quarta-feira, 22 de junho de 2011

Harry Potter e a Câmara Secreta, Capítulos 11 ao 15

CAPÍTULO ONZE
O Clube dos Duelos

Harry acordou no domingo de manhã e deparou com o dormitório iluminado pela luz do sol de inverno e seu braço curado, embora ainda muito duro. Sentou-se depressa e olhou para a cama de Colin, mas tinham-na escondido com a cortina alta por trás da qual Harry trocara de roupa no dia anterior. Ao ver que o paciente acordara, Madame Pomfrey entrou apressada, trazendo uma bandeja com o café da manhã e então começou a dobrar e a esticar o braço e os dedos dele.
— Tudo em ordem — disse enquanto ele comia mingau, desajeitado, com a mão esquerda. — Quando terminar de comer pode ir.
Harry se vestiu o mais rápido que pôde e correu a torre da Grifinória, doido para contar a Rony e Hermione o que acontecera com Colin e Dobby, mas não os encontrou lá. Saiu de novo a procurá-los, imaginando aonde poderiam ter precisado ir, e se sentindo um pouco magoado que os amigos não estivessem interessados se ele recuperara ou não os ossos.
Quando passou pela porta da biblioteca, Percy Weasley ia saindo, com a cara muito mais animada do que na última vez que tinham se encontrado.
— Ah, alô, Harry. Vôo excelente ontem, realmente excelente. Grifinória acabou de assumir a liderança na disputa da Taça das Casas, você marcou cinqüenta pontos!
— Você não viu o Rony ou a Mione, viu? — perguntou Harry.
— Não — respondeu Percy, o sorriso desaparecendo do rosto.
— Espero que Rony não esteja metido em outro banheiro de meninas...
Harry forçou uma risada, esperou Percy desaparecer de vista e em seguida rumou direto para o banheiro de Murta Que Geme. Não conseguindo entender por que Rony e Hermione estariam lá de novo e, depois de se certificar que nem Filch nem outros monitores andavam por ali, abriu a porta e ouviu vozes que vinham de um boxe trancado.
— Sou eu — disse, fechando a porta. Ouviu um estrépito, água se espalhando e uma exclamação no interior de um boxe e vislumbrou os olhos de Mione espiando pelo buraco da fechadura.
— Harry Você nos deu um baita susto, entre, como está o seu braço?
— Ótimo — respondeu Harry espremendo-se dentro do boxe. Havia um velho caldeirão encarrapitado em cima do vaso e uma série de estalos informaram a Harry que os amigos tinham acendido um fogo embaixo. Conjurar fogos portáteis, à prova de água, era uma especialidade de Hermione.
— Pretendíamos ir ao seu encontro, mas decidimos começar a Poção Polissuco — explicou Rony enquanto Harry, com dificuldade, tornava a trancar o boxe.
— Decidimos que este era o lugar mais seguro para escondê-la.
Harry começou a contar aos dois o que acontecera com Colin, mas Hermione o interrompeu.
— Já sabemos, ouvimos a Profª. McGonagall contar ao Profº. Flitwick hoje de manhã.
Foi por isso que decidimos começar...
— Quanto mais cedo a gente obtiver uma confissão de Draco, melhor — rosnou Rony. — Sabem o que é que eu penso? Ele estava tão furioso depois’do jogo de Quadribol, que descontou no Colin.
— Mas há outra coisa — disse Harry, observando Hermione picar feixes de sanguinárias e jogá-los na poção. — Dobby veio me visitar no meio da noite.
Rony e Hermione ergueram a cabeça, espantados. Harry contou tudo que Dobby dissera — ou deixara de contar a ele.
Os dois escutaram boquiabertos.
— A Câmara Secreta já foi aberta antes? — exclamou Hermione.
— Isso esclarece tudo — disse Rony em tom triunfante. — Lúcio Malfoy deve ter aberto a Câmara quando esteve aqui na escola e agora ensinou ao nosso querido Draco como fazer o mesmo. É óbvio. Mas eu bem gostaria que Dobby tivesse lhe dito que tipo de monstro tem lá dentro. Quero saber como é que ninguém reparou nele rondando a escola.
— Talvez ele consiga ficar invisível — disse Hermione, empurrando as sanguessugas para o fundo do caldeirão. — Ou talvez possa se disfarçar, fingir que é uma armadura ou uma coisa qualquer, já li a respeito de vampiros-camaleôes...
— Você lê demais, Hermione — disse Rony, despejando os hemeróbios mortos por cima das sanguessugas.
Amassou o saco vazio e olhou para Harry.
— Então o Dobby impediu a gente de pegar o trem e quebrou o seu braço... -Ele abanou a cabeça. — Sabe de uma coisa, Harry? Se ele não parar de tentar salvar a sua vida vai acabar matando você.
A noticia de que Colin Creevey fora atacado e agora se achava deitado como morto na ala hospitalar espalhou-se pela escola inteira até a manhã de domingo. A atmosfera carregou-se de boatos e suspeitas. Os alunos do primeiro ano agora andavam pelo castelo em grupos unidos, como se tivessem medo de ser atacados, caso se aventurassem a andar sozinhos.
Gina Weasley, que se sentava ao lado de Colin Creevey na aula de Feitiços, parecia atormentada, mas Harry achou que era porque Fred e Jorge estavam tentando animá-la do jeito errado. Revezavam-se para assaltá-la pelas costas, cheios de pêlos e pústulas. Só pararam quando Percy, apoplético, ameaçou escrever a Sra. Weasley e contar que Gina estava tendo pesadelos.
Nesse meio tempo, escondido dos professores, assolava a escola um próspero comércio de talismãs, amuletos e outras mandingas protetoras. Neville Longbottom já comprara um cebolão verde e malcheiroso, um cristal pontiagudo e púrpura e um rabo podre de lagarto, quando os outros alunos da Grifinória lhe lembraram que ele não corria perigo; era puro sangue e, portanto, uma vítima pouco provável.
— Eles foram atrás de Filch primeiro — disse Neville, seu rosto redondo cheio de medo. — E todo mundo sabe que sou quase uma aberração.
Na segunda semana de dezembro a Profª. McGonagall veio, como sempre fazia, anotar os nomes dos alunos que continuariam na escola durante as festas de Natal. Harry, Rony e Hermione assinaram a lista; ouviram dizer que Draco ia ficar também, o que acharam muito suspeito. As festas seriam o momento perfeito para usar a Poção Polissuco e tentar extrair do garoto uma confissão.
Infelizmente a poção ainda estava na metade. Precisavam do chifre de bicórnio e da pele de ararambóia, e o único lugar onde poderiam obtê-los era no estoque particular de Snape. Pessoalmente Harry achava que era preferível encarar o monstro lendário da Sonserina a deixar Snape apanhá-lo assaltando sua sala.
— O que precisamos — disse Hermione, eficiente, quando se aproximava a aula dupla de Poções na quinta-feira à tarde — é de uma distração. Então um de nós pode entrar escondido na sala de Snape e tirar o que for preciso.
Harry e Rony olharam para ela, nervosos.
— Acho que é melhor eu fazer o roubo propriamente dito — continuou Hermione num tom trivial. — Vocês dois vão ser expulsos caso se metam em mais uma encrenca, mas eu tenho a ficha limpa. Então só o que têm a fazer é causar bastante confusão para distrair Snape por uns cinco minutos.
Harry deu um leve sorriso. Provocar confusão na aula de Poções de Snape era quase tão seguro quando espetar o olho de um dragão adormecido.
A aula de Poções era dada em uma das masmorras maiores. A de quinta-feira à tarde transcorreu como sempre. Vinte caldeirões fumegavam entre as carteiras de madeira, sobre as quais havia balanças e frascos de ingredientes. Snape andava por entre os vapores, fazendo comentários mordazes sobre o trabalho dos alunos da Grifinória, enquanto os da Sonserina davam risadinhas de aprovação. Draco Malfoy, que era o aluno favorito de Snape, não parava de mostrar olhos de peixe baiacu para Rony e Harry, que sabiam que se revidassem receberiam uma detenção mais rápido do que conseguiriam dizer "injustiça".
A Solução para Fazer Inchar que Harry preparou ficou muito rala, mas ele tinha coisas mais importantes em que pensar. Estava à espera do sinal de Hermione, e mal ouviu quando Snape parou para caçoar do ponto de sua poção. Quando Snape deu as costas para implicar com Neville, Hermione olhou para Harry e fez um aceno com a cabeça.
Harry se abaixou depressa por trás do próprio caldeirão, tirou do bolso um dos fogos Filibusteiro de Fred e deu-lhe um leve toque com a varinha. O fogo começou a borbulhar e a queimar. Sabendo que só dispunha de segundos, Harry se levantou, mirou e atirou o fogo no ar; ele caiu dentro do caldeirão de Boyle.
A poção de Goyle explodiu, chovendo sobre a classe inteira. Os alunos gritaram quando os borrifos da Solução para Fazer Inchar caiu neles. Draco ficou com a cara coberta de poção e seu nariz começou a inchar como um balão; Goyle saiu esbarrando nas coisas, as mãos cobrindo os olhos, que tinham inchado até atingir o tamanho de um prato.  Snape tentava restaurar a calma e descobrir o que estava acontecendo. Na confusão, Harry viu Hermione entrar discretamente na sala do professor.
— Silêncio! SILÊNCIO! — rugiu Snape. — Os que receberam borrifos, venham aqui tomar uma Poção para Fazer Desinchar, quando eu descobrir quem foi o autor disso...
Harry procurou não rir ao ver Draco correr para frente da sala, a cabeça pendurada por causa do peso de um nariz do tamanho de um melão. Enquanto metade da classe se arrastava até a mesa de Snape, alguns sobrecarregados com braços grossos como bastões, outros com os lábios tão inchados que não conseguiam falar, Harry viu Hermione tornar a entrar, sorrateiramente, na masmorra, com a frente das vestes estufada.
Depois que todos tomaram uma dose do antídoto e seus inchaços murcharam, Snape foi até o caldeirão de Goyle e pescou os restos retorcidos e negros do fogo de artifício. Fez-se um silêncio repentino.
— Se eu um dia descobrir quem jogou isso — sussurrou Snape — vou garantir que esse aluno seja expulso.
Harry tomou o cuidado de fazer cara de espanto. Snape olhava diretamente para ele, e a sineta que tocou dez minutos depois não poderia ter sido mais bem-vinda.
— Ele sabia que fui eu — disse Harry a Rony e a Hermione enquanto corriam para o banheiro da Murta Que Geme. — Eu senti.
Hermione jogou os novos ingredientes no caldeirão e começou a misturá-los febrilmente.
— Vai ficar pronto daqui a duas semanas — anunciou alegremente.
— Snape não pode provar que foi você — disse Rony tranqüilizando Harry. — Que é que ele pode fazer?
— Conhecendo Snape, uma maldade — disse Harry, enquanto a poção espumava e borbulhava.
Uma semana mais tarde, Harry, Rony e Hermione iam atravessando o saguão de entrada quando viram uma pequena aglomeração em torno do quadro de avisos, os alunos liam um pergaminho que acabara de ser afixado. Simas Finnigan e Dino Thomas fizeram sinal para eles se aproximarem, com ar excitado.
— Vão reabrir o Clube dos Duelos! — disse Simas. — A primeira reunião é hoje à noite!  Eu não me importaria de tomar aulas de duelo; poderiam vir a calhar um dia desses...
— Quê, você acha que o monstro da Sonserina sabe duelar? — perguntou Rony, mas também leu o aviso com interesse.
— Poderia vir a calhar — disse ele a Harry e Hermione quando entraram para jantar. — Vamos?
Harry e Hermione foram a favor do clube. Assim, às oito horas daquela noite os três voltaram correndo para o Salão Principal. As longas mesas de jantar tinham desaparecido e surgira um palco dourado encostado a uma parede, cuja iluminação era produzida por milhares de velas que flutuavam no alto. O teto voltara a ser um veludo negro, e a maior parte da escola parecia estar reunida sob ele, as varinhas na mão e as caras animadas.
— Quem será que vai ser o professor? — disse Hermione enquanto se reuniam aos alunos que tagarelavam sem parar. — Alguém me disse que Flitwick foi campeão de duelos quando era moço, talvez seja ele.
