou a passar o tempo com Jacob Black, percebi uma grande melhora. Ela tem alguma cor no rosto quando chega em casa, um pouco de luz nos olhos. Está mais feliz. – Ele parou e sua voz era diferente quando voltou a falar. – Ele é mais ou menos um ano mais novo do que ela, e sei que ela o considerava um amigo, mas acho que talvez agora haja algo mais, ou, de qualquer modo, que estejam indo nessa direção. – Charlie disse isso num tom quase hostil. Era um aviso, não para Alice, mas para que ela passasse adiante. – Jake é maduro para a idade dele – continuou, ainda na defensiva. – Ele cuida da saúde do pai como Bella cuidou da mãe emocionalmente. Isso o fez amadurecer. É também um garoto
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bonito... Herdou da mãe. Ele é bom para Bella, sabe – insistiu Charlie. – Então é bom que ela o tenha – concordou Alice. Charlie soltou um suspiro forte, logo frustrado pela ausência de oposição. – Tudo bem, então talvez eu esteja exagerando. Eu não sei... Mesmo com Jacob, de vez em quando vejo alguma coisa nos olhos dela e me pergunto se cheguei a entender a dor que ela realmente sente. Não é normal, Alice, e isso... me assusta. Não é nada normal. Não é como se alguém... a tivesse deixado, mas como se tivesse morrido. – Sua voz falhou. Era mesmo como se alguém tivesse morrido – como se eu tivesse morrido. Porque foi mais do que apenas perder o mais verdadeiro dos amores verdadeiros, como se isso não fosse o bastante para matar alguém. Também foi a perda de todo um futuro, de toda uma família – toda a vida que eu escolhera... Charlie continuou num tom desesperançado. – Não sei se ela vai superar... Não tenho certeza se é da natureza dela se curar de uma situação dessas. Ela sempre foi uma criaturinha decidida. Não deixa nada de lado, não muda de idéia. – Ela é uma figura – concordou Alice com a voz seca. – E, Alice... – Charlie hesitou. – Agora, você sabe como eu gosto de você, e sei que ela está feliz por vê-la, mas... fico meio preocupado com o que sua visita pode provocar nela. – Eu também, Charlie, eu também. Eu não teria vindo se soubesse disso. Desculpe. – Não se desculpe, querida. Quem sabe? Talvez seja bom para ela. – Espero que tenha razão. Houve uma longa pausa enquanto garfos raspavam em pratos e Charlie comia. Perguntei-me onde Alice estava escondendo sua comida. – Alice, tenho que lhe fazer uma pergunta – disse Charlie, sem jeito. Alice estava calma.
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– Pode perguntar. – Ele não virá visitá-la também, não é? – Pude ouvir a raiva reprimida na voz de Charlie. Alice respondeu num tom suave e tranqüilizador. – Ele nem sabe que estou aqui. Da última vez em que nos falamos, ele estava na América do Sul. Enrijeci quando ouvi essa nova informação e fiquei mais atenta.– Já é alguma coisa – bufou Charlie. – Bom, espero que ele esteja se divertindo. Pela primeira vez a voz de Alice foi um tanto dura. – Eu não faria suposições, Charlie. Eu sabia como os olhos dela lampejavam quando ela usava esse tom. Uma cadeira foi afastada da mesa, fazendo um som alto ao arrastar no piso. Imaginei Charlie se levantando; não seria possível Alice fazer um barulho daqueles. A torneira foi aberta, esparramando água num prato. Não parecia que eles iam falar mais sobre Edward, então concluí que estava na hora de acordar. Eu me virei, balançando-me nas molas para que elas guinchassem. Depois bocejei alto. Tudo ficou em silêncio na cozinha. Eu me espreguicei e gemi. – Alice? – perguntei com inocência; minha garganta inflamada ajudou muito na cena. – Estou na cozinha, Bella – Alice respondeu, sem que a voz sugerisse qualquer suspeita de que eu os estivesse ouvindo. Mas ela sabia esconder esse tipo de coisa. Charlie então teve de ir embora – ele estava ajudando Sue Clearwater com os preparativos do enterro. Teria sido um longo dia sem Alice. Ela não falava em partir e eu não perguntei nada. Eu sabia que era inevitável, mas tirei isso de minha cabeça.
