quinta-feira, 16 de junho de 2011

Percy Jackson e o Ladrão de Raios - Capítulos 11 ao 15

ONZE
Nossa visita ao Empório de Anões de Jardim.

De certo modo, é bom saber que há deuses gregos lá fora, porque aí temos alguém para
culpar quando as coisas dão errado. Por exemplo, quando você está se afastando a pé de
um ônibus que acaba de ser atacado por bruxas monstruosas e explodido por um
relâmpago, e ainda por cima está chovendo, a maioria das pessoas acha que na verdade
isso é apenas muita falta de sorte – quando se é um meio-sangue, a gente sabe que
alguma força divina está tentando estragar o nosso dia.
Então lá estávamos nós, Annabeth, Grover e eu, andando pelos bosques ao longo da
margem do rio, em New Jersey, as luzes de Nova York tornando o céu amarelo atrás de
nós e o fedor do rio Hudson entrando por nosso nariz.
Grover estava tremendo e balindo, e seus grandes olhos de bode, cujas pupilas haviam
se transformado em fendas, estavam cheios de terror.
- Três Benevolentes. As três de uma vez.
Eu mesmo estava em estado de choque. A explosão das janelas do ônibus ainda ecoava
em meus ouvidos. Mas Annabeth nos fazia seguir, dizendo:
- Vamos! Quanto mais longe chegarmos, melhor.
- Todo o nosso dinheiro ficou lá atrás – lembrei. – Nossa comida e nossas roupas. Tudo.
- Bem, quem sabe se você não tivesse decidido entrar na briga...
- O que queria que eu fizesse? Deixasse vocês serem mortos?
- Você não precisava me proteger, Percy. Eu ia ficar bem.
- fatiada como pão de fôrma – interveio Grover -, mas bem.
- Cale a boca, garoto-bode – disse Annabeth.
Grover baliu, triste.
- As latas... Uma sacola de latas perfeitamente boa.
Nós chapinhamos pelas terras lamacentas, por entre horríveis árvores retorcidas que
tinham um cheiro azedo de roupa suja.
Depois de alguns minutos, Annabeth veio para o meu lado.
- Olhe, eu... – sua voz vacilou. – Eu gostei de você ter voltado para nos defender, ok?
Aquilo foi realmente corajoso.
- Somos uma equipe, certo?
Ela ficou em silêncio por mais alguns passos.
- É só que, se você morresse... além do fato de que seria realmente uma droga para você,
isso significaria o fim da missão. Esta pode ser a minha única chance de ver o mundo
real.
A tempestade havia finalmente acalmado. As luzes da cidade diminuíram atrás de nós,
deixando-nos em uma escuridão quase total. Não conseguia ver nada de Annabeth a não
ser um reflexo de seu cabelo loiro.
- Você não sai do Acampamento Meio-Sangue desde que tinha sete anos? – pergunteilhe.
- Não... apenas excursões rápidas. Meu pai...
- O professor de história.
- É. Não deu certo morar em casa. Quer dizer, o Acampamento Meio-Sangue é a minha
casa. – Ela agora estava despejando as palavras como se tivesse medo de que alguém a
interrompesse. – No acampamento a gente treina, treina. E é legal e tudo mais, mas o
mundo real é onde os monstros estão. É onde a gente descobre se serve para alguma
coisa ou não.
Se não a conhecesse bem, poderia ter jurado que ouvi dúvida em sua voz.
- Você é muito boa com aquela faca – falei.
- Você acha?
- Qualquer um que seja capaz de montar nas costas de uma Fúria, para mim, é muito
bom.
Não pude ver direito, mas acho que ela deu um sorrisinho.
- Sabe – disse ela -, talvez eu deva lhe contar... Uma coisa engraçada lá no ônibus...
O que quer que ela quisesse dizer foi interrompido por um piado estridente, como o som
de uma coruja sendo torturada.
- Ei, as minhas flautas de bambu ainda funcionam! – exclamou Grover. – Se ao menos
eu pudesse me lembrar de uma melodia de “achar caminho”, poderíamos sair desses
bosques!
Ele soprou algumas notas, mas a semelhança da melodia com a de Hilary Duff ainda era
questionável.
Em vez de achar um caminho, imediatamente colidi com uma árvore e arranjei um galo
de bom tamanho na cabeça.
Adicionar à lista de superpoderes que eu não tenho: visão infravermelha.
Depois de tropeçar, praguejar e, de modo geral, me sentir infeliz por mais um
quilômetro ou algo assim, comecei a ver luzes à frente: as cores de um letreiro de neon.
Senti cheiro de comida. Comida frita, gordurosa, excelente. Percebi que não havia
comido nada que não fosse saudável desde que chegara à Colina Meio-Sangue, onde
vivíamos de uvas, pão, queijo e churrasco light preparado por ninfas. O garoto aqui
precisava de um cheeseburguer duplo.
Continuamos andando até que vi por entre as árvores uma estrada deserta de duas pistas.
Do outro lado havia um posto de gasolina fechado, um cartaz de um filme dos anos 90 e
uma loja aberta, que era a fonte de luz de neon e do cheiro gostoso.
Não era um restaurante de fast-food como eu esperava. Era uma dessas estranhas lojas
de curiosidades de beira de estrada, que vendem flamingos de jardim, índios de
madeira, ursos-pardos de cimento e coisas do gênero. A construção principal era um
armazém comprido e baixo, cercado por quilômetros de estátuas. O letreiro de neon
acima do portão era para mim impossível de ler, pois, se existe coisa pior para a minha
dislexia do que inglês normal, é inglês em letras cursivas, vermelhas, em neon.
Para mim, parecia MEOPRÓI ED NESÕA ED JIDARN AD IAT MEE.
- Que diabos que dizer aquilo? – perguntei.
- Não sei – disse Annabeth.
Ela gostava tanto de ler que eu esquecera que ela também era disléxica.
Grover traduziu:
- Empório de Anões de Jardim da Tia Eme.
Nas laterais da entrada, conforme anunciado, havia dois anões de jardim de cimento,
uns nanicos e feios e barbados, sorrindo e acenando como se estivessem posando para
uma fotografia.
Atravessei a rua, seguindo o cheiro dos hambúrgeres.
- Ei... – avisou Grover.
- As luzes estão acessas lá dentro – disse Annabeth. – Talvez esteja aberto.
- Lanchonete – falei, ansioso.
- Lanchonete – concordou ela.
- Vocês dois estão loucos? — disse Grover. – Este lugar é esquisito.
Nós o ignoramos.
O terreno da frente era uma floresta de estátuas: animais de cimento, crianças de
cimento, até um sátiro de cimento tocando as flautas, o que deixou Grover arrepiado.
- Béééé!— baliu. — Parece meu tio Ferdinando!
Paramos diante da porta do armazém.
- Não bata — implorou Grover. — Sinto cheiro de monstros.
- Seu nariz está congestionado com as Fúrias – disse-lhe Annabeth. — O único cheiro
que estou sentindo é de hambúrgueres. Você não está com fome?
- Carne! — disse ele, desdenhoso. — Sou vegetariano.
- Você come enchiladas de queijo e latas de alumínio – lembrei-o.
- São vegetais. Venham, vamos embora. Essas estátuas estão... olhando para mim.
Então a porta se abriu rangendo, e diante de nós estava uma mulher alta, do Oriente
Médio — eu pelo presumi que fosse de lá, porque usava um longo vestido preto que
escondia tudo menos as mãos, e sua cabeça estava totalmente coberta por um véu. Seus
olhos brilhavam embaixo de uma cortina de gaze preta, mas isso foi tudo o que pude
distinguir. As mãos cor de café pareciam velhas, mas bem cuidadas e elegantes,
portanto imaginei que se tratasse de uma avó que fora outrora uma bonita dama.
O sotaque dela também tinha um quê do Oriente Médio. Ela disse:
- Crianças, já é muito tarde para estarem sozinhas na rua. Onde estão seus pais?
- Eles estão... ahn... - Annabeth começou a dizer.
- Nós somos órfãos - falei.
- Órfãos? – disse a mulher. A palavra soou estranha em sua boca. – Mas meus queridos!
Certamente não!
- Nós nos perdemos da caravana — disse eu. — A caravana do nosso circo. O Mestrede
cerimônias nos disse para encontrá-lo I no posto de gasolina se nos perdêssemos,
mas ele pode ter esquecido, ou talvez se referisse a outro posto de gasolina. De qualquer
modo, estamos perdidos. Esse cheiro é de comida?
- Ah, meus queridos – disse a mulher. - Vocês precisam entrar, pobres crianças. Eu sou
a tia Eme. Vão direto para os fundos do armazém, por favor. Ali há um lugar para
refeições.
Agradecemos e entramos.
Annabeth murmurou para mim;
- Caravana do circo?
- Sempre há uma estratégia, certo?
- Sua cabeça está cheia de algas.
O armazém era abarrotado de mais estátuas – pessoas, todas em poses diferentes,
usando roupas diferentes e com expressões diferentes no rosto. Fiquei imaginando que
era preciso ter um jardim bem grande para alojar ainda que uma única estátua daquelas,
porque eram todas em tamanho natural. Mas eu estava mesmo era pensando em comida.
Vá em frente, pode me chamar de idiota por ir entrando na loja de uma senhora estranha
como aquela só porque estava com fome, mas às vezes faço as coisas por impulso.
Além disso, você nunca sentiu o cheiro dos hambúrgueres da tia Eme. O aroma era
como um gás hilariante na cadeira do dentista – fazia sumir todo o resto. Mal reparei
nos soluços nervosos de Grover, nem no modo como os olhos das estátuas pareciam me
seguir ou no fato de que a tia Eme trancara a porta atrás de nós.
Tudo o que me preocupava era achar o lugar das refeições. E, sem duvida, lá estava, no
fundo do armazém, um balcão de sanduíches com uma grelha, uma maquina de
refrigerantes, uma estufa de pretzels e uma máquina de queijo nacho. Tudo o que
poderíamos querer, mais algumas mesas de piquinique de aço na frente.
- Por favor, sentem-se – disse a tia Eme.
- Fantástico – comentei.
- Hum – disse Grover com relutância -, não temos nenhum dinheiro, senhora.
Antes que eu pudesse dar uma cotovelada nas costelas dele, a tia Eme disse:
- Não, não, crianças. Nada de dinheiro. Esse é um caso especial, certo? Para órfãos tão
simpáticos, é por minha conta.
- Obrigada, senhora – disse Annabeth.
Tia Eme enrijeceu-se, como se Annabeth tivesse dito algo de errado, mas depois, com a
mesma rapidez, relaxou. Portanto achei que estivesse imaginando coisas.
- Não tem de quê, Annabeth. Você tem uns olhos cinzentos tão bonitos, criança. – Só
depois me perguntei como ela sabia o nome de Annabeth, já que não tínhamos nos
apresentado.
Nossa anfitriã desapareceu atrás do balcão e começou a cozinhar. Antes que eu me
desse conta, ela nos tinha trazido bandejas de plástico com cheesburguer duplos, Milkshakes
de baunilha e porções gigantes de batas fritas.
Eu já tinha comido metade do meu sanduíche quando me lembrei de respirar.
Annabeth sorveu ruidosamente seu Milk-shake.
Grover beliscou as batatas fritas e olhou para o papel-toalha da bandeja como quem
poderia experimentar aquilo, mas ainda parecia nervoso demais para comer.
- O que é esse chiado? – perguntou ele.
Prestei atenção, mas não ouvi nada. Annabeth sacudiu a cabeça.
- Chiado? – perguntoi tia Eme. – Talvez você esteja ouvindo o óleo de fritura. Voce tem
bons ouvidos, Grover.
- Eu tomo vitaminas. Para os ouvidos.
- Admirável – disse ela. – Mas, por favor, relaxe.
Tia Eme não comeu nada. Ela não descobrira a cabeça nem para cozinhar, e agora
estava sentada com os dedos entelaçados, observando enquanto comíamos. Era um
pouco incômodo ser observado por alguém cujo o rosto eu não conseguia ver, mas me
sentia satisfeito depois do sanduíche, e um pouco sonolento, e imaginei que o mínimo
que podia fazer era puxar um pouco de conversa com nossa anfitriã.
- Então, você vende anões – falei, tentando parecer interessado.
- Ah, sim – disse tia Eme. – E animais. E pessoas. Tudo para o jardim. Sob encomenda.
As estátuas são muito populares, sabe.
- Muito movimento nessa estrada?
- Não, nem tanto. Desde que a auto-estrada foi construída... a maioria dos carros já não
passa por este caminho. Preciso cuidar bem de cada cliente que recebo.
Senti um formigamento na nuca, como se alguém estivesse me observando. Virei-me,
mas era apenas a estátua de uma garotinha segurando uma cesta de Páscoa. Os detalhes
eram incríveis, muito melhores que os vistos na maioria das estátuas de jardim. Mas
havia algo de errado com seu rosto. Ela parecia assustada, até aterriorizada.
- Ah! – disse tia Eme com tristeza. – Você pode notar que alguma das minhas criações
não dão muito certo. Elas são defeituosas. Não vendem. O rosto é a parte mais difícil de
sair perfeito. Sempre o rosto.
- Você mesma faz estas estátuas? – perguntei.
- Ah, sim. Já tive duas irmãs para me ajudar no negócio, mas elas faleceram, e a tia Eme
ficou sozinha. Só tenho as minhas estátuas. É por isso que as faço, sabe? São minha
compania. – a tristeza na voz dela parecia tão profunda e tão real que não pude deixar de
sentir pena.
Annabeth tinha parado de comer. Ela se inclinou e disse:
- Duas irmãs?
- É uma história terrível – disse tia Eme. – Não é para crianças, na verdade. Veja,
Annabeth, uma mulher má estava com inveja de mim, muito tempo atrás, quando eu era
jovem. Eu tinha um... um namorado, sabe, e essa mulher má estava determinada a nos
separar. Ela provocou um acidente terrível. Minhas irmãs ficaram do meu lado.
Compartilharam a minha má sorte enquanto foi possível, mas por fim morreram. Elas se
esvaíram. Só eu sobrevivi, mas a um preço. Que preço.
Não entendi muito bem o que ela queria dizer, mas senti pena. Minhas pálpebras
estavam cada vez mais pesadas, o estômago cheio me deixara sonolento. Coitada da
velha senhora. Quem ia querer fazer mal a alguém tão gentil?
- Percy? – Annabeth me sacudia para chamar minha atenção. – Acho que devemos ir.
Quer dizer, o mestre-de-cerimônias do circo deve estar esperando.
A voz dela pareceu tensa. Eu não sabia muito bem por quê. Grover estava comendo o
papel encerado da bandeja, mas se tia Eme estranhou aquilo, não disse nada.
- Que olhos cinzentos bonitos – disse ela, outra vez para Annabeth. – Ah, mas faz muito
tempo que não vejo olhos cinzentos como esses.
Ela estendeu o braço como se fosse acariciar o rosto de Annabeth, mas annabeth se
levantou abruptamente.
- Precisamos mesmo ir.
- Sim! – Grover engoliu o papel toalha encerado e pôs-se de pé. – O mestre-decerimônia
está esperando! Isso!
Eu não queria ir. Estava satisfeito e contente. Tia Eme era muito gentil. Queria ficar um
pouco com ela.
- Por favor, queridos – implorou a tia Eme. – É tão raro eu estar com crianças... Antes