— Desde que não seja... — Harry começou, mas terminou com um gemido:
Gilderoy Lockhart vinha entrando no palco, resplandecente em suas vestes ameixa-escuras, acompanhado por ninguém mais do que Snape, em sua roupa preta habitual.  Lockhart acenou um braço pedindo silêncio e disse em voz alta:
— Aproximem-se, aproximem-se! Todos estão me vendo? Todos estão me ouvindo? Excelente! O Profº. Dumbledore me deu permissão para começar um pequeno clube de duelos, para treiná-los, caso um dia precisem se defender, como eu próprio já precisei fazer em inúmeras ocasiões, quem quiser conhecer os detalhes, leia os livros que publiquei.
— Deixem-me apresentar a vocês o meu assistente, Profº. Snape —, disse Lockhart, dando um largo sorriso. — Ele me conta que sabe alguma coisa de duelos e desportivamente concordou em me ajudar a fazer uma breve demonstração antes de começarmos. Agora, não quero que nenhum de vocês se preocupe, continuarão a ter o seu professor de Poções mesmo depois de eu o derrotar, não precisam ter medo!”
— Não seria bom se os dois acabassem um com o outro? — cochichou Rony ao ouvido de Harry.
O lábio superior de Snape crispou-se. Harry ficou imaginando por que Lockhart continuava a sorrir; se Snape estivesse olhando para ele daquele jeito, Harry já estaria correndo o mais depressa que pudesse na direção oposta.
Lockhart e Snape se viraram um para o outro e se cumprimentaram com uma reverência; pelo menos, Lockhart cumprimentou com muitos meneios, enquanto Snape curvou a cabeça, irritado. Em seguida, os dois ergueram as varinhas como se empunhassem espadas.
— Como vocês vêem, estamos segurando nossas varinhas na posição de combate normalmente adotada — disse Lockhart aos alunos em silêncio — Quando contarmos três, lançaremos os primeiros feitiços. Nenhum de nós está pretendendo matar, é claro.
— Eu não teria certeza disso — murmurou Harry, observando Snape arreganhar os dentes.
— Um... Dois... Três...
Os dois ergueram as varinhas acima da cabeça e as apontaram para o oponente; Snape exclamou:
Expelliarmus! — Viram um lampejo vermelho ofuscante e Lockhart foi lançado para o alto: voou para os fundos do palco, colidiu com a parede, foi escorregando e acabou estatelado no chão.
Draco e outros alunos da Sonserina deram vivas. Hermione dançava nas pontas dos dedos para ver melhor.
— Vocês acham que ele está bem? — guinchou tampando a boca com a mão.
— Quem se importa? — responderam Harry e Rony juntos.
Lockhart foi-se levantando tonto. Seu chapéu caíra e os cabelos ondulados estavam em pé.
— Muito bem! — disse, cambaleando de volta ao palco. — Isto foi um Feitiço de Desarmamento, como viram, perdi minha varinha, ah, muito obrigado, Srta. Brown... Sim, foi uma excelente demonstração, Profº. Snape, mas se não se importa que eu diga, ficou muito óbvio o que o senhor ia fazer, se eu tivesse querido detê-lo teria sido muito fácil, mas achei mais instrutivo deixá-los ver...
Snape tinha uma expressão assassina no rosto. Lockhart possivelmente notou porque acrescentou:
— Chega de demonstrações! Vou me reunir a vocês agora e separá-los aos pares.  Prof. Snape, se o senhor quiser me ajudar...
Os dois caminharam entre os alunos, formando os pares.
Lockhart juntou Neville com Justino Finch-Fletchley, mas Snape chegou até Harry e Rony primeiro.
— Acho que está na hora de separar a equipe dos sonhos — caçoou. — Weasley você luta com Finnigan.  Potter...
Harry virou-se automaticamente para Hermione.
— Acho que não — disse Snape, sorrindo estranhamente. — Sr. Malfoy, venha cá.  Vamos ver o que o senhor faz com o famoso Potter. E a senhorita, pode fazer par com a Srta. Bulstrode.
Draco se aproximou com arrogância, sorrindo. Atrás dele caminhava uma garota da Sonserina, que lembrava a Harry uma foto que vira em Férias com Bruxas Malvadas.  Era grande e atarracada, e seu queixo pesado se projetava para a frente, agressivamente.
Hermione lhe deu um breve sorriso que ela não retribuiu.
— De frente para os seus parceiros! — mandou Lockhart, de volta ao tablado. — E façam uma reverência!
Harry e Draco mal inclinaram as cabeças, e não tiraram os olhos um do outro.
— Preparar as varinhas! — gritou Lockhart. — Quando eu contar três, lancem seus feitiços para desarmar os oponentes, apenas para desarmá-los, não queremos acidentes, um... Dois... Três...
Harry ergueu a varinha bem alto, mas Draco começara no "dois" e seu feitiço atingiu Harry com tanta força que parecia que ele levara uma frigideirada na cabeça. Ele cambaleou, mas tudo parecia estar em ordem, e, sem perder mais tempo, Harry apontou a varinha direto para Draco e gritou:
Rictusempra!
Um jorro de luz prateada atingiu Draco no estômago e ele se dobrou, com dificuldade de respirar.
— Eu disse desarmar apenas! — gritou Lockhart assustado por cima das cabeças dos combatentes, quando Draco caiu de joelhos; Harry o golpeara com o Feitiço das Cócegas, e ele mal conseguia se mexer de tanto rir. Harry recuou, com a vaga impressão de que seria pouco esportivo enfeitiçar Draco ainda no chão, mas isso foi um erro; tomando fôlego, Draco apontou a varinha para os joelhos de Harry, e disse engasgado:
Tarantallegra! —, e no segundo seguinte as pernas de Harry começaram a sacudir descontroladas numa espécie de marcha rápida.
— Parem! Parem! — berrou Lockhart, mas Snape assumiu o controle.
— Finite Incantatem! — gritou ele; os pés de Harry pararam de dançar. Draco parou de rir e eles puderam erguer a cabeça.
Uma névoa de fumaça verde pairava sobre a cena. Neville e Justino estavam caídos no chão, ofegantes; Rony estava segurando um Simas branco feito papel, pedindo desculpas pelo que sua varinha quebrada pudesse ter feito; mas Hermione e Emília Bulstrode ainda lutavam; Emilia dera uma chave de cabeça em Hermione, que choramingava de dor; as varinhas das duas jaziam esquecidas no chão.
Harry deu um salto à frente e fez Emilia soltar Hermione. Foi difícil: a garota era muito maior do que ele.
— Ai, ai-ai, ai-ai — exclamou Lockhart, passando por entre os duelistas, para ver o resultado das lutas. — Levante, Macmillan... Cuidado, Miss Fawcett...
Aperte com força, vai parar de sangrar em um segundo, Boot...
— Acho que é melhor ensinar aos senhores como se bloqueia feitiços hostis —, disse Lockhart, parando no meio salão. Ele olhou para Snape, cujos olhos negros brilhavam, e desviou rápido o seu olhar. — Vamos arranjar um par voluntário, Longbottom e Finch-Fletchley, que tal vocês...
— Uma má idéia, Profº. Lockhart — disse Snape, deslizando até ele como um enorme morcego malévolo. — Longbottom causa devastação até com o feitiço mais simples. Vamos ter que mandar o que sobrar de Finch-Fletchley para a ala hospitalar em uma caixa de fósforos. — O rosto redondo e rosado de Neviile ficou ainda mais rosado. — Que tal Malfoy e Potter? — sugeriu Snape com um sorriso enviesado.
— Ótima idéia! — disse Lockhart, fazendo um gesto para Harry e Draco irem para o meio do salão, enquanto os demais alunos se afastavam para lhes dar espaço.
— Agora, Harry — disse Lockhart. — Quando Draco apontar a varinha para você, você faz isto.
Ele ergueu a própria varinha, tentou um complicado floreio e deixou-a cair. Snape abriu um sorriso quando Lockhart a apanhou depressa, dizendo:
— Epa, minha varinha está um tanto excitada demais...
Snape aproximou-se de Draco, curvou-se e sussurrou alguma coisa em seu ouvido. O garoto riu também. Harry ergueu os olhos, nervoso, para Lockhart e disse:
— Professor, podia me mostrar outra vez como se bloqueia?
— Apavorado? — murmurou Draco, falando baixo para Lockhart não poder ouvi-lo.
— Querias! — respondeu harry pelo canto da boca.
Lockhart deu uma palmada bem-humorada no ombro de Harry.
— Faça exatamente como fiz, Harry!
— O quê, deixar cair a varinha?
Mas Lockhart não estava mais escutando.
— Três... Dois... Um... Agora! — gritou ele.
Draco ergueu a varinha depressa e berrou:
Serpensortia!
A ponta de sua varinha explodiu. Harry observou, perplexo, uma comprida cobra preta se materializar, cair pesadamente no chão entre os dois e se erguer, pronta para atacar. Os alunos gritaram recuando rapidamente, abrindo espaço.
— Não se mexa, Potter — disse Snape tranquilamente, sentindo visível prazer de ver Harry parado imóvel, cara a cara com a cobra irritada. — Vou dar um fim nela...
— Permita-me! — gritou Lockhart. E brandiu a varinha para a cobra, ao que se ouviu um grande baque; a cobra, em lugar de desaparecer, voou três metros no ar e tornou a cair no chão com um estrondo. Enraivecida, sibilando furiosamente, ela deslizou direto para Justino Finch-Fletchley e se levantou de novo, as presas expostas, armada para o bote.
Harry não teve certeza do que o fez agir assim. Nem ao menos teve consciência de decidir fazer o que fez. A única coisa que soube foi que suas pernas o impeliram para frente como se ele estivesse sobre rodinhas e que gritou tolamente para a cobra "Deixe-o em paz!" E milagrosamente — inexplicavelmente — a cobra desabou no chão, dócil como uma mangueira grossa e preta de jardim, seus olhos agora em Harry. Ele sentiu o medo dissolver-se. Sabia que a cobra não atacaria ninguém agora, embora não pudesse explicar como o sabia.
Harry olhou para Justino, sorrindo, esperando o colega parecer aliviado, intrigado ou até grato,— mas certamente não zangado nem apavorado.
— De que é que você acha que está brincando? — gritou, e antes que Harry pudesse responder alguma coisa, Justino virou-lhe as costas e saiu do salão enfurecido.
Snape se adiantou, acenou a varinha e a cobra desapareceu com uma pequena baforada de fumaça preta. Snape, também, olhou Harry de modo inesperado: era um olhar astuto e calculista e Harry não gostou. Teve também uma vaga consciência dos cochichos sinistros que percorriam o salão. Então sentiu alguém puxá-lo pelas vestes.
— Vamos — disse a voz de Rony ao seu ouvido. — Mexa-se, vamos...
Rony guiou-o para fora do salão, Hermione corria para acompanhá-los. Quando atravessaram o portal, as pessoas de cada lado recuaram como se tivessem medo de apanhar uma doença. Harry não tinha a menor idéia do que estava acontecendo, e nem Rony nem Hermione explicaram nada até terem arrastado o amigo até a sala comunal da Grifinória, naquele momento vazia. Então Rony empurrou Harry para uma poltrona e disse:
— Você é um ofidioglota. Por que não nos contou?
— Eu sou o quê? — perguntou Harry.
— Um ofidioglota! — disse Rony. — Você é capaz de falar com as cobras!
— Eu sei. Quero dizer, é a segunda vez que faço isso. Uma vez no zoológico açulei, por acaso, uma jibóia contra o meu primo Duda, uma longa história... Ela estava me contando que nunca tinha estado no Brasil e eu meio que a soltei sem querer, isso foi antes de saber que era bruxo.
— Uma jibóia contou a você que nunca tinha ido ao Brasil? — repetiu Rony baixinho.
— E daí? Aposto que um monte de gente aqui pode fazer isso.
— Ah, não. De jeito nenhum. Isto não é um dom muito comum.  Harry, isto não é legal.
— O que não é legal? — disse Harry começando a ficar com muita raiva. — Qual é o problema com todo mundo? Escuta aqui, se eu não tivesse dito àquela cobra para não atacar Justino...
