quinta-feira, 9 de junho de 2011

Lua Nova, Capítulos 7 ao 12

7. REPETIÇÃO 

Eu não sabia que diabos estava fazendo ali. Estava tentando me empurrar de volta ao estupor de zumbi? Tinha me tornado masoquista – criado gosto pela tortura? Eu devia ter ido direto para La Push. Sentia-me muito, muito mais saudável perto de Jacob. Aquela não era uma coisa saudável de se fazer. Mas continuei a dirigir devagar pela rua tomada pelo mato, contornando as árvores que arqueavam sobre mim como um túnel verde e vivo. Minhas mãos tremiam, então apertei com mais força o volante. Eu sabia que parte do motivo para fazer aquilo fora o pesadelo; agora que eu estava bem desperta, o nada do sonho roia meus nervos, um cão mordendo um osso. Havia algo a procurar. Inacessível e impossível, desinteressado e aturdido... Mas ele estava lá, em algum lugar. Eu precisava acreditar nisso. A outra parte foi a estranha sensação de repetição que sentira na escola, a coincidência da data. A sensação de que eu estava recomeçando – talvez da maneira como meu primeiro dia teria sido se eu de fato fosse a pessoa mais incomum no refeitório naquela tarde.As palavras passavam por minha cabeça, sem som, como se eu as lesse em vez de ouvi-las: Será como se eu nunca tivesse existido. Eu estava mentindo para mim mesma ao dividir em apenas duas partes meu motivo para vir aqui. Não queria admitir a motivação mais forte. Porque era mentalmente doentia.
A verdade era que eu queria ouvir a voz dele de novo, como ouvira na estranha ilusão da noite de sexta-feira. Por que, naquele breve momento, quando a voz dele veio de uma parte de mim que não era minha lembrança consciente, quando a voz dele era perfeita e suave como mel e não o eco pálido que minhas lembranças costumavam produzir, eu pude lembrar sem dor. Não durou muito; a
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dor se apoderou de mim, como eu tinha certeza de que aconteceria nessa jornada inútil. Mas aqueles momentos preciosos, quando pude ouvi-lo de novo, eram uma tentação irresistível. Eu precisava encontrar uma forma de repetir a experiência... Ou talvez a melhor palavra fosse episódio. Pensei que a chave fosse o déjà vu. Então fui à casa dele, um lugar aonde não ia desde minha malfadada festa de aniversário, tantos meses antes. A vegetação espessa e quase selvagem passava lentamente por minha janela. A viagem não terminava. Comecei a acelerar, ficando tensa. Há quanto tempo estava dirigindo? Já não deveria ter chegado na casa? O caminho estava tão tomado pelo mato que parecia desconhecido. E se eu não conseguisse encontrar? Estremeci. E se não houvesse nenhuma prova tangível? Depois veio a brecha que eu procurava entre as árvores, só que não era tão acentuada como antes. A vegetação aqui não esperou muito tempo para reclamar o terreno que ficara desprotegido. As samambaias altas se infiltraram na grama em volta da casa, rastejando pelos troncos dos cedros, até a varanda ampla. Era como se o gramado tivesse sido inundado – na altura da cintura – por ondas verdes e emplumadas. E a casa estava lá, mas não era a mesma. Embora nada tivesse mudado em seu exterior, o vazio gritava pelas janelas desabitadas. Era horripilante. Pela primeira vez desde que a vira, a linda casa parecia um abrigo adequado para vampiros. Pisei no freio, virando o rosto. Tinha medo de ir mais à frente. Mas nada aconteceu. Nenhuma voz em minha cabeça. Então deixei o motor ligado e pulei para o mar de samambaias. Talvez, como na noite de senta, se eu avançasse...
Aproximei-me devagar da fachada estéril e vazia, minha picape rugindo reconfortante atrás de mim. Parei ao chegar à escada da varanda, porque nada havia ali. Nenhuma sensação da presença deles que permanecesse ali... Da presença dele. A casa estava lá, sólida,
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mas pouco significava. Sua realidade concreta não contrabalançava o nada dos pesadelos. Não me aproximei mais. Não queria olhar pelas janelas. Não tinha certeza do que seria mais difícil ver. Se os cômodos estivessem nus, ecoando o vazio do chão ao teto, isso com certeza me magoaria. Como no enterro de minha avó, quando minha mãe insistiu para que eu ficasse ao lado de fora durante o velório. Ela disse que não precisava vê-la, lembrar-me dela daquele jeito, ao invés de viva. Mas não seria pior se não houvesse mudança nenhuma? Se os sofás estivessem exatamente como eu os vira, os quadros nas paredes – pior ainda, o piano em sua plataforma baixa? Isso só não seria pior do que o completo desaparecimento da casa, do que ver que não havia coisas materiais que de algum modo os prendessem. Que tudo ficara para trás, intocado e esquecido. Assim como eu. Dei as costas para o vazio escancarado e me apressei em direção ao carro. Praticamente corri. Estava ansiosa para ir embora, voltar ao mundo humano. Sentia-me vazia de um modo horrível e queria ver Jacob. Talvez eu estivesse desenvolvendo um novo tipo de doença, outro vício, como o torpor de antes. Não me importava. Forcei ao máximo o motor de minha picape, como se estivesse atolada em meu dilema. Jacob esperava por mim. Meu peito pareceu relaxar assim que o vi, tornando mais fácil respirar. – Oi, Bella – chamou ele. Eu sorri, aliviada. – Oi, Jacob. – Acenei para Billy, que olhava pela janela. – Vamos trabalhar – disse Jacob numa voz baixa, mas ansiosa. De algum modo eu consegui rir. – Ainda não enjoou mesmo de mim? – perguntei. Ele devia estar começando a se perguntar o quanto eu estava desesperada por companhia. Jacob seguiu na frente, contornando a casa até a garagem. – Não, ainda não.
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– Por favor, me avise quando eu começar a lhe dar nos nervos. Não quero ser um incômodo. – Tudo bem. – Ele riu, um som gutural. – Mas, no seu lugar, eu não contaria muito com isso. Quando entramos na oficina, fiquei chocada ao ver a moto vermelha de pé, parecendo uma motocicleta em vez de uma pilha de metal retorcido. – Jake, você é incrível – eu disse baixinho. Ele riu de novo. – Eu me torno obsessivo quando tenho um projeto. – Ele deu de ombros. – Se fosse mais esperto, embromaria um pouquinho. – Por quê? Ele baixou a cabeça, parando por tanto tempo que me perguntei se tinha ouvido minha pergunta. Por fim, ele me questionou: – Bella, se eu tivesse dito que não podia consertar essas motos, o que você diria? Não respondi de imediato e ele examinou minha expressão. – Eu diria... que era péssimo, mas que poderia pensar em outra coisa para fazer. Se estivéssemos mesmo desesperados, podíamos até fazer o dever de casa. Jacob sorriu e seus ombros relaxaram. Ele se sentou ao lado da moto e pegou uma chave inglesa. – Então acha que ainda vai voltar aqui quando eu acabar? – Era isso que queria dizer? – Sacudi a cabeça. – Acho que [i]estou mesmo[/i] me aproveitando de suas habilidades mecânicas de baixo custo. Mas se você me deixar vir aqui, eu virei. – Na esperança de ver Quil de novo? – brincou ele. – Agora você adivinhou. Ele riu. – Você gosta mesmo de ficar comigo? – perguntou ele, maravilhado. – Muito, gosto muito. E vou provar isso. Tenho que trabalhar amanhã, mas na quarta-feira vamos fazer alguma coisa que não tenha a ver com mecânica. – O quê, por exemplo?
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– Não faço idéia. Podemos ir à minha casa, assim você não fica tentado a ser tão obsessivo. Podia levar seu dever... Deve estar atrasado, porque sei que o meu está. – Dever de casa pode ser uma boa idéia. – Ele fez uma careta, e eu me perguntei o quanto ele o estava deixando de lado para ficar comigo. – Sim – concordei. – É melhor começar a ser responsável de vez em quando, Billy e Charlie não serão tão compreensivos com isso. – Fiz um gesto indicando nós dois como uma entidade só. Ele gostou – ficou radiante. – Dever de casa uma vez por semana? – propôs ele. – Talvez seja melhor fazermos duas vezes – sugeri, pensando na pilha que eu deveria fazer naquele dia. Ele soltou um suspiro pesado. Depois procurou um saco de papel pardo na caixa de ferramentas. Pegou duas latas de refrigerante, abriu e me passou uma. Abriu a segunda e a ergueu com cerimônia. – À responsabilidade – brindou ele. – Duas vezes por semana. – E a cada dia irresponsável entre elas – enfatizei. Ele sorriu e bateu com a lata dele na minha. Fui para casa mais tarde do que pretendia e descobri que Charlie tinha pedido uma pizza, em vez de esperar por mim. Ele não deixou que eu me desculpasse. – Eu não me importo – garantiu-me. – Você merece mesmo uma folga da cozinha. Sabia que estava aliviado por eu ainda estar agindo como uma pessoa normal e que ele não ia estragar tudo. Verifiquei meus e-mails antes de começar o dever de casa, e havia outra longa mensagem de Renée. Estava entusiasmada com cada detalhe que lhe contara, então mandei outra descrição minuciosa de meu dia. Tudo, menos as motos. Até a relaxada Renée ficaria alarmada com isso.
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A escola na terça-feira teve seus altos e baixos. Angela e Mike pareciam prontos a me receber de volta de braços abertos – e gentilmente fazer vista grossa para meus meses de comportamento bizarro. Jess foi mais resistente. Imaginei se ela precisava de um pedido formal de desculpas, por escrito, pelo incidente de Port Angeles. Mike estava animado e tagarela no trabalho. Era como se tivesse acumulado o falatório de todo o semestre e agora colocasse tudo para fora. Descobri que eu era capaz de sorrir e rir com ele, embora não fosse tão espontâneo como era com Jacob. Mas parecia bem inofensivo, até a hora de ir embora. Mike colocou a placa de fechado na vitrine enquanto eu dobrava meu avental e o enfiava embaixo do balcão. – Hoje foi divertido – disse Mike, todo feliz. – É – concordei, embora preferisse ter passado a tarde na garagem. – Que chato você ter saído cedo do cinema na semana passada. Fiquei meio confusa com aquela linha de raciocínio. Dei de ombros. – Acho que sou só uma covarde. – Quer dizer, você devia ter visto um filme melhor, alguma história de que gostasse – explicou ele. – Ah! – murmurei, ainda confusa. – Como talvez nesta sexta. Comigo. Podemos ir ver algo que não seja apavorante. Mordi o lábio. Não queria estragar minha relação com Mike, não quando ele era uma das únicas pessoas dispostas a me perdoar por ficar maluca. Mas isso, de novo, parecia familiar demais. Como se o ano passado nunca tivesse acontecido. Queria ter Jess como desculpa de novo. – Como um encontro? – perguntei. Àquela altura, a sinceridade devia ser a melhor política. Deixar tudo muito claro. Ele processou meu tom de voz. – Se você quiser. Mas não precisa ser assim.
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– Eu não tenho encontros – eu disse devagar, percebendo a verdade daquilo. O mundo todo parecia incrivelmente distante. – Só como amigos? – sugeriu ele. Os olhos azul-claros agora não estavam tão ansiosos. Esperei que estivesse sendo sincero sobre sermos amigos. – Seria divertido. Mas já tenho planos para esta sexta-feira, então quem sabe na semana que vem? – O que você vai fazer? – perguntou ele, menos despreocupado do que acho que queria aparentar. – Dever de casa. Marquei... de estudar com um amigo. – Ah! Tudo bem. Talvez na semana que vem. Ele me acompanhou até o carro, menos expansivo do que antes. Isso me trouxe uma lembrança clara de meus primeiros meses em Forks. Eu fechara um círculo, e agora tudo parecia um eco – um eco vazio, desprovido do interesse que eu tinha antigamente. Na noite seguinte, Charlie não pareceu nem um pouco surpreso ao encontrar Jacob e eu esparramados no chão da sala, cercados por nossos livros espalhados, então achei que ele e Billy andaram conversando pelas nossas costas. – Oi, crianças – disse ele, os olhos se desviando para a cozinha. O cheiro da lasanha que eu passara a tarde preparando, enquanto Jacob olhava e de vez em quando provava, se espalhava pelo corredor. Estava sendo boazinha, tentando compensar por todas as pizzas. Jacob ficou para o jantar e levou um prato para Billy. De má vontade, acrescentou mais um ano à minha idade negociável por eu ser boa cozinheira. Sexta-feira foi o dia de garagem, e no sábado, depois de meu turno na Newton’s, dever de casa de novo. Charlie sentiu-se seguro o suficiente de minha sanidade mental para passar o dia pescando com Harry. Quando voltou, tínhamos terminado tudo – sentindo-nos muito sensatos e maduros com isso também – e estávamos assistindo a Monster Garage no Discovery Channel. – Acho que tenho que ir – suspirou Jacob. – É mais tarde do que eu pensava.
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– Tá, tudo bem – murmurei. – Vou levar você para casa. Ele riu de minha evidente má vontade – isso pareceu agradá-lo. – Amanhã voltamos ao trabalho – eu disse assim que estávamos seguros na picape. – A que horas quer que eu chegue? Havia uma empolgação inexplicada no sorriso que ele me deu. – Eu ligo antes, está bem? – Claro. – Fechei a cara, imaginando o que estava acontecendo. O sorriso dele se alargou. Na manhã seguinte, limpei a casa – esperando que Jacob telefonasse e tentando me livrar do último pesadelo. O cenário tinha mudado. Na noite anterior, eu vagava num amplo mar de samambaias intercaladas com cicutas enormes. Não havia mais nada lá e eu estava perdida, vagando sem rumo e sozinha, procurando por nada. Eu queria bater em mim mesma pela viagem idiota da semana anterior. Expulsei o sonho de meu pensamento na esperança de que ele ficasse preso em algum lugar e não escapasse de novo. Charlie estava lá fora lavando a viatura da polícia, então, quando o telefone tocou, larguei a escovinha de banheiro e desci correndo para atender. – Alô? – perguntei, sem fôlego. – Bella – disse Jacob com um estranho tom formal. – Oi, Jake. – Acho que... temos um encontro – disse ele, a voz cheia de implicações. Precisei de um segundo para entender. – Estão prontas? Não acredito! – Que senso de oportunidade perfeito. Eu precisava de algo para me distrair dos pesadelos e do nada. – É, andam e tudo. – Jacob, você é absolutamente, sem dúvida alguma, a pessoa mais talentosa e maravilhosa que eu conheço. Ganhou dez anos com essa. – Que legal! Agora sou um homem de meia-idade.
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Eu ri. – Estou indo para aí! Atirei o material de limpeza debaixo da bancada do banheiro e peguei meu casaco. – Vai ver Jake? – disse Charlie quando passei correndo por ele. Não era de fato uma pergunta. – É – respondi ao pular para dentro da picape. – Estarei na delegacia mais tarde – disse Charlie às minhas costas.– Tudo bem – gritei para ele, ligando a ignição. Charlie disse mais alguma coisa, mas não pude ouvi-lo com clareza por causa do ronco do motor. Pareceu algo como: “Onde é o incêndio?” Estacionei o carro ao lado da casa dos Black, perto das árvores, para que ficasse mais fácil retirar escondido as motos. Quando saí do carro, uma mancha de cor chamou minha atenção – duas motos reluzentes, uma vermelha, outra preta, estavam escondidas sob um abeto, invisíveis da casa. Jacob estava preparado. Havia uma fita azul formando um lacinho em volta de cada punho. Eu estava rindo disso quando Jacob saiu da casa. – Pronta? – perguntou ele em voz baixa, os olhos brilhando. Olhei por sobre o ombro dele e não havia sinal de Billy. – Pronta – eu disse, mas não me sentia tão animada quanto antes; estava tentando me imaginar realmente em cima da moto. Com facilidade, Jacob levou as motos para a caçamba da picape, deitando-as de lado com cuidado para que não aparecessem. – Vamos – disse ele, a voz mais alta do que o normal, de tão empolgado. – Conheço um lugar perfeito... Ninguém vai nos ver lá. Fomos para o sul, saindo da cidade. A estrada de terra entrava e saía sinuosa do bosque – às vezes não havia nada além de árvores e depois, de repente, tínhamos um vislumbre emocionante do oceano Pacífico, estendendo-se no horizonte, cinza-escuro sob as nuvens. Estávamos acima da costa, no alto do penhasco que cercava a praia, e a vista parecia se estender para sempre.
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Eu dirigia devagar, assim podia de vez em quando olhar o mar com segurança, quando a estrada se aproximava mais dos penhascos. Jacob falava de como havia aprontado as motos, mas suas descrições estavam ficando técnicas e eu não prestava muita atenção. Foi quando percebi quatro figuras paradas numa saliência rochosa, perto demais do precipício. De longe não sabia que idade tinham, mas imaginei que fossem homens. Apesar do frio no ar, eles pareciam estar somente de short. Enquanto eu olhava, o mais alto se aproximou da beira. Eu automaticamente reduzi, meu pé hesitando no pedal do freio. Depois ele se atirou. – Não! – gritei, pisando firme no freio. – Que foi? – gritou Jacob, alarmado. – Aquele cara... Ele acaba de pular do penhasco! Por que não o impediram? Temos que chamar uma ambulância! Abri minha porta num rompante e comecei a sair, o que não fazia sentido algum. O caminho mais rápido até um telefone era voltar para a casa de Billy. Mas eu não acreditava no que acabara de ver. Talvez, em meu inconsciente, eu esperasse ver alguma coisa diferente sem o vidro do pára-brisa no meio. Jacob riu e eu me virei para encará-lo, desvairada. Como ele podia ser tão insensível, ter sangue-frio? – Eles só estão mergulhando do penhasco, Bella. Por diversão. La Push não tem shopping, sabia? – Ele zombava de mim, mas havia uma estranha irritação em sua voz. – Mergulhando? – repeti, tonta. Olhei incrédula enquanto uma segunda figura se aproximava da beira, parava e depois, muito graciosamente, saltava no espaço. Ele caiu pelo que pareceu uma eternidade para mim, entrando com suavidade nas ondas cinza-escuras la embaixo. – Caramba. É tão alto. – Voltei para o meu banco, ainda fitando de olhos arregalados os outros dois mergulhadores. – Deve ter uns trinta metros.
– Bom, é, a maioria de nós pula de lugares mais baixos, daquela pedra que se destaca na metade do penhasco. – Ele apontou
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pela janela. O lugar que indicou parecia muito mais razoável. – Esses caras são malucos. Devem estar se exibindo, mostrando que são durões. Quer dizer, hoje está congelando. A água não deve estar boa. – Ele fez uma cara de desgosto, como se a proeza o ofendesse pessoalmente. Isso me surpreendeu um pouco. Eu achava que era quase impossível irritar Jacob. – Você pula do penhasco? – Não tinha deixado passar aquele “nós”.– Claro, claro. – Ele deu de ombros e sorriu. – É divertido. Meio assustador, um tipo de adrenalina. Olhei para os penhascos, onde a terceira figura avançava para a beira. Nunca tinha testemunhado nada tão imprudente em toda a minha vida. Meus olhos se arregalaram e eu sorri. – Jake, você precisa me levar para mergulhar do penhasco. Ele franziu a cara para mim, exprimindo reprovação. – Bella, você agora mesmo queria chamar uma ambulância para Sam – lembrou-me. Não fiquei surpresa que ele soubesse quem era daquela distância. – Quero tentar – insisti, começando a sair do carro de novo. Jacob pegou meu punho. – Hoje não, está bem? Será que podemos pelo menos esperar por um dia mais quente? – Tudo bem, tá legal – concordei. Com a porta aberta, a brisa glacial dava arrepios em meu braço. – Mas quero ir logo. – Logo. – Ele revirou os olhos. – Às vezes você é meio estranha, Bella. Sabia disso? Eu suspirei. – Sabia. – E não vamos pular do topo. Eu olhei, fascinada, enquanto o terceiro cara corria e se atirava no ar vazio mais longe do que os outros dois. Ele girou e deu um mortal enquanto caía, como se estivesse praticando skydiving. Parecia absolutamente livre – sem pensar e um total irresponsável. – Ótimo – concordei. – Não na primeira vez, pelo menos. Jacob suspirou.
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– Vamos testar as motos ou não? – perguntou ele. – Tudo bem, tudo bem – eu disse, tirando os olhos da última pessoa que aguardava no penhasco. Recoloquei o cinto de segurança e fechei a porta. O motor ainda estava ligado, rugindo em ponto morto. Recomeçamos a descer a estrada. – Então, quem eram aqueles caras... Os malucos? – perguntei. Saiu um rosnado de revolta do fundo da garganta. – A gangue de La Push. – Vocês têm uma gangue? – perguntei. Percebi que parecia impressionada. Ele riu da minha reação. – Não assim. Juro, eles são como inspetores de colégio enlouquecidos. Não começam as brigas, mantêm a paz. – Ele bufou. – Havia um sujeito lá de cima, perto da reserva Makah, um grandalhão também, de aparência apavorante. Bom, dizem por aí que ele estava vendendo metanfetamina a crianças, e Sam Uley e seus discípulos expulsaram-no de nossas terras. Todos eles só querem saber de nossas terras, e de orgulho tribal... Está ficando ridículo. O pior é que o conselho os leva a sério. Embry disse que o conselho se reúne com Sam. – Ele sacudiu a cabeça, a face cheia de ressentimento. – Embry também soube por Leah Clearwater que eles se chamam os “protetores” ou algo assim. As mãos de Jacob se fecharam, como se ele estivesse com vontade de bater em alguma coisa. Eu nunca vira aquele lado dele. Fiquei surpresa ao ouvir o nome de Sam Uley. Eu não queria ter de volta as imagens de meu pesadelo, então fiz uma observação rápida para me distrair. – Você não gosta muito deles. – Parece mesmo? – perguntou ele com sarcasmo. – Bom... Não parece que estejam fazendo algo ruim. – Tentei acalmá-lo, deixá-lo animado de novo. – Só uma espécie de gangue de santinhos irritantes.
– É. Irritante é uma boa palavra. Eles estão sempre se exibindo... Como a história do penhasco. Eles agem como se... como se, sei lá. Como uns brutamontes. Uma vez, no semestre passado, eu
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estava com Embry e Quil na loja e Sam apareceu com os seguidores dele, Jared e Paul. Quil disse alguma coisa, você sabe que ele tem a língua muito grande, e aquilo irritou Paul. Os olhos dele escureceram e ele pareceu sorrir... Não, ele arreganhou os dentes, mas não sorriu... E foi como se estivesse tão irritado que chegava a tremer ou coisa assim. Mas Sam pôs a mão no peito de Paul e sacudiu a cabeça. Paul olhou para ele por um minuto e se acalmou. Sinceramente, foi como se Sam o estivesse contendo... Como se Paul fosse nos dilacerar caso Sam não o impedisse. – Ele gemeu. – Parece um faroeste vagabundo. Sabe, o Sam é um sujeito grandalhão, tem uns 20 anos. Mas Paul só tem 16 também, é mais baixo do que eu e não é tão forte quanto Quil. Acho que qualquer um de nós podia dar conta dele. – Brutamontes – concordei. Eu podia visualizá-los enquanto ele os descrevia, e isso me trouxe uma lembrança... Um trio de morenos altos, juntos e imóveis, na sala de estar do meu pai. A imagem era torta, porque minha cabeça estava encostada no sofá enquanto o Dr. Gerandy e Charlie se curvavam sobre mim... Seria a gangue de Sam? Logo falei de novo, para me distrair das memórias sombrias. – Sam não é o meio velho demais para esse tipo de coisa? – É. Ele devia ir para universidade, mas ficou. E ninguém deu a mínima para isso. Todo o conselho quase teve uma síncope quando minha irmã recusou a bolsa parcial e se casou. Mas, ah, não, Sam Uley não faz nada de errado. Seu rosto tinha linhas desconhecidas de ultraje – ultraje e outra coisa que de início não reconheci. – Tudo isso é bem irritante e... estranho. Mas não entendo por que leva essa história para o lado pessoal. – Espiei seu rosto, na esperança de que não o tivesse ofendido. Ele de repente ficou calmo, olhando pela janela. – Você perdeu a entrada – disse numa voz monótona. Manobrei o carro num U largo, quase batendo numa árvore quando minha volta tirou metade da picape da estrada. – Obrigada por ter me avisado – murmurei e entrei na via secundária.