de ir, não gostariam de pelo menos de posar para uma foto?
- Uma foto? – perguntou Annabeth com cautela.
- Sim, uma fotografia. Vou usá-la como modelo para um novo conjunto de estátuas.
Crianças são muito populares, sabem? Todo mundo ama crianças.
Annabeth se balançou de um pé para o outro.
- Acho que não podemos, senhora. Vamos, Percy...
- Claro que podemos – disse eu. Estava irritado com Annabeth por ser tão mandona, tão
mal-educada com uma velha senhora que acabara de nos dar comida de graça. – É só
uma foto, Annabeth. Qual é o problema?
- Sim, Annabeth – a mulher murmurou. – Não há mal nenhum.
Percebi que Annabeth não tinha gostado, mas deixou que tia Eme nos levasse para fora
pela porta da frente, para o jardim de estátuas.
Tia Eme nos conduziu até um banco de jardim perto do sátiro de pedra.
- Agora – disse ela – vou posicionar vocês corretamente. A mocinha no meio, e os dois
jovens cavalheiros em cada lado.
- Não há muita luz para uma foto – observei.
- Ah, é o suficiente – disse tia Eme. – Suficiente para enxergarmos um ao outro, não é?
- Onde está a sua câmera? – perguntou Grover.
Tia Eme deu um passo atrás, como que para admirar a foto.
- Agora, o rosto é o mais difícil. Vocês podem sorrir para mim, por favor, todo mundo?
Um grande sorriso?
Grover deu uma olhada para o sátiro de cimento a seu lado e murmurou:
- Parece mesmo com o tio Ferdinando.
- Grover! – ralhou tia Eme. – Olhe para este lado, querido.
Ela ainda não tinha nenhuma câmera nas mãos.
- Percy... – disse Annabeth.
Algum instinto me advertiu a dar ouvidos a Annabeth, mas eu estava lutando contra a
sensação de sono, a agradável moleza induzida pela comida e pela voz da velha senhora.
- Não vai demorar nem um segundo – disse tia Eme. – Sabe, não consigo vê-los muito
bem por causa desse maldito véu...
- Percy, alguma coisa está errada – insistiu Annabeth.
- Errada? – disse tia Ema, erguendo as mãos para remover p véu em volta da cabeça. –
De modo algum, querida. Estou em tão nobre companhia esta noite. O que poderia estar
errado?
- Aquele é o tio Ferdinando! – disse Grover, arfando.
- Não olhem para ela! – gritou Annabeth. Num piscar de olhos, ela enfiou o boné dos
Yankees na cabeça e desapareceu. Suas mãos invisíveis empurrara Grover e eu para fora
do banco.
Eu me vi caído no chão, olhando para as sandálias nos pés de tia Eme.
Pude ouvir Grover correndo para um lado e Annabeth para o outro. Mas eu estava
aturdido demais para me mexer.
Então ouvi um som estranho, um chiado, acima de mim. Meus olhos se ergueram para
as mãos de tia Eme, que se tornaram enrugadas e cheias de verrugas, com afiadas garras
de bronze no lugar das unhas.
Quase olhei mais para o alto, mas em algum lugar à minha esquerda Annabeth gritou:
- Não! Não olhe!
Mais chiados – o som de pequenas serpentes, logo acima de mim, que vinham de... de
onde deveria estar a cabeça da tia Eme.
- Corra! – baliu Grover.
Ouvi-o correndo pelos pedregulhos, gritando “Maia!” para dar partida em seus tênis
voadores. Eu não conseguia me mexer. Fiquei olhando ficamente para as garras
encarquilhadas de tia Eme, e tentei lutar contra o transe entorpecedor em que a velha me
pusera.
- Que pena ter de destruir um jovem rosto tão bonito – disse-me em tom confortador. –
Fique comigo, Percy. Tudo o que tem a fazer é olhar para cima.
Combati o ímpeto de obedecer. Em vez disso, olhei para o lado e vi uma daquelas bolas
de vidro que as pessoas põem nos jardins – uma esfera espelhada. Pude ver o reflexo
escuro de tia Eme no vidro alaranjado; seu véu se fora, revelando o rosto como um
círculo pálido tremeluzente. Os cabelos se mexiam, se contorcendo como serpentes.
Tia Eme.
Tia “M”.
Como pude ser tão estúpido?
Pense, disse a mim mesmo. Como foi que a Medusa morreu no mito?
Mas eu não conseguia pensar. Algo me dizia que a Medusa do mito estava dormindo
quando foi atacada por meu xará, Perseu. Agora, não estava nem um pouco sonolenta.
Se quisesse, poderia usar aquelas garras ali mesmo e rasgar o meu rosto.
- A dos Olhos Cinzentos fez isso comigo, Percy – disse a Medusa, ela não soava como
um monstro. Sua voz me convidava a olhar para cima, a simpatizar com a pobre vovó
velhinha. – A mãe de Annabeth, a maldita Atena, transformou a bela mulher que eu era
nisto aqui.
- Não dê puvidos a ela! – gritou a voz de Annabeth, de algum lugar entre as estáturas. –
Corra, Percy!
- Silêncio! – rosnou a Medusa. Depois sua voz voltou a ser um murmurar tranqüilizante.
– Você está vendo por que preciso destruir a menina, Percy. Ela é filha de minha
inimiga. Vou esmagar a sua estátua até virar pó. Mas você, querido, você não precisa
sofrer.
- Não – murmurei. Tentei fazer minhas pernas se mexerem.
- Você quer mesmo ajudar os deuses? – perguntou a Medusa. – Entende o que o espera
nessa missão boba, Percy? O que acontecerá se chegar ao Mundo Inferior? Não seja um
peão dos olimpianos, meu querido. Você estará melhor como estátua. Menos dor.
Menos dor.
- Percy!
Atrás de mim, ouvi um zumbido, como o de um beija-flor de cem quilos dando um
mergulho. Grover gritou:
- Abaixe-se!
Eu me virei, e lá estava ele, Grover, no céu noturno, vindo bem na minha frente, com os
tênis voadores batendo as assas, segurando um galho de árvore do tamanho de um
bastão de beisebol. Seus olhos estavam fechados com força, a cabeça se agitando de um
lado para o outro. Guiava-se só pelos ouvidos e o nariz.
- Abaixe-se! – geitou ele de novo. – Vou pegá-la!
Aquilo por fim me acordou para ação. Conhecendo Grover, tinha certeza de que ele ia
errar a Medusa e me acertar. Mergulhei para um lado.
Plaft!
De início pensei que fosse o som de Grover atingindo uma árvore. Então a Medusa
rugiu de raiva.
- Seu sátiro miserável – rosnou. – Vou acrescentá-lo à minha coleção!
- Essa foi pelo tio Ferdinando! – gritou Grover de volta.
Saí correndo aos tropeções e me escondi entre as estátuas enquanto Grover mergulhava
para mais um ataque.
Pimba!
- Aaargh! – berrou a Medusa, as serpentes do cabelo sibilando e cuspindo.
Bem ao meu lado, a voz de Annabeth disse:
- Percy!
Pulei tão alto que meus pés quase derrubaram um anão de jardim.
- Ai! Não faça isso!
Annabeth tirou o boné dos Yankees e se tornou visível.
- Você temd e cortar a cabeça dela.
- o quê?
- Está louca? Vamos dar o fora daqui.
- A Medusa é uma ameaça. Ela é má. Eu mesma a mataria, mas... – Annabeth engoliu
em seco, como se estivesse prestes a admitir algo difícil. – Mas você tem a melhor
arma. Além disso, nunca vou conseguir chegar perto dela. Ela me faria em pedacinhos
por causa da minha mãe. Você... você tem uma chance.
- O quê? Eu não posso...
- Olhe, você quer que ela transforme mais gente inocente em estátua?
Ela apontou para as estátuas de um casal apaixonado, um homem e uma mulher
abraçados, transformados em pedra pelo monstro.
Annabeth, agarrou uma esfera espelhada verde de um pedestal próximo.
- Um escudo espelhado seria melhor. – Ela estudou a esfera com ar crítico. – A
convexidade causará uma certa distorção. O tamanho do reflexo estará distorcido por
uma fator de...
- Quer falar numa língua que eu entenda?
- Estou falando! – Ela me jogou a bola de vidro. – Só olhe para a Medusa pelo espelho.
Nunca olhe diretamente para ela.
- Ei, gente! – gritou Grover em algum lugar acima de nós. – Acho que ela está
inconsciente!
- Grrraaaurrr!
- Talvez não – corrigiu ele. E mergulhou para mais um ataque.
- Depressa – disse Annabeth para mim. – Grover tem um excelente nariz, mas vai
acabar caindo.
Peguei minha caneta e tirei a tampa. A lâmina de bronze de Contracorrente se alongou
em minha mão.
Segui os sons de silvos e cuspidas do cabelo de Medusa.
Mantive os olhos cravados na esfera espelhada para ver somente o reflexo do monstro, e
não a coisa real. Então, no vidro tingido de verde, eu a enxerguei.
Grover vinha descendo para mais um assalto com o bastão, mas dessa vez voou um
pouco baixo demais. A Medusa agarrou o bastão e o desviou do curso. Ele deu uma
cambalhota no ar e tombou nos braços de um urso-pardo de pedra com um dolorido
“Uummmpff”.
A Medusa estava a ponto de pular em cima dele quando eu gritei:
- Ei!
Avancei na direção dela, o que não foi fácil, segurando uma espada e uma bola de vidro.
Se a Medusa atacasse, seria difícil me defender.
Mas ela deixou que eu me aproximasse – seis metros, três metros.
Agora era possível para ver o reflexo do seu rosto. Certamente não era assim tão feio.
As curvas verdes da bola espelhada deviam estar distorcendo a imagem, tornando-a
ainda pior.
- Você não machucaria uma velhinha, Percy – sussurrou ela. – Sei que não faria isso.
Hesitei, fascinado pelo rosto que vi refletido no vidro – os olhos que pareciam arder
refletidos no tom esverdeado, fazendo mes braços fraquejarem.
De cima do urso-pardo de cmento, Grover gemeu:
- Percy, não lhe dê ouvidos!
A Medusa gargalhou.
- tarde demais.
Ela se lançou até mim com suas garras.
Dei um golpe com a espada, ouvi um plof! nauseante, e então um chiado como o de
vento escapando de uma caverna – o som de um monstro se desintegrando.
Algo caiu no chão ao lado do meu pé. Precisei reunir toda a minha força de vontade
para não olhar. Pude sentir uma secreção morna empapando minha meia e pequenas
serpentes agonizantes puxando os cadarços dos meus sapatos.
- Ah, eca! – disse Grover. Seus olhos ainda estavam bem fechados, mas imagino que
conseguisse ouvir aquilo gorgolejando e fumegando. – Megaeca.
Annabeth se aproximou de mim, os olhos fixos no céu. Estava segurndo o véu da
medusa.
- Não se mova – disse ela.
Com muito, muito cuidado, sem olhar para baixo, ajoelhou-se e embrulhou a cabeça do
monstro no pano preto, depois a ergueu. Ainda estava pingando um suco verde.
- Tudo bem com você? – perguntou-me com a voz trêmula.
- Sim – concluí, embora sentisse vontade de vomitar meu cheesburguer duplo. – Por
que... por que a cabeça não evaporou?
- Depois que você a decepa, ela se torna um troféu de guerra – disse ela. – Como o
chifre do Minotauro. Mas não a desembrulhe. Ainda pode petrificá-lo.
Grover gemeu enquanto descia da estátua do urso-pardo. Estava com um grande vergo
na testa. O boné rastafári verde estava pendurado em um dos pequenos chifres de bode e
os pés falsos haviam sido arrancados dos cascos. Os tênis mágicos voavam sem rumo
em volta de sua cabeça.
- Nosso grande aviador – disse eu. – Bom trabalho, cara.
Ele conseguiu dar um sorriso envergonhado.
- Se bem que, na verdade, não foi nada divertido. Bem, a parte de acertá-la com o pau,
isso foi bom. Mas me arrebentar contra um urso de concreto? Nada divertido.
Ele agarrou os tênis no ar. Eu pus a tampa em minha espada. Juntos, nós três voltamos
cambaleando para o armazém.
Encontramos alguns sacos plásticos velhos atrás do balcão de lanches e embrulhamos
duas vezes a cabeça da Medusa. Com um plop, largamos a coisa em cima da mesa onde
havíamos jantado e nos sentamos em volta, exaustos demais para falar.
Por fim eu disse:
- Então temos de agradecer a Atena por esse monstro?
Annabeth me lançou um olhar irritado.
- A seu pai, na verdade. Medusa era namorada de Poseidon. Eles combinaram um
encontro no templo de minha mãe. Foi por isso que Atena a transformou em monstro. A
Medusa e suas irmãs, que a ajudaram a entrar no templo, se transformaram nas três
Górgonas. É por isso que ela queria me picar em pedacinhos, mas ia conservar você
como uma bela estátua. Ainda gosta de seu pai. Você deve tê-la feito se lembrar dele.
Meu rosto estava ardendo.
- Ah, então a culpa de termos encontrado a Medusa é minha?
Annabeth endireitou o corpo. Em uma péssima imitação de minha voz, disse:
- “É só uma foto, Annabeth. Qual é o problema?”
- Deixa para lá – falei. – Você é impossível.
- Você é insuportável.
- Você é...
- Ei! – Interrompeu Grover. – Vocês dois estão me dando enxaqueca. E sátiros nem têm
enxaqueca. O que vamos fazer com a cabeça?
Eu olhei para aquilo. Uma pequena serpente estava pendurada para fora de um buraco
no plástico. As palavras impressas no saco diziam: AGRADECEMOS SUA VISITA!
Eu estava zangado, não só com Annabeth ou a mãe dela, mas com todos os deuses por
causa daquela missão, por nos terem tirado da estrada e pelas duas grandes batalhas
logo no primeiro dia fora do acampamento. Nesse ritmo, jamais chegaríamos vivos a
Los Angeles, muito menos antes do solstício de verão.
O que a Medusa tinha dito? Não seja um peão dos olimpianos, meu querido. Você
estará melhor como estátua.
Eu me levantei.
- Volto já.
- Percy – chamou Annabeth. – O que você...
Vasculhei os fundos do armazém até encontrar o escritório da Medusa. Seu livro-caixa
mostrava as seis vendas mais recentes, todas remessadas para o Mundo Inferior para
decorar o jardim de Hades e Perséfone. De acordo com um nota de embarque, o
endereço de cobrança do Mundo Inferior era os Estúdios de Gravação M.A.C. – Morto
ao Chegar -, West Hollywood, Califórnia. Dobrei a nota e a enfiei no bolso.
Na caixa registradora encontrei vinte dólares, uns dracmas de ouro e algumas guias de
remessa do Expresso Noturno de Hermes, cada qual com uma pequena bolsa de couro
anexa, para moedas. Vasculhei o restante do escritório até encontrar uma caixa do
tamanho certo.
Voltei para a mesa de piquenique, encaixotei a cabeça da Medusa e preenchi uma guia
de remessa:
AOS DEUSES
MONTE OLIMPO,
600º ANDAR,
EDIFÍCIO EMPIRE STATE
NOVA YORK, NY
COM OS MELHORES VOTOS,
PERCY JACKSON
- Eles não vão gostar disso – advertiu Grover. – Vão achá-lo impertinente.
Coloquei alguns dracmas de ouro na bolsa anexa. Assim que a fechei, veio um som
como o de uma caixa registradora. O pacote flutuou para fora da mesa e desapareceu
com um pop!
- Eu sou impertinente – disse.
Olhei para Annabeth, desafiando-a a me criticar.
Ela não criticou. Parecia resignada com o fato de eu ter um talento especial para chatear
os deuses.
- Vamos – murmurou ela. – Precisamos de um novo plano.