— Ah, então foi isso que você disse?
— Que quer dizer com isso? Vocês estavam lá, vocês me ouviram...
— Ouvi você falar esquisito — disse Rony. — Língua de cobra. Você podia ter dito qualquer coisa, não admira que o Justino tenha entrado em pânico, parecia que você estava convencendo a cobra a fazer alguma coisa, deu arrepios, sabe...
Harry ficou de boca aberta.
— Eu falei uma língua diferente? Mas, eu não percebi, como posso falar uma língua sem saber que posso falá-la?
Rony sacudiu a cabeça. Tanto ele quanto Hermione faziam cara de enterro. Harry não conseguia entender o que havia de tão horrível.
— Querem me dizer o que há de errado em impedir uma enorme cobra de arrancar a cabeça do Justino? Que diferença faz como foi que eu fiz isso, desde que o Justino não precise se associar ao clube dos Caçadores Sem Cabeça?
— Faz diferença, sim — disse Hermione, falando, afinal, num tom abafado —, porque a capacidade de falar com cobras foi o dom que tornou Salazar Slytherin famoso. É por isso que o símbolo da Sonserina é uma serpente.
O queixo de Harry caiu.
— Exatamente — confirmou Rony. — E agora a escola inteira vai pensar que você é o tetra-tetra-tetra-tetra-neto ou coisa parecida...
— Mas eu não sou — disse Harry, sentindo um pânico que não conseguia explicar.
— Você vai achar difícil provar isso — falou Hermione. — Ele viveu há mil anos; pelo que se sabe, você podia muito bem ser descendente dele.
Harry ficou horas acordado àquela noite. Por uma fresta no cortinado em volta da cama de colunas ele observou a neve começar a cair em floquinhos diante da janela da torre e ficou imaginando...
Imaginando...
Será que podia ser descendente de Salazar Slytherin? Afinal não sabia nada sobre a família do seu pai. Os Dursley sempre o proibiram de fazer perguntas sobre parentes bruxos. Silenciosamente, Harry tentou dizer alguma coisa na língua das cobras. As palavras não saíram. Parecia que tinha de estar cara a cara com uma cobra para isso.
Mas eu estou na Grifinória, pensou Harry. O Chapéu Seletor não teria me posto aqui se eu tivesse sangue de Slytherin...
Ah, disse uma vozinha perversa em seu cérebro, mas o Chapéu Seletor queria pôr você na Sonserina, não se lembra?
Harry se virou na cama. Encontraria Justino no dia seguinte na aula de Herbologia, e explicaria que detivera a cobra e não a instigara, o que (pensou com raiva, socando o travesseiro) qualquer idiota teria percebido.
Mas na manhã seguinte, a neve que começara a cair de noite se transformara numa nevasca tão densa que a última aula de Herbología do período letivo foi cancelada.
A Profª. Sprout queria pôr meias e echarpes nas mandrágoras, uma operação melindrosa que ela não confiaria a mais ninguém, agora que era tão importante as mandrágoras crescerem depressa para ressuscitar Madame
Nor-r-ra e Colin Creevey.
Harry preocupava-se com isso sentado junto à lareira na sala comunal da Grifinória, enquanto Rony e Hermione aproveitavam o tempo para jogar uma partida de xadrez de bruxo.
— Pelo amor de Deus, Harry — disse Hermione exasperada, quando um bispo de Rony desmontou um cavalo dela e o arrastou para fora do tabuleiro. — Vá procurar o Justino se isso é tão importante para você.
Então Harry se levantou e saiu pelo buraco do retrato, imaginando onde Justino poderia estar.
O castelo estava mais escuro do que normalmente era durante o dia, por causa da neve grossa e cinzenta que descia rodopiando pelo lado de fora das janelas. Transido de frio, Harry passou por salas onde havia aulas, captando vislumbres do que acontecia lá dentro. A Profª. McGonagall gritava com alguém que, pelo que parecia, tinha transformado o colega em um texugo. Harry passou adiante, resistindo ao impulso de espiar para dentro e, lembrando que Justino talvez estivesse usando o tempo livre para tirar o atraso em alguma matéria, decidiu verificar primeiro na biblioteca.
Vários alunos da Lufa-Lufa que deviam estar na aula de Herbologia se achavam de fato sentados no fundo da biblioteca, mas não pareciam estar trabalhando.
Entre as longas fileiras de estantes, Harry podia ver que suas cabeças estavam muito juntas e que aparentemente mantinham uma conversa absorvente. Não conseguia ver se Justino estava no grupo. Foi andando em direção a eles e, quando começou a ouvir alguma coisa do que diziam, parou para escutar melhor, escondido na seção da Invisibilidade.
— Então, em todo o caso — falava um menino forte —, eu disse ao Justino para se esconder no nosso dormitório. Quero dizer, se Potter o escolheu para sua próxima vítima, é melhor ele ficar pouco visível por uns tempos.
— É claro que o Justino estava esperando uma coisa dessas acontecer desde que deixou escapar para o Potter que vinha de família trouxa. Justino chegou até a contar que os pais tinham feito reserva para ele em Eton. Isto não é o tipo de coisa que se fale assim, com o herdeiro de Slytherin à solta, não é mesmo?
— Então decididamente você acha que é o Potter, Ernie? — perguntou, ansiosa, uma menina loura de marias-chiquinhas.
— Ana — disse o garoto forte, solenemente —, ele é um ofidioglota. Todo mundo sabe que isso é a marca do bruxo das trevas. Você já ouviu falar de um bruxo decente que soubesse falar com cobras? Chamavam o próprio Slytherin de língua de serpente.
Seguiram-se muitos murmúrios depois disso e Ernie continuou:
— Lembram o que estava escrito na parede? Inimigos do herdeiro, cuidado. Potter teve um problema com o Filch. Logo em seguida a gata de Filch é atacada.
Aquele aluno do primeiro ano, o Creevey, estava aborrecendo Potter no jogo de Quadribol, tirando fotos dele estirado na lama. Logo em seguida, Creevey foi atacado.
— Mas ele sempre pareceu tão gentil — disse Ana em dúvida —, e foi quem fez Você-Sabe-Quem desaparecer. Ele não pode ser tão ruim assim, pode?
Ernie baixou a voz, misterioso, os alunos da Lufa-Lufa se curvaram mais para frente, e Harry se aproximou mais para poder captar as palavras de Ernie.
— Ninguém sabe como foi que ele sobreviveu àquele ataque do Você-Sabe-Quem, quero dizer, ele era só um bebê quando a coisa toda aconteceu. Devia ter explodido em pedacinhos. Só um mago das trevas realmente poderoso poderia ter sobrevivido a um ataque daqueles. — E baixando a voz até quase um sussurro, continuou: — Vai ver é por isso que Você-Sabe-Quem queria matá-lo para começar. Não queria outro bruxo das trevas concorrendo com ele. Que outros poderes será que o Potter anda escondendo?
Harry não conseguiu agüentar mais. Pigarreando alto, saiu de trás das estantes. Se não estivesse tão zangado, teria achado engraçada a cena que o aguardava: cada aluno da Lufa-Lufa parecia ter se petrificado só devê-lo, e a cor foi se esvaindo do rosto de Ernie.
— Olá — disse Harry. — Estou procurando o Justino Finch-Fletchley.
Os receios dos garotos da Lufa-Lufa claramente se confirmaram. Todos olharam cheios de medo para Ernie.
— Que é que você quer com ele? — perguntou Ernie com a voz trêmula.
— Eu queria dizer a ele o que realmente aconteceu com aquela cobra no Clube dos Duelos.
Ernie mordeu os lábios brancos, tomou fôlego e disse:
— Nós estávamos todos lá. Vimos o que aconteceu.
— Então vocês repararam que depois que falei com a cobra ela recuou? — perguntou Harry.
— Só o que eu vi — disse Ernie, insistente, embora tremesse enquanto falava — foi você falando em língua de cobra e açulando o bicho para cima de Justino.
— Eu não açulei a cobra para cima dele! — protestou Harry a voz trêmula de raiva. — A cobra nem encostou nele!
— Por pouco. E caso você esteja tendo novas idéias — acrescentou depressa —, é melhor eu informá-lo que pode investigar minha família por nove gerações de bruxos, e que o meu sangue é tão puro quanto o de qualquer outro, portanto...
— Não ligo a mínima para o tipo de sangue que você tem! — tornou Harry furioso. — Por que eu iria querer atacar pessoas que nasceram trouxas?
— Ouvi falar que você detesta os trouxas com quem mora — disse Ernie na mesma hora.
— É impossível morar com os Dursley e não detestá-los. Eu gostaria de ver você no meu lugar.
E dando meia-volta, saiu furioso da biblioteca, ganhando um olhar de reprovação de Madame Pince, que estava lustrando a capa dourada de um grande livro de feitiços.
Harry saiu pelo corredor às tontas, mal reparando aonde ia, tal era a sua fúria. O resultado foi que bateu em alguma coisa muito grande e sólida, que o derrubou no chão.
— Ah, olá, Hagrid — disse erguendo a cabeça.
O rosto de Hagrid estava inteiramente oculto pelo gorro de lã esbranquiçado de neve, mas não podia ser mais ninguém pois ele praticamente ocupava o corredor com aquele seu casacão de pele de toupeira. Um galo morto pendia de suas enorme mãos enluvadas.
— Tudo bem, Harry? — perguntou ele, empurrando o gorro para trás para poder falar. — Você não está em aula?
— Cancelada — disse Harry, levantando-se. — Que é que você está fazendo aqui?
Hagrid ergueu o galo inerte.
— É o segundo que matam neste período letivo — explicou. — Ou é raposa ou bicho-papão e preciso permissão do diretor para lançar um feitiço em volta do galinheiro.
Por debaixo das sobrancelhas grossas e salpicadas de neve, ele examinou Harry com mais atenção.
— Você tem certeza de que está bem? Está cheio de calor e zanga...
Harry não conseguiu se forçar a repetir o que Ernie e o resto dos garotos da Lufa-Lufa tinham andado dizendo.
— Não é nada. É melhor eu ir andando, Hagrid, a próxima aula é Transformações e tenho que apanhar meus livros.
Ele se afastou, a cabeça inchada com o que Ernie dissera a seu respeito.
Harry subiu a escada batendo os pés e entrou em outro corredor que estava particularmente escuro; os archotes tinham sido apagados por uma corrente de ar forte e gelada que entrava por uma vidraça solta. Estava na metade do corredor quando caiu estendido em cima de uma coisa que havia no chão.
Virou-se para ver melhor em cima do que caíra e sentiu o estômago derreter.
Justino Finch-Fletchley jazia no chão, duro e frio, uma expressão de choque fixa no rosto, os olhos, sem visão, voltados para o teto. E não era tudo. Ao lado dele outro vulto, a visão mais estranha que Harry já encontrara.
Era Nick Quase Sem Cabeça, que agora deixara de ser branco-pérola e transparente e se tornara preto e fumegante, e que estava imóvel na horizontal, a mais de um metro e meio do chão. Sua cabeça estava quase inteiramente solta, e seu rosto tinha uma expressão de choque idêntica à de Justino.
Harry ficou em pé, a respiração rápida e superficial, o coração produzindo uma espécie de rufo de tambor em suas costelas. Fora de si, olhou para um lado do corredor deserto e para o outro e viu uma fila de aranhas que se afastava o mais depressa possível dos corpos. Os únicos sons que ouvia eram as vozes abafadas dos professores nas salas de aula de cada lado.
Poderia correr e ninguém saberia que estivera ali. Mas não podia simplesmente deixá-los caídos... Tinha que procurar ajuda.
Alguém acreditaria que ele não tivera nada a ver com aquilo?
Enquanto estava parado, cheio de pânico, uma porta se abriu com uma batida. Pirraça o poltergeist saiu em disparada.
— Ora, é o Potter Pirado! — zombou ele, entortando os óculos de Harry ao passar por ele. — Que é que o Potter está aprontando? Por que é que o Potter está rondando...