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– Desculpe, eu não estava prestando atenção. Ficamos em silêncio por um breve minuto. – Pode parar em qualquer lugar por aqui – disse ele de modo delicado. Encostei e desliguei o motor. Meus ouvidos tiniram no silêncio que se seguiu. Nós dois saímos e Jacob foi para a traseira pegar as motos. Tentei ler sua expressão. Algo mais o incomodava. Eu tinha tocado em uma ferida. Ele sorria pouco animado ao empurrar a moto vermelha para o meu lado. – Feliz aniversário atrasado. Está pronta para isso? – Acho que sim. – A moto de repente pareceu me intimidar e assustar, quando percebi que logo estaria montada nela. – Vamos começar devagar – prometeu ele. Encostei com cautela a moto no pára-lama da picape enquanto Jacob pegava a dele. – Jake... – Hesitei quando ele contornava o carro. – Sim? – O que realmente está incomodando você? Sobre a história do Sam, quer dizer? Tem mais alguma coisa? – Observei seu rosto. Ele fez uma careta, mas não parecia estar com raiva. Olhou a terra e chutou o pneu da frente da moto repetidas vezes, como se marcasse um compasso. Ele suspirou. – É só... o modo como eles me tratam. Me dá arrepios. – Agora as palavras começavam a jorrar. – Sabe, o conselho deve ser composto de iguais, mas se houvesse um líder, seria meu pai. Nunca pude entender por que as pessoas o tratam desse jeito. Por que a opinião dele é a que mais conta. Tem alguma coisa a ver com o pai dele, e o pai do pai dele. Meu bisavô, Ephraim Black, foi algo como o último chefe que tivemos, e eles ainda ouvem o Billy talvez por causa disso. Mas eu sou como todo mundo. Ninguém me trata de um jeito especial... Até agora. Isso me pegou de surpresa. – Sam trata você de um jeito especial?
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– É – concordou ele, fitando-me com os olhos perturbados. – Ele me olha como se esperasse alguma coisa... Como se um dia eu fosse me juntar à gangue idiota dele. Ele presta mais atenção em mim do que em qualquer dos outros caras. Detesto isso. – Não tem que se juntar a nada. – Minha voz era colérica. Aquilo estava mesmo aborrecendo Jacob, o que me enfurecia. Quem aqueles “protetores” pensavam que eram? – É. – O pé dele continuava batendo ritmadamente no pneu. – Que foi? – Pude ver que havia mais. Ele franziu o cenho, as sobrancelhas unindo-se de uma forma que demonstrava tristeza e preocupação, em vez de raiva. – É o Embry. Ele anda me evitando nos últimos dias. Os pensamentos não pareciam relacionados, mas eu me perguntei se era a culpada pelos problemas com o amigo dele. – Você anda saindo muito comigo – lembrei a ele, sentindo-me egoísta. Eu o estava monopolizando. – Não, não é isso. Não é só comigo... É com o Quil também, e com todo mundo. Embry faltou uma semana à escola, mas nunca estava em casa quando tentamos vê-lo. E quando voltou, parecia... parecia nervoso. Apavorado. Quil e eu tentamos fazer com que ele nos contasse o que havia de errado, mas ele não falou com nenhum de nós.Olhei para Jacob, mordendo os lábios de ansiedade – ele estava mesmo assustado. Mas não me olhou. Ficou olhando o pé que batia no pneu como se pertencesse a outra pessoa. O ritmo se intensificou.
– E nesta semana, do nada, Embry esta andando com Sam e os outros. Ele estava lá nos penhascos hoje. – Sua voz era baixa e tensa. Ele enfim me olhou. – Bella, eles incomodavam mais o Embry do que a mim. Embry não queria ter nada a ver com eles. E agora esta seguindo Sam como se tivesse entrado para um culto. E foi assim que aconteceu com Paul. Exatamente do mesmo jeito. Ele não tinha nenhuma amizade com Sam. Depois parou de ir à escola por algumas semanas e, quando voltou, de repente Sam era dono dele. Não sei o que isso significa. Não consigo imaginar o que é, e sinto que tenho
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que descobrir, porque Embry é meu amigo e... Sam olha para mim de um jeito estranho... e... – Ele parou. – Já conversou com Billy sobre isso? – perguntei. O pavor dele estava passando para mim. Eu sentia arrepios correndo pela nuca. Agora havia raiva em seu rosto. – Já – ele bufou. – Foi de muita ajuda. – O que ele disse? A expressão de Jacob era sarcástica e, quando ele falou, sua voz imitava o tom grave do pai. – “Não há nada com que se preocupar agora, Jacob. Daqui a alguns anos, se você não... Bom, vou explicar mais tarde.” – E depois retomou a própria voz. – O que eu devia concluir disso? Será que ele está tentando dizer que é uma coisa idiota da puberdade, que vem com a idade? Tem coisa aí. Alguma coisa errada. Ele mordia o lábio inferior e cerrava as mãos. Parecia estar a ponto de chorar. Joguei os braços em torno dele por instinto, envolvendo sua cintura e apertando o rosto contra seu peito. Ele era tão grande que eu me sentia uma criança abraçando um adulto. – Ah, Jake, vai ficar tudo bem! – prometi. – Se piorar, você pode morar comigo e com Charlie. Não fique com medo, vamos pensar em alguma solução! Ele ficou paralisado por um segundo, depois seus braços longos me envolveram, hesitantes. – Obrigado, Bella. – A voz dele soava mais rouca que o normal. Ficamos parados ali por um momento, e isso não me incomodou; na verdade, senti-me reconfortada pelo contato com ele. Não era nada parecido com a última vez que alguém me abraçara assim. Era amizade. E Jacob era muito quente. Foi estranho para mim ficar tão perto – emocional, não fisicamente, embora o físico também me fosse desconhecido – de outro ser humano. Não era meu estilo habitual. Eu não me relacionava com as pessoas com tanta facilidade, num nível tão profundo.
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Não com seres humanos. – Se é assim que você vai reagir, vou ficar nervoso com mais freqüência. – A voz de Jacob estava tranqüila, normal de novo, e seu riso trovejou em meu ouvido. Delicadamente, seus dedos tocaram meu cabelo, indecisos. Bom, para mim era amizade. Afastei-me depressa, rindo com ele, mas decidida a colocar de novo as coisas em seus lugares. – É difícil acreditar que sou dois anos mais velha do que você – eu disse, destacando as palavras mais velha. – Você faz com que eu me sinta uma anã. – Parada ali tão perto dele, eu tinha mesmo de esticar o pescoço para ver seu rosto. – Está se esquecendo de que tenho 40 anos, é claro. – Ah, é verdade. Ele afagou minha cabeça. – Você parece uma bonequinha – debochou ele. – Uma boneca de porcelana. Eu revirei os olhos, recuando outro passo. – Não vamos começar com piadinhas racistas. – É sério, Bella, tem certeza de que não é? – Ele esticou o braço avermelhado para perto de mim. A diferença não era lisonjeira. – Nunca vi ninguém mais branco do que você... Bom, a não ser por... – Ele se interrompeu e eu desviei os olhos, tentando não entender o que ele estivera prestes a dizer. – Então, vamos andar de moto ou não? – Vamos nessa – concordei, com mais entusiasmo do que teria um minuto antes. Sua frase inacabada me lembrou do motivo de estar ali.
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8. ADRENALINA 

– Muito bem, onde está a embreagem? Apontei para a alavanca em meu punho esquerdo. Soltar o punho foi um erro. A moto pesada balançou embaixo de mim, ameaçando me derrubar de lado. Agarrei o punho de novo, tentando mantê-la reta. – Jacob, não vai ficar de pé – reclamei. – Vai, quando você estiver em movimento – prometeu ele. – Agora, onde está seu freio? – Atrás do meu pé direito. – Errado. Ele segurou minha mão direita e pôs meus dedos em volta da alavanca acima do acelerador. – Mas você disse... – Este é o freio que você quer. Não use o freio traseiro agora, isso é para depois, quando você souber o que está fazendo. – Não parece certo – disse, desconfiada. – Os dois freios não são importantes? – Esqueça o freio traseiro, está bem? Olhe... – Ele envolveu a minha mão com a dele e me fez apertar a alavanca para baixo. – É assim que você freia. Não esqueça. – Ele apertou minha mão outra vez. – Tudo bem – concordei. – Acelerador? Girei o punho direito. – Câmbio? Cutuquei-o com a panturrilha esquerda. – Muito bem. Acho que você entendeu todas as partes. Agora só precisa colocar a moto em movimento.
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– Arrã – murmurei, com medo de dizer mais. Meu estômago se contorcia estranhamente, e pensei que minha voz pudesse falhar. Eu estava apavorada. Tentei dizer a mim mesma que o medo não tinha sentido. Eu já vivera o pior possível. Comparada àquilo, por que qualquer coisa me assustaria agora? Eu devia poder olhar a morte de frente e rir. Meu estômago não engoliu essa. Olhei o longo trecho de estrada de terra, cercada dos dois lados pelo verde espesso e indistinto. A estrada era arenosa e molhada. Melhor do que lama. – Quero que puxe a embreagem para baixo – instruiu Jacob. Envolvi a embreagem com os dedos. – Agora isto é crucial, Bella – enfatizou Jacob. – Não a solte, está bem? Quero que finja que eu lhe dei uma granada. O pino foi arrancado e você está segurando o detonador. Apertei com mais força. – Ótimo. Acho que pode dar a partida? – Se eu mexer meu pé, vou cair – disse entre os dentes, os dedos firmes em volta da granada. – Tudo bem, vou fazer isso. Não solte a embreagem. Ele recuou um passo, depois de repente bateu o pé no pedal. Houve um som breve, cortante, e a força de seu golpe virou a moto. Comecei a cair de lado, mas Jake pegou a moto antes que ela me atirasse no chão. – Firme aí – encorajou ele. – Ainda está com a embreagem? – Sim – respondi, ofegante. – Firme os pés... Vou tentar de novo. – Mas ele também pôs a mão na parte de trás do banco, só por segurança. Foram necessárias mais quatro tentativas até a ignição pegar. Pude sentir o motor rugindo embaixo de mim como um animal furioso. Eu agarrava a embreagem até meus dedos doerem. – Tente soltar o acelerador – sugeriu ele. – Muito de leve. E não solte a embreagem.
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Hesitante, girei o punho direito. Embora o movimento fosse mínimo, a moto grunhiu embaixo de mim. Agora parecia ter raiva e fome. Jacob sorriu, muito satisfeito. – Lembra como engrenar a primeira? – perguntou ele. – Lembro. – Bom, faça isso agora. – Tudo bem. Ele esperou alguns segundos. – Pé esquerdo – soprou ele. – Eu sei – falei, respirando fundo. – Tem certeza de que quer fazer isso? – perguntou Jacob. – Você parece assustada. – Estou bem – rebati. Baixei um grau do câmbio com o pé. – Muito bom – ele me elogiou. – Agora, muito delicadamente, solte a embreagem. Ele se afastou um passo da moto. – Quer que eu largue a granada? – perguntei, incrédula. Não admira que ele tenha chegado para trás. – É assim que você anda, Bella. Faça isso aos pouquinhos. Enquanto eu começava a afrouxar a embreagem, fiquei chocada ao ser interrompida por uma voz que não pertencia ao garoto parado a meu lado. “Isso é imprudente, infantil e idiota, Bella”, fuzilou a voz aveludada. – Ah! – arfei e minha mão soltou a embreagem. A moto deu um pinote embaixo de mim, jogando-me para a frente, e depois desabou no chão; metade do meu corpo embaixo dela. O motor engasgou e parou. – Bella? – Jacob tirou a moto pesada de cima de mim com facilidade. – Você se machucou? Mas eu não estava ouvindo. “Eu lhe disse”, murmurou a voz perfeita, clara como cristal. – Bella? – Jacob sacudiu meu ombro. – Estou bem – murmurei, confusa.
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Mais do que bem. A voz em minha cabeça tinha voltado. Ainda soava em meus ouvidos – ecos macios de veludo. Minha mente disparou depressa pelas possibilidades. Não havia familiaridade ali – numa estrada que eu nunca vira, fazendo algo que nunca fizera na vida – nenhum déjà vu. Então as alucinações deviam ser disparadas por outro motivo... Sentia a adrenalina correndo por minhas veias de novo e pensei ter a resposta. Uma combinação de adrenalina e perigo, ou talvez só estupidez. Jacob me colocava de pé. – Você bateu a cabeça? – perguntou ele. – Acho que não. – Sacudi a cabeça de um lado para outro, verificando. – Não quebrei a moto, não é? – Essa idéia me preocupava. Eu estava ansiosa para tentar de novo; agir com imprudência mostrou ser melhor do que eu pensava. Podia deixar a trapaça de lado. Talvez eu tivesse encontrado uma forma de gerar as alucinações – isso era muito mais importante. – Não. Você só afogou o motor – disse Jacob, interrompendo minhas breves especulações. – Você soltou a embreagem rápido demais.Assenti. – Vamos tentar de novo. – Tem certeza? – perguntou Jacob. – Afirmativo. Dessa vez tentei dar a partida eu mesma. Era complicado; eu tinha de pular um pouco para descer o pedal com força suficiente, e sempre que fazia isso a moto tentava me derrubar. As mãos de Jacob pairavam sobre os punhos, prontas para me pegar se eu precisasse dele. Foram várias tentativas boas, a maioria ruins, até que o motor pegasse e rugisse sob meu corpo. Lembrando-me de segurar a granada, eu experimentei girar o acelerador um pouco. Ele rosnou ao mais leve toque. Agora meu sorriso espelhava o de Jacob. – Solte a embreagem – lembrou-me ele. “Então você quer mesmo se matar? É disso que se trata?”, falou a outra voz de novo, o tom severo.
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Dei um sorriso duro – ainda estava funcionando – e ignorei as perguntas. Jacob não ia deixar que nada de grave acontecesse comigo. “Vá para a casa de Charlie”, ordenou a voz. Sua mera beleza me maravilhou. Eu não podia deixar que minha lembrança se perdesse, qualquer que fosse o preço. – Solte devagar – encorajou-me Jacob. – Vou soltar – eu disse. Fiquei um pouco incomodada ao perceber que respondia aos dois. A voz em minha cabeça rosnou acima do rugido do motor da moto.Dessa vez, tentando me concentrar para não deixar que a voz me assustasse de novo, relaxei a mão aos poucos. De repente, o câmbio engrenou e fui lançada para a frente. E eu estava voando. Havia um vento que não estava ali antes, soprando na pele de meu crânio e fazendo meu cabelo voar para trás com tanta força que parecia estar sendo puxado por alguém. Meu estômago tinha ficado lá atrás, onde dei a partida; a adrenalina percorria meu corpo, formigando em minhas veias. As árvores passavam por mim misturando-se em uma muralha verde. Mas aquela era só a primeira marcha. Meu pé avançou mais um pouco no câmbio enquanto eu girava para ter mais aceleração. “Não, Bella”, a voz colérica e doce como mel ordenou em meu ouvido. “Cuidado com o que está fazendo!” Isso me distraiu da velocidade o suficiente para perceber que a estrada começava a fazer uma curva lenta para a esquerda e eu ainda estava em linha reta. Jacob não me ensinou a virar. – Freios, freios – murmurei comigo mesma e instintivamente desci o pé direito, como se estivesse em minha picape. A moto de repente ficou instável, tremendo primeiro para um lado e depois para outro. Estava me arrastando para a muralha verde, e eu ia rápido demais. Tentei virar o guidom para outra direção, e o súbito deslocamento de peso derrubou a moto no chão, ainda rumo às árvores.
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A motocicleta caiu em cima de mim de novo, rugindo alto, empurrando-me pela areia molhada até que bateu em algum objeto parado. Eu não conseguia enxergar. Meu rosto estava esmagado contra o limo. Tentei levantar a cabeça, mas havia algo no caminho. Eu estava tonta e confusa. Parecia que havia três diferentes grunhidos – a moto em cima de mim, a voz em minha cabeça e outra coisa mais... – Bella! – gritou Jacob, e eu ouvi o ronco da outra moto parar. A moto não me prendia mais ao chão e eu rolei para respirar. Todo o rugido cessou. – Caramba – murmurei. Eu estava agitada. Tinha de ser essa a receita para a alucinação: adrenalina mais perigo mais estupidez. Alguma combinação parecida com essa, de qualquer modo. – Bella! – Jacob se abaixava sobre mim angustiado. – Bella, você está viva? – Estou ótima! – disse, entusiasmada. Flexionei os braços e as pernas. Tudo parecia perfeito. – Vamos fazer de novo. – Acho que não. – Jacob ainda estava preocupado. – Acho melhor levar você ao hospital primeiro. – Eu estou bem. – Hmmm, Bella? Você tem um corte enorme na testa e está sangrando – informou-me ele. Passei a mão na testa. Estava mesmo molhada e pegajosa. Eu só sentia o cheiro de musgo molhado em meu rosto e isso conteve a náusea. – Ah, me desculpe, Jacob. – Apertei o corte com força, como se pudesse obrigar o sangue a voltar para minha cabeça. – Por que está se desculpando por sangrar? – perguntou ele, enquanto passava o braço comprido por minha cintura e me puxava para me colocar de pé. – Vamos. Eu dirijo. – Ele estendeu a outra mão para a chave. – E as motos? – perguntei, entregando a chave a ele. Ele pensou por um segundo.
– Espere aqui. E pegue isso. – Ele tirou a camiseta, já suja de meu sangue, e a atirou para mim. Eu a embolei e segurei com força
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em minha testa. Começava a sentir o cheiro do sangue; respirei fundo pela boca e tentei me concentrar em outra coisa. Jacob pulou na moto preta, deu a partida na primeira tentativa e seguiu pela estrada, espalhando areia e seixos. Ele parecia atlético e profissional curvado no guidom, a cabeça baixa, o rosto para a frente, o cabelo brilhante chicoteando na pele avermelhada das costas. Meus olhos se estreitaram de inveja. Eu tinha certeza de que não ficava assim em minha moto. Fiquei surpresa com a distância que eu percorrera. Mal podia ver Jacob ao longe quando ele enfim chegou à picape. Ele atirou a moto na caçamba e disparou para o banco do motorista. O rugido ensurdecedor que ele fez com meu carro na pressa para voltar e me pegar me aborreceu. Minha cabeça doía um pouco e meu estômago estava inquieto, mas o corte não era grave. Feridas na cabeça sangram mais do que a maioria das outras. A urgência dele não era necessária. Jacob deixou o motor da picape ligado ao correr até mim e passar de novo o braço em minha cintura. – Muito bem, vamos colocar você no carro. – Sinceramente, estou bem – garanti quando ele me ajudou a entrar. – Não fique tão agitado. É só um pouco de sangue. – Só muito sangue – eu o ouvi resmungar enquanto voltava para pegar minha moto. – Agora, vamos pensar nisso por um segundo – comecei quando ele entrou de volta. – Se você me levar para a emergência desse jeito, Charlie certamente vai saber. – Olhei a areia e a terra presas no meu jeans. – Bella, acho que você precisa levar uns pontos. Não vou deixar você sangrar até a morte. – Não vou – prometi. – Só vamos levar as motos de volta primeiro, depois paramos na minha casa para eu me livrar das provas antes de irmos ao hospital. – E Charlie? – Ele disse que tinha que trabalhar hoje. – Tem certeza mesmo?
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– Confie em mim. Eu sangro com facilidade. Não é nem de longe tão terrível quanto parece. Jacob não ficou satisfeito – sua boca se virou inteira para baixo numa careta estranha – mas ele não queria me meter em problemas. Olhei pela janela, segurando a camiseta dele, arruinada, em minha cabeça, enquanto ele me levava para Forks. A moto era melhor do que eu sonhava. Serviu a seu propósito original. Eu trapaceei – quebrei minha promessa. Fui imprudente em necessidade. Eu me sentia um pouco menos patética agora que as promessas tinham sido quebradas dos dois lados. E depois a descoberta da chave para as alucinações! Pelo menos, eu esperava ter descoberto. Ia testar a teoria assim que fosse possível. Talvez me liberassem rapidamente no pronto-socorro e eu pudesse tentar de novo naquela noite. Correr pela estrada daquele jeito foi maravilhoso. A sensação do vento no rosto, a velocidade e a liberdade... Lembrou-me de uma vida passada, voando pelo bosque denso sem uma estrada, carregada nas costas enquanto ele corria – parei de pensar bem nesse ponto, deixando que a lembrança fosse interrompida na agonia repentina. Eu me encolhi. – Você ainda está bem? – verificou Jacob. – Estou. – Tentei parecer tão convincente quanto antes. – A propósito – acrescentou ele –, vou desconectar seu pedal de freio hoje à noite. Em casa, fui logo me olhar no espelho; estava mesmo horrível. O sangue secava em manchas espessas na bochecha e no pescoço, colando-se no cabelo enlameado. Fiz um exame clínico em mim mesma, fingindo que o sangue era tinta para não perturbar o meu estômago. Eu respirava pela boca e tudo estava bem. Lavei ao máximo que pude. Depois escondi as roupas com sangue e terra no fundo do cesto de roupa suja, vesti jeans limpo e uma blusa de botões (que eu não tinha de vestir pela cabeça) com o máximo cuidado. Conseguir fazer isso com uma só mão e mantive as duas peças de roupa sem sangue. – Depressa – chamou Jacob.
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– Tudo bem, tudo bem – gritei para ele. Depois de me certificar de não ter deixado nada incriminador para trás, desci ao primeiro andar.– Como estou? – perguntei a ele. – Melhor – admitiu Jacob. – Mas parece que tropecei em sua garagem e bati a cabeça em um martelo? – Claro, acho que sim. – Então, vamos. Jacob correu comigo porta afora e insistiu para dirigir de novo. Estávamos a meio caminho do hospital quando percebi que ele ainda estava sem camisa. Fechei a cara, sentindo-me culpada. – Devíamos ter pego um casaco para você. – Isso teria nos entregado – brincou ele. – Além disso, não está frio. – Está brincando? – Eu tremia e estendi a mão para ligar o aquecedor. Observei Jacob para ver se só estava bancando o durão para que eu não me preocupasse, mas ele parecia bastante confortável. Estava com um braço estendido sobre meu banco, enquanto eu me encolhia para me manter aquecida. Jacob parecia mesmo ter mais de 16 anos – não exatamente 40, mas talvez mais velho do que eu. Quil não ficava lhe devendo muito no quesito músculos, apesar de Jacob afirmar ser um esqueleto. Os músculos eram do tipo magros e longos, mas sem dúvida estavam ali, sob a pele macia. A pele de Jacob era de uma cor tão bonita que me deu inveja. Jacob percebeu que eu estava olhando. – Que foi? – perguntou ele, constrangido de repente. – Nada. Só não tinha percebido antes. Sabia que você é até bonito? Depois que as palavras saíram, fiquei preocupada que ele pudesse entender minha observação impulsiva da maneira errada. Mas Jacob só revirou os olhos.
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– Você bateu a cabeça com muita força, não foi? – Estou falando sério. – Bom, então, eu até agradeço. Eu sorri. – Por nada. Tive de levar sete pontos para fechar o corte na testa. Depois da picada do anestésico local, não senti dor no procedimento. Jacob segurava minha mão enquanto o Dr. Snow costurava, e tentei não pensar por que aquilo era irônico. Ficamos séculos no hospital. Quando terminou, deixei Jacob em casa e corri de volta para fazer o jantar de Charlie. Charlie pareceu engolir minha história sobre a queda na garagem de Jacob. Afinal, eu já fora parar no pronto-socorro antes sem precisar de nada além de meus pés. Aquela noite não foi tão ruim quanto a primeira, depois de eu ter ouvido a voz perfeita em Port Angeles. O buraco voltou, como sempre acontecia quando eu me afastava de Jacob, ma não latejou tanto nas beiradas. Eu já estava fazendo planos, ansiando para ter mais ilusões, e aquilo foi uma distração. Também, eu sabia que me sentiria melhor no dia seguinte, quando estivesse com Jacob de novo. Graças a isso, foi mais fácil suportar o vazio e a familiar dor; havia o alívio em vista. O pesadelo também tinha perdido parte de seu poder. Fiquei aterrorizada pelo vazio, como sempre, mas também fiquei estranhamente impaciente enquanto esperava pelo momento que me faria gritar ao voltar à consciência. Eu sabia que o pesadelo ia terminar.
Na quarta-feira seguinte, antes de eu chegar do pronto-socorro, o Dr. Gerandy ligou para alertar meu pai de que eu podia ter uma concussão e aconselhou-o a me acordar a cada duas horas à noite para se certificar de que não era grave. Os olhos de Charlie se
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estreitaram, desconfiados da explicação boba que tinha dado para meu tropeço. – Talvez você deva ficar fora daquela garagem, Bella – sugeriu ele naquela noite, durante o jantar. Entrei em pânico, preocupada que Charlie estivesse prestes a baixar alguma espécie de decreto que vetaria La Push e, por conseqüência, minha moto. E eu não ia desistir – tivera a mais incrível alucinação naquele dia. Minha ilusão de voz aveludada gritara comigo por quase cinco minutos antes de eu pisar bruscamente no freio e me atirar na árvore. Eu suportaria qualquer dor que aquilo me provocasse naquela noite sem reclamar. – Não aconteceu na garagem – protestei rápido. – Estávamos fazendo uma caminhada numa trilha e tropecei numa pedra. – Desde quando você faz trilha? – perguntou Charlie com ceticismo. – Às vezes trabalhar na Newton’s pode ser contagiante – assinalei. – De tanto passar dia após dia vendendo todas as vantagens da vida ao ar livre, acabamos ficando curiosos. Charlie me olhou sem se deixar convencer. – Vou ter mais cuidado – prometi, disfarçando ao cruzar os dedos debaixo da mesa. – Não me importo que faça caminhadas em trilhas por La Push, mas fique perto da cidade, está bem? – Por quê? – Bom, ultimamente temos recebido um monte de queixas de animais selvagens. A guarda florestal vai verificar, mas por enquanto... – Ah, o urso grande – eu disse com uma compreensão súbita. – É, apareceram uns montanhistas na Newton’s que o viram. Acha que existe algum urso mutante e gigantesco por aí? A testa dele se vincou. – Existe alguma coisa. Fique perto da cidade, está bem? – Claro, claro – assenti depressa. Ele não pareceu totalmente sossegado.