DOZE
Um poodle é o nosso conselheiro.

Estávamos nos sentindo superinfelizes naquela noite.
Acampamos no bosque, a cem metros da estrada principal, em uma clareira pantanosa
que as crianças do lugar obviamente vinham usando para festas. O chão estava repleto
de latas de refrigerantes amassadas e embalagens de fast-food.
Tínhamos pego um pouco de comida e cobertores da tia Eme, mas não ousamos acender
uma fogueira para secar nossas roupas molhadas. As Fúrias e a Medusa já haviam
proporcionado animação suficiente para um dia. Não queríamos atrair mais nada.
Decidimos dormir em turnos. Prontifiquei-me a ser o primeiro a ficar de guarda.
Annabeth enroscou-se sobre os cobertores e já estava roncando quando sua cabeça
tocou o chão. Grover subiu com seus tênis voadores para o galho mais baixo de uma
arvore, encostou-se no tronco e ficou olhando para o céu da noite.
- Vá em frente e durma – disse a ele. – Acordo você se houver problemas.
Ele assentiu, mas ainda assim não fechou os olhos.
- Isso me deixa triste, Percy.
- O quê? Ter se juntado a essa missão estúpida?
- Não. Isso me deixa triste. – Ele apontou para todo aquele lixo no chão. – E o céu. Não
dá nem para ver as estrelas. Eles poluíram o céu. Esta é uma época terrível para ser um
sátiro.
- Ah, sim. Acho que você seria um ambientalista.
Ele me lançou um olhar penetrante.
- Só um ser humano não seria. Sua espécie está entulhando o mundo tão depressa que...
Ora, não importa. É inútil fazer sermões para um ser humano. Do jeito que as coisas
vão, nunca encontrarei Pan.
- Que Pan?
- Pan! – bradou, indignado. – P-A-N. O grande deus Pan! Acha que quero uma licença
de buscador para quê?
Uma brisa estranha faz farfalhar a clareira, encobrindo por um momento o fedor de lixo
e putrefação. Trazia o cheiro de frutas e flores selvagens, e de água limpa de chuva,
coisas que devem ter existido algum dia naqueles bosques. De repente, senti saudades
de algo que jamais conhecera.
- Fale-me sobre a busca – disse eu.
Grover olhou para mim com receio, como se temesse que eu estivesse apenas me
divertindo às custas dele.
- O Deus dos Lugares Selvagens desapareceu há dois mil anos – contou. – Um
marinheiro vindo da costa de Éfeso ouviu uma voz misteriosa gritando na praia: “Conte
a eles que o grande deus Pan morreu!” Quando os seres humanos ouviram a notícia,
acreditaram. Estão pilhando o reino de Pan desde então. Mas, para os sátiros, Pan era
nosso senhor e mestre. Era nosso protetor, e também dos lugares selvagens na Terra.
Não acreditamos que tenha morrido. A cada geração, os sátiros mais valentes
empenham a vida para encontrar Pan. Eles esquadrinham o planeta, explorando todos os
locais mais selvagens à espera de encontrar o lugar onde ele se esconder e despertá-lo
de seu sono.
- E você quer ser um buscador.
- É o sonho da minha vida – disse ele.- Meu pai era um buscador. E meu tio
Ferdinando... a estátua que você viu lá...
- Ah, certo, desculpe.
Grover sacudiu a cabeça.
- Tio Ferdinando sabia os riscos. Meu pai também. Mas eu terei sucesso. Serei o
primeiro buscador a retornar com vida.
- Espere... o primeiro?
Grover tirou suas flautas de bambu do bolso.
- Nenhum buscador jamais voltou. Depois que partem, eles desaparecem. Nunca mais
são vistos vivos de novo.
- Nem uma vez em dois mil anos?
- Não.
- E seu pai? Você não tem idéia do que aconteceu com ele?
- Nenhuma.
- Mas ainda assim quer ir – falei, admirado. – Quer dizer, você realmente acha que será
você quem vai encontrar Pan?
- Preciso acreditar nisso, Percy. Todo buscador acredita. É a única coisa que nos impede
de ficar desesperados quando olharmos para o que os seres humanos fizeram com o
mundo. Tenho de acreditar que Pan ainda pode estar despertado.
Olhei para o nevoeiro alaranjado do céu e tentei entender como Grover podia perseguir
um sonho que parecia tão impossível. Mas, por outro lado, será que eu era melhor?
- Como vamos entrar no Mundo Inferior? – perguntei. – Quer dizer, que chances temos
contra um deus?
- Eu não sei – admitiu ele. – Mas antes, na casa da Medusa, quando você estava
vasculhando o escritório dela, Annabeth me disse...
- Ah, esqueci. Annabeth sempre tem um plano todo esquematizado.
- Não seja tão duro com ela, Percy. Annabeth teve uma vida difícil, mas é boa pessoa.
Afinal, ela me perdoou... – ele se interrompeu.
- O que quer dizer? – perguntei. – Perdoou o quê?
De repente, Grover pareceu muito interessado em tirar notas das suas flautas.
- Espere um minuto – disse eu. – Seu primeiro trabalho de guardião foi cinco anos atrás.
Annabeth está no acampamento há cinco anos. Ela não era... quer dizer, a sua primeira
tarefa que deu errado...
- Não posso falar sobre isso – disse Grover, e o tremor em seu lábio inferior me sugeriu
que ele começaria a chorar se eu o pressionasse. – Mas como eu estava dizendo, lá na
casa da Medusa Annabeth e eu achamos em que há algo estranho com esta missão. Algo
que não é o que parece.
- Ah, novidades. Estou sendo acusado de roubar um relâmpago que foi Hades quem
pegou.
- Não me refiro a isso. As Fú... as Benevolentes pareciam estar se segurando. Como a
sra. Dodds na Academia Yancy... por que ela esperou tanto tempo para tentar matá-lo?
Depois, no ônibus, elas não foram tão agressivas quanto poderiam.
- Elas me pareceram bastante agressivas.
Grover sacudiu a cabeça.
- Estavam guinchando para nós: “Onde está? Onde?”
- Perguntavam sobre mim – falei.
- Talvez... mas tanto eu como Annabeth tivemos a sensação de que não estavam
perguntando sobre uma pessoa. Elas perguntaram apenas “Onde está?”, e não onde ele
ou ela está. Pareciam falar de um objeto.
- Isso não faz sentido.
- Eu sei. Mas, se tivermos entendido mal alguma coisa a respeito desta missão, e só
temos nove dias para encontrar o raio-mestre... - Ele olhou para mim como se estivesse
esperando por respostas, mas eu não tinha nenhuma.
Pensei no que a Medusa dissera: eu estava sendo usado pelos deuses. O que me
aguardava era pior que a petrificação.
- Não fui sincero com você – contei a Grover. – Eu não me importo com o raio-mestre.
Concordei em ir para o Mundo Inferior para poder trazer de volta a minha mãe.
Grover soprou uma nota suave nas suas flautas.
- Eu sei, Percy. Mas você tem certeza de que esse é o único motivo?
- Não estou fazendo isso para ajudar meu pai. Ele não se importa comigo eu não me
importo com ele.
Do seu galho, Grover olhou atentamente para baixo.
- Olhe, Percy. Não sou tão esperto quanto Annabeth. Não sou tão valente quanto você.
Mas sou muito bom em ler emoções. Você está contente porque seu pai está vivo.
Sente-se bem pelo fato de ele o ter assumido como filho, e parte de você quer que ele
fique orgulhoso. Foi por isso que você despachou a cabeça da Medusa para o Olimpo.
Você queria que ele visse o que você fez.
- É mesmo? Bem, talvez as emoções dos sátiros funcionem de um jeito diferente das
emoções humanas. Porque você está errado. Não me importo com o que ele pensa.
Grover puxou os pés para cima do galho.
- Certo, Percy. Tanto faz.
- Além disso, não fiz nada demais para me vangloriar. Mas saímos de Nova York e já
estamos aqui encalhados sem dinheiro e sem ter como ir para o oeste.
Grover olhou para o céu noturno, como se estivesse pensando no problema.
- Que tal eu ficar com o primeiro turno, heim? Vá dormir um pouco.
Eu quis protestar, mas ele começou a tocar Mozart, suava e doce, e eu me virei para o
outro lado, os olhos ardendo. Depois de alguns compassos do Concerto para Piano n.12
eu estava dormindo.

*****

Em meus sonhos, eu estava em uma caverna escura à beira de um enorme abismo.
Criaturas cinzentas de névoa se revolviam à minha volta, sussurrando tiras de fumaça
que eu, de algum modo, sabia que eram os espíritos dos mortos.
Eles puxavam as minhas roupas, tentando me empurrar de volta, mas eu me sentia
compelido a andar para frente, para a beira.
Olhar para baixo me dava vertigens.
O abismo se abria tão voraz e tão largo, e era tão completamente negro, que eu sabia
que não devia ter fundo. Contudo tinha a sensação de que algo tentava emergir dali,
algo enorme e maligno.
O pequeno herói, ressoou uma voz em deleite, vinda lá de baixo, das trevas. Fraco
demais, jovem demais, mas talvez você sirva.
A voz parecia ancestral – fria e pesada. Envolveu-me como lençóis de chumbo.
Eles o enganaram, menino, disse ela. Faça comigo uma troca. Eu lhe darei o que quer.
Uma imagem tremeluzente pairou acima do vazio: minha mãe, congelada no momento
em que se dissolveu em uma chuva de ouro. Seu rosto estava distorcido de dor, como se
o Minotauro ainda apertasse seu pescoço. Os olhos me encaravam, implorando: Vá!
Tentei gritar, mas minha voz não saiu.
De dentro do abismo, um riso frio ecoou.
Uma força invisível me puxou para frente. Ia me arrastar para o precipício se eu não
agüentasse firme.
Ajude-me a subir, menino. A voz ficou mas ávida. Traga-me o raio. Desfira um golpe
contra os deuses traiçoeiros!
Os espíritos dos mortos sussurravam à minha volta: Não! Acorde!
A imagem da minha mãe começou a sumir. A coisa no abismo apertou sua garra
invisível em volta de mim.
Percebi que ela não queria me puxar para dentro. Estava me usando para erguer a si
mesma para fora.
Bom, a coisa murmurou. Bom.
Acorde! sussurraram os mortos. Acorde!