Pirraça parou no meio de uma cambalhota no ar de cabeça para baixo, deparou com Justino e Nick Quase Sem Cabeça. Desvirou-se na mesma hora, encheu os pulmões de ar e, antes que Harry pudesse impedi-lo, gritou:
— ATAQUE! ATAQUE! MAIS UM ATAQUE! NEM MORTAL NEM FANTASMA ESTÃO SEGUROS! SALVEM SUAS VIDAS! ATAAÂAAQUE!
Bam — bam — bam — porta atrás de porta se escancarou ao longo do corredor que foi invadido por um mundão de gente. Durante vários minutos, a cena era de tal confusão que Justino correu o risco de ser esmagado, e as pessoas não paravam de passar através de Nick Quase Sem Cabeça. Harry se viu imprensado contra a parede enquanto os professores gritavam pedindo calma. A Profª. McGonagall veio correndo, seguida por seus alunos em sua cola, um dos quais ainda tinha os cabelos listrados de preto e branco. Ela usou a varinha para produzir um alto estampido e restaurar o silêncio, e mandou todos de volta para as salas de aula. Nem bem o corredor se esvaziara um pouco quando Ernie, o garoto da Lufa-Lufa chegou, ofegante, à cena.
— Apanhado na cena do crime! — berrou Ernie, o rosto lívido, apontando dramaticamente para Harry.
— Agora já chega, Macmillan! — disse a professora ríspida. Pirraça subia e descia no ar, e agora sorria malvadamente observando a cena; adorava o caos. Enquanto os professores se curvavam sobre Justino e Nick Quase Sem Cabeça, examinando-os, Pirraça começou a cantar:
— Ah, Potter, podre, veja o que você fez.  Matar alunos não é nada cortês...
— Já chega, Pirraça! — vociferou a Profª. McGonagall e Pirraça saiu voando de costas e estirando a língua para Harry.
Justino foi levado para a ala hospitalar pelo Profº. Flitwick e o Profº. Sinistra, do departamento de astronomia, mas ninguém sabia o que fazer com Nick Quase Sem Cabeça. Por fim, a Profª. McGonagall conjurou um grande leque de ar, e entregou-o a Ernie com instruções para abanar Nick Quase Sem Cabeça até o andar de cima.
Ernie obedeceu e abanou Nick como se fosse um aerofólio silencioso. Assim Harry e a professora ficaram a sós.
— Por aqui, Potter — falou ela.
— Professora — disse Harry depressa —,  eu juro que não...
— Isto não está mais em minhas mãos, Potter — interrompeu ela secamente.
Os dois caminharam em silêncio, viraram um canto e ela parou diante de uma gárgula de pedra feíssima.
— Gota de limão! — disse. Era evidentemente uma senha, porque a gárgula logo ganhou vida e afastou-se para o lado, ao mesmo tempo que a parede atrás dela se abria em dois. Mesmo temendo o que o aguardava, Harry não pôde deixar de se admirar. Atrás da parede havia uma escada em caracol que subia suavemente, como uma escada rolante. Nem bem ele e a Profª. McGonagall pisaram nela, Harry ouviu a parede fazer um barulho seco e se fechar às costas dos dois. Subiram em círculos, cada vez mais altos, até que por fim, ligeiramente tonto, Harry viu uma porta de carvalho reluzindo à sua frente, com uma aldrava em forma de grifo.
Soube então aonde tinha sido levado. Ali devia ser a residência de Dumbledore.














CAPÍTULO DOZE
A Poção Polissuco

No alto da escada eles desceram, a Profª. McGonagall bateu a uma porta que se abriu silenciosamente, e eles entraram. A professora disse a Harry que esperasse e o deixou ali, sozinho.
Harry olhou à volta. Uma coisa era certa: de todas as salas de professores que visitara até aquele dia, a de Dumbledore era de longe a mais interessante.
Se não estivesse apavorado com a iminência de ser expulso da escola, ele teria ficado muito feliz com a oportunidade de examiná-la.
Era uma sala bonita e circular, cheia de ruídos engraçados. Havia vários instrumentos de prata curiosos sobre mesas de pernas finas, que giravam e soltavam pequenas baforadas de fumaça. As paredes estavam cobertas de retratos de antigos diretores e diretoras, todos eles cochilavam tranqüilamente em suas molduras. Havia também uma enorme escrivaninha de pés de garra, e, pousado sobre uma prateleira atrás dela, um chapéu de bruxo surrado e roto — o Chapéu Seletor.
Harry hesitou. Lançou um olhar desconfiado às bruxas e bruxos que dormiam nas paredes. Certamente não faria mal se ele apanhasse o chapéu e o experimentasse outra vez? Só para ver.. Só para se certificar de que ele o pusera na casa certa...
Sem fazer barulho, deu a volta à escrivaninha, tirou o chapéu da prateleira e colocou-o devagarinho na cabeça. Era largo demais e lhe cobriu os olhos, exatamente como acontecera da primeira vez em que o experimentara. Harry ficou olhando a escuridão dentro do chapéu, à espera. Então uma vozinha disse em seu ouvido "Caraminholas na cabeça, Harry Potter?”
— Ah, é — murmurou Harry. — Ah, desculpe incomodá-lo, eu queria perguntar...
— Você anda se perguntando se o coloquei na casa certa — disse o chapéu inteligente. — Sei... Você foi particularmente difícil de classificar. Mas mantenho o que disse antes — o coração de Harry deu um salto —, você teria se dado bem na Sonserina...
O estômago de Harry afundou. Agarrou a ponta do chapéu e o tirou. Ele pendeu inerte em sua mão, encardido e desbotado. Harry o devolveu à prateleira, sentindo-se mal.
— Você está enganado — disse em voz alta para o chapéu imóvel e silencioso que não se mexeu. Harry recuou, observando-o. Então, um ruído estranho e sufocado atrás dele o fez virar.
Afinal não estava sozinho. Encarapitado em um poleiro dourado, atrás da porta, achava-se um pássaro de aparência decrépita que lembrava um peru meio depenado.
Harry o encarou, e o pássaro sustentou funestamente o seu olhar, tornando a fazer o mesmo ruído sufocado. Harry achou que ele parecia muito doente. Seus olhos estavam opacos e, mesmo enquanto Harry o observava, caíram mais algumas penas de sua cauda.
Harry estava pensando que só o que lhe faltava era o pássaro de estimação de Dumbledore morrer, enquanto estavam sozinhos ali na sala, quando o pássaro pegou fogo.
Harry gritou chocado e se afastou da mesa. Olhou ansioso em volta para ver se encontrava um copo de água em algum lugar, mas não viu nenhum; o pássaro, entrementes, transformara-se numa bola de fogo; o pássaro deu um grito alto e no segundo seguinte não restava nada dele, exceto um monte de cinzas fumegantes no chão.
A porta da sala se abriu. Dumbledore entrou com o ar muito grave.
— Professor — ofegou Harry. — Seu pássaro, eu não pude fazer nada, ele simplesmente pegou fogo...
Para surpresa de Harry, Dumbledore sorriu.
— Já não era sem tempo. Ele tem andado com uma aparência medonha há dias; e venho dizendo a ele para se apressar.
E deu uma risadinha ao ver a cara de espanto de Harry.
— Fawkes é uma fênix, Harry.  As fênix pegam fogo quando chega a hora de morrer e tornar a renascer das cinzas. Olhe ele...
Harry olhou em tempo de ver um pássaro minúsculo, amarrotado, recém-nascido botar a cabeça para fora das cinzas. Era tão feio quanto o anterior.
— É uma pena que você a tenha visto no dia em que queimou — disse Dumbledore, sentando-se na escrivaninha. — Na realidade ela é muito bonita quase o tempo todo, tem uma plumagem vermelha e dourada. Criaturas fascinantes, as fênix.  São capazes de sustentar cargas pesadíssimas, suas lágrimas têm poderes curativos e são animais de estimação muitíssimo fiéis.
No choque de ver Fawkes pegando fogo, Harry se esquecera por que estava ali, mas tudo voltou à lembrança quando Dumbledore se acomodou no cadeirão à mesa e o encarou com aqueles seus olhos azul-claros e penetrantes.
Mas antes que Dumbledore pudesse dizer outra palavra, a porta da sala se escancarou com estrondo, e Hagrid entrou, um olhar selvagem nos olhos, o gorro encarrapitado no alto da cabeça desgrenhada e o galo morto ainda balançando em uma das mãos.
— Não foi Harry Profº. Dumbledore! — disse Hagrid pressuroso. — Eu estava falando com ele segundos antes daquele garoto ser encontrado, ele nunca teria tido tempo, meu senhor..
Dumbledore tentou dizer alguma coisa, mas Hagrid continuou falando, sacudindo o galo, agitado, fazendo voar penas para todo o lado.
— ... Não pode ter sido ele, eu juro até na frente do Ministro da Magia se precisar..
— Hagrid, eu...
— ... O senhor pegou o garoto errado, meu senhor, eu sei que Harry jamais...
— Hagrid. — disse Dumbledore em voz alta. — Eu não acho que Harry tenha atacado essas pessoas.
— Ah — acalmou-se Hagrid, o galo pendurado imóvel a um lado. — Certo. Então vou esperar lá fora, diretor.
E saiu num repelão, parecendo constrangido.
— O senhor não acha que fui eu, professor? — repetiu Harry esperançoso enquanto Dumbledore espanava as penas de galo de cima de sua escrivaninha.
— Não, Harry, não acho. — seu rosto novamente grave. — Mas ainda assim quero falar com você.
Harry esperou nervoso enquanto Dumbledore o estudava, as pontas dos seus longos dedos juntas.
— Preciso lhe perguntar, Harry, se tem alguma coisa que você gostaria de me perguntar — disse gentilmente. — Qualquer coisa.
Harry não soube o que dizer. Pensou em Draco gritando:
"Vocês vão ser os primeiros, seus sangues-ruins!" e na Poção de Polissuco que estava cozinhando no banheiro da Murta Que Geme. Depois pensou na voz sem corpo que ouvira duas vezes e se lembrou do que Rony comentara: "Ouvir vozes que ninguém mais ouve não é bom sinal, nem mesmo no mundo dos bruxos." Pensou ainda no que todos andavam dizendo dele, e seu pavor crescente era que estivesse de alguma forma ligado a Salazar Slytherin...
— Não — disse Harry. — Não tem nada, não, professor..
O ataque duplo a Justino e a Nick Quase Sem Cabeça transformou o que até ali fora nervosismo em verdadeiro pânico. Curiosamente, era o destino do fantasma que mais parecia preocupar as pessoas. O que poderia fazer aquilo a um fantasma? Elas perguntavam umas às outras; que poder terrível poderia fazer mal a alguém que já estava morto? Houve quase uma corrida para reservar lugares no Expresso de Hogwarts que iria levar os alunos para casa no Natal.
— Nesse ritmo, seremos os únicos a ficar para trás — disse Rony a Harry e Hermione. — Nós, Draco, Crabbe e Goyle. Que beleza de férias vamos ter!
Crabbe e Goyle, que sempre acompanhavam o que Draco fazia, tinham se inscrito para permanecer na escola durante as férias também. Mas Harry ficou contente de que a maioria das pessoas estivesse partindo. Estava cansado de ser evitado nos corredores, como se achassem que lhe fossem crescer presas e pudesse cuspir veneno a qualquer momento; cansado de ser comentado, de ser apontado, de levar vaias ao passar.  Fred e Jorge, porém, achavam muita graça em tudo. Saiam do caminho para andar à frente de Harry nos corredores, gritando: "Abram caminho para o herdeiro de Slytherin, um bruxo realmente maligno vai passar...”
Percy desaprovava inteiramente esse comportamento.
— Não é motivo para graças — disse friamente.
— Ah, sai do caminho, Percy. Harry está com pressa.
— E, ele está indo para a Câmara Secreta tomar uma xícara de chá com seu criado de caninos afiados — disse Jorge, dando uma risadinha debochada.
Gina também não achou graça nenhuma.
— Ah, não façam isso — choramingava todas as vezes que Fred perguntava a Harry em voz alta quem ele pretendia atacar a seguir, ou quando Jorge, ao encontrar Harry fingia afugentá-lo com um grande dente de alho.