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Em vez disso, conversamos sobre a família dela – sobre todos, menos um. Carlisle estava trabalhando à noite em Ithaca e ensinando em meio expediente em Cornell. Esme restaurava uma casa do século XVII, Emmett e Rosalie haviam ido à Europa passar alguns meses em outra lua-de-mel, mas voltariam logo. Jasper também estava em Cornell, desta vez estudando filosofia. E Alice fazia alguma pesquisa pessoal, relacionada com as informações que por acaso eu lhe revelara na primavera passada. Ela conseguira localizar o sanatório onde passou os últimos anos de sua vida humana. A vida de que não tinha lembrança alguma. – Meu nome era Mary Alice Brandon – disse-me em voz baixa. – Eu tinha uma irmã chamada Cynthia. A filha dela... minha sobrinha... ainda está viva em Biloxi. – Descobriu por que eles a colocaram... naquele lugar? – O que leva os pais a um extremo desses? Mesmo que a filha tivesse visões do futuro... Ela se limitou a sacudir a cabeça, os olhos cor de topázio pensativos. – Não descobri muito sobre eles. Vi todos os jornais antigos em micro-filmes. Minha família não era mencionada com freqüência; eles não faziam parte do círculo social que chegava aos jornais. O noivado de meus pais estava lá, e o de Cynthia. – O nome saiu com insegurança de sua boca. – Meu nascimento foi anunciado... e minha morte. Encontrei meu túmulo. Também roubei minha ficha de admissão dos arquivos do antigo sanatório. A data de admissão e a data em minha lápide são as mesmas. Eu não sabia o que dizer e depois de uma curta pausa Alice passou a temas mais leves. Os Cullen agora haviam se reagrupado, com uma exceção, e estavam passando em Denali as férias de primavera de Cornell, com Tanya e sua família. Ouvi com ansiedade exagerada até as notícias mais banais. Ela nunca falou naquele em que eu estava mais interessada, e fiquei grata por isso. Já era o bastante ouvir as histórias da família à qual sonhei pertencer.
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Charlie só voltou depois do anoitecer e parecia mais cansado do que na noite anterior. Ele teria de voltar à reserva de manhã, na primeira hora, para o enterro de Harry, então foi dormir cedo. Eu fiquei no sofá com Alice de novo. Charlie estava quase irreconhecível quando desceu a escada antes de o sol nascer, vestindo um terno antigo que eu nunca o vira usar. O paletó estava aberto; imaginei que era apertado demais para que ele o abotoasse. Sua gravata era um pouco larga para o estilo atual. Ele foi para a porta na ponta dos pés, tentando não nos acordar. Eu o deixei sair, fingindo que dormia, como Alice fez na poltrona. Assim que ele saiu, Alice se sentou. Sob a manta, ela estava vestida, pronta para sair. – E, então, o que vamos fazer hoje? – perguntou ela. – Não sei... Vê alguma coisa interessante acontecendo? Ela sorriu e sacudiu a cabeça. – Mas ainda é cedo. O tempo todo que passei em La Push representou um monte de negligências em casa, e decidi colocar meus deveres em dia. Eu queria fazer algo, qualquer coisa que facilitasse mais a vida de Charlie – talvez ele se sentisse um pouco melhor ao voltar para uma casa limpa e organizada. Comecei pelo banheiro – era o cômodo que mostrava os maiores sinais de desleixo. Enquanto eu trabalhava, Alice ficou encostada na soleira da porta e fazia perguntas indiferentes sobre meus, bom, nossos amigos da escola e o que eles andaram aprontando desde que ela fora embora. Seu rosto era despreocupado e não tinha emoções, mas senti sua reprovação quando ela percebeu que eu pouco podia contar. Ou talvez eu só estivesse com a consciência pesada depois de ouvir a conversa dela com Charlie na manhã do dia anterior. Eu estava literalmente até os cotovelos em desinfetante, esfregando o chão do banheiro, quando a campainha tocou.
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Olhei na mesma hora para Alice e sua expressão era perplexa, quase preocupada, o que era estranho; Alice jamais era pega de surpresa. – Já vai! – gritei na direção da porta, levantando-me e correndo para a pia a fim de lavar meus braços. – Bella – disse Alice com um vestígio de frustração na voz. – Tenho um bom palpite de quem seja e acho que é melhor eu ir embora. – Palpite? – repeti. Desde quando Alice tinha palpites? – Se esta e uma repetição de meu lapso extraordinário de previsão de ontem, então é mais provável que seja Jacob Black ou um dos... amigos dele. Olhei para ela, entendendo tudo. – Você não consegue ver os lobisomens? Ela fez uma careta. – É o que parece. – Ela estava obviamente irritada com esse fato, muito irritada. A campainha tocou de novo – duas vezes mais rápida e mais impaciente. – Não tem que ir a lugar nenhum, Alice. Você chegou primeiro. Ela soltou seu riso baixo prateado – tinha um tom sombrio. – Confie em mim... Não seria uma boa idéia ter Jacob Black e eu no mesmo ambiente. Ela me deu um beijo no rosto rapidamente antes de desaparecer pela porta do quarto de Charlie – e pela janela dos fundos, sem dúvida. A campainha tocou outra vez.