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– Charlie está ficando enxerido – queixei-me com Jacob quando o peguei depois da escola na sexta-feira. – Talvez devêssemos pegar leve com as motos. – Ele viu minha expressão de objeção e acrescentou: – Pelo menos por uma semana, mais ou menos. Você pode ficar longe do hospital por uma semana, não pode? – O que vamos fazer? – Fiquei atormentada. Ele sorriu, animado. – O que você quiser. Pensei naquilo por um minuto – sobre o que eu queria. Eu odiava a idéia de perder até meus breves segundos de proximidade com as lembranças que não doíam – aquelas que vinham espontaneamente, sem que eu pensasse nelas. Se eu não podia ter as motos, teria de encontrar outro caminho para o perigo e para a adrenalina, e isso requeria raciocínio e criatividade. Não era interessante ficar à toa nesse meio-tempo. E se eu ficasse deprimida de novo, mesmo com Jake? Eu tinha de me manter ocupada. Talvez houvesse outra maneira, outra receita... Em outro lugar. A casa tinha sido um equívoco, sem dúvida. Mas a presença dela devia estar impressa em outro lugar, um lugar além de dentro de mim. Tinha de haver um lugar onde ele parecesse mais real do que em meio a todas as paisagens conhecidas que estavam cheias de outras lembranças humanas. Só conseguia pensar em um lugar onde isso podia acontecer. Um lugar que sempre pertenceria a ele e a mais ninguém. Um lugar mágico, cheio de luz. A linda campina que eu só vira uma vez na vida, iluminada pelo sol e pelas centelhas da pele dele. Essa idéia tinha um enorme potencial de se voltar contra mim – podia ser perigosamente dolorosa. Meu peito doeu pro conta do vazio que eu sentia só de pensar no assunto. Era difícil me manter firme, não me trair. Mas, com certeza, entre todos os lugares, eu poderia ouvir a voz dele ali. E eu já tinha dito a Charlie que estava fazendo trilha...–No que está pensando tanto? – perguntou Jacob.
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– Bom... – comecei devagar. – Uma vez eu descobri um lugar no bosque... Acabei chegando nele quando estava, hmmm, caminhando. Uma pequena campina, o lugar mais lindo que já vi. Não sei se conseguiria encontrá-lo de novo sozinha. Precisaria de algumas tentativas... – Podemos usar uma bússola e um esquema de grade para indicar o caminho – disse Jacob, prestativo e confiante. – Sabe de onde partiu? – Sei, pouco abaixo da trilha onde a 110 termina. Acho que fui mais para o sul. – Legal. Vamos encontrar. – Como sempre, Jacob topava qualquer atividade que eu quisesse. Por mais estranha que fosse. Assim, no sábado à tarde, experimentei minhas novas botas de caminhada – compradas naquela manhã, usando pela primeira vez meu desconto de vinte por cento para funcionários –, peguei meu mapa topográfico da península de Olympic e dirigi para La Push. Não partimos imediatamente; primeiro, Jacob se esparramou pelo chão da sala de estar – tomando todo o espaço – e, por uns bons vinte minutos, desenhou uma teia complicada na seção principal do mapa enquanto eu me empoleirava numa cadeira da cozinha e conversava com o pai dele. Billy não parecia preocupado com nossa excursão. Fiquei surpresa que Jacob tivesse contado a ele aonde íamos, dado o estardalhaço que as pessoas estavam fazendo a respeito do urso. Queria pedir a Billy para não contar nada daquilo a Charlie, mas tive medo que a solicitação provocasse o resultado contrário. – Talvez a gente veja o superurso – brincou Jacob, com os olhos no desenho. Olhei para Billy rapidamente, temendo uma reação ao estilo de Charlie. Mas Billy se limitou a rir do filho. – Então talvez devam levar um pote de mel, só por precaução. Jake riu. – Espero que suas botas novas sejam rápidas, Bella. Um potinho não vai manter um urso faminto ocupado por muito tempo.
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– Eu só tenho que ser mais rápido do que você. – Boa sorte! – disse Jacob, revirando os olhos enquanto dobrava o mapa. – Vamos. – Divirtam-se – trovejou Billy, girando a cadeira para a geladeira. Charlie não era uma pessoa de convivência difícil, mas me parece que era mais fácil para Jacob do que para mim. Dirigi para o finalzinho da estrada de terra, parando perto da placa que marcava o início da trilha. Já fazia muito tempo desde que estivera ali, e meu estômago reagiu nervoso. Aquilo podia ser muito ruim. Mas valeria a pena se eu ouvisse a voz dele. Saí do carro e olhei a densa muralha verde. – Eu fui por aqui – murmurei, apontando para a frente. – Hmmmm – murmurou Jake. – Que foi? Ele olhou na direção que apontei, depois para a trilha claramente marcada e de volta para mim. – Pensei que fosse o tipo de garota que só anda na trilha. – Eu não. – Dei um sorriso amarelo. – Sou uma rebelde. Ele riu, depois pegou o mapa. – Me dê um segundo. – Ele segurou a bússola com habilidade, girando o mapa até que ficasse no ângulo que queria. – Tudo bem... Primeira linha na grade. Vamos. Eu sabia que estava atrasando Jacob, mas ele não reclamou. Tentei não me ater à minha última viagem por aquela parte do bosque, com uma companhia muito diferente. As lembranças normais ainda eram perigosas. Se eu me deixasse fracassar, terminaria com os braços grudados no peito para não desmoronar, arfante, e como explicaria isso a Jacob? Manter-me concentrada no presente não foi tão difícil como eu pensara. O bosque era parecido com qualquer outra parte da península e Jacob criava um estado de espírito muito diferente.
Ele assobiava animado, uma música desconhecida, balançando os braços e andando com facilidade pelo terreno irregular. As
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sombras não pareciam tão escuras. Não com meu sol particular me fazendo companhia. Jacob olhava a bússola a cada poucos minutos, mantendo-nos em linha reta com um dos raios de sua grade. Ele realmente parecia saber o que estava fazendo. Pensei elogiá-lo, mas me contive. Sem dúvida, ele acrescentaria mais alguns anos a sua idade já superestimada. Minha mente vagava enquanto eu caminhava, e surgiu uma curiosidade. Eu não tinha me esquecido da conversa que tivéramos perto do penhasco – estava esperando que ele levantasse o assunto de novo, mas não parecia que isso fosse acontecer. – Ei... Jake? – perguntei, hesitante. – Sim? – Como estão as coisas... com Embry? Ele voltou ao normal? Jacob ficou em silêncio por um minuto, ainda avançando a passos largos. Quando estava uns três metros à frente, parou para me esperar. – Não. Ele não voltou ao normal – disse Jacob quando o alcancei, os cantos da boca se curvando. – Ele não voltou a andar conosco. – Logo me arrependi de ter tocado no assunto. – Ainda com Sam. – É. Ele passou o braço por meu ombro e parecia tão perturbado que não me esquivei descontraidamente, como faria em outra ocasião. – Eles ainda olham estranho para você? – quase sussurrei. Jacob olhou as árvores. – Às vezes. – E Billy? – Útil como sempre – disse ele num tom amargurado, de raiva, que me perturbou. – Nosso sofá está sempre às ordens – ofereci. Ele riu, rompendo a melancolia que não lhe era natural. – Mas pense na situação em que Charlie ficaria... Quando Billy chamasse a polícia para dar queixa de meu seqüestro.
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Ri também, feliz por Jacob ter voltado ao normal. Paramos quando ele disse que tínhamos andado uns dez quilômetros, cortamos para o oeste por pouco tempo e voltamos por outra linha de sua grade. Tudo parecia exatamente igual, e tive a sensação de que minha busca tola estava condenada. Precisei aceitar ainda mais a realidade quando começou a ficar mais escuro, o dia sem sol desaparecendo em uma noite sem estrelas, mas Jacob estava mais confiante. – Se você tem certeza de que começamos do ponto certo... – Ele olhou para mim. – Sim, tenho certeza. – Então vamos encontrar – prometeu ele, pegando minha mão e me puxando por uma massa de samambaias. Do outro lado, estava a picape. Ele gesticulou para o carro com orgulho. – Confie em mim. – Você é bom nisso – admiti. – Mas da próxima vez vamos trazer lanternas. – De agora em diante, vamos deixar para fazer trilha aos domingos. Eu não sabia que você era tão lenta. Puxei a mão e fui batendo os pés para o lado do motorista enquanto ele ria da minha reação. – Preparada para outra tentativa amanhã? – perguntou, sentando-se no banco do carona. – Claro. A não ser que queira sair sem mim, para eu não prender você com meu passo de lesma. – Eu sobrevivo a isso – garantiu-me. – Mas, se vamos fazer trilha outra vez, você podia arrumar uns band-aids. Aposto que está sentindo essas botas novas agora mesmo. – Um pouco – confessei. Parecia que eu tinha mais bolhas do que espaço para acomodá-las. – Espero ver o urso amanhã. Fiquei meio decepcionado com isso. – É, eu também – concordei com um tom de sarcasmo. – Talvez amanhã tenhamos sorte e alguma coisa nos devore!
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– Os ursos não comem gente. Não temos um gosto tão bom. – Ele sorriu para mim na cabine escura do carro. – É claro que você pode ser uma exceção. Aposto que tem um gosto bom. – Muito obrigada – eu disse, desviando os olhos. Ele não era a primeira pessoa a me falar isso.

9. TRIÂNGULO 

O tempo começou a passar muito mais rápido do que antes. Escola, trabalho, Jacob – não necessariamente nessa ordem – criaram um padrão simples e tranqüilo a seguir. E Charlie conseguiu o que queria: eu não era mais infeliz. É claro que eu não podia me enganar cem por cento. Quando parava para avaliar minha vida, o que eu procurava não fazer com muita freqüência, não podia ignorar as implicações de meu comportamento. Eu parecia uma lua perdida – meu planeta destruído em algum cenário desolado de cinema-catástrofe – que continuava, apesar de tudo, a rodar numa órbita muito estreita pelo espaço vazio que ficou, ignorando as leis da gravidade. Eu estava melhorando com a moto, o que significava menos curativos para preocupar Charlie. Mas também significava que a voz em minha cabeça começara a sumir, até que não a ouvi mais. Silenciosamente, entrei em pânico. Atirei-me na busca pela campina com uma intensidade um tanto frenética. Vasculhei meu cérebro à procura de outras atividades que gerassem adrenalina. Não acompanhava os dias que passavam – não havia motivo para isso, já que eu tentava viver o máximo possível no presente, sem passado se desvanecendo, nem futuro iminente. Então, fiquei surpresa quando Jacob colocou em pauta uma data em um de nossos dias de dever de casa. Estava esperando quando parei o carro na frente da casa dele. – Feliz Dia de São Valentino, o Dia dos Namorados – disse ao me receber, sorrindo, mas baixando a cabeça.
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Ele estendeu uma caixa pequena e cor-de-rosa, equilibrando-a na palma da mão. Balinhas no formato de corações. – Bom, eu me sinto uma imbecil – murmurei. – Hoje é o Dia dos Namorados? Jacob sacudiu a cabeça, fingindo tristeza. – Às vezes você é tão desligada. É, é o Dia dos Namorados. Então, vai ser minha namorada? Já que não me deu uma caixa de balas de cinqüenta centavos, é o mínimo que pode fazer. Eu começava a ficar pouco á vontade. As palavras eram brincalhonas, mas só na superfície. – O que exatamente isso implica? – eu me esquivei. – O de sempre... Escrava a vida toda, esse tipo de coisa. – Ah, bom, se é só isso... – Eu peguei a caixa. Mas tentava pensar em um modo de deixar os limites bem claros. De novo. Eles pareciam estar muito confusos para Jacob. – E aí, o que vamos fazer amanhã? Trilha ou pronto-socorro? – Trilha – decidi. – Você não é o único que pode ser obsessivo. Estou começando a pensar que imaginei aquele lugar... – Franzi a testa. – Vamos encontrar – garantiu-me ele. – Moto na sexta? – propôs ele. Vi uma chance e a aproveitei sem parar para pensar. – Vou ao cinema na sexta. Há séculos estou prometendo sair com minha turma do almoço. – Mike ia ficar satisfeito. Mas o rosto de Jacob desmoronou. Percebi a expressão em seus olhos escuros antes que ele os desviasse para o chão. – Você vai também, não é? – acrescentei depressa. – Ou será um sacrifício muito grande sair com o pessoal chato do último ano? – Era minha oportunidade de impor uma distância entre nós. Não suportava a idéia de magoar Jacob; parecíamos estar estranhamente ligados, e a dor dele provocava pequenas pontadas em minha própria dor. Além disso, a idéia de ter a companhia dele naquela provação – eu prometera mesmo a Mike, mas não estava nada animada em cumprir a promessa – era tentadora demais. – Gostaria que eu fosse, com seus amigos lá?
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– Sim – admiti com sinceridade, sabendo, ao continuar, que eu devia estar dando um tiro no próprio pé com aquelas palavras. – Vai ser muito mais divertido se você estiver lá. Leve Quil e vai ser uma festa. – Quil vai ficar louco. Sair com veteranas. – Ele riu e revirou os olhos. Não falei em Embry, nem ele. Eu também ri. – Vou tentar arrumar as melhores para ele. Toquei no assunto com Mike na aula de inglês. – Ei, Mike – disse quando a aula acabou. – Você vai estar livre na sexta à noite? Ele olhou para mim, os olhos azuis logo esperançosos. – Vou, vou sim. Quer sair? Formulei minha resposta rápido. – Eu estava pensando em sair em grupo – destaquei a palavra – para ver Alvos em Mira. – Dessa vez eu tinha feito o dever de casa; até li sobre o filme para ter certeza de que não seria pega desprevenida. Devia ser um banho de sangue do começo ao fim. Eu não me recuperara a ponto de suportar um filme romântico. – Não acha divertido? – Claro – concordou ele, visivelmente menos animado. – Que bom. Depois de um segundo, ele quase voltou a seu nível de empolgação anterior. – E se levarmos Angela e Ben? Ou Eric e Katie? Ao que parecia, ele estava decidido a tornar a saída uma espécie de encontro duplo. – Ou todos eles? – sugeri. – E Jessica também, é claro. E Tyler e Conner, e talvez Lauren. – acrescentei sem entusiasmo algum. Eu prometera variedade para Quil. – Tudo bem – murmurou Mike, derrotado.
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– E – continuei – tem uns amigos meus de La Push que estou convidando. Então parece que vamos precisar de seu Suburban, se todo mundo for. Os olhos de Mike se estreitaram de desconfiança. – São os amigos com quem você agora fica estudando? – É, eles mesmos – respondi, toda animada. – Mas você pode ver isso como aula particular... Eles estão só no segundo ano. – Ah! – disse Mike, surpreso. Depois de um segundo pensando, ele sorriu. No final, porém, o Suburban não foi necessário. Jessica e Lauren alegaram estar ocupadas assim que Mike deixou escapar que eu estava envolvida no planejamento. Eric e Katie já tinham planos – era o aniversário de três semanas deles ou coisa assim. Lauren chegou a Tyler e a Conner antes de Mike, então esses dois também estavam ocupados. Até Quil ficou de fora – de castigo por ter brigado na escola. No final, só puderam ir Angela e Ben e, é claro, Jacob. Mas o número reduzido não diminuiu a expectativa de Mike. Ele só falava na sexta-feira. – Tem certeza de que não quer ver Amanhã e para sempre? – perguntou no almoço, citando a comédia romântica da vez, que estava estourando nas bilheterias. – A crítica do site Rotten Tomatoes foi ótima. – Quero ver Alvos em Mira – insisti. – Estou com humor para ação. Quero sangue e tripas! – Tudo bem. – Mike virou a cara, mas antes vi sua expressão de afinal-talvez-ela-esteja-mesmo-louca. Quando cheguei em casa, um carro muito familiar estava estacionado na frente. Jacob estava encostado no capô, um sorriso enorme iluminando o rosto. – Mas não é possível! – gritei ao pular para fora da picape. – Você conseguiu! Nem acredito! Você terminou o Rabbit! Ele estava radiante. – Na noite passada mesmo. Esta é a primeira viagem. – Incrível. – Ergui a mão para cumprimentá-lo.
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Ele bateu a mão na minha, mas a deixou ali, entrelaçando os dedos nos meus. – Então, posso levar você hoje à noite? – Claro que sim – eu disse, depois suspirei. – O que foi? – Desisto... Não posso superar essa. Então, você venceu. Você é o mais velho. Ele deu de ombros, sem se surpreender com minha capitulação. – É claro que sou. O Suburban de Mike fez barulho na esquina. Soltei a mão de Jacob e ele fez uma careta que eu não deveria ver. – Eu me lembro desse cara – disse ele em voz baixa enquanto Mike estacionava do outro lado da rua. – Aquele que pensou que você era namorada dele. Ele ainda está confuso? Ergui uma sobrancelha. – Algumas pessoas são difíceis de desencorajar. – Mas, então – disse Jacob, pensativo –, às vezes a insistência compensa. – Na maioria das vezes é só irritante. Mike saiu do carro e atravessou a rua. – Oi, Bella – ele me cumprimentou, depois seus olhos ficaram preocupados ao ver Jacob. Também olhei brevemente para Jacob, tentando ser objetiva. Ele de fato não parecia nada com um aluno do segundo ano. Era muito alto – a cabeça de Mike mal chegava no ombro de Jacob; eu nem queria pensar onde eu batia perto dele – e seu rosto parecia mais velho do que costumava ser, mesmo um mês antes.– Oi, Mike! Se lembra de Jacob Black? – Não. – Mike estendeu a mão. – Um velho amigo da família – Jacob se apresentou, apertando a mão de Mike. Eles trocaram um aperto mais forte do que o necessário. Quando soltaram as mãos, Mike flexionou os dedos. Ouvi a telefone tocar na cozinha. – É melhor eu atender... Pode ser Charlie – eu disse aos dois e disparei para dentro.
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Era Ben. Angela estava doente, com virose gástrica, e ele não queria sair sem ela. Ele se desculpou por nos dar bolo. Voltei bem devagar para os rapazes que esperavam, sacudindo a cabeça. Torcia com sinceridade para que Angela melhorasse logo, mas tive de admitir que fiquei aborrecida de um modo egoísta com a novidade. Só nós três, Mike, Jacob e eu, juntos à noite – tudo funcionara às mil maravilhas, pensei com um sarcasmo melancólico. Não parecia que a amizade entre Jake e Mike tivesse feito algum progresso enquanto estive ausente. Estavam afastados vários metros um do outro, sem se olharem, esperando por mim; a expressão de Mike era carrancuda, mas a de Jacob era alegre, como sempre. – Ang está doente – disse-lhes com tristeza. – Ela e Ben não vêm. – Acho que a virose está atacando de novo. Austin e Conner também pegaram hoje. Talvez seja melhor fazer isso outro dia – sugeriu Mike. Antes que eu pudesse concordar, Jacob falou. – Eu ainda quero ir. Mas se prefere ficar, Mike... – Não, eu vou – interrompeu ele. – Só estava pensando em Angela e Ben. Vamos. – Ele partiu para o Suburban. – Ei, podemos ir no carro de Jacob? – perguntei. – Eu disse a ele que podia... Ele terminou o carro agora. Construiu do nada, sozinho – eu me gabei, orgulhosa como a mãe de um aluno na lista de melhores da turma. – Tudo bem – disse Mike rapidamente. – Muito bem, então – disse Jacob, como se fosse a palavra final. Ele parecia mais à vontade do que todo mundo. Mike subiu no banco traseiro do Rabbit com cara de nojo. Jacob estava de seu jeito normal, ensolarado, tagarelando a ponto de eu quase me esquecer de Mike de mau humor e em silêncio atrás. Depois Mike mudou de estratégia. Inclinou-se para a frente, pousando o queixo no encosto de meu banco; seu rosto quase tocou o meu. Eu me afastei, virando-me de costas para o pára-brisa.
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– O rádio dessa coisa não funciona? – perguntou Mike com um toque de petulância, interrompendo Jacob no meio de uma frase. – Sim – respondeu Jacob. – Mas Bella não gosta de música. Olhei para Jacob, surpresa. Eu nunca disse isso a ele. – Bella? – perguntou Mike, irritado. – É verdade – murmurei, ainda olhando o perfil sereno de Jacob.– Como pode não gostar de música? – perguntou Mike. Dei de ombros. – Não sei. Simplesmente me irrita. – Umpf. – Mike se recostou no banco. Quando chegamos ao cinema, Jacob me passou uma nota de dez dólares. – O que é isso? – discordei. – Não tenho idade para entrar nesse – ele me lembrou. Eu ri alto. – As idades relativas não valem nada. Billy vai me matar se eu colocar você para dentro? – Não. Disse a ele que você pretendia corromper minha inocência juvenil. Dei uma risadinha, e Mike acelerou o passo para nos acompanhar. Quase quis que Mike tivesse decidido não ir. Ele ainda estava mal-humorado – o que não somava nada à diversão. Mas eu também não queria terminar num encontro sozinha com Jacob. Não ia ajudar em nada. O filme foi exatamente o que prometia. Só nos créditos de abertura, quatro pessoas explodiram e uma foi decapitada. A garota na minha frente colocou as mãos nos olhos e virou o rosto para o peito do namorado. Ele afagava seu ombro e de vez em quando também estremecia. Mike não parecia estar assistindo. Seu rosto estava rígido, olhando a franja da cortina acima da tela. Acomodei-me para agüentar as duas horas, vendo as cores e o movimento na tela em vez de ver o formato das pessoas, dos carros e das casas. Mas depois Jacob começou a rir em silêncio.
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– Que foi? – sussurrei. – Ah, qual é! – sibilou ele. – Espirrou sangue a seis metros daquele cara. Tem coisa mais falsa? Ele riu de novo, enquanto um mastro perfurava outro homem numa parede de concreto. Depois disso, eu passei a prestar atenção ao filme, rindo com ele enquanto a carnificina ficava cada vez mais ridícula. Como eu poderia combater as fronteiras tênues de nosso relacionamento se gostava tanto de ficar com ele? Jacob e Mike se apoderaram dos braços da poltrona dos dois lados. As mãos dos dois pousavam ali de leve, de palma para cima, numa posição que não era natural. Como armadilhas de urso, abertas e preparadas. Jacob estava com a mania de pegar minha mão sempre que surgia uma oportunidade, mas ali, na sala de projeção escura, com Mike olhando, teria um significado diferente – e eu tinha certeza de que ele sabia disso. Não acreditava que Mike estivesse pensando o mesmo, mas a mão dele estava colocada exatamente como a de Jacob.Cruzei os braços com força e esperei que os dois ficassem com a mão dormente. Mike foi o primeiro a desistir. Mais ou menos na metade do filme, puxou o braço, inclinou-se para a frente e apoiou a cabeça nas mãos. No começo pensei que estivesse reagindo a alguma coisa na tela, mas então ele gemeu. – Mike, você está bem? – sussurrei. O casal na frente virou-se para olhar quando ele gemeu outra vez. – Não – ele arfava. – Acho que estou enjoado. Com a luz da tela, eu podia ver o brilho de suor em seu rosto. Mike gemeu de novo e correu para a porta. Eu me levantei para segui-lo e Jacob imediatamente fez o mesmo. – Não, fique – cochichei. – Vou ver se ele está bem. Jacob foi comigo mesmo assim. – Não precisa vir. Aproveite suas oito pratas de carnificina – insisti enquanto íamos pelo corredor.