Harry não se importava; sentia-se melhor que ao menos Fred e Jorge achassem a idéia de ele ser herdeiro de Slytherin muito ridícula. Mas as brincadeiras dos gêmeos pareciam estar irritando Draco, que amarrava cada vez mais a cara sempre que os via aprontando.
— É porque está morrendo de vontade de dizer que o herdeiro é ele — disse Rony com ar de quem sabe das coisas. — Vocês sabem que Draco detesta quando alguém o supera em alguma coisa, e você está recebendo todo o crédito pelo trabalho sujo que ele fez.
— Não será por muito tempo — anunciou Hermione com um tom de satisfação. — A Poção Polissuco está quase pronta.  Vamos extrair a verdade dele a qualquer momento.
Enfim o período letivo terminou, e um silêncio profundo como a neve desceu sobre o castelo. Harry achou que o lugar ficara tranqüilo, em vez de sombrio, e gostou do fato de que ele, Hermione e os Weasley tivessem a Torre da Grifinória só para eles, assim podiam brincar de snap explosivo à vontade sem incomodar ninguém e praticar duelos sozinhos. Fred, Jorge e Gina tinham preferido ficar na escola à visitar Gui no Egito com o Sr. e a  Sra. Weasley. Percy, que desaprovava o que chamava de comportamento infantil dos gêmeos, não passava muito tempo na sala comunal da Grifinória. Tinha declarado pomposamente que ele só ficara para o Natal porque era seu dever, como monitor, ajudar os professores em tempos tão tempestuosos.
A manhã de Natal despontou fria e branca. Harry e Rony, os únicos que tinham restado no dormitório, foram acordados muito cedo por Hermione, que entrou de repente, completamente vestida, trazendo presentes para os dois.
— Acordem — disse em voz alta, afastando as cortinas da janela.
— Mione, você não podia estar aqui... — disse Rony, protegendo os olhos da claridade.
— Feliz Natal para você também — disse a garota lhe atirando um presente. — Estou de pé há quase uma hora, acrescentando hemeróbios à poção. Está pronta.
Harry se sentou, de repente muito acordado.
— Tem certeza?
— Positivo — disse Hermione, empurrando Perebas, o rato, para poder se sentar na beirada da cama de Rony. — Se vamos usá-la, eu diria que deve ser hoje à noite.
Naquele momento, Edwiges entrou voando no quarto, trazendo um pequeno pacote no bico.
— Olá — disse Harry alegremente quando a coruja pousou na cama dele. — Você voltou a falar comigo?
Edwiges deu umas bicadinhas carinhosas na orelha dele, o que foi um presente muito melhor do que o que lhe trouxera, e que ele descobriu ser uma encomenda dos Dursley. Eles tinham enviado a Harry um palito e um bilhete pedindo a ele que verificasse se não poderia ficar em Hogwarts durante as férias de verão também.
Os outros presentes que ganhara de Natal foram bem melhores.
Hagrid lhe mandou uma grande lata de bolinhos de chocolate, que Harry decidiu deixar amolecer junto à lareira antes de comer; Rony lhe deu um livro chamado Voando com os Campeões, um livro de fatos interessantes sobre o seu time, de Quadribol favorito, e Hermione lhe comprou uma caneta de luxo de pena de águia. Harry abriu o último presente e encontrou um suéter tricotado pela Sra. Weasley e um grande bolo de Natal. Leu o cartão dela com uma nova onda de remorsos, pensando no carro do Sr. Weasley (que não era visto desde a colisão com o Salgueiro Lutador), e a nova série de indisciplinas que ele e Rony estavam planejando.
Ninguém, nem mesmo alguém morto de medo de tomar a Poção Polissuco, dali a pouco, poderia deixar de se alegrar com o almoço de Natal em Hogwarts.
O Salão Principal estava magnífico. Não só tinha uma dúzia de árvores de Natal cobertas de cristais de gelo e largas guirlandas de visco e azevinho que cruzavam o teto, como também caía uma neve encantada, morna e seca. Dumbledore puxou o coro de algumas de suas músicas de Natal preferidas.
Hagrid cantava cada vez mais alto a cada taça de gemada de vinho quente que consumia. Percy, que não reparou que Fred havia enfeitiçado o seu distintivo de monitor — agora com os dizeres "Cabeça de Alfinete" —, não parava de perguntar aos garotos por que ficavam dando risadinhas.
Harry nem ligou que Draco Malfoy, sentado à mesa da Sonserina, estivesse fazendo comentários altos e debochados sobre seu novo suéter. Com um pouco de sorte, ele receberia o troco dentro de algumas horas.
Harry e Rony mal tinham acabado de comer o terceiro prato de pudim de Natal quando Hermione os levou para fora do Salão para finalizar os planos para aquela noite.
— Ainda precisamos de uns pedacinhos das pessoas em que queremos nos transformar — disse Hermione num tom trivial, como se estivesse mandando os garotos ao supermercado comprar detergente. — E é claro que será melhor se pudermos conseguir alguma coisa de Crabbe e Goyle; eles são os melhores amigos de Malfoy, que contará aos dois qualquer coisa. E também temos que garantir que os verdadeiros Goyle e Crabbe não apareçam de repente enquanto interrogamos Draco.
— Já tenho tudo resolvido —, continuou ela calmamente, não dando atenção às caras espantadas de Harry e Rony. E mostrou dois pedaços de bolo de chocolate. — Recheei estes dois com uma simples Poção do Sono. Vocês só precisam se certificar de que Crabbe e Goyle encontrem os bolos. Sabem como são esganados, com certeza vão querer comê-los.  Depois que caírem no sono, arranquem uns fios de cabelo deles e escondam os dois num armário de vassouras.
Harry e Rony se entreolharam, incrédulos.
— Mione, acho que isso não...
— Poderia dar tudo errado...
Mas Hermione tinha um brilho de aço nos olhos, muito semelhante ao que a Profª. McGonagall às vezes exibia.
— A poção será inútil sem os fios de cabelo de Crabbe e Goyle — disse a garota com severidade. — Vocês querem investigar Malfoy, não é?
— Ah, está bem, está bem — disse Harry. — Mas, e você? Vai arrancar o cabelo de quem?
— Já tenho o meu! — disse Hermione, animada, tirando um frasquinho do bolso e mostrando aos dois um único fio de cabelo dentro. — Lembram que a Emilia Bulstrode lutou comigo no Clube do Duelo? Ela deixou o fio de cabelo nas minhas vestes quando estava tentando me estrangular! E como foi passar o Natal em casa... Então só preciso dizer ao pessoal da Sonserina que resolvi voltar.
Quando Hermione saiu apressada para verificar outra vez a Poção Polissuco, Rony se virou para Harry com uma expressão de fim de mundo no rosto.
— Você já ouviu falar de um plano em que tantas coisas pudessem dar errado?
Mas para completa surpresa de Harry e Rony, a primeira etapa da operação transcorreu suavemente, conforme Hermione previra. Eles ficaram rondando o saguão deserto depois do chá de Natal, esperando Crabbe e Goyle que tinham sido deixados sozinhos à mesa da Sonserina, devorando o quarto prato de pão-de-ló com calda de vinho.
Harry equilibrara os bolos de chocolate na ponta do corrimão. Quando viram Crabbe e Goyle saindo do Salão Principal, ele e Rony se esconderam depressa atrás de uma armadura próxima à porta de entrada.
— Como se pode ser tão tapado? — Rony cochichou em êxtase quando Crabbe apontou alegremente os bolos para Goyle e os pegou. Sorrindo, idiotamente, enfiaram os bolos inteiros nas bocas enormes. Por um momento, os dois mastigaram vorazes, com expressões de triunfo no rosto. Depois, sem a menor mudança de expressão, desmontaram de costas no chão.
De longe, a parte mais difícil foi escondê-los no armário do outro lado do saguão.
Quando estavam guardados em segurança entre baldes e esfregões, Harry arrancou uns fios do cabelo curto e duro que cobria a testa de Goyle, e Rony arrancou vários fios do cabelo de Crabbe. Roubaram também os sapatos, porque os seus eram, em comparação, demasiado pequenos. Depois, ainda aturdidos com o que tinham acabado de fazer, correram escada acima para o banheiro da Murta Que Geme.
Mal conseguiam enxergar devido à fumaça que saia do boxe em que Hermione mexia o caldeirão. Puxando as vestes para proteger o rosto, Harry e Rony bateram de leve na porta.
— Mione?
Ouviram um barulho de chave e Hermione apareceu, o rosto brilhando, cheia de ansiedade. Atrás dela ouvia-se o glube-glube da poção viscosa que borbulhava.
Havia três cálices preparados sobre a tampa do vaso sanitário.
— Vocês conseguiram? — perguntou Hermione sem fôlego. Harry mostrou os fios de cabelo de Goyle.
— Ótimo. E eu tirei escondido estas vestes da lavanderia — disse Hermione, mostrando um pequeno saco. — Vocês precisarão de números maiores porque vão ser Crabbe e Goyle.
Os três espiaram dentro do caldeirão. De perto, a poção parecia uma lama escura e espessa que borbulhava devagar.
— Tenho certeza de que fiz tudo direito — disse Hermione, nervosa, relendo a página manchada de Pociones Muy Potentes. — Parece que o livro diz que deve... Depois que bebermos a poção, teremos exatamente uma hora antes de voltarmos a ser nós mesmos.
— E agora? — sussurrou Rony.
— Separamos a poção nos três cálices e acrescentamos os cabelos.
Hermione serviu grandes conchas da poção em cada cálice.
Depois, com a mão trêmula, sacudiu o fio de cabelo de Emilia Bulstrode do frasco para dentro do primeiro cálice.
A poção assobiou alto como uma chaleira fervendo e espumou feito louca. Um segundo depois, mudou de cor para um amarelo doentio.
— Grrr, essência de Emilia Bulstrode — disse Rony, olhando-a com nojo. — Aposto que tem um gosto horrível.
— Ponha os fios na sua, então — disse Hermione.
Harry deixou cair os fios de cabelo de Goyle no cálice do meio, e Rony pôs os de Crabbe no último. Os dois cálices assobiaram e espumaram: o de Goyle mudou para um cáqui cor de piolho, e o de Crabbe para um castanho encardido e escuro.
— Calma aí — disse Harry quando Rony e Hermione estenderam a mão para os cálices. — É melhor não bebermos tudo aqui.. Quando nos transformarmos em Crabbe e Goyle não vamos caber no boxe. E Emilia Bulstrode não é nenhuma fadinha.
— Bem pensado — disse Rony, destrancando a porta. — Ficaremos em boxes separados.
Tomando cuidado para não derramar nem uma gota de Poção Polissuco, Harry entrou no boxe do meio.
— Pronto? — perguntou.
— Pronto — responderam as vozes de Rony e Mione.
— Um... Dois... três...
Apertando o nariz, Harry bebeu a poção em dois grandes goles. Tinha gosto de repolho passado do ponto de cozimento.
Imediatamente seu estômago começou a revirar como se ele tivesse acabado de engolir duas cobras — dobrado ao meio, ele se perguntou se ia enjoar-, depois uma sensação de queimação se espalhou rapidamente da barriga até as pontinhas dos dedos dos pés e das mãos — em seguida, ele caiu de quatro, sem ar e teve a sensação de que estava se derretendo, quando a pele de todo o seu corpo borbulhou como cera quente — e, antes que seus olhos e mãos começassem a crescer, os dedos engrossaram, as unhas alargaram, os nós dos dedos se estufaram como parafusos de cabeça de lentilha — os ombros se esticaram dolorosamente e um formigamento na testa lhe informou que seus cabelos estavam crescendo em direção às sobrancelhas — as vestes se rasgaram quando o peito se alargou como uma barrica rompendo os aros — os pés se tornaram um suplicio dentro dos sapatos quatro números menor...
Tão de repente quanto começara, tudo cessou. Harry estava deitado de borco no piso frio como pedra, ouvindo Murta gargarejar mal-humorada no boxe da ponta.