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18. O ENTERRO 

Desci a escada correndo e abri a porta num rompante. Era Jacob, é claro. Mesmo sem ver, Alice era rápida. Ele estava parado a uns dois metros da porta, o nariz franzido de nojo, mas seu rosto era tranqüilo – como uma máscara. Ele não me enganava; eu podia ver o leve tremor de suas mãos. A hostilidade rolava dele em ondas. Trouxe a lembrança daquela tarde medonha em que ele preferiu Sam a mim, e eu senti meu queixo empinar numa reação defensiva. O Rabbit de Jacob estava em ponto morto junto ao meio-fio, com Jared ao volante e Embry no banco do carona. Entendi o que isso significava; eles tinham medo de deixá-lo vir aqui sozinho. Isso me deixou triste e um pouco irritada. Os Cullen não eram assim. – Oi – eu disse por fim, uma vez que ele não falou nada. Jake franziu os lábios, ainda afastado da porta. Seus olhos faiscavam pela frente da casa. Eu cerrei os dentes. – Ela não está aqui. Precisa de alguma coisa? Ele hesitou. – Você está sozinha? – Estou. – Eu suspirei. – Posso falar com você um minutinho? – É claro que você pode, Jacob. Entre. Jacob olhou por sobre o ombro para os amigos no carro. Vi Embry sacudir a cabeça um pouquinho. Por algum motivo, isso me irritou profundamente. Meus dentes trincaram de novo. – Covarde – murmurei.
Os olhos de Jake faiscaram para mim, as sobrancelhas grossas e pretas unindo-se num ângulo furioso acima dos olhos fundos. Seu queixo empinou e ele marchou – não havia outra maneira de
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descrever seu movimento – pela calçada, esbarrando em mim ao passar pela porta. Troquei um olhar com Jared e depois com Embry antes de fechar a porta para eles. Eu não gostava do modo severo como me olhavam; eles realmente pensavam que eu deixaria algo machucar Jacob?Jacob estava no corredor atrás de mim, olhando a bagunça de lençóis na sala de estar. – Festinha do pijama? – perguntou ele, num tom sarcástico. – É – respondi com o mesmo nível de acidez. Eu não gostava de Jacob quando ele agia assim. – O que você tem a ver com isso? Ele franziu o nariz de novo como se sentisse um cheiro desagradável. – Onde está sua “amiga”? – Pude ouvir as aspas em seu tom de voz. – Ela teve algumas coisas para fazer. Olhe, Jacob, o que você quer?Algo na sala parecia deixá-lo mais tenso – seus braços compridos tremiam. Ele não respondeu à minha pergunta. Em vez disso, foi até a cozinha, os olhos inquietos disparando para todo lado. Eu o segui. Ele andava de um lado para outro junto à pequena bancada. – Ei – eu disse, colocando-me no caminho dele. Ele parou de andar e me olhou de cima. – Qual é o seu problema? – Não me agrada ter vindo aqui. Isso me magoou. Eu estremeci e os olhos dele se endureceram. – Então lamento que tenha vindo – murmurei. – Por que não me diz de que precisa? Assim pode ir embora. – Só tenho que lhe fazer algumas perguntas. Não vai demorar muito. Temos que voltar para o enterro. – Tudo bem. Vamos acabar com isso, então. – Eu devia estar exagerando com o antagonismo, mas não queria que ele visse o quanto aquilo me magoava. Eu sabia que não estava sendo justa. Afinal, eu escolhera a sanguessuga em detrimento dele na noite anterior. Eu o magoara primeiro.
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Ele respirou fundo e seus dedos trêmulos de repente ficaram imóveis. Seu rosto se suavizou numa máscara de serenidade. – Um dos Cullen está aqui com você – declarou ele. – Sim. Alice Cullen. Ele assentiu, pensativo. – Quanto tempo ela vai ficar? – O tempo que ela quiser. – A beligerância ainda estava em minha voz. – É um convite em aberto. – Você acha que poderia... por favor... explicar a ela sobre a outra... Victoria? Eu empalideci. – Já contei a ela sobre isso. Ele assentiu. – Precisa saber que só podemos vigiar nosso próprio território com uma Cullen aqui. Você só ficará segura em La Push. Não posso mais protegê-la aqui. – Tudo bem – eu disse em voz baixa. Ele desviou os olhos, fitando a janela dos fundos. Não disse mais nada. – É só isso? Ele respondeu com os olhos fixos na janela. – Só mais uma coisa. Eu esperei, mas Jacob não continuou. – Sim? – incitei finalmente. – Os outros vão voltar? – perguntou ele num tom frio e tranqüilo. Lembrou-me das maneiras sempre calmas de Sam. Jacob estava ficando mais parecido com Sam... Perguntei-me por que isso me incomodava tanto. Agora quem não disse nada fui eu. Ele olhou de novo para mim, perscrutando-me. – E então? – perguntou. Jacob lutava para esconder a tensão por trás de sua expressão serena. – Não. – Eu disse por fim. De má vontade. – Eles não vão voltar.A expressão dele não mudou.