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– Está tudo bem. Pode ficar com elas, Bella. Esse filme é uma porcaria. – A voz dele se elevou de um sussurro para o tom normal quando saímos da sala. Não havia sinal de Mike no saguão, e fiquei feliz por Jacob ter ido comigo – ele foi até o banheiro dos homens para procurá-lo. Voltou alguns segundos depois. – Ah, tudo bem, ele está lá – disse, revirando os olhos. – Que molenga. Você devia sair com alguém de estômago mais forte. Alguém que ri do sangue que provoca vômito nos homens mais fracos.–Vou ficar atenta para encontrar alguém assim. Estávamos completamente a sós. As duas salas de cinema estavam na metade dos filmes e o saguão estava deserto – bastante silencioso para ouvirmos a pipoca estourando no balcão de balas e guloseimas. Jacob foi se sentar no banco estofado de veludo junto à parede, dando um tapinha no espaço a seu lado. – Acho que ele vai ficar lá por algum tempo – disse Jacob, esticando as pernas compridas ao e acomodar para esperar. Juntei-me a ele com um suspiro. Ele parecia estar pensando em confundir mais algumas fronteiras. E, sem dúvida, assim que me sentei, ele mudou de posição e colocou o braço em meus ombros. – Jake – protestei, afastando-me. Ele baixou o braço, sem parecer nada aborrecido com a pequena rejeição. Estendeu a mão e pegou a minha com firmeza, passando a outra mão em meu pulso quando tentei me afastar de novo. De onde tirava toda essa confiança? – Não, espere só um minuto, Bella – disse ele numa voz calma. – Me diga uma coisa. Fiz uma careta. Não queria fazer aquilo. Não só naquele momento, mas nunca. Àquela altura, não restava nada em minha vida que fosse mais importante do que Jacob Black. Mas ele parecia decidido a estragar tudo. – O que é? – murmurei amarga. – Você gosta de mim, não gosta?
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– Você sabe que gosto. – Mais do que do pateta que está colocando as tripas pra fora ali? – Ele gesticulou para a porta do banheiro. – É – eu suspirei. – Mais do que qualquer outro cara que conheça? – Ele estava calmo, sereno, como se minha resposta não importasse ou ele já soubesse qual seria. – Mais do que das meninas também – assinalei. – Mas é só isso – disse ele, e não era um pergunta. Era difícil responder, dizer a palavra. Será que ele ficaria magoado e me evitaria? Como eu poderia suportar isso? – É – sussurrei. Ele sorriu para mim. – Está tudo bem, sabe. Desde que goste mais de mim. E você me acha até bonito... Estou preparado para ser irritante de tão insistente. – Não vou mudar – eu disse e, embora tenha tentado manter minha voz normal, pude ouvir a tristeza nela. O rosto de Jacob estava pensativo, não mais brincalhão. – Ainda é o outro, não é? Eu me encolhi. Estranho como ele parecia saber que não devia dizer o nome – assim como foi, pouco tempo antes, com a música no carro. Ele conhecia muitas características sobre mim que eu jamais comentara. – Não precisa falar sobre isso – disse-me. Eu assenti, agradecida. – Mas não fique chateada comigo por ficar por perto, está bem? – Jacob afagou as costas da minha mão. – Por que não vou desistir. Eu tenho muito tempo. Suspirei. – Não devia perder seu tempo comigo – eu disse, embora quisesse isso. Em especial se ele estava disposto a me aceitar do jeito que eu era: um produto com defeito. – É o que quero fazer, desde que você goste de ficar comigo.
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– Nem imagino como poderia não gostar de ficar com você – eu lhe disse com sinceridade. Jacob ficou radiante. – Posso conviver com isso. – Só não espera mais – eu o alertei, tentando puxar minha mão. Ele a segurava obstinado. – Isso realmente não incomoda você, incomoda? – perguntou ele, apertando meus dedos. – Não – suspirei. Na verdade a sensação era ótima. A mão dele era muito mais quente do que a minha; ultimamente, eu sempre me sentia fria demais. – E você não liga para o que ele pensa. – Jacob apontou o polegar para o banheiro. – Acho que não. – Então, qual é o problema? – O problema – eu disse – é que isso tem significados diferentes para mim e para você. – Bom – Ele apertou minha mão. –, isso é problema meu, não é? – Tudo bem – murmurei. – Mas não se esqueça disso. – Não vou. Agora a granada sem pino está comigo, hein? – Ele me cutucou nas costelas. Revirei os olhos. Acho que se ele tinha vontade de fazer piada daquilo, tinha todo o direito. Ele riu baixinho por um minuto enquanto seu dedo mindinho distraidamente traçava desenhos na lateral de minha mão. – Você tem uma cicatriz engraçada aqui – disse ele, de repente, girando minha mão para examinar. – Como foi que aconteceu? O indicador de sua mão livre seguiu a linha do arco prateado e longo que mal se via em minha pele branca. Fechei a cara. – Você acha mesmo que eu me lembro de onde vieram todas as minhas cicatrizes?
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Esperei que a lembrança viesse – que se abrisse o buraco. Mas, como acontecia com tanta freqüência, a presença de Jacob me manteve inteira. – É fria – murmurou ele, apertando de leve o lugar onde James tinha me cortado com os dentes. E depois Mike cambaleou para fora do banheiro, o rosto pálido e coberto de suor. Estava péssimo. – Ah, Mike – eu disse, arfando. – Vocês se importam se a gente for embora mais cedo? – sussurrou ele. – Não, claro que não. – Puxei minha mão livre e fui ajudar Mike a andar. Ele parecia desequilibrado. – O filme foi demais para você? – perguntou Jacob cruelmente. O olhar de Mike era malévolo. – Na verdade não vi nada – murmurou. – Fiquei enjoado antes que as luzes se apagassem. – Por que não disse nada? – reclamei com ele enquanto seguíamos cambaleantes para a saída. – Esperava que passasse – disse ele. – Só um minutinho – falou Jacob enquanto chegávamos à porta. Ele foi correndo até o balcão. – Pode me arrumar um balde de pipoca vazio? – perguntou à vendedora. Ela olhou para Mike, depois atirou um balde para Jacob. – Leve-o para fora, por favor – pediu. Obviamente, ela era a pessoa que teria de limpar o chão. Conduzi Mike para o ar frio e úmido. Respirou fundo. Jacob estava bem atrás de nós. Ele me ajudou a colocar Mike no banco traseiro do carro e lhe entregou o balde, com um olhar sério. – Por favor. – Foi só o que Jacob disse. Abrimos as janelas, deixando o ar gelado da noite soprar pelo carro, na esperança de que isso ajudasse Mike. Abracei minhas pernas para me aquecer. – Com frio de novo? – perguntou Jacob, colocando o braço em volta de mim antes que eu pudesse responder. – Você não está?
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Ele sacudiu a cabeça. – Deve estar com febre ou coisa assim – murmurei. Estava congelando. Toquei a testa dele com os dedos e a cabeça estava mesmo quente. – Caramba, Jake... Você está pegando fogo! – Eu estou bem. – Ele deu de ombros. – Em ótima forma. Franzi a testa e toquei em sua cabeça de novo. A pele ardeu sob meus dedos. – Suas mãos parecem de gelo – reclamou ele. – Talvez seja eu – concordei. No banco traseiro, Mike gemeu e vomitou no balde. Fiz uma careta, esperando que meu estômago suportasse o som e o cheiro. Jacob olhava ansiosamente por sobre o ombro para e certificar de que o carro não estava sujo. A estrada parecia mais longa no caminho de volta. Jacob ficou em silêncio, pensativo. Deixara o braço esquerdo em volta de mim e era tão quente que o vento frio parecia bom. Eu olhava pelo pára-brisa, cheia de culpa. Fora muito errado incentivar Jacob. Puro egoísmo. Não importava que eu tentasse deixar clara minha posição. Se ele tinha alguma esperança de que tudo aquilo pudesse se transformar em algo além de amizade, então eu não tinha sido muito clara. Como eu poderia explicar de modo que ele entendesse? Eu era uma concha vazia. Como uma casa vazia, por meses sem ninguém – uma casa condenada –, eu era completamente inabitável. Agora havia algumas melhorias. A sala da frente estava em reformas. Mas era só isso – só um cômodo pequeno. Ele merecia alguém melhor – melhor do que uma casa em ruínas com um cômodo só. Nenhum investimento dele poderia me deixar funcional outra vez. E, no entanto, apesar de tudo, eu sabia que não iria afastá-lo. Precisava muito dele, e era egoísta. Talvez pudesse deixar minha posição mais clara, assim ele poderia me abandonar. A idéia me fez tremer e Jacob apertou o braço à minha volta.
Levei Mike para casa no Suburban enquanto Jacob seguia atrás, para me levar para casa. Jacob ficou em silêncio por todo o
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caminho de volta e eu me perguntei se ele estava pensando o mesmo que eu. Talvez estivesse mudando de idéia. – Eu me convidaria a entrar, já que chegamos cedo – disse ele enquanto parávamos ao lado de minha picape. – Mas acho que você pode ter razão quanto à febre. Estou começando a me sentir meio... estranho. – Ah, não, você também não! Quer que o leve para casa? – Não. – Ele sacudiu a cabeça, as sobrancelhas se unindo. – Ainda não estou mal. Só... estranho. Se precisar, paro o carro. – Vai me ligar assim que chegar em casa? – perguntei, ansiosa. – Claro, claro. – Ele franziu o cenho, olhando a escuridão à frente e mordendo o lábio. Abri a porta para sair, mas ele me pegou pelo meu pulso de leve e me manteve ali. De novo percebi como sua pele ficava quente junto à minha. – O que foi, Jake? – perguntei. – Tem uma coisa que quero dizer Bella... Mas acho que vai parecer meio piegas. Eu suspirei. Lá vinha mais do que acontecera no cinema. – Pode falar. – É só que eu sei que você está muito infeliz. E talvez isso não ajude em nada, mas queria que soubesse que sempre estarei a seu lado. Não quero decepcionar você... Prometo que sempre vai poder contar comigo. Caramba, isso está muito piegas. Mas você sabe disso, não sabe? Que eu nunca, jamais vou magoar você? – Sei, Jake. Eu sei disso. Já conto com você, provavelmente mais do que imagina. O sorriso se abriu em seu rosto como o nascer do sol incendiando as nuvens, e eu quis arrancar minha língua. Não disse uma palavra que fosse mentira, mas deveria ter mentido. A verdade era um erro, podia magoá-lo. Eu é que o decepcionaria. Uma expressão estranha apareceu em seu rosto. – Acho realmente que é melhor ir para casa agora – disse ele. Eu saí depressa. – Ligue! – gritei enquanto ele arrancava.
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Eu o olhei partir e ele parecia, pelo menos, estar controlando o carro. Fitei a rua vazia quando ele se foi, eu mesma me sentindo meio enjoada, mas não por alguma coisa física. Como eu queria que Jacob Black tivesse nascido meu irmão, meu irmão de sangue, para eu ter um direito legítimo sobre ele que ainda me deixasse livre de qualquer culpa. Deus sabe que eu jamais quisera usar Jacob, mas não podia deixar de interpretar a culpa que sentia agora como uma indicação disso. Mais ainda, eu jamais quisera amar Jacob. Algo de que eu tinha certeza – sabia disso na boca do estômago, no cerne de meus ossos, sabia disso do alto de minha cabeça à sola dos pés, sabia no fundo de meu peito vazio – era que o amor pode dar às pessoas o poder de despedaçar você. Eu fora irremediavelmente despedaçada. Mas eu precisava de Jacob, precisava dele como de uma droga. Eu o usara como muleta por muito tempo e fora mais fundo do que pretendia ir com qualquer outro. Agora não conseguia suportar que ficasse magoado, e ao mesmo tempo não podia impedir que e magoasse. Ele achava que tempo e paciência me fariam mudar, e embora eu soubesse que ele estava tremendamente errado, sabia também que o deixaria tentar. Ele era meu melhor amigo. Eu sempre o amaria e isso nunca, jamais seria suficiente. Entrei em casa e me sentei perto do telefone, roendo as unhas. – O filme já acabou? – perguntou Charlie, surpreso quando me viu. Ele estava no chão, colado na tevê. Devia ser um jogo emocionante. – Mike passou mal – expliquei. – Uma espécie de virose gástrica. – Você está bem? – Até agora, sim – eu disse meio em dúvida. É claro que eu me expusera ao vírus.
Encostei na bancada da cozinha, minha mão a centímetros do telefone, e tentei esperar paciente. Pensei no olhar estranho de Jacob
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antes de ele ir embora, e meus dedos começaram a tamborilar na bancada. Eu devia ter insistido em levá-lo para casa. Fiquei olhando o relógio, vendo os minutos passarem. Dez. Quinze. Mesmo quando eu estava dirigindo, só precisava de quinze minutos, e Jacob dirigia mais rápido do que eu. Dezoito minutos. Peguei o telefone e disquei. Tocou sem parar. Talvez Billy estivesse dormindo. Talvez eu tivesse discado errado. Tentei de novo. No oitavo toque, quando eu estava prestes a desligar, Billy atendeu. – Alô? – disse ele. Sua voz estava preocupada, como se esperasse por más notícias. – Billy, sou eu, Bella... Jake já chegou? Ele saiu daqui há uns vinte minutos. – Ele está aqui – disse Billy de um jeito monótono. – Ele ia me ligar. – Fiquei meio irritada. – Estava passando mal quando foi embora e fiquei preocupada. – Ele estava... mal demais para ligar. Não está se sentindo bem agora. – Billy parecia distante. Percebi que ele queria ficar com Jacob.– Me avise se precisar de alguma ajuda – ofereci. – Posso ir até aí. – Pensei em Billy, preso em sua cadeira, e Jake tendo de se virar sozinho... – Não, não – disse Billy com pressa. – Estamos bem. Fique em casa. Ele disse isso de um jeito quase rude. – Tudo bem – concordei. – Tchau, Bella. A ligação foi interrompida. – Tchau – murmurei. Bom, pelo menos ele estava em casa. Era estranho, pois não fiquei menos preocupada. Arrastei-me escada acima, atormentada. Talvez devesse ver como ele estava antes de ir para o trabalho. Eu podia levar uma sopa – devíamos ter uma lata de Campbell’s em algum lugar na casa.
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Percebi que todos esses planos estavam cancelados quando acordei cedo – meu relógio marcava quatro e meia – e disparei para o banheiro. Charlie me encontrou ali meia hora depois, deitada no chão, o rosto encostado na beira da banheira. Ele olhou para mim por um longo momento. – Virose gástrica – disse, por fim. – É – gemi. – Precisa de alguma coisa? – Ligue para os Newton por mim, por favor – instruí com a voz rouca. – Diga que tive o mesmo que Mike e que não posso ir hoje. Diga que peço desculpas. – Claro, tudo bem – tranqüilizou-me Charlie. Passei o restante do dia no chão do banheiro, dormindo por algumas horas com a cabeça sobre uma toalha dobrada. Charlie alegou que precisava ir trabalhar, mas desconfiei que ele só queria usar um banheiro. Ele deixou um copo de água no chão a meu lado para me manter hidratada. Acordei quando ele voltou para casa. Vi que estava escuro no meu quarto – já anoitecera. Ele subiu às pressas a escada para ver como eu estava. – Ainda está viva? – Mais ou menos – eu disse. – Quer alguma coisa? – Não, obrigada. Ele hesitou, claramente sem jeito. – Então, tudo bem – disse desceu para a cozinha. Ouvi o telefone tocar alguns minutos depois. Charlie falou com alguém em voz baixa por um momento, depois desligou. – Mike está melhor – gritou para mim. Bom, isso era animador. Ele ficou doente só umas oito horas antes de mim. Mais oito horas. A idéia fez meu estômago revirar e eu me ergui, curvando-me sobre a privada.
Adormeci em cima da toalha de novo, mas ao acordar estava em minha cama, e havia luz do lado de fora da janela. Não me lembrava de ter me mexido; Charlie devia ter me carregado para o
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quarto – também devia ter posto o copo de água na mesinha-de-cabeceira. Sentia-me ressecada. Bebi sedenta a água, embora tivesse um gosto estranho, por ter ficado parada a noite toda. Levantei-me lentamente, tentando não despertar a náusea de novo, Eu estava fraca e com um gosto horrível na boca, mas meu estômago parecia bem. Olhei o relógio. Minhas vinte e quatro horas tinham se passado. Não abusei, limitando-me a comer biscoitos de água e sal no café-da-manhã. Charlie pareceu aliviado ao me ver recuperada. Assim que tive certeza de que não ia mais passar o dia todo no chão do banheiro, liguei para Jacob. Foi ele mesmo que atendeu, mas percebi que não havia melhorado quando ouvi seu cumprimento. – Alô? – A voz estava fraca e falhava. – Ah, Jake – gemi, solidária. – Você parece péssimo. – Eu me sinto péssimo – sussurrou ele. – Desculpe por deixar você ir embora sem mim. Isso foi horrível. – Ainda bem que eu vim – A voz dele ainda era um sussurro. – Não se sinta culpada. Não é culpa sua. – Vai ficar melhor amanhã – prometi. – Quando acordei hoje, estava me sentindo bem. – Você ficou doente? – perguntou ele, desanimado. – Sim, eu também peguei. Mas agora estou bem. – Que bom. – Não havia vida na voz dele. – Então você deve melhorar daqui a algumas horas – eu o encorajei. Mal consegui ouvir a resposta. – Não acho que tenha a mesma coisa que você. – Não está com a virose gástrica? – perguntei, confusa. – Não, é outra coisa. – O que é que você tem? – Tudo – sussurrou ele. – Cada parte do meu corpo dói. A dor na voz dele era quase tangível. – O que eu posso fazer, Jake? O que posso levar para você?
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– Nada. Não pode vir aqui. – Ele foi rude. Lembrou-me de Billy na outra noite. – Eu já fui exposta ao que você pegou – observei. Ele me ignorou. – Vou ligar para você quando puder. Aviso quando puder vir aqui. – Jacob... – Tenho que ir – disse ele com uma urgência repentina. – Ligue quando estiver melhor. – Tudo bem – concordou ele, e sua voz tinha uma amargura estranha. Ele ficou em silêncio por um momento. Esperei que ele se despedisse, mas ele estava esperando também. – Vejo você logo – falei, por fim. – Espere eu ligar – disse ele de novo. – Tudo bem... Tchau, Jacob. – Bella – ele sussurrou meu nome e desligou o telefone.
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10. A CAMPINA 

Jacob não telefonou. Na primeira vez que telefonei, Billy atendeu e me disse que Jacob ainda estava de cama. Fiquei curiosa e quis me certificar de que Billy o tivesse levado ao médico. Billy disse que sim, mas por algum motivo que não consegui identificar não acreditei muito nele. Liguei novamente, várias vezes por dia, nos dois dias seguintes, mas ninguém estava lá. No sábado decidi ir vê-lo, mesmo sem ter sido convidada. Mas a casinha vermelha estava vazia. Isso me assustou – será que Jacob estava tão doente que precisou ir para o hospital? Parei no hospital a caminho de casa, mas a enfermeira da recepção me disse que nem Jacob nem Billy tinham estado lá. Fiz Charlie ligar para Harry Clearwater assim que chegou do trabalho. Esperei, ansiosa, enquanto Charlie conversava com o velho amigo; a conversa pareceu durar uma eternidade sem que Jacob fosse mencionado. Parecia que Harry estivera hospitalizado... Alguns exames do coração. A testa de Charlie ficou toda enrugada, mas Harry brincou com ele, menosprezando o problema, até que Charlie estava rindo de novo. Só então ele perguntou sobre Jacob, e sua parte na conversa não me disse muito, só alguns hmmm e é. Tamborilei os dedos na bancada ao lado até que ele colocou a mão na minha, para me fazer parar. Por fim, Charlie desligou o telefone e se virou para mim. – Harry disse que houve um problema com as linhas telefônicas e que foi por isso que você não conseguiu ligar. Billy levou Jake ao médico e parece que ele está com mononucleose. Está muito cansado, e Billy disse “nada de visitas” – contou ele. – Nada de visitas? – perguntei, incrédula. Charlie ergueu uma sobrancelha. – Agora não vá bancar a criança birrenta, Bells. Billy sabe o que é melhor para o Jake. Ele vai ficar bem logo. Tenha paciência.
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Não insisti. Charlie estava preocupado demais com Harry. Esse era claramente o principal motivo – não seria correto incomodá-lo com minhas preocupações menores. Em vez disso, fui para o andar de cima e liguei o computador. Encontrei um site de medicina e digitei “mononucleose” na caixa de pesquisa. Só o que eu sabia sobre a doença era que podia ser pega pelo beijo, o que com certeza não era o caso de Jake. Li os sintomas com rapidez – a febre, ele sem dúvida teve, mas e o restante? Nenhuma inflamação horrível na garganta, nada de exaustão, nem dores de cabeça, pelo menos não antes de ir para casa depois do cinema; ele disse que se sentia “em ótima forma”. A doença apareceria assim tão rápido? A julgar pelo artigo, primeiro vinha a inflamação. Olhei a tela do computador e me perguntei o motivo exato pelo qual eu estava fazendo aquilo. Por que eu estava... tão desconfiada, como se não acreditasse na história de Billy? Por que Billy mentiria para Harry? Provavelmente, estava sendo uma tola. Só estava preocupada e, para falar com franqueza, temia não ter permissão para ver Jacob – isso me deixava nervosa. Passei os olhos rapidamente pelo restante do artigo, procurando por mais informações. Parei quando cheguei à parte que dizia que a mononucleose podia durar mais de um mês. Um mês? Minha boca se escancarou. Mas Billy não poderia proibir as visitas por tanto tempo. Claro que não. Jake enlouqueceria preso na cama por tanto tempo, sem ninguém com quem conversar. Do que Billy tina medo, aliás? O artigo dizia que uma pessoa com mononucleose precisava evitar atividades físicas, mas não havia nada sobre visitas. A doença não era muito contagiosa. Daria uma semana a Billy, decidi, antes de fazer pressão. Uma semana estava bom.
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Uma semana era muito tempo. Na quarta-feira eu tinha certeza de que não ia sobreviver até sábado. Quando decidir deixar Billy e Jacob em paz por uma semana, não acreditava realmente que Jacob fosse obedecer à regra de Billy. Todo dia, quando chegava da escola, corria até o telefone para verificar os recados. Nunca havia nenhum. Trapaceei três vezes tentando ligar para ele, mas a linha ainda não estava funcionando. Eu ficava em casa tempo demais e sozinha demais. Sem Jacob, e sem minha adrenalina e as distrações, tudo o que eu andara reprimindo começou a se arrastar até mim. Os sonhos voltaram a ficar opressivos. Eu não conseguia mais var o final chegando. Só o nada terrível – metade do tempo no bosque, metade no mar vazio e samambaias onde a casa branca não existia mais. Às vezes Sam Uley estava ali no bosque, observando-me de novo. Eu não prestava atenção nele – não havia conforto algum em sua presença; não fazia com que me sentisse menos só. Não me impedia de gritar ao acordar, noite após noite. O buraco em meu peito estava pior do que nunca. Pensei que o tivesse sob controle, mas me vi recurvada, dia após dia, tentando não desmoronar, ofegante. Eu não estava bem sozinha. Fiquei muito aliviada na manhã em que acordei – gritando, é claro – e me lembrei de que era sábado. Ia ligar para Jacob. E se a linha telefônica ainda estivesse com defeito, ia a La Push. De uma forma ou de outra, seria melhor do que a semana solitária que eu tinha passado. Disquei, depois esperei em grandes expectativas. Fui pega desprevenida quando Billy atendeu no segundo toque. – Alô? – Ah, ei, o telefone está funcionando de novo! Oi, Billy, é Bella. Só estou ligando para saber como está Jacob. Ele já pode receber visita? Eu estava pensando em dar um pulo aí... – Desculpe, Bella – interrompeu Billy, e eu me perguntei se ele estava assistindo à tevê; parecia distraído. – Ele não está.
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– Ah! – Precisei de um segundo. – Então ele está se sentindo melhor? – É. – Billy hesitou por um instante longo demais. – Acabou que não era nada de mononucleose. Só outro vírus. – Ah! Então... onde ele está? – Ele deu uma carona a uns amigos até Port Angeles... Acho que iam pegar uma sessão dupla ou coisa assim. Vai ficar fora o dia todo. – Bom, é um alívio. Fiquei tão preocupada. Estou feliz que ele esteja bem para sair. – Minha voz parecia horrivelmente falsa enquanto tagarelava. Jacob estava melhor, mas não tão bem para me ligar. Saiu com amigos. Eu estava sentada em casa, sentindo mais a falta dele a cada hora. Estava solitária, preocupada, entediada... perfurada – e agora também desolada ao perceber que a semana em que ficamos separados não teve o mesmo efeito sobre ele. – Você queria algo especifico? – perguntou Billy, educado. – Não, na verdade não. – Bom, vou dizer a ele que ligou – prometeu Billy. – Tchau, Bella.– Tchau – respondi, mas ele já havia desligado. Fiquei por um momento ali, com o telefone na mão. Jacob devia ter mudado de idéia, assim como eu temia. Ele ia aceitar meu conselho e parar de perder tempo com alguém que não retribuía seus sentimentos. Senti o sangue fugir de meu rosto. – Algo errado? – perguntou Charlie ao descer a escada. – Não – menti, desligando o telefone. – Billy disse que Jacob está se sentindo melhor. Não era mononucleose. Isso é muito bom. – Ele vem aqui? Ou é você que vai lá? – perguntou Charlie, distraído, enquanto começava a vasculhar a geladeira. – Nenhum dos dois – admiti. – Ele saiu com alguns amigos. O tom de minha voz enfim atraiu a atenção de Charlie. Ele olhou para mim subitamente alarmado, as mãos paralisadas em torno de um pacote de queijo fatiado.