Com dificuldade, sacudiu fora os sapatos e ficou em pé. Então era assim que a pessoa se sentia, na pele de Goyle. Com a mão enorme tremendo, ele despiu as vestes antigas, que estavam agora no meio das canelas, vestiu as novas e amarrou os sapatos abotinados de Goyle. Ergueu a mão para afastar os cabelos dos olhos e só encontrou fios duros e curtos, que vinham até o meio da testa. Então percebeu que os óculos estavam anuviando sua visão porque Goyle obviamente não precisava deles, tirou-os e perguntou:
— Vocês dois estão bem? — a voz baixa e irritante de Goyle saiu de sua boca.
— Estou — veio o rosnado profundo de Crabbe da sua direita. Harry destrancou a porta e foi até o espelho rachado.
Goyle o encarou com aqueles olhos opacos e fundos. Harry coçou a orelha. Goyle também.
A porta de Rony se abriu. Eles se entreolharam. Exceto que parecia pálido e chocado, Rony era indistinguível de Crabbe, do corte de cabelo em cuia até os braços compridos de gorila.
— Isso é incrível — disse Rony, aproximando-se do espelho e cutucando o nariz chato de Crabbe. — Incrível.
— É melhor irmos andando — disse Harry, afrouxando o relógio que ficara apertadíssimo no pulso grosso de Goyle. — Ainda temos que descobrir onde fica a sala comunal da Sonserina. Só espero que a gente encontre alguém para seguir...
Rony, que estivera observando Harry, disse:
— Você não sabe como é esquisito ver o Goyle pensando. — Bateu então na porta de Hermione. — Vamos, precisamos ir...
Uma voz aguda respondeu.
— Eu... Eu acho que afinal não vou. Vão indo sem mim.
— Mione, nós sabemos que a Emilia Bulstrode é feia, ninguém vai saber que é você...
— Não... Verdade... Acho que não vou. Vocês andem de pressa, estão perdendo tempo...
Harry olhou para Rony intrigado.
— Assim você está mais parecido com o Goyle. É assim que ele fica toda vez que um professor faz uma pergunta.
— Mione, você está bem? — perguntou Harry através da porta.
— Muito bem... Muito bem... Vão andando...
Harry consultou o relógio. Cinco dos preciosos sessenta minutos já se tinham passado.
— Na volta nos encontramos aqui, está bem? — falou ele.
Os dois garotos abriram a porta do banheiro com cautela, verificaram se a barra estava limpa e saíram.
— Não balance os braços desse jeito — murmurou Harry para o amigo.
— Hein?
— Crabbe mantém os braços meio duros...
— Que tal assim?
— É, assim está melhor...
Os dois desceram a escada de mármore. Só precisavam agora que aparecesse um aluno da Sonserina para o seguirem até o salão comunal da casa, mas não havia ninguém por perto.
— Alguma idéia? — murmurou Harry.
— Os alunos da Sonserina sempre vêm daquela direção para tomar café da manhã — disse Rony indicando com a cabeça a entrada para as masmorras. Mal as palavras saíram de sua boca e uma menina de cabelos longos e crespos saiu pela entrada.
— Desculpe — disse Rony, correndo para ela. — Esquecemos qual é o caminho para o nosso salão comunal.
— Como? — perguntou a garota empertigada. — Nosso salão comunal? Eu sou da Corvinal.
E se afastou olhando desconfiada para os dois.
Harry e Rony desceram os degraus de pedra mergulhando na escuridão, seus passos ecoando particularmente altos a medida que os enormes pés de Crabbe e Goyle batiam no chão, sentindo que a coisa não ia ser tão fácil quanto tinham esperanças que fosse.
Os corredores que lembravam labirintos estavam desertos. Eles foram se internando cada vez mais fundo por baixo da escola, verificando constantemente os relógios para ver quanto tempo ainda lhes sobrava. Passados quinze minutos, quando iam começando a se desesperar, ouviram um movimento repentino no alto.
— Arre! — gritou Rony excitado. — Aí vem um deles agora!
O vulto vinha saindo de um aposento lateral. Ao se aproximarem, porém, sentiram um aperto no coração. Não era um aluno da Sonserina, era Percy.
— Que é que você está fazendo aqui em baixo? — perguntou Rony surpreso.
Percy fez cara de afrontado.
— Isto — disse se empertigando — não é da sua conta. É o Crabbe, não é?
— Que, ah, sim — disse Rony.
— Muito bem, já para os seus dormitórios — disse Percy com severidade. — Não é seguro ficar andando por corredores escuros hoje em dia.
— Mas como é que você está andando? — lembrou Rony.
— Eu — disse Percy empertigando-se — sou monitor nada vai me atacar.
De repente ecoou uma voz atrás de Harry e Rony. Draco Malfoy vinha em direção ao grupo e, pela primeira vez na vida, Harry teve prazer em vê-lo.
— Aí, até que enfim — disse ele com voz arrastada, olhando para os dois. -Estiveram se empapuçando no Salão Principal esse tempo todo? Andei procurando vocês; quero que vejam uma coisa realmente engraçada.
Malfoy lançou um olhar mortífero a Percy.
— E o que é que você está fazendo aqui em baixo, Weasley? — perguntou com desdém.
Percy parecia indignado.
— Vocês precisam mostrar um pouco mais de respeito por um monitor da escola! — disse. — Não gosto de sua atitude!
Malfoy riu debochado e fez sinal para Harry e Rony o seguirem.
Harry quase pediu desculpas a Percy, mas se conteve bem em tempo. Ele e Rony correram atrás de Draco, que disse assim que viraram o corredor:
— Esse Peter Weasley...
— Percy — Rony corrigiu-o automaticamente.
— O que seja. Tenho visto ele rondando por aqui um bocado ultimamente. E aposto como sei o que está aprontando. Acha que vai pegar o herdeiro de Slytherin sozinho.
Draco deu uma risada curta e debochada. Harry e Rony se entreolharam animados.
O garoto parou junto a um trecho da parede de pedra, liso e úmido.
— Como é mesmo a senha? — perguntou a Harry. — Ah... — hesitou Harry.
— Ah, já sei... Puro-sangue! — disse Draco, sem parar para ouvir, e uma porta de pedra escondida na parede deslizou. Draco entrou e Harry e Rony o seguiram.
A sala comunal da Sonserina era um aposento comprido e subterrâneo com paredes de pedra rústica, de cujo teto pendiam correntes com luzes redondas e esverdeadas.
Um fogo ardia na lareira encimada por um console de madeira esculpida e ao seu redor viam-se as silhuetas de vários alunos da Sonserina em cadeiras de espaldar alto.
— Esperem aqui — disse Draco a Harry e Rony, indicando duas cadeiras vazias mais afastadas da lareira. — Vou buscar, meu pai acabou de me mandar...
Imaginando o que Draco iria lhes mostrar, Harry e Rony se sentaram, fazendo o possível para parecer à vontade.
Draco voltou um minuto depois trazendo um papel que parecia ser um recorte de jornal. Enfiou-o na cara de Rony.
— Isso vai fazer vocês darem uma boa gargalhada.
Harry viu os olhos de Rony se arregalarem de choque. Ele leu o recorte depressa, deu uma risada forçada e o entregou a Harry. A notícia fora recortada do Profeta Diário e dizia:

INQUÉRITO NO MINISTÉRIO DA MAGIA
 Arthur Weasley, Chefe da Seção de Mau Uso dos Artefatos dos Trouxas foi multado hoje em cinqüenta galeões, por enfeitiçar um carro dos trouxas.
O Sr. Lúcio Malfoy, membro da diretoria da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, onde o carro enfeitiçado bateu no início deste ano, pediu hoje a demissão do Sr. Weasley.
"Weasley desmoralizou o Ministério" — declarou o Sr. Malfoy ao nosso repórter. "Ficou claro que ele não está qualificado para legislar, e o seu projeto de lei para proteger os trouxas deveria ser  imediatamente esquecido.”
O Sr. Weasley não foi encontrado para comentar essas declarações, embora sua mulher tenha dito aos repórteres para se afastarem da casa e ameaçado mandar o vampiro da família atacá-los.

— E aí? — perguntou Draco impaciente quando Harry devolveu o recorte. — Vocês não acham engraçado?
— Ah, ah, ah, ah — riu Harry desanimado.
— Arthur Weasley gosta tanto de trouxas que devia partir a varinha e ir se juntar a eles — disse Draco desdenhoso. — Pela maneira como se comportam, nem dá para dizer que os Weasley são puros-sangues.
A cara de Rony — ou melhor, de Crabbe se contorceu de fúria — Qual é o problema, Crabbe? — perguntou Draco com rispidez.
— Dor de estômago — grunhiu Rony.
— Então vá para a ala hospitalar e dê um chute naqueles sangues-ruins por mim — disse Draco sufocando o riso. — Sabe, estou admirado que o Profeta Diário ainda não tenha noticiado todos esses ataques – continuou, pensativo. — Suponho que Dumbledore esteja tentando abafar o caso. Ele vai ser despedido se isso não parar logo.  Meu pai diz que Dumbledore foi a pior coisa que já aconteceu a Hogwarts.  Ele adora trouxas. Um diretor decente nunca deixaria escória como o Creevey entrar.
Draco começou a tirar fotografias com uma máquina imaginária e fez uma imitação cruel, mas exata de Colin:
— Potter, posso bater uma foto sua, Potter! Pode me dar o seu autógrafo? Posso lamber os seus sapatos, por favor, Potter?
Ele deixou cair as mãos e olhou para Harry e Rony.
— Que é que há com vocês dois?
Em atraso, Harry e Rony forçaram uma risada, mas Draco pareceu satisfeito; talvez Crabbe e Goyle sempre fossem lentos para entender as coisas.
— São Potter, o amigo dos sangues ruins — disse Draco lentamente. — Ele é outro que não tem espírito de bruxo, ou não andaria por aí com aquela Granger sangue-ruim metida a besta. E tem gente que acha que ele é o herdeiro de Slytherin!
Harry e Rony esperaram com a respiração suspensa: Draco estava certamente a segundos de contar que era ele, mas então...
— Eu bem gostaria de saber quem é — disse com petulância. — Até poderia ajudar.
O queixo de Rony caiu de um jeito que Crabbe pareceu ainda mais tapado do que de costume. Felizmente, Draco não reparou e Harry, pensando rápido, disse:
— Você deve ter uma idéia de quem está por trás disso tudo...
— Você sabe que não tenho, Goyle. Quantas vezes preciso lhe dizer isso? — retrucou Draco com maus modos. — E meu pai não quer me contar nada sobre a última vez que a Câmara foi aberta, tampouco. E claro, foi há cinqüenta anos, antes do tempo dele, mas ele sabe tudo que aconteceu e diz que o caso foi abafado e que vai levantar suspeitas se eu souber de muita coisa. Mas uma coisa eu sei, a última vez que a Câmara Secreta foi aberta, um sangue-ruim morreu. Então aposto que é uma questão de tempo até um deles ser morto... Espero que seja a Granger — disse com prazer.
Rony crispava os punhos enormes de Crabbe. Harry, sentindo que o amigo poderia se denunciar se avançasse em Draco, lançou a Rony um olhar de alerta e disse:
— Você sabe se a pessoa que abriu a Câmara na última vez foi apanhada?
— Ah, é claro... Seja lá o que for foi expulso — disse Draco. — Com certeza ainda está em Azkaban.
— Azkaban? — perguntou Harry intrigado.
— Azkaban, a prisão de bruxos, Goyle — disse Draco, olhando para ele incrédulo. — Sinceramente, se você fosse mais devagar, andaria para trás.
Mexeu-se inquieto na cadeira e continuou:
— Meu pai diz para eu ficar na minha e deixar o herdeiro de Slytherin fazer o trabalho. Diz que a escola precisa se livrar de toda a sujeira dos sangues-ruins, mas para eu não me meter. É claro que ele está com as mãos cheias nesse momento. Sabem que o Ministério da Magia revistou a nossa propriedade na semana passada?
Harry tentou botar na cara de Goyle unia expressão de preocupação.
— É... — disse Draco. — Felizmente não encontraram muita coisa. Papai tem um material para Artes das Trevas muito valioso. Mas felizmente, temos a nossa câmara secreta embaixo da sala de visitas...
— Ho! — exclamou Rony.
Draco olhou. O mesmo fez Harry. Rony corou. Até seus cabelos começavam a ficar vermelhos. O nariz também estava crescendo — o tempo deles se esgotara e Rony começava a voltar ao normal e, pelo olhar de horror que de repente lançou a Harry, devia estar acontecendo o mesmo com o amigo.