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– Tudo bem. É só isso. Olhei para ele, a irritação reacesa. – Bom, pode ir correndo. Vá dizer a Sam que os monstros apavorantes não vão voltar para pegar vocês. – Tudo bem – repetiu ele, ainda calmo. Aquilo pareceu bastar. Jacob saiu rapidamente da cozinha. Esperei ouvir a porta da frente se abrir, mas nada. Eu podia ouvir o relógio acima do fogão e outra vez fiquei maravilhada com o quão silencioso ele podia ser. Que desastre! Como pude perdê-lo tão completamente em tão pouco tempo? Será que ele me perdoaria quando Alice fosse embora? E se não perdoasse? Encostei-me na bancada e enterrei o rosto nas mãos. Como pudera criar essa confusão toda? Mas o que eu teria feito de diferente? Mesmo percebendo isso agora, eu não podia pensar numa maneira melhor, em nenhuma atitude melhor. – Bella...? – perguntou Jacob numa voz trêmula. Tirei o rosto das mãos ao ver Jacob hesitando na soleira da porta da cozinha; ele não fora embora, como eu havia pensado. Só quando vi as gotas claras cintilando em minhas mãos foi que percebi que estava chorando. A expressão calma de Jacob se fora; sua face era angustiada e insegura. Ele voltou depressa e se colocou na minha frente, baixando a cabeça para que seus olhos ficassem na altura dos meus. – Eu fiz de novo, não foi? – Fez o quê? – perguntei, a voz rouca. – Quebrei minha promessa. Desculpe. – Tudo bem – murmurei. – Desta vez quem começou fui eu. Seu rosto se retorceu. – Eu sabia como você se sentia com relação a isso. Não devia ter me surpreendido em nada. Eu podia ver a revolta em seus olhos. Eu queria explicar como Alice realmente era, defendê-la contra as críticas que ele fazia, mas algo me avisou que esse não era o momento oportuno.
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– Desculpe – limitei-me a dizer de novo. – Não vamos nos preocupar com isso, está bem? Ela só está de visita, não é? Ela vai embora e tudo voltará ao normal. – Não posso ser amiga dos dois as mesmo tempo? – perguntei, minha voz sem esconder nem um grama da mágoa que eu sentia. Ele sacudiu a cabeça devagar. – Não, acho que não pode. Funguei e olhei seus pés grandes. – Mas você vai esperar, não vai? Ainda será meu amigo, mesmo que eu também ame Alice? Não olhei para seu rosto, com medo de ver o que ele achava desta última parte. Ele levou um minuto para responder, então eu provavelmente tivera razão em não olhar. – É, sempre serei seu amigo – disse ele num tom ríspido. – Independentemente de quem você ame. – Promete? – Prometo. Senti os braços dele me envolvendo e me encostei em seu peito, ainda fungando. – Que situação chata. – É. – Depois ele cheirou meu cabelo e disse: – Ai. – O quê? – perguntei. Olhei para ele e vi que eu nariz estava franzido de novo. – Por que todo mundo fica fazendo isso comigo? Eu não estou fedendo! Ele sorriu um pouco. – Esta sim... Está fedendo a eles. Eca. Tão doce... enjoativo de tão doce. E... gelado. Queima meu nariz. – É mesmo? – Isso era estranho. Alice tinha um cheiro extraordinariamente maravilhoso. Para uma humana, pelo menos. – Mas, então, por que Alice também acha que estou fedendo? Com esta, seu sorriso desapareceu. – Arrã. Talvez eu não tenha um cheiro bom para ela também. Arrã.
– Bom, vocês dois têm um cheiro ótimo para mim. – Pousei a cabeça nele de novo. Eu ia sentir uma falta terrível de Jacob quando
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ele saísse. Era um beco sem saída desagradável. Por um lado, eu queria que Alice ficasse para sempre. Eu ia morrer, metaforicamente, quando ela me deixasse. Mas como poderia continuar vivendo sem ver Jake nem por um minuto que fosse? Que confusão, pensei de novo.– Vou sentir sua falta – sussurrou Jacob, ecoando meus pensamentos. – A cada minuto. Espero que ela vá embora logo. – Não precisa ser assim, Jake. Ele suspirou. – Sim, precisa, Bella. Você... a ama. Então é melhor que eu não esteja perto dela. Não sei se sou controlado o suficiente para lidar com isso. Sam ficaria louco se eu quebrasse o pacto e... – sua voz ficou sarcástica. – você, provavelmente, não ia gostar muito se eu matasse sua amiga. Afastei-me de Jacob quando ele disse isso, mas ele só estreitou os braços, recusando-se a me deixar escapar. – Não tem sentido evitar a verdade. É assim que as coisas são, Bells.– Eu não gosto do jeito como as coisas são. Jacob libertou um braço para colocar a mão grande e castanha sob meu queixo e me fazer olhar para ele. – É. Era mais fácil quando nós dois éramos humanos, não era? Eu suspirei. Ficamos nos olhando por um longo tempo. A mão dele queimava em minha pele. Em meu rosto, eu sabia que não havia nada além de uma tristeza suplicante – eu não queria ter de dizer adeus agora, mesmo que por pouco tempo. No início seu rosto refletiu o meu, mas depois, como nenhum de nós desviava os olhos, sua expressão mudou. Ele me soltou, erguendo a outra mão para passar a ponta dos dedos em meu rosto, descendo-os até meu queixo. Eu podia sentir seus dedos tremerem – desta vez, não de raiva. Ele colocou a palma em minha bochecha, para que meu rosto ficasse preso entre suas mãos ardentes. – Bella – sussurrou ele.