*****

Alguém estava me sacudindo.
Meus olhos se abriram, e era dia.
- Ah! – disse Annabeth. – O zumbi volta à vida.
Eu tremia por causa do sonho. Ainda podia sentir o aperto do monstro do abismo em
volta do meu peito.
- Quanto tempo estive dormindo?
- O suficiente para eu preparar o café-da-manhã – Annabeth me jogou um saco de
flocos de milho sabor nacho, da lanchonete da tia Eme. – E para Grover sair e explorar.
Olhe, ele encontrou um amigo.
Tive dificuldades em focalizar o olhar.
Grover estava sentado de pernas cruzadas em um cobertor com alguma coisa felpuda no
colo, um bicho de pelúcia sujo e de um cor-de-rosa artificial.
Não. Não era um animal de pelúcia. Era um poodle cor-de-rosa.
O poodle latiu para mim, desconfiado. Grover disse:
- Não, ele não é.
Eu pisquei.
- Você está... falando com essa coisa?
O poodle rosnou.
- Esta coisa – avisou Grover – é nossa passagem para o oeste. Seja simpático com ele.
- Você pode falar com animais?
Grover ignorou a pergunta.
- Percy, apresento-lhe Gladiola. Gladiola, Percy.
Olhei para Annabeth, calculando que ela fosse rir da peça que eles estavam me
pregando, mas ela pareceu extremamente séria.
- Não vou dizer olá para um poodle cor-de-rosa – falei. – Esqueça.
- Percy – disse Annabeth -, eu disse olá para o poodle. Diga olá para o poodle.
O poodle rosnou.
Eu disse olá para o poodle.
Grover explicou que havia encontrado Gladiola no bosque e que começaram a
conversar. O poodle tinha fugido de uma família endinheirada do lugar, que oferecera
duzentos dólares de recompensa para quem o devolvesse. Gladiola na verdade não
queria voltar para a família, mas estava disposto a fazê-lo, se isso fosse ajudar Grover.
- Como Gladiola sabe da recompensa? – perguntei.
- Ele leu os avisos – disse Grover. – Óbvio...
- É claro – retruquei. – Que bobagem a minha.
- Então nós entregamos Gladiola – explicou Annabeth, em seu melhor tom de
estrategista -, recebemos o dinheiro e compramos passagens para Los Angeles. Simples.
Pensei no sonho – as vozes sussurrantes dos mortos, a coisa no abismo e o rosto de
minha mãe, tremeluzindo enquanto se dissolvia em dourado. Tudo aquilo podia estar
esperando por mim no oeste.
- Não em outro ônibus – disse, cauteloso.
- Não – concordou Annabeth.
Ela apontou colina abaixo, para os trilhos de trem que eu não conseguira ver na noite
anterior, no escuro.
- Há uma estação da Amtrack a um quilômetro naquela direção. De acordo com
Gladiola, o trem para o oeste parte ao meio-dia.

TREZE
Meu mergulho para morte.

Passamos dois dias no trem, rumo a oeste pelas colinas, por cima de rios, atravessando
ondas de trigo cor de âmbar.
Não fomos atacados nem uma vez, mas não relaxei. Sentia que estávamos viajando em
uma vitrine, sendo observados de cima e, talvez de baixo, que alguma coisa estava
aguardando o momento certo.
Tentei ser discreto, pois meu nome e fotografia estavam estampados nas primeiras
páginas de vários jornais da Costa Leste. O Trenton Register-News publicou uma foto
tirada por um turista quando desci do ônibus da Greyhound. Estava com uma expressão
ensandecida nos olhos. Minha espada era um borrão metálico em minhas mãos. Poderia
ser um taco de beisebol ou de lacrose.
A legenda da foto dizia:
Percy Jackson, 12 anos, procurando para interrogatório sobre o desaparecimento em
Long Island de sua mãe há duas semanas, aparece aqui fugindo do ônibus onde
abordou diversas passageiras idosas. O ônibus explodiu no acostamento de uma
rodovia a leste de New Jersey logo depois que Jackson fugiu da cena do crime. Com
base em relatos de testemunhas, a polícia acredita que o menino possa estar viajando
com dois cúmplices adolescentes. O padrasto, Gabe Ugliano, ofereceu uma
recompensa em dinheiro para qualquer informação que leve à sua captura.
- Não se preocupe – disse-me Annabeth. – A polícia dos mortais nunca nos encontraria.
Mas não pareceu muito segura.
Passei o resto do dia alternando entre andar de uma ponta a outra do trem (pois para
mim era difícil ficar sentado) e olhar pelas janelas.
Numa oportunidade avistei uma família de centauros galopando por um campo de trigo,
arcos de prontidão, como se estivessem caçando o almoço. O menininho centauro, que
era do tamanho de um pônei, percebeu que eu estava olhando e acenou. Olhei em volta
no vagão de passageiros, porém mais ninguém reparou. Os passageiros adultos estavam
todos com a cara enterrada em laptops ou revistas.
Em outra, mais ao anoitecer, vi algo muito grande se movendo pelo bosque. Poderia
jurar que era um leão, só que não há leões vivendo soltos nos Estados Unidos, e aquilo
era do tamanho de um tanque de guerra. O pêlo tinha reflexos dourados à luz do
entardecer. Ele então saltou por entre as arvores e desapareceu.

*****

O dinheiro de recompensa por devolver o poodle Gladiola só foi bastante para comprar
passagens até Denver. Não pudemos comprar leitos no vagão-dormitório, então
cochilamos nos assentos. Meu pescoço ficou duro. Tentei não babar enquanto dormia, já
que Annabeth estava sentada bem a meu lado.
Grover ficou roncando e balindo, e me acordava. Num momento ele se agitou demais e
um de seus pés falsos caiu. Annabeth e eu tivemos de enfiá-lo de volta antes que algum
dos outros passageiros notasse.
- E então – Annabeth me perguntou depois que recolocamos o tênis de Grover -, quem
quer a sua ajuda?
- O que quer dizer?
- Quando estava dormindo agora mesmo, você murmurou “Não quero ajudar você”.
Com quem estava sonhando?
Estava em dúvida sobre dizer alguma coisa. Era a segunda vez que sonhava com a voz
maligna do abismo. Aquilo me incomodava tanto que, por fim, contei a ela.
Annabeth ficou em silêncio por um bom tempo.
- Não parece ser Hades. Ele sempre aparece sentado em um trono negro, e nunca ri.
- Ele ofereceu minha mãe em troca. Quem mais poderia fazer isso?
- Eu acho... se ele queria dizer “Ajude-me a subir do Mundo Inferior”... Se ele quer
guerra com os olimpianos... Mas por que pedir a você o raio-mestre, se ele já o tem?
Sacudi a cabeça, desejando saber a resposta. Pensei no que Grover havia contado, que
as Fúrias no ônibus pareciam estar procurando alguma coisa.
Onde está? Onde?
Talvez Grover tivesse sentido as minhas emoções. Ele bufou dormindo, resmungou algo
sobre vegetais, e virou a cabeça.
Annabeth ajeitou o boné dele para cobrir os chifres.
- Percy, você não pode negociar com Hades. Sabe disso, certo? Ele é enganador, cruel e
ganancioso. Não me importo se suas Benevolentes não foram tão agressivas dessa vez...
- Dessa vez? – perguntei. – Você quer dizer que já cruzou com elas antes?
A mão dela deslizou até o colar. Ela manuseou uma conta branca vitrificada, na qual
estava pintada a imagem de um pinheiro, um dos seus marcos de fim de verão, em
argila.
- Digamos apenas que não morro de amores pelo Senhor dos Mortos. Você não pode
ficar tentado a negociar sua mãe.
- O que faria se fosse seu pai?
- Essa é fácil – disse ela. – Eu o deixaria apodrecer.
- Sério?
Os olhos cinzentos de Annabeth se fixaram em mim. Estavam com a mesma expressão
que vi no bosque, no acampamento, no momento em que ela puxou a espada contra o
cão infernal.
- Meu pai me detestou desde o dia em que nasci, Percy – disse ela. – Ele nunca quis um
bebê. Quando me ganhou, pediu a Atena que me levasse de volta e me criasse no
Olimpo, porque estava muito ocupado com seu trabalho. Ela não ficou contente com
isso. Disse a ele que os heróis têm de ser criados por seu parente mortal.
- Mas como... quer dizer, você não nasceu em um hospital...
- Apareci na porta do meu pai, em um berço de ouro, trazido do Olimpo por Zéfiro, o
Vento Ocidental. Daí você imaginaria que meu pai se lembrasse disso como um
milagre, não é? Como se, quem sabe, tivesse feito algumas fotos digitais ou algo do
tipo. Mas ele sempre falou sobre a minha chegada como se fosse a coisa mais
inconveniente que já lhe acontecera. Quando eu tinha cinco anos, ele se casou e
esqueceu totalmente Atena. Arranjou uma esposa mortal “normal” e teve dois filhos
mortais “normais”, e tentou fazer de conta que eu não existia.
Olhei pela janela do trem. As luzes de uma cidade adormecida estavam passando. Quis
fazer Annabeth se sentir melhor, mas não sabia como.
- Minha mãe se casou com um cara horroroso demais – contei a ela. – Grover disse que
ela fez isso para me proteger, para me esconder no cheiro de uma família humana.
Quem sabe seu pai não estava pensando nisso?
Annabeth continuou focada em seu colar. Apertava o anel de formatura de ouro que
estava pendurado entre as contas. Ocorreu-me que o anel devia ser do pai dela. Fiquei
imaginando por que ela o usava se o odiava tanto.
- Ele não liga para mim – disse ela. – A mulher dele... minha madrasta... me tratava
como uma aberração. Ela ia me deixar brincar com os filhos dela. Meu pai concordava.
Sempre que acontecia alguma coisa perigosa... sabe, algo a ver com monstros... os dois
me olhavam com raiva, do tipo “Como você ousa pôr nossa família em perigo”. No fim,
entendi a indireta. Eu não era querida. Eu fugi.
- Que idade você tinha?
- A mesma idade que comecei o acampamento. Sete.
- Mas... você não ia conseguir chegar até a Colina Meio-Sangue sozinha.
- Não, sozinha não. Atena me protegeu, me guiou em direção à ajuda. Fiz amigos
inesperados que cuidaram de mim, bem, por pouco tempo.
Quis perguntar o que havia acontecido, mas Annabeth parecia perdida em lembranças
tristes. Então ouvi o som dos roncos de Grover e fiquei olhando para fora, pelas janelas
do trem, enquanto os campos escuros de Ohio iam passando.

*****

Perto do fim do nosso segundo dia no trem, em 13 de junho, oito dias antes do solstício
de verão, passamos por algumas colinas douradas e sobre o rio Mississipi, e entramos
em St. Louis.
Annabeth esticou o pescoço para ver o Portal em Arco, que me pareceu uma enorme
alça de sacola de compras fincada na cidade.
- Eu quero fazer aquilo – suspirou ela.
- O quê? – perguntei.
- Construir algo como aquilo. Você já viu o Partenon, Percy?
- Só em fotos.
- Algum dia eu vou vê-lo em pessoa. Vou construir o maior monumento aos deuses que
já foi feito. Algo que vai durar mil anos.
Eu ri.
- Você? Uma arquiteta?
Não sei por quê, mas achei aquilo engraçado: a idéia de Annabeth tentando ficar sentada
em silêncio desenhando o dia inteiro.
As bochechas dela coraram.
- Sim, uma arquiteta. Atena espera que seus filhos criem coisas, não apenas as
derrubem, como um certo deus dos terremotos.
Observei as águas marrons e turbulentas do Mississipi embaixo.
- Desculpe – disse Annabeth. – Isso foi maldoso.
- Não dá para trabalharmos juntos? – implorei. – Quer dizer, Atena e Poseidon não
poderiam colaborar um com o outro?
Annabeth teve de pensar a respeito.
- Eu acho... a carruagem – disse ela, hesitante. – Minha mãe a inventou, mas Poseidon
criou os cavalos saídos das cristas das ondas. Então eles tiveram de trabalhar juntos para
torná-la completa.
- Então nós também podemos colaborar um com o outro. Certo?
Entramos na cidade. Annabeth olhava enquanto o Arco desaparecia atrás de um hotel.
- Acho que sim – disse, afinal.
Entramos na estação da rede ferroviária no centro da cidade. O alto falante nos avisou
que teríamos uma parada de três horas antes de partir para Denver.
Grover se espreguiçou. Ainda despertando, disse:
- Comida.
- Vamos, menino-bode – disse Annabeth. – Fazer um passeio.
- Passeio?
- Até o Portal em Arco – disse ela. – Pode ser a minha única oportunidade de subir até o
topo. Você vem ou não?
Grover e eu nos entreolhamos.
Eu queria dizer não, mas concluí que, se Annabeth ia, não poderíamos deixá-la sozinha.
- Desde que haja uma lanchonete sem monstros.