Os dois se levantaram depressa.
— O remédio para o meu estômago — rosnou Rony e, sem mais demora, atravessou correndo toda a extensão do salão da Sonserina, atirou-se à parede de pedra e saiu pelo corredor na esperança de que Draco não tivesse notado nada. Harry sentiu os pés derraparem nos enormes sapatos de Goyle e teve que levantar as vestes à medida que iam encolhendo; os dois se precipitaram pelas escadas que levavam ao saguão de entrada, onde se ouviam as batidas abafadas que vinham do armário em que haviam trancado Crabbe e Goyle. Deixando os sapatos ao lado da porta eles subiram de meias e a toda velocidade a escada de mármore em direção ao banheiro da Murta Que Geme.
— Bom, não foi uma perda total de tempo — ofegou Rony, fechando a porta do banheiro ao passarem. — Sei que não descobrimos quem é o atacante, mas vou escrever a papai amanhã e dizer para ele revistar embaixo da sala de visitas de Malfoy.
Harry contemplou seu rosto no espelho rachado. Voltara ao normal. Colocou os óculos enquanto Rony socava a porta do boxe de Hermtone.
— Mione, saia daí, temos um monte de coisas para lhe contar...
— Vão embora! — disse Hermione esganiçada.
Harry e Rony se entreolharam.
— Qual é o problema? — perguntou Rony. — Você já deve ter voltado ao normal agora, nós...
Mas a Murta Que Geme atravessou de repente a porta do boxe. Harry nunca a vira com a cara tão feliz.
— Aaaaaah, esperem até ver. Que horrível...
Eles ouviram o trinco se abrir e Hermione saiu, soluçando, as vestes cobrindo a cabeça.
— Que foi que houve? — perguntou Rony inseguro. — Você continua com o nariz da Emilia ou coisa assim?
Hermione deixou as vestes caírem e Rony recuou contra a pia.
O rosto da garota estava coberto de pêlos negros. Os olhos tinham virado amarelos e orelhas compridas e pontudas espetavam para fora dos cabelos.
— Era um pêlo de gato! Emilia Bulstrode deve ter um gato! E a poção não deve ser usada para transformar animais!
— Uau! — exclamou Rony.
— Vão caçoar de você horrores — exclamou Murta, feliz.
— Tudo bem, Mione — disse Harry depressa. — Levamos você para a ala hospitalar.  Madame Pomfrey nunca faz muitas perguntas...
Levou muito tempo para persuadirem Hermione a deixar o banheiro. Murta Que Geme despediu-se dos garotos com uma risada gaiata.
— Espere até todo mundo descobrir que você tem rabo!



CAPÍTULO TREZE
O Diário Secretíssimo

Hermione permaneceu na ala hospitalar várias semanas. Houve uma boataria sobre o seu sumiço quando o resto da escola voltou das férias de Natal, porque naturalmente todos pensaram que ela fora atacada. Foram tantos os alunos que passaram pela ala hospitalar tentando dar uma olhada nela que Madame Pomfrey pegou outra vez as cortinas e pendurou-as em torno da cama da garota, para lhe poupar a vergonha de ser vista com a cara peluda.
Harry e Rony iam visitá-la toda tarde. Quando o novo período letivo começou, eles lhe levavam os deveres de casa do dia.
— Se tivessem crescido bigodes de gato em mim, eu teria tirado umas férias dos deveres — disse Rony, certa noite, despejando uma pilha de livros na mesa-de-cabeceira de Mione.
— Pare de ser bobo, Rony, tenho que me manter em dia — disse Mione decidida, seu estado de ânimo melhorara muito desde que todos os pêlos desapareceram do seu rosto, e os olhos estavam voltando lentamente à cor castanha. — Suponho que não encontraram nenhuma pista nova? — acrescentou aos sussurros, de modo que Madame Pomfrey não a escutasse.
— Nada — respondeu Harry, desanimado.
— Eu tinha tanta certeza de que era Draco — disse Rony, pela centésima vez.
— Que é isso? — perguntou Harry, apontando para alguma coisa dourada que aparecia por baixo do travesseiro de Mione.
— É só um cartão desejando que eu fique boa logo — disse Mione depressa, tentando escondê-lo, mas Rony foi mais rápido. Puxou o cartão, abriu-o e leu em voz alta:
A senhorita Granger desejo uma rápida convalescença, seu professor preocupado Gilderoy Lockhart Ordem de Merlin, Terceira Classe, Membro Honorário da Liga de Defesa contra as Forças das Trevas, cinco vezes vencedor do Prêmio do Sorriso Mais Simpático do Mundo do Semanário dos Bruxos.

Rony olhou para Mione, enojado.
— Você dorme com isso debaixo do travesseiro?
Mas Mione não precisou responder por que Madame Pomfrey apareceu para lhe dar a medicação noturna.
— O Lockhart é o cara mais populista que você já conheceu ou o quê? — perguntou Rony a Harry ao saírem da enfermaria e começarem a subir a escada que levava à Torre da Grifinória.  Snape passara tanto dever de casa, que Harry achou que provavelmente estaria na sexta série quando terminasse tudo. Rony estava acabando de comentar que gostaria de ter perguntado a Mione quantos rabos de rato devia usar na Poção de Arrepiar Cabelos quando um vozerio no andar de cima chegou aos ouvidos dos dois.
— É o Filch — murmurou Harry enquanto subiam depressa a escada e paravam, escondidos, apurando os ouvidos.
— Você acha que mais alguém foi atacado? — perguntou Rony tenso.
Os dois ficaram quietos, as cabeças inclinadas na direção da voz de Filch, que parecia um tanto histérica.
— ... Sempre mais trabalho para mim! Enxugando o chão a noite inteira, como se já não tivesse o suficiente para fazer! Não, isto é a última gota, vou procurar o Dumbledore...
Os passos dele cessaram e os meninos ouviram uma porta bater à distância.
Os garotos esticaram as cabeças para espiar mais além do canto. Filch, pelo que viam, estivera em seu posto de vigia habitual: estavam mais uma vez no local em que Madame Nor-r-ra fora atacada. Viram imediatamente a razão dos gritos de Filch.
Uma grande inundação se espalhava por metade do corredor e aparentemente a água ainda não parara de correr por baixo da porta do banheiro da Murta Que Geme. Quando Filch parou de gritar, eles puderam ouvir os lamentos da Murta ecoando pelas paredes do banheiro.
— Agora o que será que ela tem? — exclamou Rony.
— Vamos até lá ver — disse Harry e, levantando as vestes bem acima dos tornozelos, os dois atravessaram aquela agüeira até a porta com o letreiro INTERDITADO, não lhe deram atenção, como sempre, e entraram.
Murta Que Geme chorava, se é que isso era possível, cada vez mais alto e com mais vontade do que nunca. Parecia ter-se escondido no seu boxe habitual. Estava escuro no banheiro porque as velas haviam se apagado com a grande inundação que deixara as paredes e o piso encharcados.
— Que foi Murta?— perguntou Harry.
— Quem é? — engrolou Murta, infeliz. — Vêm jogar mais alguma coisa em mim?
Harry meteu os pés na água até o boxe dela.
— Por que eu iria jogar alguma coisa em você?
— É a mim que você pergunta! — gritou Murta, surgindo em meio a mais uma onda líquida, que se espalhou pelo chão já molhado. — Estou aqui cuidando da minha vida e alguém acha que é engraçado jogar um livro em mim...
— Mas não deve machucar se alguém joga um livro em você — argumentou Harry. — Quero dizer, ele atravessa você, não é mesmo?
Disse a coisa errada. Murta se estufou e gritou com voz aguda:
— Vamos todos jogar livros na Murta, porque ela não é capaz de sentir! Dez pontos se você fizer o livro atravessar a barriga dela! Muito bem, ha, ha, ha! Que ótimo jogo, eu não acho!
— Mas afinal quem jogou o livro em você? — perguntou Harry.
— Eu não sei... Eu estava sentada na curva do corredor, pensando na morte, e o livro atravessou a minha cabeça — disse Murta olhando feio para os garotos. — Está lá, foi levado pela água...
Harry e Rony espiaram embaixo da pia para onde Murta apontava. Havia um livro pequeno e fino caído ali. Tinha uma capa preta e gasta e estava molhado como tudo o mais naquele banheiro. Harry adiantou-se para apanhá-lo, mas Rony de repente esticou o braço para impedi-lo.
— Que foi?
— Você está maluco — disse Rony. — Pode ser perigoso.
— Perigoso? — perguntou Harry rindo. — Deixe disso, de que jeito poderia ser perigoso?
— Você ficaria surpreso — disse Rony, olhando apreensivo para o livro. — Os livros que o Ministério da Magia tem confiscado, papai me contou, tinha um que queimava os olhos da pessoa. E todo mundo que leu Sonetos de um Bruxo passou a falar em rima para o resto da vida. E uma velha bruxa em Bath tinha um livro que a pessoa não conseguia parar de ler. Passava a andar com a cara no livro, tentando fazer tudo com uma mão só. E...
— Está bem, já entendi.
O livrinho continuava no chão, empapado e indefinível.
— Bem, não vamos descobrir se não dermos uma olhada — falou Harry. Abaixou-se para se desvencilhar de Rony e apanhou o livro do chão.
Harry viu num instante que era um diário, e o ano meio desbotado na capa lhe informou que tinha cinqüenta anos de idade.
Abriu-o ansioso. Na primeira pagina, mal e mal, conseguiu ler o nome "T. S. Riddle", em tinta borrada.
— Calma aí — disse Rony, que se aproximara cautelosamente e espiava por cima do ombro do amigo. — Conheço esse nome... T. S. Riddle recebeu um prêmio por serviços especiais prestados à escola há cinqüenta anos.
— Como é que você sabe? — perguntou Harry admirado.
— Porque Filch me fez polir o escudo desse homem umas cinqüenta vezes durante a minha detenção — disse Rony com raiva. — Daquela vez que arrotei lesmas para todo o lado. Se você tivesse tirado lesmas de um nome durante uma hora, você também se lembraria.
Harry separou as páginas molhadas. Estavam completamente em branco. Não havia o menor vestígio de escrita em nenhuma delas, nem mesmo Aniversário de tia Magda ou dentista as três e meia.
— Não entendo por que alguém quis se descartar dele — comentou Rony, curioso.
Harry virou as costas do livro e viu impresso o nome de uma papelaria na Rua Vauxhall, em Londres.
— O dono deve ter nascido trouxa — disse Harry pensativo.
— Para ter comprado um diário na Rua Vauxhall...
— Bom, não vai servir para você — disse Rony. E baixando a voz: — Cinqüenta pontos se você conseguir fazer ele atravessar o nariz da Murta.
Harry, porém, meteu o diário no bolso.
Hermione deixou a ala hospitalar, sem bigodes, sem rabo, sem pêlos, no início de fevereiro.
Na primeira noite de volta à Torre da Grifinória, Harry lhe mostrou o diário de T. S. Riddle e lhe contou como o tinham encontrado.
— Aaah, talvez tenha poderes secretos — disse a garota, entusiasmada, apanhando o diário e examinando-o com atenção.
— Se tiver, deve estar escondendo esses poderes muito bem — disse Rony. — Vai ver é tímido. Não sei por que você não joga esse diário fora, Harry.
— Eu queria saber por que alguém tentou jogá-lo fora. E também gostaria de saber por que foi que Riddle recebeu um prêmio por serviços especiais prestados a Hogwarts.
— Pode ter sido por qualquer coisa — disse Rony. — Talvez tenha ganho trinta corujas ou salvou um professor dos tentáculos de uma lula gigante. Talvez tenha assassinado a Murta; isso teria sido um favor para todo mundo...
Mas Harry podia dizer pela expressão parada no rosto de Mione que ela estava pensando o que ele estava pensando.
— Que foi? — perguntou Rony olhando de um para outro.
— Bom, a Câmara Secreta foi aberta há cinqüenta anos, não foi? Foi o que Draco disse.
— E... — disse Rony lentamente.
— E este diário tem cinqüenta anos — disse Hermione, tamborilando os dedos nele, agitada.