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Fiquei paralisada. Não! Eu ainda não havia tomado essa decisão. Não sabia se podia fazer isso e agora estava sem tempo para pensar. Mas eu seria uma tola se pensasse que rejeitá-lo naquele momento não teria conseqüências. Eu o fitava. Ele não era o meu Jacob, mas podia ser. Seu rosto era familiar e adorado. De muitas maneiras verdadeiras, eu o amava. Ele era meu conforto, meu porto seguro. Naquele exato momento, eu preferia que ele me pertencesse. Alice havia voltado por um tempo, mas isso não mudara nada. O verdadeiro amor estava perdido para sempre. O príncipe nunca voltaria para me despertar de meu sono encantado com um beijo. Eu não era uma princesa, afinal. Então, o que dizia o protocolo dos contos de fadas sobre outros beijos? Do tipo comum, que não quebra feitiços? Talvez fosse fácil – como segurar a mão dele ou ter seus braços me envolvendo. Talvez fosse ótimo. Talvez não fosse uma traição. Além disso, a quem eu estava traindo, aliás? Só a mim mesma. Sem tirar os olhos dos meus, Jacob começou a inclinar a cabeça para mim. E eu ainda estava absolutamente indecisa. O toque agudo do telefone nos fez pular, mas não interrompeu seu foco. Ele tirou a mão de sob meu queixo e estendeu o braço para pegar o fone, mas ainda segurava meu rosto com firmeza, a mão em minha bochecha. Seus olhos escuros não deixavam os meus. Eu estava desnorteada demais para reagir, até para tirar proveito da distração. – Residência dos Swan – disse Jacob, a voz rouca baixa e intensa. Alguém respondeu e Jacob mudou num instante. Ele se endireitou e sua mão largou meu rosto. Os olhos ficaram apáticos, a face inexpressiva, e eu teria apostado e que restava de meu magro fundo da universidade como era Alice. Recuperei-me e estendi a mão para o fone. Jacob me ignorou. – Ele não está – disse Jacob, e as palavras eram ameaçadoras.
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Houve uma resposta muito curta, um pedido por mais informações, ao que parecia, porque ele acrescentou, de má vontade: – No enterro. Depois Jacob desligou o telefone. – Maldito sanguessuga – murmurou ele. O rosto que se voltou para mim era a máscara amargurada de novo. – Você desligou na cara de quem? – eu disse, furiosa. – Na minha casa e no meu telefone? – Calma! Ele é que desligou na minha cara! – Ele? Quem era?! Ele escarneceu do título. – O Dr. Carlisle Cullen. – Por que não me deixou falar com ele?! – Ele não perguntou por você – disse Jacob com frieza. Seu rosto era suave e inexpressivo, mas as mãos tremiam. – Ele perguntou onde Charlie estava e eu respondi. Não acho que tenha quebrado alguma regra de etiqueta. – Agora olhe aqui, Jacob Black... Mas era óbvio que ele não estava ouvindo. Olhou rapidamente por sobre o ombro, como se alguém tivesse chamado seu nome de outro cômodo. Seus olhos se arregalaram e o corpo enrijeceu, depois ele começou a tremer. Procurei escutar também, automaticamente, mas nada ouvi. – Tchau, Bells – cuspiu ele e disparou para a porta da frente. Fui atrás dele. – O que é? Depois esbarrei em Jacob, enquanto ele se virava de volta, xingando em voz baixa. Ele girou de novo, chocando-se comigo de lado. Eu cambaleei e caí no chão, minhas pernas enroscadas nas dele. – Mas que droga! – protestei enquanto ele disparava para a porta dos fundos; de repente ele ficou paralisado de novo. Alice estava imóvel ao pé da escada. – Bella – engasgou-se.
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Levantei-me vacilante e corri para o lado dela. Seus olhos eram aturdidos e distantes, a face contorcida e mais branca do que osso. Seu corpo magro tremia com um turbilhão íntimo. – Alice, qual é o problema? – gritei. Coloquei as mãos em seu rosto, tentando acalmá-la. Seus olhos focalizaram os meus abruptamente, arregalados de dor. – Edward – foi só o que ela sussurrou. Meu corpo reagiu mais rápido do que minha mente podia acompanhar com as implicações da resposta de Alice. De início não entendi por que a sala girava, nem de onde vinha o rugido oco em meus ouvidos. Minha mente se esforçava, incapaz de encontrar sentido no rosto triste de Alice e em como aquilo podia ter alguma relação com Edward, enquanto meu corpo já oscilava, buscando o alívio do inconsciente antes que a realidade pudesse me atingir. A escada entortou num ângulo estranho. A voz furiosa de Jacob de repente estava em meu ouvido, sibilando um jorro de blasfêmias. Senti uma vaga reprovação. Os novos amigos dele claramente eram má influência. Eu estava no sofá sem entender como conseguira chegar lá e Jacob ainda xingava. Parecia que havia um terremoto – o sofá tremia debaixo de mim. – O que você fez com ela? – perguntou ele. Alice o ignorou. – Bella? Bella, pare com isso. Precisamos correr. – Fique longe daqui – alertou Jacob. – Calma, Jacob Black – ordenou Alice. – Não vai querer fazer isso tão perto dela. – Não acho que terei problemas para manter o foco – retorquiu ele, mas sua voz parecia um pouco mais fria. – Alice? – minha voz era fraca. – O que houve? – perguntei, embora não quisesse ouvir. – Não sei – gemeu ela de repente. – O que ele está pensando?!