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– Não é meio cedo para o almoço? – perguntei com a maior tranqüilidade que pude, tentando distraí-lo. – Não, estou preparando alguma coisa para levar para o rio... – Ah, dia de pescaria? – Bom, Harry ligou... E não está chovendo. – Ele ia montando uma pilha de comida na bancada enquanto falava. De repente olhou para mim de novo, como se tivesse acabado de perceber algo. – Me diga uma coisa, quer que eu fique com você, já que Jake saiu? – Está tudo bem, pai – eu disse, esforçando-me para parecer indiferente. – Os peixes mordem mais quando o tempo está bom. Ele me fitou, a indecisão evidente em seu rosto. Eu sabia que estava preocupado, temeroso de me deixar sozinha, caso eu ficasse “biruta” de novo. – É sério, pai. Acho que vou ligar para Jessica – menti depressa. Eu preferia ficar sozinha a ter Charlie me vigiando o dia inteiro. – Temos que estudar para a prova de cálculo. Queria a ajuda dela. – Essa parte era verdade. Mas eu podia me virar sem isso. – É uma boa idéia. Você tem passado tanto tempo com Jacob que seus outros amigos vão pensar que você os esqueceu. Eu sorri e assenti, como se me importasse com o que meus outros amigos pensavam. Charlie começou a se virar, mas depois se voltou com uma expressão preocupada. – Ei, vai estudar aqui ou na casa de Jess, não é? – Claro, onde mais seria? – Bom, só quero que você fique longe do bosque, como já lhe disse.Estava tão distraída que precisei de um minuto para entender. – Mais problemas com ursos? Charlie assentiu, a testa franzida. – Temos um montanhista desaparecido... a guarda florestal encontrou o acampamento hoje cedo, mas nenhum sinal dele. Havia umas pegadas bem grandes de animal... É claro que podem ter aparecido depois, farejando a comida... De qualquer modo, agora estão montando armadilhas.
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– Ah! – eu disse vagamente. Não estava de fato ouvindo seus alertas; estava muito mais aborrecida com a situação com Jacob do que com a possibilidade de ser devorada por um urso. Fiquei feliz por Charlie estar com pressa. Ele não esperou que eu ligasse para Jessica, então não tive de encenar nada. Reuni meus livros da escola na mesa da cozinha só para depois guardá-los na bolsa; era exagero meu, e se ele não estivesse ansioso para chegar ao rio, podia ter ficado desconfiado. Fiquei tão ocupada dando a impressão de estar ocupada que o dia ferozmente vazio à frente só me esmagou depois que o vi partir. Só precisei de dois minutos olhando o telefone silencioso da cozinha para concluir que não ia ficar em casa. Pensei nas alternativas. Eu não ia ligar para Jessica. Pelo que sabia, Jessica passara para o lado negro. Podia ir até La Push e pegar minha moto – uma idéia atraente, exceto por um pequeno problema: quem me levaria para a emergência depois, se eu precisasse? Ou... Eu estava com nosso mapa e a bússola na picape. Tinha certeza de que já entendia bem o processo e não me perderia. Talvez pudesse eliminar duas linhas, avançando em nosso cronograma para quando Jacob decidisse me honrar com sua presença de novo. Recusei-me a pensar em quanto tempo isso levaria. Ou se nunca aconteceria. Houve uma breve pontada de culpa quando pensei em como Charlie se sentiria com relação a isso, mas ignorei a sensação. Eu simplesmente não podia ficar em casa de novo. Alguns minutos depois eu estava na conhecida estrada de terra que levava a nenhum lugar em particular. As janelas do carro estavam abertas e eu dirigia o mais rápido que minha picape agüentava, tentando desfrutar do vento no rosto. Estava nublado, mas quase seco – um dia muito bonito para Forks.
Começar me consumiu muito mais tempo do que teria sido com Jacob. Depois de estacionar no lugar de sempre, tive de passar uns bons quinze minutos estudando a pequena agulha da bússola e as
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marcas no mapa, agora amassado. Quando estava razoavelmente segura de que seguia a linha certa na grade, parti para o bosque. O bosque estava cheio de vida, todas as pequenas criaturas aproveitando o momentâneo tempo seco. De certo modo, porém, mesmo com os passarinhos piando e crocitando, os insetos zumbindo ruidosamente em volta de minha cabeça e a ocasional correria do camundongo silvestre pelos arbustos, o bosque parecia mais assustador; lembrou-me de meu pesadelo mais recente. Sabia que era apenas porque eu estava sozinha, sentindo falta do assovio despreocupado de Jacob e do som de outro par de pés no chão molhado. O desconforto aumentava à medida que eu penetrava entre as árvores. Começou a ficar mais difícil respirar – não por causa do esforço, mas porque de novo eu tinha problemas com o buraco idiota em meu peito. Mantive os braços cruzados no peito, firmes, e tentei banir a dor de meus pensamentos. Quase fui embora, mas odiaria desperdiçar o esforço que já tinha feito. O ritmo dos meus passos começou a entorpecer minha mente e minha dor enquanto eu avançava. Minha respiração enfim voltou ao normal e me senti feliz por não ter desistido. Estava melhorando nessa história de explorar a mata; sabia que estava mais rápida. Não percebi o quanto me movimentava com mais eficiência. Pensava ter coberto talvez uns seis quilômetros e ainda nem começara a olhar em volta. E então, tão de repente que me desorientou, passei por um arco baixo, formado por dois galhos de bordo – depois de empurrar as samambaias na altura do peito –, e estava na campina. Era o mesmo lugar, disso eu tive certeza de imediato. Nunca vi outra clareira tão simétrica. Era perfeitamente redonda, como se alguém tivesse criado de propósito o circulo impecável, cortando as árvores sem deixar nenhuma prova dessa violência na relva ondulante. A leste, eu podia ouvir o riacho borbulhando baixinho.
O lugar não era nem de longe tão atordoante sem a luz do sol, mas ainda era lindo e sereno. Não era a estação das flores silvestres;
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o chão estava coberto de relva alta, que balançava na brisa leve como ondas em um lago. Era o mesmo lugar... Mas não guardara o que eu estava procurando. A decepção foi quase tão imediata quanto o reconhecimento. Desabei onde estava, ajoelhando-me ali na beira da clareira, começando a ofegar. Que sentido tinha ir adiante? Nada ficou aqui. Além das lembranças que eu podia reviver sempre que quisesse, se estivesse disposta suportar a dor correspondente – a dor que me tomava naquele momento, que me deixava fria. Não havia nada de especial naquele lugar sem ele. Não tinha certeza do que esperava sentir ali, mas a campina estava sem atmosfera, desprovida de tudo, exatamente como qualquer outro lugar. Assim como meus pesadelos. Minha cabeça girava, tonta. Pelo menos vim sozinha. Senti um surto de gratidão ao perceber isso. Se tivesse encontrado a campina com Jacob... Bom, não havia como disfarçar o abismo em que me afundava naquela hora. Como poderia ter explicado o modo como estava me desfazendo em pedaços, a maneira como tinha de me encolher, como uma bola, para impedir que o buraco vazio me dilacerasse? Foi muito melhor não ter platéia. E também eu não precisaria explicar a ninguém por que eu estava com tanta pressa de ir embora. Jacob teria suposto, depois de tanto trabalho para localizar o lugar idiota, que eu ia querer passar mais de dez segundos ali. Mas eu já estava tentando encontrar foras para me colocar de pé, obrigando-me a sair daquela posição e escapar. Havia tanta dor naquele lugar vazio – eu iria embora engatinhando, se fosse preciso. Que sorte eu estar sozinha! Sozinha. Repeti a palavra com uma satisfação soturna ao me levantar, apesar da dor. Nesse exato momento, uma figura saiu das árvores ao norte, a uns trinta passos de distância.
Uma gama vertiginosa de emoções passou por mim em um segundo. A primeira foi surpresa; eu estava muito longe da trilha e
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não esperava companhia. Depois, à medida que meus olhos focalizavam na figura parada, vendo sua imobilidade completa, a pele pálida, fui tomada por uma esperança cortante. Reprimi-a com violência, combatendo o golpe igualmente agudo de agonia enquanto meus olhos se demoravam no rosto sob o cabelo escuro, o rosto que não era o que eu queria ver. Em seguia veio o medo; aquele não era o rosto pelo qual eu sofria, mas estava bastante perto de mim para eu saber que o homem que me encarava não era um andarilho perdido. E, por fim, o reconhecimento. – Laurent! – gritei, num prazer surpreso. Foi uma reação irracional. Eu devia estar paralisada de medo. Quando nos conhecemos, Laurent era do bando de James. Ele não se envolvera na caçada que se seguiu – em que eu era a presa –, mas só porque teve medo; eu estava sendo protegida por um bando maior que o dele. Teria sido diferente se não fosse assim – na época, ele não teria remorso em fazer de mim uma refeição. É claro que ele devia ter mudado, porque fora para o Alasca morar com outro clã civilizado de lá, a outra família semelhante a... Mas eu não podia me permitir pensar no nome. Sim, o medo teria feito mais sentido, mas só o que experimentei foi uma satisfação dominadora. A campina era um lugar mágico de novo. Uma magia mais sombria do que eu esperava, com certeza, mas mesmo assim, era magia. Ali estava a ligação que eu procurava. A prova, embora remota, de que – em algum lugar no mesmo mundo em que eu vivia – ele existira. Era impossível o quanto Laurent parecia exatamente o mesmo. Imagino que fosse muita tolice e muito humano esperar qualquer tipo de mudança no ano que passou. Mas havia alguma coisa... Eu não conseguia perceber o que era. – Bella? – perguntou ele, parecendo mais pasmo do que eu. – Você lembra. – Eu sorri. Era ridículo que eu ficasse tão eufórica porque um vampiro sabia meu nome. Ele deu um sorriso malicioso. – Não esperava vê-la aqui. – Ele andou na minha direção, com uma expressão de quem se divertia.
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– E haveria outro lugar? Eu moro aqui. Pensei que você tivesse ido para o Alasca. Ele parou a uns dez passos, inclinando a cabeça para o lado. Seu rosto era o mais lindo que eu vi no que parecia fazer uma eternidade. Analisei suas feições com uma sensação de libertação estranhamente ávida. Ali estava alguém com quem que tinha de fingir – alguém que já sabia tudo o que eu podia dizer. – Tem razão – concordou ele. – Fui para o Alasca. Ainda assim, eu não esperava... Quando descobri a casa dos Cullen vazia, pensei que tivessem se mudado. – Ah! Mordi o lábio enquanto o nome fazia minha ferida pulsar. Precisei de um segundo para me recompor. Laurent esperou com os olhos curiosos. – Eles se mudaram – consegui dizer afinal. – Hmmm – murmurou ele. – Estou surpreso por terem deixado você para trás. Você não era o bichinho de estimação deles? – Seus olhos não tinham a intenção de ofender. Dei um sorriso torto. – Mais ou menos isso. – Hmmm – disse ele, pensativo de novo. Nesse exato momento, por que ele parecia o mesmo – demasiado o mesmo. Depois que Carlisle nos contou que Laurent tinha ficado com a família de Tanya, comecei a imaginá-lo, nas raras ocasiões em que pensei nele, com os mesmos olhos dourados dos... Cullen – eu me obriguei a pensar no nome, estremecendo. Eram os olhos que todos os vampiros bons tinham. Recuei um passo, involuntariamente, e seus olhos vermelhos, escuros e curiosos, seguiram o movimento. – Eles costumam visitar? –perguntou ele, ainda despreocupado, mas transferiu seu peso na minha direção. “Minta”, sussurrou ansiosa a bela voz aveludada de minha lembrança.
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Fiquei sobressaltada com o som da voz dele, mas isso não devia ter surpreendido. Eu não corria o maior perigo imaginável? Perto daquilo, a moto era seguro como um gatinho. Fiz o que a voz me disse. – De vez em quando. – Tentei dar alguma leveza à minha voz, fazê-la parecer relaxada. – Imagino que o tempo pareça mais longo para mim. Sabe como eles ficam entretidos... – Estava começando a tagarelar. Tinha de me esforçar para calar a boca. – Hmmm – disse ele de novo. – A casa cheirava como se estivesse desocupada havia algum tempo... “Precisa mentir melhor do que isso, Bella”, insistiu a voz. Eu tentei. – Vou ter de falar com Carlisle que você passou por lá. Ele vai lamentar terem perdido sua visita. – Fingi pensar por um segundo. – Mas é melhor não comentar com... Edward, imagino... – Eu mal consegui pronunciar o nome, e isso distorceu minha expressão, arruinando meu blefe – ...ele tem um gênio. Bom, tenho certeza de que você se lembra. Ele ainda se irrita com toda aquela história com James. – Revirei os olhos e balancei a mão com repúdio, como se fosse uma historia do passado, mas havia certa histeria em minha voz. Perguntei-me se ele reconheceria o que era. – É mesmo? – perguntou Laurent de um jeito agradável... e cético.Dei uma resposta curta, assim minha voz não trairia meu pânico. – Arrã. Laurent deu um passo despreocupado para o lado, olhando a pequena campina. Não me passou despercebido que esse passo o trazia para mais perto de mim. Em minha cabeça, a voz reagiu com um rosnado baixo. – Então, como estão as coisas em Denali? Carlisle disse que você ia ficar com Tanya. – Minha voz era alta demais. A pergunta o fez parar.
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– Gosto muito de Tanya – refletiu ele. – E mais ainda da irmã dela, Irina... Nunca fiquei num lugar por tanto tempo, e gostei das vantagens, da novidade nisso. Mas as restrições são complicadas... Fico surpreso que qualquer um deles consiga se manter firme por muito tempo. – Ele sorriu para mim como quem conspira. – Às vezes eu trapaceio. Não consegui engolir. Meu pé começou a recuar, mas fiquei paralisada quando seus olhos vermelhos baixaram e captaram meu movimento. – Ah! – eu disse numa voz fraca. – Jasper também tem problemas com isso. “Não se mexa”, sussurrou a voz. Tentei fazer o que ele mandava. Era difícil; o instinto de fugir era quase incontrolável. – É mesmo? – Laurent pareceu interessado. – Por isso eles foram embora? – Não – respondi com sinceridade. – Jasper é mais cuidadoso em casa. – Sim – concordou Laurent. – Eu também. O passo para frente que ele deu então foi bastante estudado. – Victoria chegou a encontrar você? – perguntei, sem fôlego, desesperada para distraí-lo. Foi a primeira pergunta que me passou pela cabeça, e me arrependi assim que pronunciei as palavras. Victoria, que tinha me caçado com James e depois desaparecera, não era uma pessoa em quem eu quisesse pensar naquele momento. Mas a pergunta não o deteve. – Sim – disse ele, hesitando neste passo. – Na verdade eu vim para cá como um favor a Victoria. – Ele fez uma careta. – Ela não vai ficar satisfeita com isso. – Com o quê? – disse eu ansiosamente, convidando-o a continuar. Ele olhava fixamente as árvores, longe de mim. Tirei vantagem de sua distração e dei um passo furtivo para trás. Ele me olhou de novo e sorri – a expressão o fez parecer com um anjo de cabelos pretos. – Que eu mate você – respondeu ele num ronronar sedutor.
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Cambaleei mais um passo para trás. O rosnado frenético em minha cabeça me dificultava a audição. – Victoria queria guardar essa parte para ela – continuou ele com tom alegre. – Ela está meio... aborrecida com você, Bella. – Comigo? – guinchei. Ele sacudiu a cabeça e riu. – Eu sei, também me parece meio sem sentido. Mas James era o companheiro dela, e seu Edward o matou. Mesmo ali, prestes a morrer, o nome dele rasgou minhas feridas abertas como uma lâmina serrilhada. Laurent não percebeu minha reação. – Ela achou que era mais adequado matar você do que Edward... Uma reviravolta justa, parceiro por parceiro. Ela me pediu para preparar o terreno, por assim dizer. Eu não imaginava que seria tão fácil chegar a você. Talvez o plano dela tenha falhado... Ao que parece, não será a vingança que ela imaginou, uma vez que você não deve significar muito para ele, se ele a deixou aqui desprotegida. Outro golpe, outro rasgão em meu peito. O peso de Laurent mudou de lado, e eu cambaleei outro passo para trás. Ele franziu o cenho. – Mesmo assim, imagino que ela vá ficar irritada. – Então por que não espera por ela? – comentei com a voz engasgada. Um sorriso cruel refez as feições dele. – Bem, você me pegou em um mau momento, Bella. Eu não vim a [i]este[/i] lugar em missão por Victoria... Estava caçando. Estou com muita sede e você tem um cheiro... simplesmente de dar água na boca. Laurent olhou para mim com aprovação, como se tivesse acabado de me elogiar. “Ameace-o”, ordenou a linda ilusão, com a voz distorcida de pavor.– Ele vai saber que foi você – sussurrei, obediente. – Não vai se safar dessa.
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– E por que não? – O sorriso de Laurent se alargou. Ele fitou a pequena abertura entre as árvores. – O cheiro vai desaparecer com a próxima chuva. Ninguém vai encontrar seu corpo... Você simplesmente desaparecerá, como muitos, muitos outros humanos. Não há motivo para Edward pensar em mim, se ele se der ao trabalho de investigar. Não é nada pessoal, deixe-me tranqüilizá-la, Bella. É apenas sede. “Implore”, pediu minha alucinação. – Por favor – ofeguei. Laurent sacudiu a cabeça, o rosto suave. – Veja dessa maneira, Bella: é muita sorte sua ter sido encontrada por mim. – É? – murmurei, recuando outro passo. Laurent prosseguiu, leve e gracioso. – Sim – garantiu-me. – Serei muito rápido. Você não vai sentir nada, eu prometo. Ah, vou mentir para Victoria sobre esta última parte, naturalmente, só para deixá-la mais calma. Mas se você soubesse o que ela planejou para você, Bella... – Ele sacudiu a cabeça com um movimento lento, quase de repulsa. – Juro que me agradeceria por isso. Eu o encarei com pavor. Ele farejou a brisa que soprava os fios de meu cabelo em sua direção. – De dar água na boca – repetiu, inspirando profundamente. Preparei-me para o ataque, meus olhos se estreitando enquanto eu me encolhia, e o som do rugido furioso de Edward ecoou no fundo de minha cabeça, distante. O nome dele atravessou todos os muros que eu construíra para contê-lo. Edward, Edward, Edward. Eu ia morrer. Não ia importar se eu pensasse nele agora. Edward, eu te amo. Pelos olhos semicerrados, vi quando Laurent parou de inspirar e virou a cabeça de repente para a esquerda. Tive medo de desviar os olhos dele, de seguir seu olhar, embora ele mal precisasse me distrair ou fazer qualquer outro truque para me dominar. Fiquei perplexa demais para sentir alívio quando ele começou a se afastar devagar.
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– Não acredito nisso – disse ele, a voz tão baixa que mal a ouvi. Então tive de olhar. Meus olhos varreram a campina, procurando pela interrupção que me dava mais alguns segundos de vida. No início não vi nada, e meu olhar voltou a Laurent. Ele recuava mais rápido, os olhos fixos no bosque. Depois eu vi; uma forma escura e imensa se esgueirou por entre as árvores, silêncios como uma sombra, e se moveu, decidido, na direção do vampiro. Era enorme – alta como um cavalo, porém mais volumosa, muito mais musculosa. O focinho comprido estava arreganhado, revelando uma fila de incisivos que pareciam adagas. Um rosnado horrível saiu por entre os dentes, estrondando pela clareira como um trovão prolongado. O urso. Só que não era urso algum. Ainda assim, o monstro preto e gigantesco tinha de ser a criatura que causava tanto sobressalto. De longe, qualquer um acharia que era um urso. O que mais poderia ser tão grande e de compleição tão poderosa? Queira ter tido a sorte de vê-lo de longe. Em vez disso, eu andava em silêncio pela relva a apenas três metros dele. “Não se move nem um centímetro”, sussurrou a voz de Edward. Olhei para a criatura monstruosa, minha mente atordoada enquanto eu tentava dar um nome a ela. Havia um traço distintamente canino em sua forma, no modo como se movia. Eu só podia pensar em uma possibilidade, travada pelo pavor como estava. E, no entanto, nunca imaginara que um lobo pudesse ser tão grande. Outro rosnado trovejou daquela garganta e o som me fez estremecer. Laurent recuava para o limite do bosque e sob o terror paralisante a confusão me tomou. Por que Laurent estava fugindo? Decerto, o lobo tinha um tamanho monstruoso, mas era só um animal. Que motivo um vampiro teria para temer um animal? E Laurent estava com medo. Seus olhos estavam arregalados de pavor, como os meus.
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Como se fosse para responder às minhas perguntas, de repente o lobo imenso não estava só. Flanqueando os dois lados dele, outras duas feras gigantescas entraram silenciosas na campina. Uma era cinza-escura, a outra, castanha, nenhuma tão alta quanto a primeira. O lobo cinza passou pelas árvores a apenas alguns metros de mim, os olhos fixos em Laurent. Antes que eu pudesse sequer reagir, apareceram mais dois lobos numa formação em V, como gansos voando para o sul. O que significava que o monstro castanho-avermelhado que passara pelos arbustos por último estava bastante perto para me tocar. Ofeguei involuntariamente e pulei para trás – e essa foi a reação mais estúpida que eu poderia ter tido. Fiquei paralisada de novo, esperando que os lobos se virassem para mim, a mais fraca das presas disponíveis. Por um breve momento quis que Laurent avançasse e esmagasse a alcatéia – devia ser muito simples para ele. Imaginei que, dentre as duas opções diante de mim, ser devorada por lobos era quase certamente a pior. O lobo mais próximo, o castanho-avermelhado, virou a cabeça devagar ao me ouvir arfar. Seus olhos eram escuros, quase pretos. Ele me fitou por uma fração de segundo, o olhar profundo parecendo inteligente demais para um animal selvagem. Enquanto aquilo me olhava, de repente pensei em Jacob – de novo com alívio. Pelo menos fui ali sozinha, àquela campina de conto de fadas repleta de monstros sombrios. Pelo menos Jacob não ia morrer também. Pelo menos eu não teria a morte dele em minhas mãos.Depois, outro rosnado baixo do líder fez o lobo avermelhado girar a cabeça, de volta a Laurent. Laurent encarava o bando de lobos monstruosos com choque e medo evidentes. O choque eu podia entender. Mas fiquei pasma quando, de repente, ele se virou e desapareceu nas árvores. Ele fugira.
Os lobos partiram atrás dele num segundo, lançando-se na relva aberta em poucos saltos, enormes, rosnando e rangendo os
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dentes com tal volume que minhas mãos voaram instintivamente para cobrir os ouvidos. O som cessou com rapidez surpreendente depois que eles sumiram no bosque. E, então, eu estava sozinha de novo. Meus joelhos cederam e eu caí sobre as mãos, o choro se formando na garganta. Eu sabia que precisava partir, e partir já. Quanto tempo os lobos levariam caçando Laurent antes de voltarem até mim? Ou Laurent daria conta deles? Seria ele que viria me procurar? Mas de início não consegui me mexer; meus braços e pernas tremiam e eu não sabia como ficar novamente de pé. Minha mente não conseguia superar o medo, o pavor nem a confusão. Eu não entendia o que acabara de testemunhar. Um vampiro não devia fugir de cães gigantescos daquele jeito. De que adiantariam os dentes deles naquela pele de granito? E os lobos deviam ter guardado distância de Laurent. Mesmo que seu tamanho extraordinário os tivesse ensinado a nada temer, ainda não fazia sentido que eles o perseguissem. Eu duvidava de que a pele marmórea e gelada de Laurent tivesse cheiro de comida. Por que eles rejeitaram um ser de sangue quente e fraco como eu para caçar Laurent? Eu não conseguia entender. Uma brisa fria varreu a campina, balançando a relva como se algo estivesse se movendo por ali. Fiquei de pé com dificuldade, cambaleando, embora o vento soprasse inofensivo por mim. Tropeçando de pânico, virei-me e corri direto para as árvores.