*****

O Arco ficava a cerca de um quilometro e meio da estação. No fim do dia, as filas para
entrar não eram tão longas. Seguimos cautelosamente pelo museu subterrâneo, olhando
para vagões cobertos e outras sucatas do século XIX. Não era assim tão empolgante,
mas Annabeth ia contando fatos interessantes sobre como o Arco fora construído e
Grover me passava jujubas, portanto, para mim estava bom.
Mas fiquei olhando em volta, para as outras pessoas na fila.
- Está sentindo algum cheiro? – murmurei para Grover.
Ele tirou o nariz do saco de jujubas por tempo suficiente para farejar.
- Subterrâneo – disse ele enojado. – O ar embaixo da terra sempre tem cheiro de
monstros. Provavelmente não quer dizer nada.
Mas eu tinha a sensação de que algo estava errado. Tinha a sensação de que não
devíamos estar ali.
- Gente – disse eu -, vocês conhecem os símbolos de poder dos deuses?
Annabeth estava no meio da leitura sobre o equipamento de construção usado para
erigir o Arco, mas deu uma olhada.
- Sim?
- Bem, Hades...
Grover pigarreou.
- Estamos em local público... Você quer dizer, o nosso amigo do andar de baixo?
- Ahn, certo – falei. – Nosso amigo do andar muito de baixo. Ele não tem um chapéu
como o de Annabeth?
- Você quer dizer o Elmo das Trevas – disse Annabeth. – Sim, é seu símbolo de poder.
Eu o vi junto ao assento dele durante a assembléia do solstício de inverno.
- Ele estava lá? – perguntei.
Ela assentiu.
- É a única ocasião em que ele tem permissão de visitar o Olimpo – o dia mais escuro do
ano. Mas, se o que ouvi é verdade, o elmo é muito mais poderoso que meu boné da
invisibilidade...
- Permite que ele se transforme em trevas – confirmou Grover. – Ele pode se fundir com
as sombras ou passar através de paredes. Não pode ser tocado nem visto nem ouvido. E
pode irradiar um medo tão intenso que é capaz de enlouquecer você, ou fazer seu
coração parar de bater. Por que acha que todas as criaturas racionais têm medo do
escuro?
- Mas então... como sabemos se ele não está aqui agora mesmo, nos observando? –
perguntei.
Annabeth e Grover se entreolharam.
- Nós não sabemos - disse Grover.
- Obrigado, agora me sinto muito melhor – falei. – Ainda sobrou alguma jujuba azul?
Tinha quase controlado meu desespero quando vi o minúsculo elevador no qual iríamos
subir até o topo do Arco, e percebi que estava encrencado. Odeio espaços confinados.
Eles me deixam doido.
Fomos espremidos dentro do elevador junto com uma senhora grande e gorda e seu cão,
um chihuahua com uma coleira de falsos brilhantes. Calculei que talvez o chihuahua
fosse um cão-guia, por que nenhum dos guardas disse uma palavra a respeito.
Começamos a subir dentro do Arco. Eu nunca havia estado em um elevador que subia
em curva, e meu estômago não gostou muito.
- Sem os pais? – perguntou-nos a senhora gorda.
Tinha olhos pequenos, redondos e brilhantes; dentes pontudos e manchados de café; um
chapéu mole de jeans e um vestido de jeans armado demais. Parecia um dirigível jeans.
- Eles estão lá embaixo – disse Annabeth. – Têm medo de altura.
- Ah, pobrezinhos.
O chihuahua rosnou. A mulher disse:
- Vamos, vamos, filhinho. Comporte-se. – O cão tinha olhos pequenos, redondos e
brilhantes como os da dona, inteligentes e malvados.
Eu disse:
- Filhinho. É o nome dele?
- Não.
Ela falou e sorriu, como se aquilo esclarecesse tudo.
No topo do Arco, a plataforma de observação me lembrou uma lata acarpetada. Fileiras
de janelinhas davam para a cidade, de um lado, e para o rio, do outro. A vista era legal,
mas se existe uma coisa de que gosto ainda menos que lugar fechado, é um lugar
fechado a duzentos metros de altura.
Annabeth seguiu falando sobre suportes estruturais e sobre como teria feito as janelas
maiores e projetado um piso transparente. Ela poderia ter ficado lá em cima horas a fio,
mas, para minha sorte, o guarda anunciou que a plataforma de observação seria fechada
em poucos minutos.
Guiei Grover e Annabeth em direção à saída, enfiei-os no elevador e estava quase
entrando quando me dei conta de que já havia outros dois turistas lá dentro. Não tinha
espaço para mim.
O guarda disse:
- Próximo carro, senhor.
- Vamos sair – disse Annabeth. – Vamos esperar com você.
Mas aquilo ia atrapalhar todo mundo e levar ainda mais tempo, então eu disse:
- Não, tudo bem. Vejo vocês lá embaixo.
Grover e Annabeth pareceram nervosos, mas deixaram a porta do elevador se fechar. O
carro desapareceu rampa abaixo.
Agora as únicas pessoas que restavam na plataforma de observação éramos eu, um
garotinho com os pais, o guarda e a senhora gorda com o chihuahua.
Sorri pouco à vontade para a senhora gorda. Ela sorriu de volta, a língua bifurcada
tremulando entre os dentes.
Espere um minuto.
Língua bifurcada?
Antes que eu pudesse concluir se tinha realmente visto aquilo, o chihuahua pulou no
chão e começou a latir para mim.
- Vamos, vamos, filhinho – disse a senhora. – Não está divertido? Temos todas essas
pessoas simpáticas aqui.
- Cachorrinho! – disse o menino. – Olhe, um cachorrinho!
Os pais o puxaram de volta.
O chihuahua arreganhou os dentes para mim, a espuma pingando dos lábios negros.
- Bem, meu filho – suspirou a senhora gorda. – Se você insiste.
Meu estômago começou a gelar.
- Ahn, você chamou esse chihuahua de filho?
- Quimera, querido – corrigiu a senhora gorda. – Não é um chihuahua. É um engano
muito comum.
Ela arregaçou as mangas jeans, mostrando que a pele de seus braços era escamosa e
verde. Quando sorriu, vi que seus dentes eram presas. As pupilas dos olhos eram fendas
verticais, como as dos répteis.
O chihuahua latiu mais alto, e a cada latido ele crescia. Primeiro ficou do tamanho de
um doberman, depois de um leão. O latido se transformou em rugido.
O menininho gritou. Os pais o puxaram para a saída, bem na direção do guarda, que
estava paralisado, de olhos arregalados para o monstro.
A Quimera estava tão alta que suas costas tocavam o teto. Tinha cabeça de leão, com a
juba untada de sangue, o corpo e os cascos de um bode gigante e uma serpente no lugar
da cauda, losangos de três metros de comprimento brotavam do traseiro peludo.
Ainda tinha no pescoço a coleira de falsos brilhantes e a placa, do tamanho de um prato,
era agora fácil de ler: QUIMERA – RAIVOSA, HÁLITO DE FOGO, VENENOSA –
SE ENCONTRADA, FAVOR LIGAR PARA O TÁTARO – RAMAL 954.
Percebi que não havia sequer tirado a tampa da minha espada. Minhas mãos estavam
amortecidas. Eu estava a três metros da bocarra sangrenta da Quimera, e sabia que
assim que me mexesse a criatura iria investir.
A mulher-cobra fez um som sibilante que poderia ter sido uma risada.
- Sinta-se honrado, Percy Jackson. O Senhor Zeus raramente me permite pôr um herói à
prova com um de minha prole. Pois eu sou a Mãe de Monstros, a terrível Equidna!
Olhei para ela. Tudo que eu pude pensar foi:
- Isso não é o nome de bicho que come formigas?
Ela uivou, a cara de réptil ficou marrom e verde de raiva.
- Detesto quando as pessoas dizem isso! Detesto a Austrália! Dar meu nome àquele
animal ridículo. Por causa disso, Percy Jackson, meu filho o destruirá!
A Quimera avançou, os dentes de leão rangendo. Consegui pular para o lado e me
esquivar da mordida.
Fui parar junto da família e do guarda, que agora estavam todos gritando, tentando abrir
à força as portas da saída de emergência.
Não podia deixar que eles fossem feridos. Tirei a tampa da espada, corri para o outro
lado da plataforma e gritei:
- Ei, chihuahua!
A Quimera se virou mais depressa do que eu achava possível.
Antes que eu pudesse erguer a espada, ela abriu a boca, soltando um mau cheiro como o
da maior churrasqueira do mundo, e lançou uma coluna de chamas bem em cima de
mim.
Mergulhei através da explosão. O carpete explodiu em chamas; o calor foi tão intenso
que quase queimou minhas sobrancelhas.
O lugar onde eu estava um momento antes se tornara um buraco esfarrapado na lateral
do Arco, com metal derretido fumegando nas bordas.
Essa é boa, pensei. Acabamos de soldar um monumento nacional.
Contracorrente era agora uma lamina de bronze reluzente em minhas mãos, e quando a
Quimera se virou, eu a golpeei com violência no pescoço.
Foi um erro fatal. A lâmina faiscou sem efeito contra a coleira de cachorro. Tentei
recuperar o equilíbrio, mas estava tão preocupado em me defender da boca chamejante
de leão que me esqueci completamente da cauda de serpente, até que ela fez uma volta e
cravou as presas na minha panturrilha.
Minha perna inteira ardeu em fogo. Tentei enfiar Contracorrente na boca da Quimera,
mas a cauda de serpente enrolou-se nos meus tornozelos e me desequilibrou, e a espada
voou de minha mão, saiu rodopiando pelo buraco no Arco e caiu no rio Mississipi.
Consegui ficar em pé, mas sabia que tinha perdido. Estava desarmado. Podia sentir o
veneno letal subindo por meu peito. Lembrei-me de Quíron dizendo que Anaklusmos
sempre voltaria para mim, mas não havia nenhuma caneta em meu bolso. Talvez
estivesse caído longe demais. Ou só voltasse quando estava em forma de caneta. Eu não
sabia, e não ia viver o bastante para descobrir.
Recuei para o buraco na parede. A Quimera avançou, rosnando e soltando espirais de
fumaça pelos lábios. A mulher-serpente, Equidna, gargalhou.
- Já não se fazem mais heróis como antigamente, heim, filho?
O monstro rosnou. Parecia não estar com pressa de acabar comigo, agora que eu estava
derrotado.
Dei uma olhada para o guarda e a família. O menininho se escondia atrás das pernas do
pai. Eu tinha de proteger aquelas pessoas. Não podia simplesmente... morrer. Tentei
pensar, mas meu corpo inteiro estava em fogo. Minha cabeça girava. Eu não e tinha
espada. Estava enfrentando um monstro imenso, que cuspia fogo, e sua mãe. E estava
apavorado.
Não havia outro lugar para ir, portanto subi na beira do buraco. Muito, muito embaixo ,
o rio brilhava.
Será que se eu morresse os monstros iriam embora? Deixariam os humanos em paz?
- Se você é o filho de Poseidon – sibilou Equidna -, então não tem medo da água. Pule,
Percy Jackson. Mostre-me que a água não lhe fará mal. Pule e recupere a espada. Prove
a sua linhagem.
Sim, certo, pensei. Eu tinha lido em algum lugar que pular na água da altura de alguns
andares era como se atirar em asfalto. Dali, eu ia me desfazer em pedaços com o
impacto.
A boca da Quimera estava vermelha, incandescente, preparando uma nova rajada de
fogo.
- Você não tem fé – disse a Quimera. – Não confia nos deuses. Não posso culpá-lo,
pequeno covarde. Melhor que morra agora. Os deuses são infiéis. O veneno está no seu
coração.
Ela estava certa: eu estava morrendo. Podia sentir a respiração falhando. Ninguém
poderia me salvar, nem mesmo os deuses.
Recuei e olhei para a água lá embaixo. Lembrei-me do calor do sorriso de meu pai
quando eu era um bebê. Ele deve ter me visto. Deve ter me visitado quando eu estava no
berço.
Lembrei-me do tridente verde que aparecera girando acima da minha cabeça na noite da
captura da bandeira, quando Poseidon me reconheceu como seu filho.
Mas aquilo não era o mar. Aquilo era o Mississipi, bem no meio dos Estados Unidos.
Ali não havia nenhum Deus do mar.
- Morra, infiel – disse a voz rouca de Equidna, e a Quimera mandou uma coluna de fogo
na direção de meu rosto.
- Pai, me ajude – implorei.
Virei-me e pulei. Minhas roupas em chamas, o veneno correndo por minhas veias,
mergulhei no rio.

QUATORZE
Me torno um fugitivo conhecido.

Eu adoraria contar que tive alguma revelação profunda enquanto caía, que aprendi a
aceitar minha própria mortalidade, que ri em face da morte etc.
A verdade? Meu único pensamento foi: Aaaaarggghhhh!
O rio vinha em minha direção na velocidade de um caminhão. O vento arrancou o
fôlego dos meus pulmões. Torres, arranha-céus e pontes giravam entrando e saindo do
meu campo de visão.
E então...
Cata-puuum!
Um turbilhão de bolhas. Afundei nas trevas, certo de que acabaria engolindo por trinta
metros de lama e perdido para sempre.
Mas meu impacto com a água não doeu. Eu estava agora descendo lentamente, com
bolhas passando por entre meus dedos. Fui parar no fundo do rio, em silencio. Um
peixe-gato do tamanho do meu padrasto se afastou com uma guinada para a escuridão.
Nuvens de lodo e lixo nojento – garrafas de cerveja, sapatos velhos, sacos plásticos –
giravam ao meu redor.
Àquela altura me dei conta de algumas coisas. Primeiro: eu não tinha sido achatado
como uma panqueca. Não havia sido assado como churrasco. Não sentia nem mesmo o
veneno da Quimera fervendo em minhas veias. Eu estava vivo, o que era bom.
Segundo: eu não estava molhado. Quer dizer, conseguia sentir a friagem da água. Podia
ver onde o fogo em minhas roupas tinha sido apagado. Mas, quando toquei minha
camisa, parecia perfeitamente seca.
Olhei para o lixo que passava flutuando e agarrei um velho isqueiro.
Sem chance, pensei.
Risquei o isqueiro. Uma faísca saltou. Uma chama pequenina apareceu, bem ali, no
fundo do Mississipi.
Agarrei uma embalagem ensopada de hambúrguer na corrente e o papel secou
imediatamente. Queimei-o sem problemas. Assim que o soltei, as chamas bruxelearam e
se apagaram. A embalagem voltou a se transformar em um trapo viscoso. Esquisito.
Mas a idéia mais estranha me ocorreu por ultimo: eu estava respirando. Estava embaixo
d’água e respirava normalmente.
Fiquei de pé, afundado até as coxas na lama. Sentia as pernas tremulas. As mãos
tremiam. Eu devia estar morto. O fato de não estar parecia... bem, um milagre. Imaginei
uma voz de mulher, uma voz que parecia um pouco com a da minha mãe: Percy, como
é que se diz?
- Ahn... muito obrigado. – Embaixo d’água, minha voz soava como em gravações,
idêntica à de um garoto muito mais velho. – Muito obrigado... pai.
Nenhuma resposta. Apenas o fluir escuro do lixo rio abaixo, o enorme peixe-gato que
passava deslizando, o brilho do sol poente na superfície da água muito acima, deixando
tudo da cor de doce de leite.
Por que Poseidon me salvara? Quanto mais eu pensava nisso, mais envergonhado me
sentia. Então, eu tivera sorte algumas vezes. Contra algo como a Quimera, eu não tinha
a menor chance. Aquela pobre gente no Arco provavelmente virara torrada. Não
consegui protegê-los. Não era nenhum herói. Talvez devesse simplesmente ficar aqui
embaixo com o peixe-gato, juntar-me aos comensais do fundo do rio.
Plof-plof-plof. As pás da hélice de um barco agitaram a água sobre mim, revirando o
lodo ao redor.
Ali, não mais de cinco metros à frente, estava minha espada, a guarda de bronze
brilhando, espetada na lama.
Ouvi aquela voz de mulher outra vez: Percy, pegue a espada. Seu pai acredita em você.
Dessa vez percebi que a voz não estava em minha cabeça. Eu não a estava imaginando.
As palavras pareciam vir de toda parte, ondulando pela água como o sonar de um
golfinho.
- Onde está você? – perguntei em voz alta.
Então, nas sombras, eu a vi – uma mulher da cor da água, um fantasma na corrente,
flutuando logo acima da espada. Tinha longos cabelos ondulantes, e os olhos, pouco
visíveis, eram verdes como os meus.
Um nó se formou em minha garganta.
- Mamãe?
Não, criança, apenas uma mensageira, embora o destino de sua mãe não seja tão
inevitável como você acredita. Vá para a praia em Santa Monica.
- O quê?
É a vontade se seu pai. Antes de descer para o Mundo Inferior, deve ir a Santa Monica.
Por favor, Percy, não posso ficar muito tempo aqui. O rio é sujo demais para a minha
presença.
- Mas... – Eu não sabia muito bem se a mulher era a minha mãe ou, bem, uma visão
dela. – Quem... como você...
Havia muita coisa que eu queria perguntar, as palavras se amontoavam em minha
garganta.
Não posso ficar, meu valente, disse a mulher. Ela estendeu a mão, e sentia a corrente
roçar meu rosto como uma caricia. Você precisa ir a Santa Monica! E, Percy, cuidado
com os presentes...
A voz dela sumiu.
- Presentes? – perguntei. – Que presentes? Espere!
Ela tentou falar novamente, mas o som se fora. Sua imagem se desfez. Se era a minha
mãe, eu a tinha perdido de novo.
Senti vontade de me afogar. O único problema: eu era imune a isso.
Seu pai acredita em você, ela dissera.
Ela também me chamara de valente... a não ser que estivesse falando com o peixe-gato.
Fui me arrastando até Contracorrente e a agarrei pela guarda. A Quimera ainda podia
estar lá em cima com sua mãe gorda e peçonhenta, esperando para acabar comigo. Na
melhor das hipóteses, a policia mortal estaria chegando, tentando descobrir quem havia
aberto um buraco no Arco. Se me achassem, teriam algumas perguntas a fazer.
Pus a tampa na espada e enfiei a esferográfica no bolso.
- Muito obrigado, pai – disse de novo para a água escura. Então dei um impulso para
cima, através da sujeira, e nadei até a superfície.