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Lutei para me levantar, apesar da vertigem. Percebi que era o braço de Jacob que agarrara para me equilibrar. Era ele que tremia, não o sofá. Alice pegava um pequeno celular prateado na bolsa quando meus olhos voltaram a focalizá-la. Seus dedos discaram os números tão rápido que foi como um borrão. – Rose, preciso falar com Carlisle agora. – Sua voz cuspia rápido as palavras. – Tudo bem, assim que ele voltar. Não, estarei num avião. Olhe, soube alguma notícia de Edward? Alice fez uma pausa, ouvindo com uma expressão que ficava mais horrorizada a cada segundo. Sua boca se abriu num pequeno “O” de pavor e o telefone tremeu em sua mão. – Por quê? – ofegou ela. – Por que você fez isso, Rosalie? Qualquer que tenha sido a resposta, fez seu queixo endurecer de raiva. Seus olhos faiscaram e se estreitaram. – Bom, mas você está errada nos dois sentidos, Rosalie, então isso é um problema, não acha? – perguntou ela com acidez. – Sim, ela está bem. Ela está absolutamente bem... Eu estava errada... É uma longa história... Mas você errou nessa parte também e é por isso que estou ligando... Sim, foi exatamente o que eu vi. A voz de Alice era muito dura e seus lábios estavam repuxados. – É meio tarde para isso agora, Rose. Poupe seu remorso para alguém que acredite nele. – Alice desligou o telefone com um giro rápido dos dedos. Seus olhos estavam torturados quando ela se virou para mim. – Alice – eu disse logo. Ainda não podia deixá-la falar. Eu precisava de mais alguns segundos antes que ela falasse e suas palavras destruíssem o que restava de minha vida. – Alice, Carlisle voltou. Ele ligou antes... Ela me olhou, confusa. – Há quanto tempo? – perguntou numa voz seca. – Meio minuto antes de você aparecer. – O que ele disse? – Ela agora estava concentrada, esperando por minha resposta.
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– Eu não falei com ele. – Meus olhos voltaram-se para Jacob. Alice virou seu olhar penetrante para ele. Ele se encolheu, mas sustentou sua posição a meu lado, Jacob se sentou, desajeitado, quase como se estivesse tentando me proteger com o corpo. – Ele perguntou por Charlie e eu disse que Charlie não estava aqui – murmurou Jacob, com ressentimento. – Só isso? – perguntou Alice, a voz como gelo. – Depois ele desligou na minha cara – cuspiu Jacob. Um tremor desceu por sua coluna, fazendo-me tremer com ele. – Você disse que Charlie estava no enterro – lembrei a ele. Alice virou a cabeça rapidamente para mim. – Quais foram suas palavras exatas? – Ele disse: “Ele não está”, e quando Carlisle perguntou onde Charlie estava, Jacob respondeu: “No enterro.” Alice gemeu e caiu de joelhos. – Me diga, Alice – sussurrei. – Não era Carlisle no telefone – disse ela de um jeito desamparado. – Está me chamando de mentiroso? – rosnou Jacob ao meu lado. Alice o ignorou, concentrando-se em meu rosto perplexo. – Era Edward. – As palavras eram só um sussurro sufocado. – Ele acha que você está morta. Minha cabeça começou a funcionar de novo. As palavras não eram as que eu temia e o alívio clareou minha mente. – Rosalie disse a ele que eu me matei, não foi? – eu disse, suspirando enquanto relaxava. – Sim – admitiu Alice, os olhos faiscando severos de novo. – Preciso ressaltar que ela acreditava nisso. Eles confiaram demais na minha visão, numa habilidade que é tão imperfeita. Mas ela localizou para contar isso a ele! Será que ela não percebeu... nem se importou...? – Sua voz sumiu de horror.