As horas seguintes foram uma agonia. Demorei três vezes mais para escapar do bosque do que levara para chegar à campina. No início não prestei atenção por onde seguia, concentrada apenas no motivo de minha fuga. Quando me recuperei o bastante para me lembrar da bússola, tinha entrado muito no bosque desconhecido e ameaçador. Minhas mãos tremiam tanto que tive de apoiar a bússola no chão lamacento para conseguir ler. A cada poucos minutos eu parava para baixar a bússola e verificar se ainda seguia para noroeste,
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escutando – quando os sons não eram abafados pelo esmagar frenético de meus passos – o sussurro baixo de coisas invisíveis movendo-se na folhagem. O chamado de um gaio me fez pular para trás e cair em um trecho denso de espruce novo, arranhando meus braços e emaranhando meu cabelo com seiva. A repentina disparada de um esquilo subindo numa cicuta me fez gritar tão alto que fez doer meus próprios ouvidos. Enfim apareceu um espaço nas árvores à frente. Saí para a estrada vazia a mais ou menos um quilômetro e meio ao sul de onde deixara a picape. Embora estivesse exausta, andei pela estrada até encontrá-la. Quando me atirei na cabine, estava chorando de novo. Baixei freneticamente as suas travas antes de procurar a chave no bolso. O rugido do motor foi reconfortante e sensato. Ajudou-me a controlar as lágrimas enquanto eu acelerava na direção da estrada principal o máximo que meu carro permitia. Eu estava mais calma, mas ainda um horror quando cheguei em casa. A viatura de Charlie estava na entrada – eu não percebera que era tarde. O céu já escurecera. – Bella? – perguntou Charlie quando bati a porta da frente e tranquei as fechaduras às pressas. – É, sou eu. – Minha voz era instável. – Onde você esteve? – esbravejou ele, aparecendo na porta da cozinha com uma expressão agourenta. Hesitei. Ele devia ter ligado para os Stanley. Era melhor contar a verdade. – Estava fazendo trilha – admiti. Seus olhos eram duros. – O que aconteceu com a ida à casa de Jessica? – Não estava com vontade de estudar cálculo hoje. Charlie cruzou os braços. – Pensei ter lhe pedido para ficar longe do bosque. – É, eu sei. Não se preocupe. Não vou fazer isso de novo. – Estremeci.
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Charlie pareceu pela primeira vez realmente olhar para mim. Lembrei-me que tinha passado algum tempo no chão do bosque; devia estar imunda. – O que aconteceu? – perguntou Charlie. Outra vez decidi que a verdade, ou parte dela, era a melhor opção. Eu estava abalada demais para fingir que passara um dia tranqüilo com a flora e a fauna. – Eu vi o urso. – Tentei dizer isso com calma, mas minha voz estava aguda e tremia. – Mas não era um urso... Era uma espécie de lobo. E eles são cinco. Um preto, grande, um cinza, um castanho-avermelhado... Os olhos de Charlie ficaram arregalados de pavor. Ele correu até mim e me segurou pelos ombros. – Você está bem? Minha cabeça tombou num assentir fraco. – Conte o que aconteceu. – Eles não prestaram atenção em mim. Mas, depois que foram embora, eu corri e caí várias vezes. Ele soltou meus ombros e me deu um abraço. Por um longo tempo, Charlie não disse nada. – Lobos – murmurou. – O quê? – A guarda florestal disse que os rastros não eram de um urso... Mas os lobos não podem ser tão grandes... – Esses são imensos. – Quantos você disse que viu? – Cinco. Charlie sacudiu a cabeça, franzindo a testa de ansiedade. Enfim, falou num tom que não permitia questionamento. – Chega de fazer trilha. – Tudo bem – prometi fervorosamente.
Charlie ligou para a delegacia para relatar o que eu vira. Menti um pouco sobre o local exato onde vira os lobos – alegando que estava na trilha que levava ao norte. Não queria que meu pai soubesse o quão distante tinha entrado no bosque contra a vontade
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dele e, mais importante, não queria que ninguém andasse por onde Laurent pudesse estar procurando por mim. A idéia me deixou enjoada. – Está com fome? – perguntou-me quando desligou o telefone. Sacudi a cabeça, embora devesse estar faminta. Não tinha comido nada o dia todo. – Só cansada – disse a ele. Virei-me para a escada. – Ei – disse Charlie, a voz de repente desconfiada de novo –, você não disse que Jacob ia passar o dia fora? – Foi o que Billy me disse – falei, confusa com a pergunta. Ele examinou minha expressão por um minuto e pareceu satisfeito com o que viu ali. – Hmmm. – Por quê? – perguntei. Parecia que ele estava sugerindo que naquela manhã eu mentira, sobre algo além de estudar com Jessica. – Bom, é só que, quando fui pegar Harry, vi Jacob na frente da loja com alguns amigos. Eu acenei, mas ele... Bom, não sei se me viu. Talvez estivesse discutindo com os garotos. Ele parecia estranho, como se estivesse aborrecido. E... diferente. É como se a gente pudesse ver esse garoto crescendo! Toda vez que o vejo, ele está maior. – Billy disse que Jake e os amigos iam a Port Angeles para ver uns filmes. Eles deviam estar esperando alguém. – Ah. – Charlie assentiu e foi para a cozinha. Fiquei parada no corredor, pensando em Jacob discutindo com os amigos. Perguntei-me se ele teria confrontado Embry sobre a situação com Sam. Talvez fosse esse o motivo de ele ter me dispensado – se isso significava que ele resolveria a situação com Embry, eu estava feliz. Parei para verificar as trancas antes de ir para o quarto. Era uma coisa boba de se fazer. Que diferença uma tranca faria a qualquer um dos monstros que eu vira naquela tarde? Deduzi que só a maçaneta já impediria os lobos, que não tinha polegares opositores. E se Laurent viesse aqui... Ou... Victoria.
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Deitei-me na cama, mas tremia demais para pensar em dormir. Encolhi-me como uma bola sob o cobertor e encarei a realidade apavorante. Não havia nada que eu pudesse fazer. Não havia precauções que pudesse tomar. Não havia um lugar onde pudesse me esconder. Não havia ninguém que pudesse me ajudar. Percebi, com o estômago se contorcendo de náusea, que a situação era até pior do que isso. Porque todos os fatos também se aplicavam a Charlie. Meu pai, dormindo a um quarto de distância, estava a apenas um triz do alvo, que era eu. Meu cheiro os atrairia, quer eu estivesse em casa ou não. Os tremores me sacudiram até meus dentes rangerem. Para me acalmar, fantasiei o impossível: imaginei os grandes lobos alcançando Laurent nas árvores e massacrando o imortal indestrutível como fariam com uma pessoa normal. Apesar do absurdo dessa hipótese, a idéia me reconfortou. Se os lobos o pegassem, ele não poderia contar a Victoria que eu estava sozinha. Se ele não voltasse, talvez ela pensasse que os Cullen ainda estavam me protegendo. Se ao menos os lobos pudessem vencer uma briga dessas... Meus vampiros bons nunca voltariam; como era tranqüilizador imaginar que o outro tipo também podia desaparecer. Fechei bem os olhos e esperei pela inconsciência – quase ansiosa para que meu pesadelo começasse. Melhor do que o rosto pálido e lindo que agora sorria para mim por trás de minhas pálpebras. Em minha imaginação, os olhos de Victoria eram pretos de sede, brilhantes de expectativa, e os lábios se repuxavam acima dos dentes reluzentes de prazer. O cabelo ruivo era brilhante como fogo; voava caoticamente em torno da face desvairada. As palavras de Laurent se repetiram em minha cabeça: Se você soubesse o que ela planejou para você... Apertei a boca com o punho para não gritar.
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11. CULTO 

Sempre que eu abria os olhos para a luz da manhã e percebia que sobrevivera a outra noite, era uma surpresa. Passada a surpresa, meu coração começava a disparar e a palma das mãos suava; eu não conseguia respirar até que me levantasse e checasse se Charlie também sobrevivera. Eu sabia que ele estava preocupado – vendo-me saltar a qualquer ruído alto, ou meu rosto de repente ficar lívido por nenhum motivo que ele pudesse distinguir. Pelas perguntas que me fazia de vez em quando, ele parecia atribuir a mudança à ausência contínua de Jacob.O pavor que sempre vinha antes de tudo em meus pensamentos costumava me distrair do fato de que mais uma semana se passara e Jacob ainda não tinha telefonado. Mas quando conseguia me concentrar em minha vida normal – como se minha vida já tivesse sido realmente normal –, eu ficava aborrecida. Sentia uma saudade terrível dele. Já era bem ruim ficar sozinha antes de estar apavorada. Agora, mais do que nunca, eu ansiava por seu riso despreocupado e seu sorriso contagiante. Precisava da sanidade segura de sua oficina caseira e de sua mão quente em meus dedos frios. Cheguei a esperar que ele ligasse na segunda-feira. Se tivesse havido algum progresso com Embry, ele não iria me contar? Queria acreditar que era a preocupação com o amigo que ocupava o tempo de Jacob, e não que ele apenas tivesse desistido de mim. Liguei na terça, mas ninguém atendeu. Será que o telefone ainda estava com defeito? Ou Billy comprar um identificador de chamadas? Na quarta, liguei a cada meia hora até depois das onze da noite, desesperada para ouvir o calor da voz de Jacob.
Na quinta-feira, fiquei sentada dentro da picape na frente de minha casa – com as travas abaixadas –, a chave na mão, por uma
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hora inteira. Lutava comigo mesma, tentando justificar uma ida a La Push, mas não consegui fazer isso. Eu sabia que Laurent já teria voltado para Victoria. Se eu fosse a La Push, correria o risco de atrair um deles para lá. E se me encontrassem quando Jacob estivesse por perto? Por mais que isso me magoasse, eu sabia que era melhor para Jacob me evitar. Era mais seguro para ele. Já era bem ruim que eu não conseguisse encontrar um modo de garantir a segurança de Charlie. Era mais provável que eles viessem me procurar à noite, e o que eu podia dizer para manter Charlie fora da casa? Se lhe contasse a verdade, ele me internaria. Eu teria suportado isso – até aceitaria de bom grado –, se fosse mantê-lo seguro. Mas Victoria ainda viria procurar por mim na casa dele primeiro. Talvez, se me encontrasse, isso bastasse para ela. Quem sabe ela simplesmente fosse embora após terminar comigo. Então eu não podia fugir. Mesmo que pudesse, para onde iria? Para Renée? Estremeci ao pensar em arrastar minhas sombras letais para o mundo seguro e ensolarado de minha mãe. Eu jamais a colocaria em perigo desse jeito. A preocupação devorava um buraco no meu estômago. Logo eu teria outras perfurações. Naquela noite, Charlie me fez outro favor e ligou para Harry de novo, para saber se os Black tinham saído da cidade. Harry contou que Billy comparecera a uma reunião do conselho na noite de quarta-feira e não falara nada sobre ir embora. Charlie me alertou para não me inquietar tanto – Jacob ligaria quando estivesse pronto para isso. Na tarde de sexta-feira, quando voltava da escola, de repente eu entendi. Eu não estava prestando atenção na conhecida rua, deixando que o som do motor amortecesse meu cérebro e silenciasse as preocupações, quando meu subconsciente deu um veredicto que devia estar sendo forjado havia algum tempo sem que eu me desse conta.
Assim que pensei a respeito, senti-me uma completa idiota por não ter entendido antes. É claro que havia muita coisa na minha
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cabeça – vampiros obcecados com vingança, lobos mutantes gigantescos, um buraco dilacerado no meio do meu peito –, mas, quando segui as evidências, ficou constrangedoramente óbvio. Meu Deus, eu sabia exatamente o que estava acontecendo com Jacob.Jacob me evitando. Charlie dizendo que ele parecia estranho, chateado... As respostas vagas e inúteis de Billy. Era Sam Uley. Até meus pesadelos tentavam me dizer isso. Sam conseguira pegar Jacob. O que quer que estivesse acontecendo com os outros rapazes na reserva, tinha alcançado meu amigo e o roubara. Ele fora tragado para o culto de Sam. Ele não tinha desistido de mim, percebi com um jorro de emoção. Deixei a picape em ponto morto na frente de casa. O que eu devia fazer? Pesei os riscos. Se procurasse Jacob, arriscaria dar a Victoria ou Laurent a oportunidade de me encontrar junto a ele. Se não fosse atrás dele, Sam o mergulharia ainda mais profundo em sua gangue compulsória e assustadora. Se eu não agisse logo, talvez fosse tarde demais. Uma semana havia passado e nenhum vampiro aparecera para mim. Uma semana era tempo mais do que suficiente para terem voltado, então eu não devia ser prioridade para eles. O mais provável, como concluíra antes, seria eles virem atrás de mim à noite. A probabilidade de me seguirem a La Push era muito menor do que a de perder Jacob para Sam. Valia a pena me arriscar na estrada isolada do bosque. Não seria uma visita à toa para ver o que estava acontecendo. Eu sabia o que estava acontecendo. Era uma missão de resgate. Eu falaria com Jacob – o raptaria, se fosse preciso. Assistira a um programa de tevê sobre desprogramação de lavagem cerebral. Tinha de haver algum tipo de cura.
Concluí que era melhor ligar para Charlie primeiro. Talvez o que estivesse acontecendo em La Push fosse algo em que a polícia
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devesse ser envolvida. Disparei para dentro de casa, na pressa para me colocar a caminho. O próprio Charlie atendeu o telefone da delegacia. – Chefe Swan. – Pai, é Bella. – Qual é o problema. Dessa vez eu não podia discutir com seu pressuposto de Dia do Juízo Final. Minha voz tremia. – Estou preocupada com Jacob. – Por quê? – perguntou ele, surpreso com o assunto inesperado. – Eu acho... Acho que tem algo esquisito acontecendo na reserva. Jacob me contou sobre uma coisa estranha que esta acontecendo com os outros rapazes da idade dele. Agora ele age do mesmo jeito e eu estou com medo. – Que tipo de coisa? – Ele usou sua voz profissional, de policial. Isso era bom; estava me levando a sério. – Primeiro, ele estava com medo, depois, me evitou, e agora... Tenho medo de que esteja naquela gangue esquisita de lá, a gangue de Sam. A gangue de Sam Uley. – Sam Uley? – repetiu Charlie, surpreso de novo. – É. A voz de Charlie estava mais relaxada quando ele respondeu. – Acho que você entendeu errado, Bella. Sam Uley é um ótimo rapaz, quer dizer, agora ele é um homem. Um bom filho. Você tem de ouvir Billy falar dele. Ele faz maravilhas com a juventude da reserva. Foi ele que... – Charlie parou no meio da frase e imaginei que ele estava prestes a comentar a noite em que me perdi no bosque. Eu avancei rapidamente. – Pai, não é isso. Jacob tinha medo dele. – Você conversou com Billy sobre isso? – Ele agora tentava me tranqüilizar. Eu o tinha perdido assim que falei em Sam Uley. – Billy não está preocupado.
– Ora, Bella, então tenho certeza de que está tudo bem. Jacob é um garoto; acho que só está zanzando por aí. Tenho certeza de que
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está bem. Afinal de contas, ele não pode passar cada minuto da vida com você. – Não se trata de mim – insisti, mas a batalha estava perdida. – Não acho que precise se preocupar com isso. Deixe que Billy cuide de Jacob. – Charlie... – Minha voz começava a parecer um choramingo. – Bells, agora eu tenho muito para fazer. Dois turistas desapareceram em uma trilha nos arredores do lago Crescent. – Havia ansiedade na voz dele. – O problema do lobo está ficando fora de controle. A notícia me distraiu por um momento – na verdade me atordoou. De forma alguma os lobos teriam sobrevivido a um embate com Laurent... – Tem certeza de que foi isso que aconteceu com eles? – perguntei. – Receio que sim, querida. Havia... – Ele hesitou. – Havia rastros de novo e... dessa vez, um pouco de sangue. – Oh! – Então não deve ter havido um confronto. Laurent devia simplesmente ter fugido dos lobos, mas por quê? O que vi na campina só ficava cada vez mais estranho... mais impossível de entender. – Olhe, eu preciso mesmo ir. Não se preocupe com Jake, Bella. Tenho certeza de que não é nada. – Tudo bem – eu disse com aspereza, frustrada enquanto suas palavras me lembravam da crise mais urgente que eu tinha nas mãos. – Tchau. – Desliguei. Fiquei olhando o telefone por um longo momento. Dane-se, decidi.Billy atendeu depois de dois toques. – Alô? – Oi, Billy – quase grunhi. Tentei parecer mais simpática ao continuar. – Posso falar com Jacob, por favor? – Jake não está aqui. Que novidade. – Sabe onde ele está?
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– Ele saiu com os amigos. – A voz de Billy era cautelosa. – Ah, é? Alguém que eu conheça? O Quil? – Sabia que as palavras não saíram de modo tão casual como eu pretendia. – Não – disse Billy devagar. – Não acho que ele esteja com o Quil hoje. Eu sabia muito bem que não devia tocar no nome de Sam. – Embry? – perguntei. Desta vez, Billy pareceu mais feliz em responder. – É, ele está com Embry. Foi o bastante para mim. Embry era um deles. – Bom, quando ele chegar, diga que me ligue, está bem? – Claro, claro. Tudo bem. – Clique. – A gente se vê, Billy – murmurei para o telefone mudo. Dirigi até La Push decidida a esperar. Se fosse necessário, ficaria sentada na frente da casa dele a noite inteira. Eu ia faltar à aula. Em algum momento o garoto ia ter de chegar em casa e, quando chegasse, ia ter de falar comigo. Eu estava tão preocupada que a viagem que me apavorara pareceu durar só alguns segundos. Antes que me desse conta, o bosque começou a ficar mais esparso e eu sabia que logo veria as primeiras casinhas da reserva. Seguindo a pé, pelo acostamento esquerdo da estrada, havia um menino alto, com um boné de beisebol. Minha respiração parou por um momento na garganta, na esperança de que dessa vez a sorte estivesse comigo e eu encontrasse Jacob sem precisar me esforçar. Mas o menino era largo demais e o cabelo sob o boné era curto. Mesmo de costas, tive certeza de que era Quil, embora ele parecesse maior do que da última vez que o vira. O que havia com aqueles garotos quileutes? Será que estavam dando a eles hormônio do crescimento experimental? Passei para a contramão a fim de parar perto dele. Ele olhou quando o ronco da picape se aproximou. A expressão de Quil me assustou mais do que me surpreendeu. Seu rosto era triste, pensativo, a testa vincada de preocupação.
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– Ah, oi, Bella – ele me cumprimentou, de um jeito apático. – Oi, Quil... Está tudo bem? Ele me fitou de mau humor. – Tudo. – Quer uma carona para algum lugar? – ofereci. – Claro, acho que sim – murmurou. Ele se arrastou pela frente da picape e abriu a porta do carona para entrar. – Para onde? – Minha casa fica no lado norte, bem atrás da loja. – Tem visto Jacob? – A pergunta explodiu de mim quase antes que ele terminasse de falar. Olhei para Quil com ansiedade, esperando pela resposta. Ele olhou através do pára-brisa por um segundo antes de falar. – De longe – disse por fim. – De longe? – repeti. – Tentei segui-los... Ele estava com Embry. – Sua voz era baixa, difícil de ouvir com o motor do carro. Aproximei-me dele. – Sei que me viram. Mas eles se viraram e simplesmente sumiram no bosque. Não acho que estivessem sozinhos... Acho que Sam e seu pessoal podiam estar com eles. Fiquei zanzando pelo bosque por uma hora, gritando por eles. Eu tinha acabado de achar a estrada de novo quando você passou. – Então Sam o pegou. – As palavras saíram meio distorcidas, meus dentes estavam trincados. Quil me olhou. – Você sabe disso? Eu assenti. – Jake me contou... Antes. – Antes – repetiu Quil, e suspirou. – Jacob agora é tão ruim como os outros? – Nunca desgruda de Sam. – Quil virou a cabeça e cuspiu pela janela aberta. – E antes disso... Ele evitava todo mundo? Parecia aborrecido? A voz dele era baixa e rouca.
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– Não por tanto tempo quanto os outros. Talvez um dia. Depois Sam o pegou. – O que você acha disso? Drogas ou algo assim? – Não consigo ver Jacob nem Embry tomando nada desse tipo... Mas o que é que eu sei? O que mais pode ser? E por que os mais velhos não estão preocupados? – Ele sacudiu a cabeça, e agora o medo aparecia em seus olhos. – Jacob não queria fazer parte desse... culto. Não entendo como ele mudou. – Ele me encarou, o rosto assustado. – Eu não quero ser o próximo. Meus olhos espelharam seu medo. Era a segunda vez que eu ouvia descreverem aquilo como um culto. Tremi. – Seus pais não ajudam em nada? Ele fez uma careta. – Ah, tá. Meu avô é do conselho, com o pai de Jacob. Para ele, Sam Uley foi a melhor coisa que aconteceu neste lugar. Nós nos olhamos por um longo momento. Já estávamos em La Push, e minha picape se arrastava na estrada vazia. Eu podia ver a única loja da aldeia não muito à frente. – Vou descer agora – disse Quil. – Minha casa fica ali, à direita. – Ele gesticulou para o pequeno retângulo de madeira atrás da loja. Parei no acostamento e ele saiu. – Vou esperar Jacob – disse a ele numa voz séria. – Boa sorte. – Ele bateu a porta e se arrastou pela estrada, de cabeça baixa e ombros caídos. A expressão no rosto de Quil me assombrou enquanto eu fazia um retorno e ia para a casa dos Black. Ele estava com medo de ser o próximo. O que estava acontecendo ali? Parei na frente da casa de Jacob, desligando o motor e baixando as janelas. Estava abafado, sem brisa. Coloquei os pés no painel e me acomodei para esperar. Um movimento lampejou em minha visão periférica – virei-me e vi Billy me olhando pela janela da frente com uma expressão confusa. Acenei uma vez e dei um sorriso rígido, mas fiquei onde estava.Os olhos dele se estreitaram; ele baixou a cortina na vidraça.
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Estava preparada para ficar pelo tempo que fosse necessário, mas desejei ter alguma atividade. Peguei uma caneta e uma prova antiga no fundo da mochila. Comecei a rabiscar no verso. Só tivera tempo de desenhar uma fila de losangos quando ouvi uma batida áspera em minha porta. Pulei e ergui os olhos, esperando ver Billy. – O que você está fazendo aqui, Bella? – grunhiu Jacob. Jacob mudara radicalmente nas últimas semanas desde que eu o vira. O primeiro detalhe que percebi foi seu cabelo – seu lindo cabelo se fora, cortado bem curto, cobrindo a cabeça como um cetim preto, muito escuro. As maçãs do rosto pareciam ter enrijecido discretamente... envelhecido. O pescoço e os ombros também estavam diferentes, de algum modo mais largos. As mãos, onde pegavam na moldura da janela, eram enormes, com os tendões e as veias mais pronunciados sob a pele avermelhada. Mas a mudança física era insignificante. Era a expressão que o deixava quase irreconhecível por completo. O sorriso aberto e franco sumira com o cabelo, o calor em seus olhos escuros se transformara num ressentimento taciturno que era imediatamente perturbador. Havia trevas em Jacob. Como se meu sol tivesse implodido. – Jacob? – sussurrei. Ele se limitou a me encarar, os olhos tensos e raivosos. Percebi que não estávamos sozinhos. Atrás dele havia outros quatro; todos altos e de pele vermelha, o cabelo preto curto como o de Jacob. Podiam ser irmãos – não distingui Embry no grupo. A semelhança era intensificada pela hostilidade perturbadoramente idêntica em cada par de olhos. Cada par, exceto um. Anos mais velho, Sam estava ao fundo, a expressão serena e segura. Tive de engolir a bile que subia por minha garganta. Eu queria bater nele. Não, eu queria fazer mais do isso. Mais do que tudo, eu queria ser feroz e mortal, alguém com quem ninguém se atrevesse a se meter. Alguém que metesse medo em Sam Uley. Eu queria ser uma vampira.
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O desejo violento me pegou desprevenida e me tirou o fôlego. Era o mais proibido de todos os desejos – mesmo quando eu só o queria por uma razão vil como essa, para ganhar vantagem sobre um inimigo –, porque era o mais doloroso. Esse futuro se perdera para sempre e nunca estaria a meu alcance. Lutei para recuperar o controle enquanto o buraco em meu peito doía, oco. – O que você quer? – perguntou Jacob, a expressão tornando-se mais ressentida à medida que ele via as emoções passando por meu rosto. – Quero conversar com você – respondi numa voz fraca. Tentei me concentrar, mas ainda estava às voltas com a fuga de meu sonho proibido. – Pode falar – sibilou ele entre os dentes. Seu olhar era violento. Eu nunca o vira olhar para ninguém daquele jeito, e muito menos para mim. Isso me magoou com uma intensidade surpreendente; uma dor física, uma facada na cabeça. – A sós! – sibilei, e minha voz era mais forte. Ele olhou para trás e eu sabia para onde iriam seus olhos. Cada um dos garotos se virou para ver a reação de Sam. Sam assentiu uma vez, a expressão impassível. Fez um breve comentário numa língua desconhecida e fluida – eu só tinha certeza de que não era francês nem espanhol, mas imaginei que fosse quileute. Ele se virou e foi para a casa de Jacob. Os outros, Paul, Jared e Embry, imaginei, o seguiram. – Tudo bem. – Jacob parecia um pouco menos furioso depois que os outros partiram. Seu rosto estava mais calmo, mas também mais desamparado. A boca parecia permanentemente repuxada nos cantos. Respirei fundo. – Você sabe o que eu quero saber. Ele não respondeu. Só me olhou com amargura. Retribuí o olhar e o silêncio se prolongou. A dor em seu rosto me enervava. Senti um bolo começando a se formar em minha garganta.