*****

Emergi ao lado de um McDonald’s flutuante.
A um quarteirão de distancia, todos os veículos de emergência se St. Louis cercavam o
Arco. Helicópteros da policia circulavam no alto. A multidão de curiosos me lembrou
Times Square no dia de ano-novo.
Uma menininha disse:
- Mamãe! Aquele menino saiu andando do rio.
- Que bom, querida – disse a mãe, esticando o pescoço para ver as ambulâncias.
- Mas ele está seco!
- Que bom, querida.
Uma repórter estava falando para a câmera:
“Tudo leva a crer, pelo que soubemos, que não se trata de um ataque terrorista, mas as
investigações ainda estão muito no começo. Os danos, como podem ver, são muito
sérios. Estamos tentando obter acesso a alguns sobreviventes para questioná-los a
respeito de testemunhos de que alguém teria caído de cima do Arco.”
Sobreviventes. Senti uma onda de alivio. O guarda e a família tinham escapado ilesos.
Eu esperava que Annabeth e Grover estivessem bem.
Tentei abrir caminho na multidão para ver o que estava acontecendo depois da barreira
policial.
“...um adolescente”, outro reporte estava dizendo. “O Canal 5 soube que as câmeras de
vigilância mostram um adolescente enlouquecido na plataforma de observação,
detonando de algum modo aquela estranha explosão. É difícil acreditar, John, mas é isso
que estamos ouvindo dizer. Mais uma vez, não há nenhuma fatalidade confirmada...”
Recuei, tentando manter a cabeça baixa. Tinha de dar uma volta enorme para contornar
a perímetro policial. Havia policiais e repórteres por toda parte.
Estava quase perdendo a esperança de encontrar Annabeth e Grover quando uma voz
familiar baliu:
- Perrr-cy!
Virei-me e dei com o abraço de urso de Grover – ou abraço de bode. Ele disse:
- Pensamos que tivesse ido para o Hades pelo pior caminho!
Annabeth estava trás dele, tentando fazer cara de zangada, mas até ela parecia aliviada
por me ver.
- Não podemos deixar você cinco minutos sozinho! O que aconteceu?
- Foi como um tombo.
- Percy! Cento e noventa e dois metros?
Atrás de nós, um policial gritou:
- Abram passagem! – A multidão se dividiu e uma dupla de paramédicos avançou
empurrando uma mulher numa maca. Eu a reconheci imediatamente como a mãe do
menininho que estava na plataforma. Ela dizia:
- E então aquele cachorro enorme, aquele chihuahua enorme cuspindo fogo...
- Certo, minha senhora – disse o paramédico. – Acalme-se por favor. Sua família está
bem. O medicamento esta começando a fazer efeito.
- Eu não estou louca! Aquele menino pulou pelo buraco e o monstro desapareceu. –
Então ela me viu. – Lá está ele! É aquele menino!
Virei rapidamente e puxei Annabeth e Grover atrás de mim. Desaparecemos na
multidão.
- O que está acontecendo? – perguntou Annabeth. – Ela estava falando do chihuahua do
elevador?
Contei a eles a historia inteira da Quimera, Equidna, meu show de mergulho e a
mensagem da moça embaixo d’água.
- Uau – disse Grover. – Temos de levá-lo a Santa Monica! Não pode ignorar uma ordem
de seu pai.
Antes que Annabeth pudesse responder, passamos por outro repórter que gravava um
boletim informativo, e quase fiquei paralisado quando ele disse:
- Percy Jackson. É isso mesmo, Dan. O canal 12 soube que o menino que pode ter
causado essa explosão se encaixa na descrição de um rapazinho procurado pelas
autoridades por um serio acidente com um ônibus em New Jersey três dias atrás. E
acredita-se que o menino esteja viajando para o oeste. Para os nossos espectadores de
casa, esta é a foto de Percy Jackson.
Nós nos abaixamos atrás do carro de reportagem e nos esgueiramos para um beco.
- Primeiro o mais importante – disse a Grover. – Temos de sair da cidade!
De algum modo conseguimos voltar à estação ferroviária sem sermos vistos.
Embarcamos no trem bem no momento em que estava saindo para Denver. O trem
seguiu para oeste enquanto a noite caía, com as luzes da policia ainda piscando contra a
silhueta de St. Louis atrás de nós.

QUINZE
Um deus compra cheeseburgers para nós.