– E quando Edward ligou para cá, pensou que Jacob estivesse se referindo ao meu enterro – percebi. Doeu saber o quanto eu
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estivera perto, só a centímetros de sua voz. Cravei minhas unhas no braço de Jacob, mas ele nem pestanejou. Alice olhou de um jeito estranho para mim. – Você não está perturbada – sussurrou ela. – Bom, o momento é horrível, mas tudo isso pode ser consertado. Da próxima vez que ele ligar, alguém dirá a ele... o que... na verdade... – eu parei. Seus olhar estrangulou as palavras em minha garganta. Por que ela estava em tal pânico? Por que seu rosto se retorcia agora de piedade e pavor? O que foi que ela dissera a Rosalie ao telefone agora mesmo? Alguma coisa sobre ela ter visto... E o remorso de Rosalie; Rosalie nunca sentiria remorso por nada que acontecesse comigo. Mas se ela magoasse a família, se magoasse o irmão... – Bella – sussurrou Alice. – Edward não vai ligar de novo. Ele acreditou nela. – Eu. Não. Entendo. – Minha boca compôs cada palavra em silêncio. Eu não conseguia colocar o ar para fora e realmente pronunciar as palavras que a fariam explicar o que queria dizer. – Ele foi para a Itália. Levei uma batida do coração para entender. Quando a voz de Edward me voltou agora, não era a imitação perfeita de minhas ilusões. Era só o tom fraco e apático de minhas lembranças. Mas as palavras, sozinhas, foram suficientes para despedaçar meu peito e deixar o buraco aberto. Palavras de uma época em que eu teria apostado tudo o que tivesse ou conseguisse no fato de que ele me amava. Bem, eu não ia viver sem você, dissera ele enquanto víamos Romeu e Julieta morrendo, aqui, nesta mesma sala. Mas não tinha certeza de como fazer... Eu sabia que Emmett e Jasper não me ajudariam... Então pensei em talvez ir à Itália e fazer algo para provocar os Volturi... Não se deve irritar os Volturi. A não ser que se queira morrer... A não ser que se queira morrer.
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– NÃO! – A negação aos gritos foi tão alta depois das palavras sussurradas que todos nós pulamos. Senti o sangue disparar para meu rosto ao perceber o que ela vira. – Não! Não, não, não! Ele não pode! Não pode fazer isso! – Ele se decidiu assim que seu amigo confirmou que era tarde demais para salvar você. – Mas ele... Ele foi embora! Ele não me queria mais! Que diferença isso faz agora? Ele sabia que um dia eu ia morrer! – Não acho que ele tenha planejado viver muito tempo após sua morte – disse Alice em voz baixa. – Como ele se atreve! – gritei. Agora eu estava de pé, e Jacob se levantou inseguro para se colocar entre mim e Alice de novo. – Ah, saia da minha frente, Jacob! – Abri caminho a cotoveladas por seu corpo trêmulo com uma impaciência desesperada. – O que vamos fazer? – perguntei a Alice. Deveria haver alguma coisa. – Não podemos ligar para ele? Carlisle não pode?Ela sacudiu a cabeça. – Esta foi a primeira coisa que tentei. Ele largou o telefone numa lata de lixo no Rio de Janeiro... Alguém atendeu... – ela sussurrou. – Você antes disse que tínhamos que correr. Correr como? Vamos fazer logo, seja lá o que for! – Bella, eu... eu não acho que possa pedir a você para... – Ela parou de falar, indecisa. – Peça! – exigi. Ela pôs as mãos em meus ombros, segurando-me, os dedos flexionando-se a intervalos para destacar suas palavras.
– Pode ser tarde demais para nós. Eu o vi indo aos Volturi... e pedindo para morrer. – Nós duas nos encolhemos, e meus olhos de repente ficaram cegos. Pisquei febrilmente para as lágrimas. – Tudo depende do que eles decidirem. Não consigo ver nada até que eles tomem uma decisão. Mas se eles disserem “Não”, e eles podem fazer isso... Aro gosta de Carlisle e não vão querer ofendê-lo... Edward tem um plano B. Eles protegem muito a cidade deles. Se Edward fizer
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algo para perturbar a paz, ele acha que vão tentar impedi-lo. E tem razão. Eles vão mesmo. Encarei-a com o queixo cerrado de frustração. Eu ainda não ouvira nada que explicasse por que ainda estávamos paradas ali. – Assim, se eles concordarem em fazer esse favor a Edward, já é tarde demais para nós. Se eles disserem “Não” e ele pensar num plano para irritá-los rapidamente, será tarde demais para nós. Se ele ceder a suas tendências mais teatrais... Talvez tenhamos tempo. – Vamos! – Preste atenção, Bella! Quer tenhamos tempo ou não, estaremos no meio a cidade dos Volturi. Seremos consideradas cúmplices dele se ele for bem-sucedido. Você será uma humana que não só sabe demais, mas que também tem um cheiro bom demais. Há uma boa possibilidade de que eles eliminem todos nós... Bem, no seu caso, não será tanto uma punição, mas o jantar. – É isso que está nos prendendo aqui? – perguntei, incrédula. – Eu vou sozinha, se você estiver com medo. – Calculei mentalmente quanto dinheiro restava em minha conta e me perguntei se Alice me emprestaria o restante. – Só tenho medo de provocar sua morte. Eu bufei de asco. – Eu quase me matei diariamente! Me diga o que precisamos fazer!– Escreva um bilhete para Charlie. Vou ligar para a companhia aérea.– Charlie – ofeguei. Não que minha presença o estivesse protegendo, mas eu poderia deixá-lo sozinho para enfrentar... – Não vou deixar que nada aconteça a Charlie – a voz grave de Jacob era ríspida e irritada. – O pacto que se dane. Olhei para ele, que fez uma cara feia para minha expressão de pânico. – Rápido, Bella – interrompeu Alice com urgência.