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– Podemos dar uma caminhada? – perguntei enquanto ainda conseguia falar. Ele não deu nenhuma resposta; sua expressão não mudou. Saí do carro, sentindo em mim olhos invisíveis por trás das janelas, e comecei a andar para as árvores ao norte. Meus pés pisavam a relva úmida e a lama na lateral da estrada, e como esse era o único som, a principio pensei que Jacob não estivesse me seguindo. Mas, quando olhei em volta, ele estava bem a meu lado. Seus pés de alguma forma encontraram um caminho menos ruidoso do que o meu. Eu me senti melhor perto do bosque, onde Sam não poderia estar vendo. Enquanto andávamos, lutei para encontrar as palavras certas a serem ditas, mas nada me ocorreu. Só fiquei com mais raiva ainda por Jacob ter sido puxado para aquilo... Que Billy tivesse permitido isso... Que Sam fosse capaz de ficar parado ali, tão seguro e calmo... Jacob de repente acelerou o passo, me ultrapassando facilmente com suas pernas compridas, depois girou para ficar de frente para mim, plantando-se no meu caminho e me obrigando a parar também. A elegância evidente de seus movimentos me distraiu. Jacob era quase tão desajeitado quanto eu, com seu surto de crescimento interminável. Quando foi que isso mudou? Mas ele não me deu tempo para pensar. – Vamos acabar logo com isso – disse numa voz rouca. Eu esperei. Ele sabia o que eu queria. – Não é o que você pensa. – Sua voz de repente era preocupada. – Não era o que eu pensava... Eu não sabia de nada. – Então o que é? Ele examinou meu rosto por um longo momento, refletindo. A raiva jamais deixava completamente seus olhos. – Não posso lhe dizer – disse ele por fim. Meu queixo se enrijeceu e falei entre os dentes. – Pensei que fôssemos amigos. – Nós éramos. – Houve uma discreta ênfase no verbo no passado.
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– Mas você não precisa mais de amigos – eu disse, amargurada. – Você tem o Sam. Isso é muito bom... Você sempre o admirou tanto! – Antes eu não o entendia. – E agora você viu a luz. Aleluia. – Não é como eu pensava. Não é culpa de Sam. Ele está me ajudando o máximo que pode. – Sua voz ficou frágil e ele olhou por sobre minha cabeça, para além de mim, a raiva ardendo nos olhos. – Ele está ajudando você – repeti, em dúvida. – Claro. Mas Jacob não parecia estar ouvindo. Respirava fundo e devagar, tentando se acalmar. Estava tão aborrecido que as mãos tremiam. – Jacob, por favor – sussurrei. – Não vai me contar o que aconteceu? Talvez eu possa ajudar. – Ninguém pode me ajudar agora. – As palavras foram um gemido baixo; sua voz falhou. – O que ele fez com você? – perguntei, as lágrimas se empoçando em meus olhos. Estendi a mão para ele, como já fizera antes, avançando de braços abertos. Desta vez ele se afastou, erguendo as mãos na defensiva. – Não toque em mim – sussurrou ele. – Sam, está vendo? – murmurei. As lágrimas estúpidas escaparam do canto de meus olhos. Eu as enxuguei com as costas da mão e cruzei os braços. – Pare de culpar o Sam. – As palavras saíram rápido, como que por reflexo. Suas mãos se ergueram para torcer os cabelos que não estavam mais ali, depois caíram hesitantes. – Então a quem eu devo culpar? Ele deu um meio sorriso; era algo vazio e sem forma. – Não vai querer ouvir isso. – Mas é claro que vou! – rebati. – Eu quero saber e quero saber agora.–Você está enganada – devolveu ele.
– Não se atreva a me dizer que estou errada... Não fui eu quem sofreu uma lavagem cerebral! Me diga agora de quem é a culpa por
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tudo isso, se não é de seu precioso Sam! – Você pediu – grunhiu ele para mim, os olhos com um brilho duro. – Se quiser culpar alguém, por que não aponta seu dedo para aqueles sanguessugas imundos e fedorentos que você ama tanto? Minha boca se escancarou e a respiração saiu com um assobio. Fiquei paralisada ali, apunhalada por aquelas palavras de dois gumes. A dor girou em seu padrão familiar por meu corpo, o buraco rasgando-me de dentro para fora, mas isso estava em segundo plano, uma música de fundo no caos de meus pensamentos. Eu não acreditava tê-lo ouvido corretamente. Não havia vestígio de indecisão em seu rosto. Só fúria. Ainda estava boquiaberta. – Eu lhe disse que você não ia querer ouvir – disse ele. – Não entendo de quem você está falando – sussurrei. Ele ergueu uma sobrancelha, incrédulo. – Acho que entende perfeitamente de quem estou falando. Não vai me obrigar a dizer, não é? Não gosto de magoar você. – Eu não entendo de quem você está falando – repeti de modo mecânico. – Os Cullen – disse ele devagar, demorando-se na palavra, examinando meu rosto ao pronunciá-la. – Eu vi... Posso ver em seus olhos o que acontece com você quando digo o nome deles. Sacudi a cabeça, negando, tentando ao mesmo tempo clareá-la. Como ele sabia daquilo? E como aquilo podia ter alguma relação com o culto de Sam? Seria uma gangue de odiadores de vampiros? Que sentido havia em formar uma sociedade dessas quando não havia mais vampiro algum em Forks? Por que Jacob começaria a acreditar nas histórias sobre os Cullen justo agora, quando a prova de sua existência tinha ido embora havia tanto tempo, para nunca mais voltar?Precisei de um tempo mais longo para pensar na resposta correta. – Não me diga que agora dá ouvidos aos absurdos supersticiosos de Billy – disse numa tentativa fraca de zombar dele. – Ele sabe mais do que pensava.
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– Fala sério, Jacob. Ele me fitou, os olhos me julgando. – Deixando as superstições de lado – eu disse rapidamente. – Ainda não sei do que você está acusando os... – tremor – ...Cullen. Eles foram embora há mais de seis meses. Como pode culpá-los pelo que Sam está fazendo agora? – Sam não está fazendo nada, Bella. E eu sei que eles foram embora. Mas às vezes... as coisas entram em movimento e então é tarde demais. – O que está em movimento? O que é tarde demais? Você os está culpando pelo quê? Ele de repente estava bem na minha frente, a fúria reluzindo nos olhos. – Por existirem – sibilou. Fiquei surpresa e desconcentrada quando as palavras de alerta vieram na voz de Edward outra vez, quando eu nem estava com medo.“Fique quieta agora, Bella. Não o pressione”, avisou-me Edward em meu ouvido. Desde que o nome de Edward irrompera para fora dos muros cautelosos que eu erguera para sepultá-lo, não consegui trancá-lo lá de novo. Agora não me doía – não durante os preciosos segundos em que podia ouvir sua voz. Jacob fumegava na minha frente, tremendo de raiva. Não entendi por que a ilusão de Edward apareceu inesperadamente em minha cabeça. Jacob estava furioso, mas ele era Jacob. Não havia adrenalina, nem perigo. “Dê a ele uma chance de se acalmar”, insistiu a voz de Edward. Sacudi a cabeça, confusa. – Está sendo ridículo – disse aos dois. – Tudo bem – respondeu Jacob, respirando fundo de novo. – Não vou discutir com você. Não importa mais, o estrago está feito. – Que estrago? Ele nem vacilou quando gritei as palavras na cara dele. – Vamos voltar. Não há mais nada a dizer.
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Suspirei. – Há tudo a dizer! Você ainda não disse nada! Ele passou por mim, andando de volta para a casa. – Dei uma carona para o Quil hoje – gritei nas costas dele. Ele parou a meio passo, mas não se virou. – Você se lembra de seu amigo Quil? É, ele está apavorado. Jacob girou para me encarar. Sua expressão era de dor. – Quil. – Foi só o que ele disse. – Ele também está preocupado com você. Está morto de medo. Jacob começou a se afastar de mim com olhos desesperados. Eu o provoquei mais. – Está com medo de ser o próximo. Jacob teve de se apoiar numa árvore, o rosto assumindo um estranho tom de verde sob a superfície marrom-avermelhada. – Ele não será o próximo – murmurou Jacob para si mesmo. – Não pode ser. Agora acabou. Isso nem devia estar acontecendo mais. Por quê? Por quê? – Ele socou a árvore com o punho. Não era uma árvore grande, era fina e só um pouco mais alta do que Jacob. Mas ainda me surpreendeu quando o tronco cedeu e se partiu com um estalo sob seus golpes. Jacob olhou o ponto quebrado e áspero com um choque que logo se transformou em pavor. – Tenho que voltar. – Ele girou o corpo e se afastou com tal rapidez que tive de correr para alcançá-lo. – Vai voltar para Sam! – É um ponto de vista – ele pareceu dizer. Estava murmurando e de cara virada. Eu o segui de volta à picape. – Espere! – gritei enquanto ele se virava para a casa. Ele girou, ficando de frente para mim, e vi que suas mãos tremiam de novo. – Vá para casa, Bella. Não posso mais ver você. A dor tola e inconseqüente foi muito forte. As lagrimas voltaram a encher meus olhos.
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– Você está... terminando comigo? – As palavras eram completamente erradas, mas foram a melhor maneira que encontrei para manifestar o que eu queria saber. Afinal, o que Jake e eu tínhamos era mais do que qualquer namoro de estudantes. Era mais forte. Ele soltou uma risada amarga. – Dificilmente. Se fosse esse o caso, eu diria “Vamos ser amigos”. Nem isso eu posso dizer. – Jacob... Por quê? Sam não deixa você ter outros amigos? Por favor, Jake. Você prometeu. Eu preciso de você! – O vazio completo de minha vida antes... antes de Jake trazer de volta algo parecido com a razão... despertou e me confortou. A solidão sufocava minha garganta. – Desculpe, Bella – Jacob pronunciou cada palavra com clareza, numa voz fria que não parecia pertencer a ele. Não acreditei que fosse aquilo que Jacob realmente queria falar. Parecia haver outra mensagem tentando ser dita por seus olhos furiosos, mas eu não a entendia. Talvez não se tratasse de Sam. Talvez não tivesse nada a ver com os Cullen. Talvez ele só estivesse tentando sair de uma situação irremediável. Talvez eu devesse deixá-lo fazer isso, se era o melhor para ele. Eu devia deixar. Seria a atitude correta. Mas ouvi minha voz escapar num sussurro. – Eu lamento não ter podido... antes... Queria poder mudar o que sinto por você, Jacob. – Eu estava desesperada, esforçando-me, esticando a verdade a tal ponto que ela se torcia quase na forma de uma mentira. – Talvez... Talvez eu mude – sussurrei. – Talvez, se me der algum tempo... Só não me abandone agora, Jake. Não posso suportar isso. Seu rosto passou da raiva para a agonia em um segundo. A mão tremula se estendeu para mim. – Não. Não pense assim, Bella. Não se culpe, não pense que é culpa sua. O culpado de tudo sou eu. Eu juro, não tem nada a ver com você.
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– Não é você, sou eu – sussurrei. – Há uma nova Bella. – É sério, Bella. Eu não... – Ele lutou, e a voz ficava mais rouca à medida que ele tentava controlar a emoção. Os olhos estavam torturados. – Não sirvo para ser seu amigo, nem outra coisa. Não sou o que era antes. Eu não sou bom. – Como é? – Eu o encarei, confusa e pasma. – O que está dizendo? Você é muito melhor do que eu, Jake. Você é bom! Quem disse que não é? Sam? É uma mentira maldosa, Jacob! Não deixe que ele diga isso a você! – De repente eu estava gritando de novo. A face de Jacob ficou dura e inexpressiva. – Ninguém precisa me dizer nada. Sei o que sou. – Você é meu amigo, é isso que você é! Jake... Não! Estava me dando as costas. – Desculpe, Bella – disse de novo; desta vez foi um murmúrio fraco. Jacob se virou e quase correu para a casa. Fui incapaz de me mexer. Olhei a casinha; parecia pequena demais para abrigar quatro rapazes grandalhões e dois homens maiores ainda. Não houve reação lá dentro. A beira da cortina não tremulou, nenhum som de vozes nem movimento. A casa me encarava vazia. Começou a cair um chuvisco, pinicando minha pele aqui e ali. Eu não conseguia tirar os olhos da casa. Jacob ia voltar. Tinha de voltar.A chuva aumentou e o vento também. As gotas não vinham mais do alto; caíam em diagonal, do oeste. Eu podia sentir o cheiro da maresia. Meu cabelo batia no rosto, grudando nos lugares molhados e se embaraçando em meus cílios. Eu esperei. Por fim a porta se abriu e dei um passo para a frente, aliviada. Billy foi em sua cadeira para a soleira da porta. Não pude ver ninguém atrás dele. – Charlie ligou agora, Bella. Disse a ele que você estava a caminho de casa. – Os olhos dele estavam cheios de pena.
A piedade foi a gota d’água. Não fiz qualquer comentário. Só me virei automaticamente e subi na picape. Tinha deixado a janela
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aberta e o bancos ficaram escorregadios e molhados. Não importava. Eu já estava ensopada. Não é tão ruim! Não é tão ruim!, minha mente tentava me confortar. Era verdade. Não era tão ruim. Não era o fim do mundo, não de novo. Era só o fim daquela pequena paz que havia ficado para trás. Era só isso. Não é tão ruim, concordei, depois acrescentei: mas é ruim o bastante. Pensei que Jake estivesse curando o buraco que havia em mim – ou pelo menos o estivesse cobrindo, impedindo que me doesse tanto. Eu estava errada. Ele estava apenas cavando um buraco só dele, e agora eu estava furada como queijo suíço. Imaginei por que eu não me desfazia em pedaços. Charlie esperava por mim na varanda. Quando parei o carro, ele saiu para me receber. – Billy ligou. Disse que você brigou com Jake... Que estava muito chateada – explicou ele ao abrir a porta da picape para mim. Depois ele viu meu rosto. Uma espécie de reconhecimento apavorado apareceu em sua expressão. Tentei sentir meu rosto de dentro para fora, para saber o que ele estava vendo. Minha face parecia vazia e fria, e percebi o que isso o fazia lembrar. – Não foi bem assim que aconteceu – murmurei. Charlie passou o braço em mim e me ajudou a sair do carro. Não fez comentário algum sobre minhas roupas encharcadas. – Então, o que aconteceu? – perguntou quando estávamos dentro de casa. Enquanto falava, ele pegou a manta do encosto do sofá e pôs em meus ombros. Percebi que ainda estava tremendo. Minha voz não tinha vida. – Sam Uley disse que Jacob não pode mais ser meu amigo. Charlie me olhou de um jeito estranho. – Quem lhe disse isso? – Jacob – declarei, embora não fosse exatamente o que Jacob dissera. Ainda assim era verdade. As sobrancelhas de Charlie se uniram. – Acha mesmo que há alguma coisa errada com esse Uley?
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– Eu sei que há. Mas Jacob não me contou. – Pude ouvir a água de minhas roupas pingando e formando uma poça no linóleo. – Vou trocar de roupa. Charlie estava perdido em pensamentos. – Tudo bem – disse, desligado. Decidi tomar um banho porque eu estava fria demais, mas a água quente não pareceu afetar a temperatura de minha pele. Ainda estava congelando quando desisti e fechei a água. No silêncio súbito, pude ouvir Charlie falando com alguém no primeiro andar. Enrolei-me numa toalha e entreabri a porta do banheiro. A voz dele estava irritada. – Não engulo essa. Isso não faz sentido nenhum. Fez-se um silêncio e percebi que ele estava ao telefone. Passou-se um minuto. – Não culpe Bella por isso! – gritou Charlie de repente. Eu pulei. Quando ele voltou a falar, a voz era cuidadosa e baixa. – Bella deixou muito claro o tempo todo que ela e Jacob eram só amigos... Bom, se era isso, então por que não disse antes? Não, Billy, acho que ela tem razão... Porque conheço minha filha e, se ela diz que antes Jacob estava com medo... Ele foi interrompido no meio da frase, e quando respondeu estava quase gritando de novo. – O que você quer dizer com não conheço minha filha tão bem quanto penso! – Ele ouviu por um breve segundo e sua resposta foi quase baixa demais para que eu escutasse. – Se acha que vou lembrá-la disso, é melhor pensar duas vezes. Ela só está começando a se recuperar, e principalmente graças ao Jacob, acho. Se o que Jacob está fazendo com esse Sam deixar Bella deprimida de novo, então Jacob vai ter que se entender comigo. Você é meu amigo, Billy, mas isso está magoando minha família. Houve outra pausa para Billy responder. – Você entendeu muito bem... Basta esses garotos colocarem um dedo fora da linha e eu vou saber. Vamos ficar de olho na situação, pode ter certeza disso. Ele não era mais Charlie; agora era o chefe de polícia Swan.
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– Muito bem. Sim. Adeus. – O telefone bateu no gancho. Fui na ponta dos pés pelo corredor às pressas até meu quarto. Charlie resmungava com raiva na cozinha. Então Billy ia me culpar. Eu estava sobrecarregando Jacob e ele, enfim, se cansara disso. Era estranho, porque era o que eu mesma temia, mas não acreditava mais nisso, não depois das últimas palavras de Jacob à tarde. Havia muito mais naquela história do que uma paixonite não correspondida, e me surpreendeu que Billy concordasse em alegar um motivo desses. Fez-me pensar que qualquer que fosse o segredo que guardavam devia ser maior do que eu imaginara. Pelo menos Charlie agora estava do meu lado. Vesti o pijama e me arrastei para a cama. A vida parecia tão sombria naquele momento que me permiti trapacear. O buraco – agora os buracos – já doía, então, por que não? Invoquei a lembrança – não uma lembrança real que doesse demais, mas a falsa lembrança da voz de Edward em minha mente naquela tarde – e brinquei mentalmente com ela até que dormi, com as lágrimas ainda rolando devagar por meu rosto vazio. Nessa noite, eu tive um sonho. A chuva caía e Jacob andava sem fazer ruído a meu lado, embora sob os meus pés o chão estalasse como cascalho seco. Mas ele não era o meu Jacob; era o novo Jacob, amargurado e elegante. A flexibilidade suave de seu andar me fez lembrar de outra pessoa, e enquanto eu observava suas feições começaram a mudar. A cor avermelhada de sua pele desbotou, deixando o rosto branco como osso. Os olhos ficaram dourados e depois vermelhos, e voltaram ao dourado. O cabelo curto se agitava na brisa, assumindo um tom de bronze onde o vento tocava. E o rosto ficou tão lindo que despedaçou meu coração. Tentei alcançá-lo, mas ele se afastou, erguendo as mãos como um escudo. E depois Edward desapareceu.
Quando acordei no escuro, não tinha certeza se começara a chorar naquele momento ou se minhas lágrimas tinham escorrido enquanto eu dormia e agora simplesmente continuavam. Olhei o teto escuro. Podia sentir que chegara o meio da noite – ainda estava meio
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adormecida, talvez mais do que isso. Cansada, fechei os olhos e rezei para ter um sono sem sonhos. Foi quando ouvi o barulho que deve ter me despertado. Algo afiado arranhava minha janela com um som agudo, como unhas contra o vidro.
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12. INVASÃO 

Meus olhos se arregalaram de susto, embora eu estivesse tão exausta e desnorteada que ainda não tinha certeza de estar acordada ou dormindo. Algo arranhou a janela de novo com o mesmo som agudo e fino. Confusa e desajeitada por causa do sono, tropecei para fora da cama e fui até a janela, piscando pelo caminho para me livrar das lágrimas que haviam ficado em meus olhos. Uma forma enorme e escura se balançava, instável, do outro lado do vidro, inclinada na minha direção como se fosse se atirar contra a janela. Recuei, apavorada, minha garganta se fechando num grito. Victoria. Ela veio atrás de mim. Estou morta. Charlie também, não! Sufoquei o grito que se formava. Tinha de passar por aquilo em silêncio. De algum modo. Precisava evitar que Charlie aparecesse ali... E depois uma voz rouca e familiar chamou da forma escura. – Bella! – sibilou. – Ai! Droga, abra a janela! AI! Precisei de dois segundos para me livrar do terror e conseguir me mexer, mas depois corri até a janela e abri o vidro. Havia um pouco de claridade atrás das nuvens, o suficiente para que eu distinguisse as silhuetas. – Mas o que você está fazendo? – disse, ofegante. Jacob se segurava de maneira perigosa no alto do espruce que crescia no meio do pequeno jardim de Charlie. Seu peso tinha envergado a árvore na direção da casa e agora ele se balançava – a pernas penduradas a seis metros do chão – a menos de um metro de mim. Os galhos finos no alto da árvore arranhavam a lateral da casa com um som áspero.
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– Estou tentando cumprir... – ele bufou de raiva, fazendo peso para trás e para a frente, enquanto o alto da árvore o sacudia – ...minha promessa! Pisquei os olhos turvos e úmidos, de repente certa de que estava sonhando. – Quando foi que prometeu se matar caindo da árvore de Charlie? Ele bufou, sem achar graça, balançando as pernas para oscilar mais. – Saia da frente – ordenou. – O quê? Jacob balançou as pernas de novo, para trás e para a frente, aumentando o impulso. Entendi o que ele queria fazer. – Não, Jake! Mas mergulhei para o lado, porque era tarde demais. Com um grunhido, ele se atirou contra a minha janela aberta. Outro grito se formou em minha garganta enquanto eu esperava que ele caísse morto – ou pelo menos se desfigurasse de encontro à fachada de madeira. Para meu choque, ele se moveu com agilidade para dentro do quarto, aterrissando nos calcanhares com um baque surdo. Nós dois olhamos automaticamente para a porta, prendendo a respiração, esperando para saber se o barulho tinha acordado Charlie. Passou-se um curto momento de silêncio, depois ouvimos o som abafado dos roncos de meu pai. Um sorriso largo se espalhava pelo rosto de Jacob; ele parecia extremamente satisfeito consigo mesmo. Não era o sorriso que eu conhecia e adorava – era um sorriso novo, que zombava com amargura de sua antiga sinceridade, na cara nova que pertencia a Sam. Isso foi um pouco demais para mim.
Chorei até dormir por causa daquele garoto. Sua rejeição cruel abrira um novo e doloroso buraco no que restava do meu peito. Ele deixara um novo pesadelo, como uma infecção numa ferida, aumentando ainda mais os estragos. E agora estava ali em meu
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quarto, sorrindo presunçoso para mim, como se nada tivesse acontecido. Pior ainda, embora sua chegada tivesse sido ruidosa e desajeitada, lembrou-me de quando Edward costumava se esgueirar por minha janela à noite, e a lembrança cutucou com violência as feridas abertas. Tudo isso, combinado com o fato de que eu estava morta de cansaço, não me deixou num estado de espírito simpático. – Saia! – sibilei, impregnando meu sussurro com o máximo de raiva que eu podia. Ele piscou, o rosto pálido de surpresa. – Não – protestou. – Eu vim me desculpar. – Eu não aceito! Tentei empurrá-lo para fora da janela – afinal, se aquilo era um sonho, não ia mesmo machucá-lo. Mas foi inútil. Não o movi nem um centímetro. Baixei as mãos depressa e recuei um passo. Ele não estava de camisa, embora o ar que entrava pela janela fosse frio o bastante para me fazer tremer, e me deixou pouco à vontade ter minhas mãos em seu peito nu. Sua pele pegava fogo, como a cabeça na última vez em que eu o tocara. Como se ele ainda estivesse doente, com febre. Ele não parecia doente. Ele estava imenso. Jacob se inclinou sobre mim, tão grande que escureceu a janela, mudo por minha reação furiosa. De repente, era demais para mim – parecia que todas as minhas noites insones estivessem desabando juntas sobre mim. Eu estava tão brutalmente cansada que pensei que pudesse desmaiar ali mesmo, no chão. Oscilei sem equilíbrio e lutei para manter os olhos abertos. – Bella? – sussurrou Jacob com ansiedade. Ele segurou meu cotovelo quando balancei de novo e me levou de volta para a cama. Minhas pernas cederam quando cheguei à beira e desabei no colchão macio. – Ei, você está bem? – perguntou Jacob, a preocupação vincando sua testa. Eu o olhei, as lágrimas ainda não tinham secado em meu rosto. – Por que diabos eu estaria bem, Jacob?