Na tarde seguinte, 14 de junho, sete dias antes do solstício, nosso trem entrou em
Denver. Não comíamos nada desde a noite anterior no vagão-restaurante, em algum
lugar de Kansas. Não tomávamos banho desde que saímos da Colina Meio-Sangue, e eu
tinha certeza de que isso era oóbvio.
- Vamos tentar entrar em contato com Quíron – disse Annabeth. – Quero contar a ele
sobre sua conversa com o espírito do rio.
- Não podemos usar telefones, certo?
- Não estou falando de telefones.
Perambulamos pelo centro da cidade por cerca de meia hora, embora eu não soubesse
muito bem o que Annabeth estava procurando. O ar estava seco e quente, o que era
estranho depois da umidade de St. Louis. Aonde quer que fôssemos, as Montanhas
Rochosas pareciam me olhar, como um tsunami prestes a quebrar sobre a cidade.
Finalmente encontramos um lava-jato vazio. Fomos para o boxe mais afastado da rua,
atentos a carros de policia. Éramos três adolescentes sem automóvel em um lava-jato;
qualquer policial que se prezasse deduziria que não estávamos tramando nada de bom.
— O que exatamente estamos fazendo? — perguntei quando Grover pegou a mangueira
de um compressor.
— São setenta e cinco centavos — resmungou. Só me restauram duas moedas de vinte e
cinco. Annabeth?
— Não olhe para mim — disse ela. — O vagão-restaurante me deixou lisa.
Pesquei o meu último restinho de trocados e passei uma moeda de vinte e cinco
centavos para Grover, o que me deixou com cinco e um dracma da Medusa.
— Excelente — disse Grover. — Poderíamos fazer isso com qualquer spray, é claro,
mas a conexão não fica boa, e meus braços cansam de tanto bombear.
— Do que está falando?
Ele depositou as moedas e ajustou o botão para ESGUICHO FINO.
— M. I.
— Mensagem instantânea?
— Mensagem de Íris — corrigiu Annabeth. — A deusa do arco-íris transmite
mensagens aos deuses. Se a gente souber como pedir, e ela não estiver atarefada demais,
fará o mesmo para meios-sangues.
— Você convoca a deusa com um compressor?
Grover apontou o bico da mangueira para o ar e água saiu chiando em uma espessa
névoa branca.
— A não ser que conheça um meio mais fácil de fazer um arco-íris.
De fato, a luminosidade do fim de tarde se filtrou através da névoa e se decompôs em
cores.
Annabeth estendeu a palma da mão para mim.
— Dracma, por favor.
Eu o entreguei.
Ela ergueu a moeda acima da cabeça.
- Ó deusa, aceite nossa oferenda.
Jogou o dracma no arco-íris. Ele desapareceu em um tremuluzir dourado.
- Colina Meio-Sangue — solicitou Annabeth.
Por um momento, nada aconteceu.
E então eu estava olhando através da névoa para campos de morangos e o Estreito de
Long Island a distância. Era como se estivéssemos na varanda da Casa Grande. Em pé,
de costas para nós junto à cerca, estava um cara de cabelos da cor da areia, de short e
camiseta regata laranja. Segurava uma espada de bronze e parecia olhar atentamente
para algo na campina.
- Luke! — chamei.
Ele se virou, os olhos arregalados. Poderia jurar que ele estava na minha frente, a um
metro de distância, atrás de uma cortina de névoa,só que eu via apenas a parte dele que
aparecia no arco-íris.
- Percy! — O seu rosto marcado pela cicatriz se abriu em um sorriso. — E Annabeth
também? Graças aos deuses! Vocês estão bem?
- Estamos... ahn... ótimos — gaguejou Annabeth. Ela tentava deseperadamente alisar a
camiseta suja e tirar os cabelos soltos da fente do rosto. — Nós pensamos... Quíron...
quer dizer...
- Ele esta lá embaixo nos chalés. — O sorriso de Luke se apagou. Estamos tendo alguns
problemas com os campistas. Escute, está tudo legal com vocês? Grover está bem?
- Estou bem aqui — gritou Grover. Ele virou o esguicho para um lado e entrou no
campo de visão de Luke. — Que tipo de problemas?
Bem naquele momento um grande Lincoln Continental entrou no lava-jato com o rádio
tocando hip-hop no último volume.
Quando o carro entrou no boxe ao lado, os alto-falantes vibravam tanto que sacudiram o
calçamento.
— Quíron teve de... que barulho é esse? — gritou Luke.
— Deixe que eu cuido disso! — gritou Annabeth parecendo muito aliviada por ter uma
desculpa para sair de vista. — Grover, venha!
— O quê? — disse Grover. — Mas...
— Dê a mangueira a Percy e venha! — ordenou ela.
Grover resmungou qualquer coisa sobre as meninas serem mais difíceis de entender do
que o Oráculo de Delfos, depois me entregou a mangueira e seguiu Annabeth.
Eu reajustei o esguicho para manter o arco-íris e ainda ver Luke.
— Quíron teve de separar uma briga — gritou Luke, mais alto que música. — A
situação anda um bocado tensa por aqui. A questão-impasse entre Zeus e Poseidon
vazou. Ainda não sabemos direito como... provavelmente, foi o mesmo sujeito nojento
que convocou o cão infernal. Agora os campistas estão começando a tomar partido. As
coisas estão ficando como na Guerra de Tróia, tudo de novo. Afrodite, Ares e Apolo
estão de certo modo apoiando Poseidon. Atena está apoiando Zeus.
Estremeci só de pensar que o chalé de Clarisse pudesse estar do lado de meu pai para
alguma coisa. No boxe ao lado,ouvi Annabeth e algum cara discutindo, e então o
volume da música abaixou drasticamente.
— Então, qual é a sua situação? — perguntou Luke para mim. — Quíron vai lamentar
muito não ter podido falar com você.
Contei-lhe praticamente tudo, inclusive meus sonhos. Era tão boa a sensação de vê-lo,
de que eu estava de volta ao acampamento, mesmo que fosse por alguns minutos, que
não percebi por quanto tempo havia falado até que o alarme do compressor disparou. Vi
que só tinha mais um minuto antes que a água desligasse.
- Queria poder estar aí — disse Luke. — Não podemos ajudar muito daqui,
infelizmente, mas escute... com certeza foi Hades quem pegou o raio-mestre. Ele estava
lá no Olimpo solstício de inverno. Eu estava supervisionando uma excursão e nós o
vimos.
- Mas Quíron falou que os deuses não podem tomar diretamente os itens mágicos um do
outro.
- É verdade — disse Luke, parecendo perturbado. — Ainda assim... Hades tem o elmo
das trevas. Como alguém mais poderia se esgueirar para dentro da sala do trono e
roubar o raio-mestre? É preciso estar invisível.
Ficamos os dois em silêncio até que Luke pareceu se dar conta do que dissera.
- Ei — protestou ele. — Não quis dizer Annabeth. Ela e eu nos conhecemos há uma
eternidade. Ela jamais iria... quer dizer, ela é como uma irmã para mim.
Pensei comigo mesmo se Annabeth iria gostar daquela descrição. No boxe ao lado, a
música parou. Um homem gritou aterrorizado, portas de carro bateram e o Lincoln saiu
a toda do lava-jato.
- É melhor você ir ver o que foi aquilo — disse Luke. — Escute, está usando os ténis
voadores? Eu me sentiria melhor se soubesse que lhe serviram de alguma coisa.
- Ah... ahn, sim! —Tentei não soar como parecer um mentiroso culpado. — Sim, foram
úteis.
- É mesmo? — sorriu. — Serviram e tudo o mais?
A água cessou. A névoa começou a dispersar.
— Bem, cuide-se lá em Denver — gritou Luke, a voz ficando mais baixa. — E diga a
Grover que dessa vez será melhor! Ninguém será transformado em pinheiro se ele
apenas...
Mas a névoa se foi, e a imagem de Luke desapareceu. Eu estava sozinho em um boxe
molhado e vazio de lava-jato.
Annabeth e Grover apareceram no canto, rindo, mas pararam quando viram minha cara.
O sorriso de Annabeth sumiu.
— O que aconteceu, Percy? O que Luke disse?
— Quase nada — menti, sentindo o estômago tão vazio quanto um chalé dos Três
Grandes. — Venham, vamos procurar alguma coisa para jantar.
*****
Poucos minutos depois, estávamos sentados num reservado de um pequeno e reluzente
restaurante todo cromado. À nossa volta, famílias comiam hambúrgueres e bebiam
cerveja e refrigerantes. Finalmente, a garçonete veio. Ela ergueu uma sobrancelha com
um ar cético.
— Então?
Eu disse:
— Nós, ahn, queremos pedir o jantar.
— Têm dinheiro para pagar, crianças?
O lábio inferior de Grover tremeu. Tive medo de que ele começasse a balir, ou, pior,
começasse a comer o linóleo. Annabeth parecia prestes a desmaiar de fome.
Eu estava tentando pensar em uma história comovente para a garçonete quando um forte
ronco sacudiu o edifício inteiro; uma motocicleta do tamanho de um filhote de elefante
havia encostado no meio-fío.
Todas as conversas cessaram. O farol da motocicleta brilhava em vermelho. Tinha
labaredas pintadas sobre o tanque de gasolina e um coldre de cada lado, com
espingardas de caca. O assento era de couro — mas um couro que parecia... bem, pele
humana, caucasiana.
O cara da moto podia fazer lutadores profissionais saírem correndo chamando a mamãe.
Vestia uma camiseta justa vermelha, que ressaltava os músculos, jeans pretos e um
casaco comprido de couro preto, com um facão de caça preso à coxa. Usava óculos
escuros vermelhos, presos na nuca, e tinha a cara mais cruel, mais brutal que eu já tinha
visto — boa-pinta, eu acho, porém mau —, com cabelo aparado a máquina negro como
petróleo o rosto marcado por cicatrizes de muitas, muitas brigas. O estranho era que
parecia que eu já tinha visto aquele homem em algum lugar.
Quando ele entrou no restaurante, um vento quente e seco soprou no ambiente. Todos se
levantaram, como se estivessem hipnotizados, mas o motociclista acenou a mão com
desdém e eles sentaram de novo. Todos voltaram às suas conversas. A garçonete piscou,
como se alguém tivesse apertado o botão de retroceder em seu cérebro. Ela perguntou
novamente:
— Têm dinheiro para pagar, crianças?
O cara da moto disse:
— É por minha conta. — Escorregou para dentro do nosso reservado, pequeno demais
para ele, e espremeu Annabeth contra janela.
Encarou a garçonete, que olhava para ele de olhos arregalados, e disse:
— Ainda está aí?
Ele apontou para ela, e ela ficou rígida. Virou-se como se al¬guém a tivesse girado e
marchou de volta para a cozinha.
O homem da moto me olhou. Não pude ver seus olhos atrás dos óculos vermelhos, mas
sentimentos ruins começaram a fervilhar no meu estômago. Raiva, ressentimento,
amargor. Tive vontade de bater na parede.Tive vontade de comprar briga com alguém.
Quem aquele cara pensava que era?
Ele me deu um sorriso maldoso.
— Então você é o garoto do Velho das Algas, ahn?
Eu devia ter ficado surpreso, ou assustado, mas em vez disso era como se estivesse
olhando para o meu padrasto, Gabe. Quis arrancar a cabeça do cara:
— O que você tem com isso?
Os olhos de Annabeth me lançaram um alerta.
— Percy, este é...
— Tudo bem — disse ele. — Não me incomodo com um pouco de petulância. Desde
que você lembre quem manda. Sabe quem eu sou, priminho?
Então me veio à cabeça por que o cara me parecia família. Ele tinha o mesmo olhar
cruel de algumas crianças do Acampamento Meio-Sangue, os do chalé 5.
— Você é o pai de Clansse — disse eu. — Ares, deus guerra.
Ares arreganhou um sorriso e tirou os óculos. Onde deveriam estar os olhos havia
apenas fogo, órbitas vazias brilhando com miniexplosões nucleares.
— Certo, mané. Ouvi que quebrou a lança de Clarisse.
— Ela estava pedindo isso.
— Provavelmente. Tranqüilo. Não me meto nas brigas dos meus filhos, sabia? Estou
aqui porque ouvi dizer que estava na cidade. Tenho uma pequena proposta para você.
A garçonete voltou trazendo bandejas com montes de comida — cheeseburgers, batatas
fritas, anéis de cebola empados e milk-shakes de chocolate.
Ares entregou-lhe alguns dracmas de ouro.
Ela olhou nervosa para as moedas.
- Mas estas não são...
Ares puxou seu enorme facão e começou a limpar as unhas.
- Algum problema, benzinho? A garçonete engoliu em seco e se afastou com o ouro.
- Não pode fazer isso — disse a Ares. — Não pode ameaçar pessoas com uma faca.
Ares riu.
- Está brincando? Eu adoro este país. Melhor lugar, depois de Esparta. Você não anda
armado, otário? Pois devia. O mundo lá fora é perigoso. O que me traz de volta à minha
proposta. Preciso que me faça um favor.
- Que favor eu poderia fazer para um deus?
- Algo que um deus não tem tempo de fazer ele mesmo. Nada demais. Larguei meu
escudo em um parque aquático abandonado aqui na cidade. Estava no meio de um...
encontro com minha namorada. Fomos interrompidos. Deixei o escudo para trás. Quero
que vá buscá-lo para mim.
- Por que não volta lá e pega você mesmo?
O fogo nas órbitas dele ficou um pouco mais incandescente. — Por que não transformo
você em uma marmota e o atropelo com minha Harley? Porque não estou com vontade.
Um deus está dando a você a oportunidade de se pôr à prova, Percy Jackson. Você vai
mostrar que é um covarde? — Ele se inclinou para a frente. — Ou, quem sabe, você só
luta quando há um rio para mergulhar dentro, para que seu papai possa protegê-lo?
Queria dar um murro naquele cara, mas, de algum modo, sabia que ele esperava por
isso. O poder de Ares estava causando a minha raiva. Ele adoraria se eu o atacasse. Eu
não queria lhe dar esse gostinho.
- Não estamos interessados – falei. – Já temos uma missão.
Os olhos ardentes de Ares me fizeram ver coisas que eu não queria – sangue, fumaça e
corpos no campo de batalha.
- Eu sei de tudo sobre sua missão, seu imprestável. Quando aquele item foi roubado,
Zeus enviou seus melhores para procurá-lo: Apolo, Atena, Ártemis e, naturalmente, eu.
Se eu não consegui farejar uma arma tão poderosa... – Ele lambeu o beiço, como se a
própria idéia do raio-mestre o tivesse deixado com fome. – Bem... se eu não consegui
encontrá-lo, você não tem nenhuma chance. Entretanto, estou tentando lhe dar o
beneficio da dúvida. Seu pai e eu nos conhecemos há muito tempo. Afinal, fui eu quem
lhe contou minhas suspeitas sobre o velho Bafo de Cadáver.
- Você disse a ele que Hades roubou o raio?
- Claro. Acirrar os ânimos para uma guerra. O truque mais antigo de todos. Eu o
reconheci imediatamente. De certo modo, você tem de agradecer a mim por sua
missãozinha.
- Obrigado – resmunguei.
- Ei, sou um cara generoso. Faça meu servicinho e eu o ajudarei em sua viagem. Vou
arranjar uma carona para oeste para você e seus amigos.
- Estamos indo muito bem sozinhos.
- Sim, certo. Sem dinheiro. Sem rodas. Sem nenhuma pista do que vão enfrentar. Ajudeme,
e talvez eu lhe conte algo sobre que precisa saber. Algo sobre a sua mãe.
- Minha mãe?
Ele sorriu.
- Isso despertou sua atenção. O parque aquático fica um quilômetro e meio a oeste, na
Delancy. Não há como errar. Procurem o Túnel do Amor.
- O que interrompeu seu namoro? – perguntei. – Alguma coisa o assustou?
Ares arreganhou os dentes, mas eu já tinha visto aquela cara ameaçadora antes, em
Clarisse. Havia nela algo de incerto, quase um nervosismo.
- Você tem sorte de ter me encontrado, imprestável, e não um dos olimpianos. Eles não
são tão indulgentes com a grosseria quanto eu. Encontrarei você aqui novamente
quando tiver terminado. Não me desaponte.
Depois disso eu devo ter desmaiado, ou entrado em um transe, pois quando voltei a
abrir os olhos Ares havia desaparecido. Podia ter pensado que toda a conversa fora um
sonho, mas a expressão de Annabeth e Grover me dizia outra coisa.
- Nada bom – disse Grover. – Ares o procurou, Percy. Isso não é nada bom.
Olhei pela janela. A motocicleta havia desaparecido.
Será que Ares realmente sabia algo sobre minha mãe, ou estava apenas jogando
comigo? Agora que ele se fora, toda a minha raiva passara. Percebi que Ares devia
adorar bagunçar as emoções das pessoas. Era esse o seu poder – exacerbar tanto as
paixões que elas atrapalhavam nossa capacidade de pensar.
- Deve ser algum tipo de truque – falei. – Esqueçam Ares. Vamos embora e pronto.
- Não podemos – disse Annabeth. – Olhe, detesto Ares tanto quanto qualquer um, mas
não é possível ignorar os deuses a não ser que se deseje um azar tremendo. Ele não
destava brincando sobre transformar você em um roedor.
Baixei os olhos para meu cheesburguer, que de repente não parecia mais tão apetitoso.
- Por que ele precisa de nós?
— Talvez seja um problema que requeira inteligência – disse Annabeth. — Ares tem
força. É tudo o que tem. Mesmo às vezes tem de se curvar à sabedoria.
— Mas esse parque aquático... ele agiu quase como se estivesse apavorado. O que faria
um deus da guerra fugir desse jeito?
Annabeth e Grover se entreolharam nervosamente.
Annabeth disse:
— Acho que teremos de descobrir.