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Corri até a cozinha, puxando as gavetas e atirando o conteúdo pelo chão ao procurar uma caneta. Uma mão morena e macia estendia uma para mim. – Obrigada – murmurei, tirando a tampa com os dentes. Ele me passou em silêncio um bloco de papel onde anotávamos os recados telefônicos. Arranquei a folha de cima e atirei o bloco por sobre o ombro. Pai, escrevi. Estou com Alice. Edward está com problemas. Pode me colocar de castigo quando eu voltar. Sei que é uma péssima hora. Me perdoe. Te amo muito. Bella. – Não vá – sussurrou Jacob. A raiva desaparecera completamente, agora que Alice estava fora de vista. Eu não ia perder tempo discutindo com ele. – Por favor, por favor, por favor, cuide de Charlie – eu disse enquanto voltava às pressas para a porta da frente. Alice esperava na soleira com uma bolsa no ombro. – Pegue sua carteira... Vai precisar da identidade. Por favor, me diga que tem passaporte. Não tenho tempo para falsificar um. Eu assenti e corri escada acima, meus joelhos fracos de gratidão por minha mãe ter pensado em se casar com Phil numa praia do México. É claro que, como todos os planos que ela fazia, esse fora um completo fracasso. Mas não antes de eu fazer todos os preparativos práticos que podia por ela. Entrei em meu quarto. Enfiei na mochila minha carteira velha, uma camiseta limpa e moletons, depois atirei minha escova de dente por cima. Corri de volta pela escada. A sensação de déjà vu a essa altura era quase sufocante. Pelo menos, ao contrário da última vez – quando fugi de Forks para escapar de vampiros sedentos ao invés de encontrá-los –, eu não tive de dizer adeus a Charlie pessoalmente. Jacob e Alice estavam presos em algum tipo de confronto diante da porta aberta, tão separados ali que a princípio não se pensaria que estavam conversando. Nenhum dos dois pareceu perceber meu reaparecimento ruidoso.
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– Você pode se controlar de vez em quando, mas esses sanguessugas de onde a está levando... – Jacob a acusava furiosamente. – Sim. Tem razão, cachorro. – Alice também rosnava. – Os Volturi são a essência de nossa espécie... São o motivo para seus pêlos se eriçarem quando você sente meu cheiro. Ele são a substância de seus pesadelos, o pavor por trás de seus instintos. Não estou alheia a isso.– E vai levá-la para eles como uma garrafa de vinho a uma festa! – gritou ele. – Acha que ela vai ficar melhor aqui sozinha, com Victoria em seu encalço? – Podemos cuidar da ruiva. – Então por que ela ainda está caçando? Jacob rosnou e um tremor percorreu seu corpo. – Parem com isso! – gritei para os dois, louca de impaciência. – Discutam quando voltarmos, agora vamos! Alice virou-se para o carro, desaparecendo em sua pressa. Eu corri atrás dela, parando automaticamente para me virar e olhar a porta.Jacob pegou meu braço com a mão trêmula. – Por favor, Bella. Estou pedindo. Seus olhos escuros cintilavam de lágrimas. Um nó tomou minha garganta. – Jake, eu tenho que... – Não tem, não. Não tem mesmo. Pode ficar aqui comigo. Pode ficar viva. Por Charlie. Por mim. O motor do Mercedes de Carlisle ronronava; o ritmo aumentou quando Alice o acelerou com impaciência. Sacudi a cabeça, as lágrimas caindo de meus olhos com o movimento súbito. Soltei meu braço e ele não me impediu. – Não morra, Bella – ele disse, engasgado. – Não vá. Não. E se eu nunca mais o visse?
A idéia venceu minhas lágrimas silenciosas; um choro irrompeu de meu peito. Atirei os braços em sua cintura e o abracei
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por um momento curto demais, enterrando a cara molhada de lágrimas em seu peito. Ele pôs a mão em minha nuca, como que para me prender ali. – Tchau, Jake. – Tirei sua mão de meu cabelo e beijei a palma. Não suportava olhar seu rosto. – Desculpe – sussurrei. Depois me virei e corri para o carro. A porta do banco do carona estava aberta à espera. Atirei minha mochila por sobre o apoio de cabeça e entrei, batendo a porta. – Cuide de Charlie! – Eu me virei para gritar para o vento, mas Jacob não estava mais à vista. Enquanto Alice pisava no acelerador e, com os pneus cantando feito gritos humanos, manobrava o carro na rua, vi um fragmento branco junto à margem do bosque. Um pedaço de sapato.

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