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A angústia substitui parte da amargura em seu rosto. – Tem razão – concordou, e respirou fundo. – Droga. Bom... eu peço desculpas, Bella. – O pedido foi sincero, sem dúvida alguma, embora ainda houvesse um traço de raiva em suas feições. – Por que veio aqui? Não quero suas desculpas, Jake. – Eu sei – sussurrou ele. – Mas eu não podia deixar as coisas como ficaram esta tarde. Foi horrível. Me desculpe. Sacudi a cabeça, cansada. – Não estou entendendo nada. – Eu sei. Quero explicar... – Ele se interrompeu de repente, a boca aberta, quase como se algo lhe tivesse tirado o ar. Depois respirou fundo. – Mas não posso – disse ele, ainda com raiva. – Bem que eu queria. Deixei que minha cabeça tombasse nas mãos. A pergunta saiu abafada por meu braço. – Por quê? Ele ficou em silêncio por um momento. Girei a cabeça para o lado – cansada demais para levantá-la – e vi sua expressão. Isso me surpreendeu. Os olhos dele estavam semicerrados, os dentes trincados, a testa enrugada de esforço. – Qual é o problema? – perguntei. Jacob soltou o ar pesadamente e percebi que ele estivera também prendendo a respiração. – Não posso fazer isso – murmurou, frustrado. – Fazer o quê? Ele ignorou minha pergunta. – Olha, Bella, você nunca teve um segredo que não podia contar a ninguém? Ele olhou para mim como quem sabia algo, e meus pensamentos saltaram de imediato para os Cullen. Esperava que minha expressão não transparecesse culpa. – Uma coisa que sabia que tinha que esconder de Charlie, de sua mãe...? – pressionou ele. – Algo que você não falaria nem mesmo comigo? Nem mesmo agora?
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Senti meus olhos se estreitarem. Não respondi à pergunta dele, embora soubesse que ele tomaria isso como uma confirmação. – Consegue entender que eu possa estar no mesmo tipo de... situação? – Ele lutava de novo, parecendo se esforçar para encontrar as palavras certas. – Às vezes, a lealdade impede que você faça o que quer. Às vezes o segredo não é seu. Eu não tinha como questionar aquilo. Ele estava com toda razão – eu tinha um segredo que não era meu; no entanto, que eu me sentia obrigada a proteger. Um segredo que, de repente, ele parecia conhecer por completo. Ainda não via como isso se aplicava a ele, a Sam ou a Billy. O que aquilo tinha a ver com eles, agora que os Cullen tinham ido embora? – Não sei por que veio aqui, Jacob, se ia me dar enigmas ao invés de respostas. – Desculpe – sussurrou ele. – É tão frustrante! Olhamos um para o outro por um longo tempo, no quarto escuro, os dois com expressão de desamparo. – O que me mata – disse ele de repente – é que você já sabe. Eu já disse tudo a você! – Do que você está falando? Ele inspirou num sobressalto, depois se inclinou até mim, o rosto passando em um segundo do desalento para uma intensidade ardente. Olhou fundo em meus olhos e sua voz era rápida e ansiosa. Pronunciou as palavras bem no meu rosto; o hálito quente como sua pele. – Acho que tenho um jeito de resolvermos isso... Porque você sabe disso, Bella! Não posso lhe contar, mas se você adivinhasse! Isso me livraria de uma situação complicada! – Quer que eu adivinhe? Adivinhe o quê? – O meu segredo! Você consegue... Sabe qual é a resposta! Pisquei duas vezes, tentando clarear as idéias. Estava muito cansada. Nada do que ele dizia fazia sentido. Ele viu minha expressão desconcertada e seu rosto voltou a ficar tenso de esforço.
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– Espere aí, deixe-me ver se posso lhe dar alguma ajuda – disse. O que quer que estivesse fazendo, era tão difícil que ele estava ofegante. – Ajuda? – perguntei, tentando acompanhar. Minhas pálpebras queriam se fechar, mas as mantive abertas à força. – É – disse ele, respirando com dificuldade. – Umas dicas. Ele pegou meu rosto em suas mãos enormes e quentes demais e o segurou a alguns centímetros do seu. Olhou em meus olhos enquanto sussurrava, como que para comunicar algo que estava além das palavras que dizia. – Lembra-se do dia em que nos encontramos... Na praia, em La Push?– É claro que lembro. – Me fale sobre ele. Respirei fundo e tentei me concentrar. – Você perguntou sobre minha picape... Ele assentiu, incentivando-me a continuar. – Conversamos sobre o Rabbit... – Continue. – Fomos caminhar na praia... – Meu rosto esquentava sob a palma das mãos dele enquanto eu lembrava, mas ele não perceberia, quente como era sua pele. Eu o convidara a andar comigo, paquerando-o desajeitadamente, mas com sucesso, para arrancar informações dele. Jacob assentia, ansioso por mais. Minha voz quase não tinha som. – Você me contou histórias de terror... Lendas dos quileutes. Ele fechou os olhos e os abriu de novo. – Sim. – A palavra foi tensa, fervorosa, como se ele estivesse frente a algo vital. Ele falou devagar, destacando cada palavra. – Você se lembra do que eu disse? Mesmo no escuro, ele devia ser capaz de ver a mudança na cor de meu rosto. Como poderia me esquecer daquilo? Sem perceber o que estava fazendo, Jacob tinha me contado precisamente o que eu necessitava saber naquele dia... Que Edward era um vampiro.
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Ele me fitou com os olhos que sabiam demais. – Procure pensar – disse-me. – Sim, lembro – eu disse baixinho. Ele respirou fundo, esforçando-se. – Lembra-se de todas as histó... – Ele não conseguiu terminar a pergunta. Sua boca se abriu como se algo estivesse preso na garganta. – Todas as histórias? – perguntei. Ele assentiu em silêncio. Minha cabeça se agitava. Só uma história importou de fato. Sabia que ele começara com outras, mas não conseguia me lembrar do prelúdio inconseqüente, em especial com meu cérebro tão turvo de exaustão. Comecei a sacudir a cabeça. Jacob gemeu e pulou da cama. Apertou os dedos contra a testa e respirou rápida e furiosamente. – Você sabe, você sabe – murmurou para si mesmo. – Jake? Jake, por favor, eu estou exausta. Não estou me saindo bem nisso agora. Talvez de manhã... Ele respirou para se recompor e assentiu. – Talvez você vá lembrar. Acho que entendo por que só se lembra de uma história – acrescentou num tom sarcástico e amargurado. Ele se atirou no colchão a meu lado. – Posso lhe fazer uma pergunta sobre isso? – indagou, ainda sarcástico. – Estou morrendo de vontade de saber. – Uma pergunta sobre o quê? – perguntei, cansada. – Sobre a história de vampiro que lhe contei. Eu o fitei com cautela, incapaz de responder. Ele fez a pergunta assim mesmo. – Você sinceramente não sabia? – perguntou-me, a voz ficando rouca. – Foi eu quem lhe disse o que ele era? Como ele sabe disso? Por que ele resolveu acreditar, por que agora? Meus dentes trincaram. Eu o encarava sem a intenção de falar. Ele podia ver isso.
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– Entende o que quero dizer com lealdade? – murmurou ele, agora ainda mais rouco. – É o mesmo comigo, só que pior. Você não pode imaginar como estou preso a isso... Eu não gostava daquilo – não gostava do modo como seus olhos se fecharam, como se ele estivesse sofrendo ao falar de estar preso. Mais do que não gostar, percebi que odiava, odiava tudo o que lhe causava dor. Odiava com fúria. O rosto de Sam ocupou minha mente. Comigo, tudo aquilo era essencialmente voluntário. Eu protegia o segredo dos Cullen por amor; não-correspondido, mas verdadeiro. Com Jacob não parecia ser dessa forma. – Existe algum modo de você se libertar? – sussurrei, tocando as pontas ásperas de seu cabelo tosado, na nuca. As mãos dele começaram a tremer, mas ele não abriu os olhos. – Não, estou nisso para a vida toda. Prisão perpétua. – Um riso triste. – Talvez além. – Não, Jake – gemi. – E se nós fugirmos? Só você e eu. E se saíssemos de casa e deixássemos Sam para trás? – Não é algo de que eu possa fugir, Bella – sussurrou ele. – Mas eu fugiria com você, se pudesse. – Agora seus ombros também tremiam. Ele respirou fundo. – Olhe, tenho que ir embora. – Por quê? – Antes de tudo, você parece que vai desmaiar a qualquer momento. Precisa dormir... Eu preciso que você pense com clareza. Vai descobrir tudo, tem que descobrir. – E por que mais? Ele franziu a testa. – Tive que vir escondido... Não devia ver você. Eles devem estar imaginando onde estou. – Sua boca se contorceu. – Acho que tenho que ir e contar. – Não tem que contar nada a eles. – sibilei. – De qualquer jeito, vou contar. A raiva esquentou dentro de mim. – Odeio essa gente! Jacob me fitou de olhos arregalados, surpreso.
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– Não, Bella. Não odeie os garotos. Não é culpa de Sam nem dos outros. Eu já lhe disse... Sou eu. Sam na verdade é... bem, bastante legal. Jared e Paul também são ótimos, embora Paul seja meio... E Embry sempre foi meu amigo. Nada mudou nisso... Foi a única coisa que não mudou. Eu me sinto muito mal pelas coisas que pensava de Sam... Sam era bastante legal? Olhei para ele incrédula, mas deixei passar essa. – Então, por que você não deveria me ver? – perguntei. – Não é seguro – murmurou ele, baixando a cabeça. Suas palavras provocaram um arrepio de medo em meu corpo. Ele sabia disso também? Ninguém, além de mim, sabia. Mas ele tinha razão – estávamos no meio da noite, a hora perfeita para caçar. Jacob não deveria estar em meu quarto. E alguém viesse me buscar, eu teria de estar sozinha. – Se eu achasse que era tão... tão arriscado – sussurrou ele –, não teria vindo. Mas, Bella – ele me olhou de novo –, eu lhe fiz uma promessa. Não fazia idéia de que seria tão difícil cumpri-la, mas isso não significa que eu não vá tentar. Ele viu a confusão em meu rosto. – Depois daquele filme idiota – lembrou-me. – Eu lhe prometi que jamais magoaria você... Depois estraguei tudo hoje à tarde, não foi? – Sei que não queria fazer isso, Jake. Está tudo bem. – Obrigado, Bella. – Ele pegou minha mão. – Vou fazer o que puder para ficar a seu lado, como prometi. – Ele de repente sorriu para mim. O sorriso não era o meu nem o de Sam, mas uma estranha combinação dos dois. – Ajudaria muito se você pudesse deduzir tudo sozinha, Bella. Esforce-se sinceramente nisso. Fiz uma careta vacilante. – Vou tentar. – E vou tentar vê-la logo. – Ele suspirou. – E eles vão tentar me impedir. – Não dê ouvidos a eles.
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– Vou tentar. – Ele sacudiu a cabeça, como se duvidasse do próprio sucesso. – Venha me contar assim que descobrir. – Então alguma coisa veio à sua mente, algo que fez suas mãos tremerem. – Se você... Se você quiser. – Por que eu não ia querer ver você? Seu rosto ficou duro e amargurado, cem por cento o rosto que pertencia a Sam. – Ah, posso pensar num motivo – disse num tom rude. – Olhe, eu preciso mesmo ir. Pode fazer algo por mim? Apenas assenti, com medo da mudança dele. – Pelo menos me ligue... Se não quiser me ver de novo. Avise-me se for assim. – Isso não vai acontecer... Ele levantou a mão, interrompendo-me. – Só me diga. Ele se levantou e foi para a janela. – Não seja idiota, Jake – reclamei. – Vai quebrar a perna. Use a porta. Charlie não vai pegar você. – Não vou me machucar – murmurou ele, mas se virou para a porta. Ele hesitou ao passar por mim, fitando-me como se algo o estivesse apunhalando. Estendeu a mão de um jeito suplicante. Peguei a mão dele e, de repente, ele me puxou da cama – com força demais. Bati direto contra seu peito. – Só por precaução – murmurou ele em meu cabelo, esmagando-me num abraço de urso que quase quebrou minhas costelas. – Não consigo... respirar! – disse ofegante. Ele me largou na mesma hora, mantendo uma das mãos em minha cintura para que eu não caísse. E me empurrou, desta vez com mais gentileza, de volta à cama. – Durma um pouco, Bells. Tem que colocar a cabeça para funcionar. Sei que pode fazer isso. Eu preciso que você entenda. Não quero perder você, Bella. Não para isso.
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Ele estava na porta em um passo, abrindo-a em silencio, e depois desapareceu. Fiquei ouvindo, esperando que ele chegasse ao degrau que rangia na escada, mas não houve som algum. Deitei-me na cama, minha cabeça girando. Estava confusa demais, cansada demais. Fechei os olhos, tentando encontrar sentido naquilo, só para ser tragada pela inconsciência com uma rapidez tal que me desorientou. Não foi o sono tranqüilo e sem sonhos pelo qual eu ansiava – é claro que não. Eu estava no bosque de novo e comecei a andar, como sempre fazia. Rapidamente percebi que não era o sonho de sempre. Primeiro, eu não tinha a compulsão de andar a esmo ou procurar; apenas andava por hábito, porque era o que em geral se esperava de mim ali. Na verdade, aquele nem era o mesmo bosque. O cheiro e a luz também eram diferentes. Não tinha o cheiro da terra molhada do bosque, mas de maresia. Eu não conseguia ver o céu; ainda assim, parecia que o sol devia estar brilhando – as folhas no alto eram de um verde-jade cintilante. Aquela era floresta em volta de La Push – perto da praia, eu tinha certeza disso. Sabia que, se encontrasse a praia, poderia ver o sol, então corri para a frente, seguindo o som fraco das ondas ao longe.E então Jacob estava ali. Ele pegou minha mão, puxando-me de volta para a parte mais escura da floresta. “Jacob, qual é o problema?”, perguntei. Seu rosto era o de um menino assustado, e o cabelo estava lindo de novo, balançando num rabo-de-cavalo na nuca. Ele puxava com toda a força, mas eu resistia; não queria ir para o escuro. “Corra! Bella, você tem que correr!”, sussurrou ele, apavorado. A onde repentina de déjà vu foi tão forte que quase me acordou.
Nesse momento eu soube por que tinha reconhecido aquele lugar. Era porque eu estivera ali antes, em outro sonho. Um milhão de anos antes, parte de uma vida inteiramente diferente. Aquele era o sonho que tive na noite depois de andar com Jacob pela praia, na
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noite em que soube que Edward era um vampiro. Reviver aquele dia com Jacob devia ter cavado esse sonho em minhas lembranças enterradas. Agora distanciada do sonho, esperei que ele se desenrolasse. Uma luz vinha da praia em minha direção. Em um instante, Edward passaria pelas árvores, a pele com um brilho discreto e os olhos negros e perigosos. Ele acenaria para mim e sorriria. Ele seria lindo como um anjo e seus dentes estariam pontudos e afiados... Mas eu estava me antecipando. Tinha de acontecer outra coisa primeiro. Jacob largou minha mão e gritou. Tremendo e se contorcendo, ele caiu no chão a meus pés. “Jacob!”, gritei, mas ele se fora. Em seu lugar havia um imenso lobo castanho-avermelhado, com olhos escuros e inteligentes. O sonho mudou de curso, como um trem mudando de trilhos. Não era o mesmo lobo com que eu sonhara em outra vida. Era o lobo avermelhado e enorme que estivera a pouca distância de mim na campina, havia apenas uma semana. Era gigantesco, monstruoso, maior do que um urso. Esse lobo me fitava com intensidade, tentando me dizer alguma coisa essencial com seus olhos inteligentes. Os conhecidos olhos castanho-escuros de Jacob Black. Acordei gritando a pleno pulmões. Quase esperei que Charlie viesse me ver dessa vez. Aquele não era meu grito habitual. Enterrei a cabeça no travesseiro e tentei abafar a histeria que meus gritos assumiam. Apertei o algodão contra o rosto, perguntado-me se eu, de algum jeito, não podia também abafar a conexão que acabara de fazer. Mas Charlie não entrou no quarto e, por fim, consegui sufocar o estranho grito que saía de minha garganta. Agora eu me lembrava de tudo – de cada palavra que Jacob dissera naquele dia na praia, mesmo da parte antes de ele chegar aos vampiros, aos “frios”. Em especial dessa primeira parte.
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“Conhece alguma de nossas histórias antigas, sobre de onde viemos... quer dizer, dos quileutes?”, começou ele. “Na verdade não”, admiti. “Bom, há um monte de lendas, e dizem que algumas datam da grande inundação... Ao que parece, os antigos quileutes amarraram as canoas no topo das árvores mais altas da montanha para sobreviver, como Noé e a arca.” Ele sorriu, para me mostrar como dava pouco crédito a essas histórias. “Outra lenda diz que descendemos de lobos... E que os lobos ainda são nossos irmãos. É contra a lei da tribo matá-los.” “E há as histórias sobre os frios.” A voz dele ficou um pouco mais baixa. “Os frios?”, perguntei, agora sem fingir estar intrigada. “É. Há histórias dos frios tão antigas quanto as lendas dos lobos, e algumas são mais recentes. De acordo com a lenda, meu bisavô conheceu alguns. Foi ele quem fez o acordo que os manteve longe de nossas terras.” Ele revirou os olhos. “Seu bisavô?”, eu o estimulei. “Ele era um ancião da tribo, como meu pai. Olhe só, os frios são inimigos naturais dos lobos...Bom, não do lobo, mas dos lobos que se transformam em homens, como nossos ancestrais. Você pode chamar de lobisomens.” “Os lobisomens têm inimigos?” “Só um.” Havia alguma coisa presa em minha garganta, sufocando-me. Tentei engolir, mas ficou alojada ali, sem se mexer. Tentei cuspi-la. – Lobisomens – eu disse, ofegante. Sim, era esta a palavra que me sufocava. O mundo oscilou, inclinando-se do jeito errado em seu eixo. Que tipo de lugar era esse? Poderia realmente existir um mundo onde lendas antigas ficavam vagando pelos limites de cidadezinhas mínimas e insignificantes, enfrentando monstros míticos? Isso queria dizer que todo conto de fadas impossível era baseado em alguma verdade absoluta? Havia, afinal, alguma coisa racional ou normal, ou tudo era magia e histórias de fantasmas?
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Segurei a cabeça entre as mãos, tentando evitar que explodisse. Uma voz baixa e seca no fundo de minha mente perguntou-me qual era o problema. Eu já não aceitara a existência de vampiros havia muito tempo – e sem toda aquela histeria? Exato, eu queria gritar para a voz. Um mito não bastava para qualquer um, não era suficiente para uma vida inteira? Além disso, nunca houve um momento em que eu não estivesse cem por cento ciente de que Edward Cullen estava muito além do comum. Não foi surpresa alguma descobrir o que ele era – porque ele, evidentemente, era alguma coisa. Mas Jacob? Jacob, que era apenas Jacob, e nada mais do que isso. Jacob, meu amigo? Jacob, o único ser humano com quem eu era capaz de me relacionar... E ele nem era humano. Reprimi o impulso de gritar de novo. O que isso dizia sobre mim? Eu sabia a resposta a esta pergunta. Dizia que havia algo profundamente errado comigo. Por que outro motivo minha vida seria cheia de personagens de filmes de terror? Por que eu me importaria tanto com eles, a ponto de arrancar pedaços enormes de meu peito quando eles partiam em seus caminhos míticos? Em minha cabeça, tudo girou e mudou de lugar, reorganizando-se de tal modo que aquilo que antes tinha um significado passara a ter outro. Não havia culto nenhum. Nunca houvera um culto, nunca fora uma gangue. Não, era muito pior do que isso. Era uma alcatéia. Uma matilha de cinco lobisomens perturbadoramente gigantescos e multicores que passara por mim na campina de Edward... De repente, eu estava com uma pressa frenética. Olhei o relógio – era cedo demais, e eu não me importava. Precisava ir a La Push logo. Precisava ver Jacob para que ele me dissesse que eu não perdera o juízo de uma vez.
Peguei as primeiras roupas limpas que encontrei, sem me dar ao trabalho de ver se combinavam, e desci os degraus de dois em
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dois. Quase esbarrei em Charlie quando escorreguei até o corredor, indo para a porta. – Aonde você vai? – perguntou ele, tão surpreso em me ver quanto eu em vê-lo. – Sabe que horas são? – Sei. Preciso ir ver Jacob. – Pensei que a história com Sam... – Isso não importa, tenho que falar com ele agora. – É cedo demais. – Ele franziu o cenho ao ver que minha expressão não se alterou. – Não quer tomar o café? – Não estou com fome. – As palavras voaram para fora de meus lábios. Ele estava bloqueando minha saída. Pensei em contorná-lo e correr, mas sabia que teria de explicar isso mais tarde. – Volto logo, está bem? Charlie fez uma cara feia. – Direto à casa de Jacob, não é? Nada de parar no caminho? – É claro que não, onde eu poderia parar? – Minhas palavras se atropelaram, na pressa. – Não sei – admitiu ele. – É só que... Bom, houve outro ataque... Os lobos de novo. Foi bem perto do resort, perto da estação de águas... Dessa vez teve uma testemunha. A vítima estava a apenas dez metros da estrada quando desapareceu. A esposa viu um lobo cinza imenso poucos minutos depois, enquanto procurava pelo marido, e correu para pedir ajuda. Meu estômago se desprendeu como se eu estivesse na espiral de uma montanha-russa. – Um lobo o atacou? – Não há sinal dele... Só um pouco de sangue de novo. – A expressão de Charlie era de dor. – A guarda florestal esta saindo armada, usando voluntários armados. Há muitos caçadores ansiosos para se envolver... Há uma recompensa pelas carcaças dos lobos. Isso vai significar muitos tiros lá pela floresta, e me preocupa. – Ele sacudiu a cabeça. – Quando as pessoas ficam agitadas demais, acontecem acidentes... – Eles vão atirar nos lobos? – Minha voz subiu três oitavas.
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– O que mais podemos fazer? Qual é o problema? – perguntou ele, os olhos tensos examinando meu rosto. Senti que ia desmaiar; devia estar mais branca do que o normal. – Você não vai dar uma de ambientalista para cima de mim, não é? Não consegui responder. Se ele não estivesse olhando, eu teria colocado a cabeça entre os joelhos. Tinha me esquecido dos montanhistas desaparecidos, das pegadas de sangue... Não ligara esses fatos à minha descoberta anterior. – Olhe, querida, não deixe que isso a assuste. Apenas fique na cidade ou na estrada... Nada de parar... Está bem? – Tudo bem – repeti com a voz fraca. – Tenho que ir. Olhei bem para ele pela primeira e vi que tinha uma arma presa na cintura e estava com botas de caminhada. – Não vai para lá atrás dos lobos, não é, pai? – Tenho que ajudar, Bells. Tem gente sumindo. Minha voz subiu de novo, agora quase histérica. – Não! Não, não vá. É perigoso demais! – Preciso fazer meu trabalho, garota. Não seja tão pessimista... Eu vou ficar bem. – Ele se virou para a porta e a segurou, aberta. – Vai sair? Hesitei, meu estômago ainda girando em loops desagradáveis. O que eu poderia dizer para impedi-lo? Estava tonta demais para pensar numa solução. – Bells? – Talvez seja muito cedo para ir a La Push – sussurrei. – Concordo – disse ele, e partiu para a chuva, fechando a porta atrás de si. Assim que não o vi mais, desabei no chão e coloquei a cabeça entre os joelhos. Eu deveria ir atrás de Charlie? O que ia dizer?
E Jacob? Jacob era meu melhor amigo; precisava alertá-lo. Se ele era mesmo um... Eu me encolhi e me obriguei a pensar na palavra – lobisomem (e eu sabia que era verdade, podia sentir), então as pessoas iam atirar nele! Precisava dizer a ele e aos amigos dele que
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as pessoas tentariam matá-los se ficassem zanzando por aí como lobos gigantes. Precisava lhes dizer para parar. Tinham de parar! Charlie estava lá fora, no bosque. Será que eles se importavam com isso? Fiquei pensando... Até então, só estranhos haviam desaparecido. Isso significava alguma coisa ou era só obra do acaso? Eu precisa acreditar que pelo menos Jacob se importaria. De qualquer maneira, precisava alertá-lo. Ou... Precisava mesmo? Jacob era meu melhor amigo, mas era também um monstro? Um monstro de verdade? Dos maus? Eu deveria avisá-lo, se ele e os amigos fossem... fossem assassinos? Se eles estivessem lá fora abatendo a sangue-frio montanhistas inocentes? Se fossem mesmo criaturas de filmes de terror, em todos os sentidos, seria errado protegê-los? Era inevitável que eu comparasse Jacob e os amigos com os Cullen. Cruzei os braços no peito, lutando contra o buraco, enquanto pensava neles. Eu não sabia nada sobre lobisomens, isso era evidente. Teria esperado algo mais parecido com os filmes – criaturas metade homem, grandes e peludas, ou coisa assim – se esperasse mesmo alguma coisa. Então não sabia o que os fazia caçar, se era fome, sede ou só o desejo de matar. Era difícil julgar, sem compreender isso. Mas não podia ser pior do que os Cullen suportavam em seu esforço para serem bons. Pensei em Esme – as lágrimas surgiram quando imaginei seu rosto gentil e adorável – e em como, maternal e amorosa, ela teve de cobrir o nariz, toda envergonhada, e fugir de mim quando eu estava sangrando. Não podia ser mais difícil do que isso. Pensei em Carlisle, nos séculos após séculos em que ele lutou para se condicionar a ignorar o sangue e salvar vidas como médico. Nada podia ser mais difícil do que isso. Os lobisomens escolheram um caminho diferente. Agora, que caminho eu deveria escolher?

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