*****

Quando encontramos o parque aquático, o sol estava se pondo atrás das montanhas. A
julgar pela placa, ele outrora se chamara AQUALÂNDIA,mas agora algumas letras
haviam sido arranca, então ela dizia AQU L D A.
O portão principal estava fechado com cadeado e tinha no alto arame farpado. Dentro,
enormes escorregadores, tubos e canos se retorciam por toda parte, secos,
desembocando em piscinas vazias. Velhos ingressos e folhetos subiam do asfalto com o
vento. Com a noite chegando, o lugar parecia triste e arrepiante.
— Se Ares traz a namorada aqui para um encontro — falei, olhando para o arame
farpado —, não ia gostar de ver com aparência dela.
— Percy — advertiu Annabeth —, tenha mais respeito.
— Por quê? Pensei que você detestasse Ares.
— Ainda assim, ele é um deus. E a namorada dele é muito temperamental.
— Não queremos ofendê-la — acrescentou Grover.
— Quem é? Equidna?
— Não, Afrodite — disse Grover, um pouco sonhador. - A deusa do amor.
- Pensei que ela fosse casada com alguém — disse eu. – Hefesto..
- E daí? — perguntou ele.
- Ah. — De repente, senti que era preciso mudar de assunto. Então, como fazemos para
entrar?
- Maia! — Os ténis de Grover criaram asas.
Ele voou por cima da cerca, deu um mortal involuntário no ar, depois pousou
cambaleando no lado oposto. Sacudiu o pó dos seus jeans, como se tivesse planejado
tudo aquilo.
- Vocês vêm?
Annabeth e eu tivemos de escalar à moda antiga, empurrando o arame farpado um para
o outro enquanto nos arrastávamos por cima do topo.
As sombras se alongaram enquanto caminhávamos pelo parque, conferindo as atrações.
Havia a Ilha dos Pequeninos, o Por cima da Cabeça e o Cara, Cadê o Meu Calção?
Nenhum monstro chegou para nos pegar. Nada fazia o menor barulho.
Encontramos uma loja de lembrancinhas que fora deixada aberta. Ainda havia
mercadorias enfileiradas nas prateleiras: globos de neve, lápis, cartões-postais, e
prateleiras de...
— Roupas — disse Annabeth. — Roupas limpas.
— É — completei. — Mas você não pode simplesmente...
— Observe.
Ela agarrou uma fileira inteira de artigos das prateleiras e desapareceu dentro do
provador. Poucos minutos depois saiu vestindo short estampado de flores da
Aqualândia, uma grande ca¬miseta vermelha da Aqualândia e sapatilhas de surfe
temáticas da Aqualândia. Pendurada no ombro, uma mochila da Aqualândia,
obviamente recheada de outras coisinhas.
- Ora, que se dane. — Grover encolheu os ombros.
Logo nós três parecíamos anúncios ambulantes do parque temático fantasma.
Continuamos procurando pelo Túnel do Amor. Eu tinha a sensação de que o parque
inteiro estava prendendo a respiração.
— Então Ares e Afrodite — falei, só para afastar os pensamentos da escuridão que
aumentava — estão tendo um caso?
— É uma fofoca velha, Percy — disse Annabeth. — fofoca de três mil anos.
— E o mando de Afrodite?
— Bem, você sabe — disse ela. — Hefesto. O ferreiro ficou aleijado quando bebê,
atirado de cima do Monte Olimpo por Zeus. Então não é exatamente lindo. Habilidoso
com as mãos e tudo, mas Afrodite não curte inteligência e talento, entende?
— Ela gosta de motoqueiros.
— Ou isso.
— Hefesto sabe?
— Ah, com certeza — disse Annabeth. — Uma vez ele os pegou juntos. Quer dizer,
pegou mesmo, em uma rede de ouro, e chamou todos os deuses para ver e rir da cara
deles. Hefesto está sempre tentando constrangê-los. E por isso que eles se encontram em
lugares escondidos, como...
Ela se interrompeu, olhando em frente.
— Como aquilo.
Diante de nós havia uma piscina vazia que teria sido sensacional para andar de skate.
Tinha pelo menos cinquenta metros de largura e forma de bacia.
Em volta da beira, uma dúzia de estátuas de Cupido montavam guarda de asas abertas e
arcos prontos para disparar. Do outro lado abria-se um túnel, provavelmente para onde a
água escoava quando a piscina estava cheia. A placa acima dele dizia:
EMOCIONANTE PASSEIO DE AMOR: ESTE NÃO É O TÚNEL DO AMOR DOS
SEUS PAIS!
Grover se arrastou até a borda.
— Gente, olhe.
Abandonado no fundo da piscina havia um barco de dois lugares rosa e branco, com
coraçõezinhos pintados por toda parte. No assento da esquerda, brilhando na luz pálida,
estava o escudo de Ares, um círculo polido de bronze.
— Fácil demais — disse eu. — Então é só descer até lá e pegá-lo?
Annabeth correu os dedos pela base da estátua de Cupido mais próxima.
— Há uma letra grega entalhada aqui — disse ela. — Eta. Imagino...
— Grover — falei —, sente cheiro de algum monstro?
Ele farejou o vento.
— Nada.
— Nada do tipo no-Arco-você-não-sentiu-o-cheiro-de-Equidna ou realmente nada?
Grover pareceu ofendido.
— Disse a você, aquilo foi num subterrâneo.
— Certo, desculpe. — Eu respirei fundo. — Vou descer até lá.
—Vou com você. — Grover não pareceu muito entusiasmado, mas tive a impressão de
que ele estava tentando compensar pelo que acontecera em St. Louis.
— Não — disse a ele. — Quero que fique no alto com os tênis voadores. Você é nosso
ás da aviação, está lembrado? Vou contar com você para dar apoio, caso alguma coisa
dê errado.
Grover estufou um pouco o peito.
— Claro. Mas o que poderia dar errado?
— Não sei. Só urna sensação. Annabeth, venha comigo...
— Está brincando? — Ela olhou para mim como se eu tivesse acabado de cair da Lua.
Suas bochechas estavam num tom vermelho vivo.
— Qual o problema agora? — perguntei.
— Eu... ir com você para um... um "Emocionante Passeio de Amor"? Que coisa mais
embaraçosa! E se alguém me vir?
— Quem é que vai ver? — Mas agora a minha cara também estava queimando. Só
mesmo uma menina para complicar as coisas. — Otimo — disse a ela. — Vou fazer
isso sozinho, quando comecei a descer pela lateral da piscina, ela me seguiu
resmungando sobre como os meninos sempre complicam as coisas.
Chegamos ao barco. O escudo estava apoiado em um banco e ao lado havia um lenço
feminino de seda. Tentei imaginai Afrodite ali, um casal de deuses se encontrando em
um brinquedo de parque de diversões sucateado. Por quê? Então notei algo não tinha
visto de cima: espelhos por toda a volta da borda da piscina, voltados para aquele ponto.
Podíamos nos ver, não importa em que direção olhássemos. Tinha de ser isso. Enquanto
Ares e Afrodite estavam se agarrando, podiam ver suas pessoas favoritas: eles mesmos.
Peguei o lenço. Tinha um brilho rosado, e o perfume indescritível — rosas, ou louro.
Alguma coisa boa. Sorri, um sonhador, e estava quase passando o lenço no rosto quando
Annabeth o arrancou da minha mão e enfiou em seu bolso.
— Ah, não, não faça isso. Fique longe dessa magia de amor.
— O quê?
— Apenas pegue o escudo, Cabeça de Alga, e vamos dar o fora daqui.
No momento em que toquei o escudo, vi que estávamos encrencados. Minha mão
arrebentou algo que o conectava ao pára-brisa. Uma teia de aranha, pensei, mas então
olhei para um fio invisível na minha palma e vi que era algum tipo de filamento
metálico, tão fino que era quase invisível. Uma armadilha.
- Espere — disse Annabeth.
- Tarde demais.
- Há uma outra letra grega na lateral do barco, um outro eta. Trata-se de uma armadilha.
Um ruído irrompeu a nossa volta, um milhão de engrenagensrangendo, como se a
piscina inteira estivesse se transformando em uma máquina gigante.
Grover gritou:
- Gente!
Lá em cima na borda, as estátuas de Cupido armavam os arcos; Antes que eu pudesse
sugerir que nos abaixássemos, dispararam, mas não contra nós. Dispararam uma contra
a outra, atravessando a piscina. Cabos de seda foram levados pelas flechas, fazendo um
arco por cima da piscina e fincando-se no chão para formar um imenso asterisco
dourado. Então fios metálicos menores começaram a se tecer magicamente por entre os
principais, formando uma rede.
- Temos de dar o fora — disse eu.
- Ah, é mesmo? — disse Annabeth.
Agarrei o escudo e corremos, mas subir pela inclinação da piscina não era tão fácil
quanto descer.
- Venham! — gritou Grover.
Ele estava tentando manter uma seção da rede aberta para nós, mas onde quer que a
tocasse, os fios dourados começavam a envolver suas mãos.
A cabeça dos Cupidos se abriu de repente. De lá, saíram câmeras de vídeo. Luzes se
ergueram por toda a volta da piscina, cegando-nos com a claridade, e um alto-falante
soou:
— Ao vivo para o Olimpo em um minuto... Cinqüenta e nove segundos, cinquenta e
oito...
— Hefesto! — gritou Annabeth. — Como eu sou estúpida! Eta é “H”. Ele fez essa
armadilha para pegar a mulher dele com Ares. Agora vamos ser transmitidos ao vivo
para o Olimpo e parecer completos idiotas!
Estávamos quase conseguindo chegar à borda quando a fileira de espelhos se abriu
como escotilhas e milhares de... coisinhas metálicas jorraram para fora.
Annabeth gritou.
Era um exército de bichos rastejantes de corda: corpo de engrenagens de bronze, pernas
compridas e finas, bocas em pequenas pinças, todos correndo em nossa direção em uma
onda de estalando e zumbindo.
— Aranhas! — disse Annabeth. — Ar... ar... aaaaaaaah!
Eu nunca a tinha visto daquele jeito. Ela caiu para trás , aterrorizada e quase se rendeu
às aranhas-robôs antes que eu a puxasse para cima e a arrastasse de volta em direção ao
barco.
Aquelas coisas vinham de todos os lados, milhões delas, inundando o centro da piscina,
cercando-nos completamente. Disse a mim mesmo que não estavam programadas para
matar, apenas para nos encurralar, nos morder e nos fazer parecer idiotas. Mas, por
outro lado, era uma armadilha para deuses. E não éramos deuses.
Annabeth e eu subimos para dentro do barco. Comecei a chutar as aranhas para longe
quando se acumulavam a bordo. Gritei para Annabeth me ajudar, mas ela estava
paralisada demais para fazer qualquer coisa além de gritar.
- Trinta, vinte e nove — anunciou o alto-falante.
As aranhas começaram a cuspir fios de metal, tentando nos amarrar. De início os fios
eram fáceis de romper, mas havia muitos deles, e as aranhas simplesmente continuavam
a chegar. Tirei uma da perna de Annabeth com um chute, e suas pinças arrancaram um
pedaço da minha nova sapatilha de surfista.
Grover pairava acima da piscina com seus tênis voadores, tentando soltar a rede, mas
ela não cedia.
Pense, disse a mim mesmo, pense.
A entrada para o Túnel do Amor ficava embaixo da rede. Po¬líamos usá-la como saída,
mas estava bloqueada por um milhão de aranhas-robôs.
- Quinze, catorze — anunciou o alto-falante. Água, pensei. De onde vem a água para o
passeio?
Então vi: enormes canos atrás dos espelhos, de onde tinham vindo as aranhas. E acima
da rede, perto de um dos Cupidos, uma cabine com janelas de vidro que devia ser a
estação de controle.
- Grover! — gritei. — Entre naquela cabine! Encontre o botão de ligar!
- Mas...
- Faça isso! — Era uma esperança louca, mas era a nossa única chance. As aranhas já
estavam por toda a proa do barco, Annabeth gritava sem parar. Eu tinha de nos tirar
dali.
Grover estava agora na cabine de controle, malhando os botões.
- Cinco, quatro...
Ele olhou para mim desamparado, erguendo as mãos. Estava sinalizando que já tinha
apertado todos os botões, mas nada acontecia.
Fechei os olhos e pensei em ondas, água correndo, o no Mississipi. Senti um aperto
familiar na garganta. Tentei imaginar que estava arrastando o oceano até Denver.
— Dois, um, zerol
A água explodiu para fora dos canos. Entrou rugindo na piscina, varrendo as aranhas
para longe. Puxei Annabeth para ao lado do meu e prendi seu cinto de segurança bem
quando a onda gigante atingiu o barco, de cima, expulsando as aranhas e nos
encharcando completamente, mas sem virar o barco. Ele girou, erguido pela inundação,
e circulou no redemoinho.
A água estava cheia de aranhas em curto-circuito, algumas colidindo contra a parede de
concreto da piscina com tamanha força que explodiam.
As luzes brilharam sobre nós. As câmeras dos Cupidos estavam transmitindo ao vivo
para o Olimpo.
Mas eu só podia me concentrar em controlar o barco,. Desejei que ele seguisse a
corrente, que ficasse afastado da parede. Talvez fosse minha imaginação, mas o barco
pareceu reagir. Pelo menos não se quebrou em um milhão de pedaços. Circulamos uma
última vez, e o nível da água já era quase suficiente para nos retalhar contra a rede de
metal. Então o nariz do barco se virou para o túnel e disparamos como um foguete para
dentro das trevas.
Annabeth e eu nos seguramos com força, os dois gritando quanto o barco se atirava em
curvas e rodeava cantos e dava mergulhos de quarenta e cinco graus, passando por
figuras de Romeu e Julieta e montes de outras bugigangas de Dia dos Namorados.
Então estávamos fora do túnel, o ar da noite assobiando em nossos cabelos enquanto o
barco seguia em alta velocidade para a saída.
Se o brinquedo estivesse em perfeito funcionamento, teríamos navegado por uma rampa
entre os Portões Dourados do Amor e caído em segurança na piscina de saída. Mas
havia um problema. Os Portões do Amor estavam fechados com correntes. Dois barcos
que haviam sido arrastados para fora do túnel antes de nós estavam empilhados contra a
barricada — um submerso e o outro partido ao meio.
- Solte seu cinto de segurança — gritei para Annabeth.
- Está maluco?
- A não ser que queira morrer esmagada. — Prendi o escu¬do de Ares no braço. —
Vamos ter de pular. — Minha ideia era simples e insana. Quando o barco colidisse,
íamos usar a força do impacto como um trampolim para pular por cima do portão. Ouvi
falar de pessoas que sobreviveram a desastres de automóvel desse jeito, lançadas a dez
ou vinte metros de distância do acidente. Com sorte, cairíamos na piscina.
Annabeth pareceu entender. Ela apertou minha mão quando os portões se aproximaram.
- Quando eu der o sinal — falei.
- Não! Quando eu der o sinal — corrigiu ela.
- O quê?
- Física básica! — gritou ela. — A força multiplicada pelo ângulo da trajetória...
- Está bem! — gritei. — Quando você der o sinal!
Ela hesitou... hesitou... e então gritou:
- Agora!
Crack!
Annabeth estava certa. Se tivéssemos pulado quando eu achava devíamos, teríamos nos
arrebentado contra os portões. Ela conseguiu o máximo de impulso.
Por azar, foi um pouco maior do que precisávamos. Nosso barco foi atirado na pilha e
fomos lançados para o ar, por cima do portão, por cima da piscina, e na direção do
asfalto duro.
Alguma coisa me segurou por trás.
Annabeth gritou:
— Aaai!
Grover!
Em pleno ar, ele tinha me agarrado pela camisa, e agarrado Annabeth pelo braço, e
tentava impedir que nos arrebentássemos no chão, mas Annabeth e eu ainda estávamos
com toda a energia do impulso.
— Vocês são pesados demais! — disse Grover. — Estamos caindo!
Descemos em espiral, com Grover fazendo o que podia para reduzir a velocidade da
queda.
Batemos contra um painel de fotografia. A cabeça de Grover entrou bem no buraco
onde os turistas enfiavam a cara, fingindo ser Nu-Nu, a Baleia Camarada. Annabeth e
eu desmoronam no chão, machucados, porém vivos. O escudo de Ares ainda preso ao
meu braço.
Depois que recuperamos o fôlego, Annabeth e eu tiramos Grover do painel e o
agradecemos por salvar nossa vida. Olhei para o Emocionante Passeio de Amor atrás de
nós. A água estava baixando. Nosso barco em pedaços, esmagado contra os portões.
A cem metros, na piscina de entrada do túnel, os Cupidos ainda filmavam. As estátuas
tinham se virado de modo que as câmeras estavam apontadas para nós, os holofotes em
nossos rostos.
— Acabou o show! — gritei. — Obrigado! Boa noite!
Os Cupidos voltaram às posições originais. As luzes se apagaram. O parque ficou
novamente em silêncio e no escuros, a não ser pelo brilho fraco da água na piscina da
saída do Emocionante Passeio de Amor. Imaginei se o Olimpo estaria em um inervalo
comercial, e se nossos índices de audiência haviam sido bons.
Eu detestava ser provocado. Detestava ser enganado. E tinha vasta experiência de lidar
com valentões que gostavam de fazer isso comigo. Levantei o escudo em meu braço e
me virei para os meus amigos.
— Precisamos ter uma conversinha com Ares.

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