— E daí?
— Ah, Rony, vê se acorda — retrucou a garota. — Sabemos que quem abriu a Câmara da última vez foi expulso há cinqüenta anos. Sabemos que T. S. Riddle recebeu um prêmio por serviços especiais prestados à escola há cinqüenta anos. Muito bem, e se Riddle recebeu o prêmio por ter pego o herdeiro de Slytherin?
O diário dele provavelmente nos contaria tudo, onde fica a Câmara, como abri-la, que tipo de criatura mora lá, e a pessoa que está por trás desses ataques desta vez não gostaria de ver o diário rolando por aí, não é?
— É uma teoria brilhante, Mione — disse Rony —, só tem um furinho pequenininho. Não tem nada escrito no diário.
Mas Hermione estava tirando a varinha de dentro da mochila.
— Talvez a tinta seja invisível! — sussurrou.
A garota deu três toques no diário e disse: Aparedum!
Nada aconteceu. Sem desanimar, Mione meteu outra vez a mão na mochila e tirou uma coisa que parecia uma borracha vermelho-berrante.
— É um revelador que comprei no Beco Diagonal — explicou.
Ela esfregou a borracha com força em primeiro de janeiro.
Nada aconteceu.
— Estou dizendo que não tem nada aí para se achar — falou Rony. — Riddle simplesmente ganhou um diário de Natal e não se deu o trabalho de usá-lo.
Harry não conseguiu explicar, nem para si mesmo, por que simplesmente não jogou fora o diário de Riddle. O fato era que, mesmo sabendo que o diário estava em branco, não parava de pegá-lo distraidamente e de folheá-lo, como se fosse uma história que ele quisesse terminar. E embora tivesse certeza de que nunca ouvira falar em T. S. Riddle antes, ainda assim o nome parecia significar alguma coisa para ele, quase como se Riddle fosse um amigo que tivera quando era muito pequeno, e meio que esquecera. Mas isto era absurdo. Nunca tivera amigos antes de Hogwarts. Duda cuidara disso.
Ainda assim, Harry estava decidido a descobrir mais sobre Riddle. Por isso, próximo ao amanhecer, rumou para a sala de troféus para examinar o prêmio especial de Riddle, acompanhado por uma Mione interessada e um Rony completamente descrente, que disse aos dois que já vira a sala de troféus o suficiente para uma vida inteira.
O escudo dourado de Riddle estava guardado em um armário de canto. Não continha detalhes sobre as razões por que fora concedido ("Ainda bem, porque seria maior e eu ainda estaria polindo essa coisa", disse Rony.) Mas eles encontraram o nome de Riddle em uma velha medalha de Mérito em Magia e em uma lista de antigos monitores-chefes.
— Ele até parece o Percy — disse Rony, torcendo o nariz enojado. — Monitor, monitor-chefe... Provavelmente o primeiro aluno em todas as classes...
— Você fala isso como se fosse uma coisa ruim — disse Hermione num tom ligeiramente magoado.
O sol agora voltara a brilhar palidamente sobre Hogwarts. No interior do castelo, as pessoas se sentiam mais esperançosas. Não houvera mais ataques desde os de Justino e Nick Sem Cabeça, e Madame Pomfrey tinha o prazer de informar que as mandrágoras estavam ficando imprevisíveis e cheias de segredinhos, o que significava que iam deixando depressa a infância.
— Quando desaparecer a acne delas, estarão prontas para serem reenvasadas — Harry ouviu-a dizer gentilmente ao Filch uma certa tarde. — E depois disso, iremos cortá-las e cozinhá-las. Num instante você terá a sua Madame
Nor-r-ra de volta.
Talvez o herdeiro de Slytherin tenha perdido a coragem, pensou Harry. Devia estar-se tornando cada vez mais arriscado abrir a Câmara Secreta, com a escola tão atenta e desconfiada. Talvez o monstro, fosse o que fosse, estivesse neste mesmo momento se aninhando para hibernar outros cinqüenta anos...
Ernie Mcmillan da Lufa-Lufa não concordava com essa visão otimista. Continuava convencido de que Harry era o culpado, que ele "se denunciara" no Clube dos Duelos. Pirraça não estava ajudando nada; a toda hora aparecia nos corredores cheios de alunos, cantando: "Ah, Potter podre...", agora com um número de dança para acompanhar.
Gilderoy Lockhart parecia pensar que, sozinho, fizera os ataques pararem. Harry ouviu-o dizer isso à Profª. McGonagall quando os alunos da Grifinória faziam fila para ir à aula de Transformações.
— Acho que não vai haver mais problemas, Minerva — disse ele dando um tapinha no nariz e uma piscadela com ar de quem sabe das coisas. — Acho que a Câmara foi fechada para sempre desta vez. O culpado deve ter sentido que era apenas uma questão de tempo até nós o pegarmos. Achou mais sensato parar agora, antes que eu o liquidasse.  Sabe, o que a escola precisa agora é de uma injeção no moral. Esquecer as lembranças do período passado! Não vou dizer mais nada por ora, mas acho que sei exatamente o que...
E dando outra pancadinha no nariz se afastou decidido.
A idéia que Lockhart fazia de uma injeção no moral tornou-se clara no café da manhã de catorze de fevereiro. Harry não dormira o suficiente por causa de um treino de Quadribol até tarde, na véspera, e correu para o Salão Principal, um pouco atrasado. Pensou, por um momento, que tivesse entrado na porta errada.
As paredes estavam cobertas com grandes flores rosa-berrante. E pior ainda, de um teto azul-celeste caía confete em feitio de coração. Harry dirigiu-se à mesa da Grifinória, onde Rony estava sentado com cara de enjôo, e Hermione parecia não conseguir parar de rir.
— Que é que está acontecendo? — perguntou Harry aos dois, sentando-se e limpando o confete do bacon.
Rony apontou para a mesa dos professores, aparentemente nauseado demais para falar.
Lockhart, usando vestes rosa-berrante, para combinar com a decoração, gesticulava pedindo silêncio. Os professores, de cada lado dele, estavam impassíveis. De onde se sentara, Harry podia ver um músculo tremendo na bochecha da Profª. McGonagall. Snape parecia que tinha acabado de tomar um grande copo de Esquelecresce.
— Feliz Dia dos Namorados! — exclamou Lockhart. — E será que posso agradecer às quarenta e seis pessoas que me mandaram cartões até o momento? Claro, tomei a liberdade de fazer esta surpresinha para vocês, e ela não acaba aqui!
Lockhart bateu palmas e, pela porta que abria para o saguão de entrada, entraram onze anões de cara amarrada. Mas não eram uns anões quaisquer. Lockhart mandara-os usar asas douradas e trazer harpas.
— Os meus cupidos, entregadores de cartões! — sorriu Lockhart. — Eles vão circular pela escola durante o dia de hoje entregando os cartões dos namorados. E a brincadeira não termina aí! Tenho certeza de que os meus colegas vão querer entrar no espírito festivo da data! Por que não pedir ao Profº. Snape  para lhes ensinar a preparar uma Poção de Amor! E por falar nisso, o Profº. Flitwick conhece mais Feitiços de Fascinação do que qualquer outro mago que eu conheça, o santinho!
O Profº. Flitwick escondeu o rosto nas mãos. Snape fez cara de que obrigaria a beber veneno o primeiro aluno que lhe pedisse uma Poção de Amor.
— Por favor, Mione, me diga que você não foi uma das quarenta e seis — disse Rony ao deixarem o Salão Principal para assistir à primeira aula. A garota de repente ficou muito interessada em procurar na mochila o seu horário e não respondeu.
O dia inteiro, os anões não pararam de invadir as salas de aula e entregar cartões, para irritação dos professores e, no fim daquela tarde, quando os alunos da Grifinória iam subindo para a aula de Feitiços, um dos anões alcançou Harry.
— Oi, você! "Arry” Potter! — gritou um anão particularmente mal-encarado, que abria caminho às cotoveladas para chegar até Harry.
Cheio de calores só de pensar em receber um cartão do dia dos namorados na frente de uma fileira de alunos de primeiro ano, que por acaso incluía Gina Weasley.
Harry tentou escapar. O anão, porém, meteu-se por entre a garotada chutando as canelas de todos e o alcançou antes que o garoto pudesse se afastar dois passos.
— Tenho um cartão musical para entregar a "Arry" Potter em pessoa — disse, empunhando a harpa de um jeito meio assustador.
— Aqui não — sibilou Harry, tentando escapar.
— Fique parado! — grunhiu o anão, agarrando a mochila de Harry e puxando-o de volta.
— Me solta! — rosnou o garoto, puxando. Com um barulho de pano rasgado, a mochila se rompeu ao meio. Os livros, a varinha, o pergaminho e a pena se espalharam pelo chão, e o vidro de tinta se derramou por cima de tudo.
Harry virou-se para todos os lados, tentando reunir tudo antes que o anão começasse a cantar, causando um certo engarrafamento no corredor.
— Que é que está acontecendo aqui? — ouviu-se a voz fria e arrastada de Draco Malfoy. Harry começou a enfiar tudo febrilmente na mochila rasgada, desesperado para sair dali antes que Draco pudesse ouvir o cartão musical.
— Que confusão é essa? — perguntou outra voz conhecida. Era Percy Weasley que se aproximava.
Perdendo a cabeça, Harry tentou correr, mas o anão o agarrou pelos joelhos e o derrubou com estrondo no chão.
— Muito bem — disse ele, sentando-se em cima dos calcanhares de Harry. -Vamos ao seu cartão cantado:

“Teus olhos são verdes como sapinhos cozidos, teus cabelos, negros como um quadro de aula. Queria que tu fosses meu, garoto divino, Herói que venceu o malvado Lord das Trevas.”

Harry teria dado todo o ouro de Gringotes para se evaporar na hora. Fazendo um grande esforço para rir com os colegas, ele se levantou, os pés dormentes com o peso do anão, enquanto Percy Weasley fazia o possível para dispersar os alunos, alguns chorando de tanto rir.
— Vão andando, vão andando, a sineta tocou há cinco minutos, já para a aula — disse o monitor, espantando os alunos mais novos. — E você, Malfoy...
Harry, erguendo a cabeça, viu Draco se abaixar e apanhar alguma coisa. Mostrou-a, debochando, a Crabbe e Goyle, e Harry percebeu que ele se apossara do diário de Riddle.
— Devolva isso aqui — disse Harry controlado.
— Que será que Potter andou escrevendo nisso? — disse Draco, que obviamente não reparara na data impressa na capa e pensava que era o diário de Harry.
Fez-se silêncio entre os presentes. Gina olhava do diário para Harry, com cara de terror.
— Devolva, Malfoy — disse Percy com severidade.
— Depois que eu olhar — disse Draco, agitando o diário no ar para enraivecer Harry.
Percy falou:
— Como monitor... — mas Harry perdera a paciência. Puxou a varinha e gritou:
"Expelliarmus!" — e do mesmo jeito que Snape desarmara Lockhart, Draco viu o diário sair voando de sua mão. Rony, com um grande sorriso, apanhou-o.
— Harry! — disse Percy em voz alta. — Nada de mágica nos corredores. Vou ter que reportar isso, sabe!
Mas Harry não se importou, ganhara uma vez de Draco e isso valia cinco pontos da Grifinória em qualquer dia. Draco ficou furioso e, quando Gina passou por ele para entrar na sala de aula, gritou despeitado:
— Acho que Potter não gostou muito do seu cartão!
Gina cobriu o rosto com as mãos e correu para dentro da sala. Rosnando, Rony puxou a varinha também, mas Harry agarrou-o para afastá-lo. O amigo não precisava passar a aula de Feitiços inteira arrotando lesmas.
Somente quando chegaram à sala de aula do Profº. Flitwick foi que Harry notou uma coisa muito estranha no diário de Riddle. Todos os seus livros estavam ensopados de tinta vermelha. O diário, porém, continuava tão limpo como antes do tinteiro quebrar em cima dele. Tentou dizer isto a Rony, que estava enfrentando novos problemas com a varinha; grandes bolhas saiam da ponta, e ele não estava muito interessado em nada mais.
Harry se recolheu ao dormitório antes dos colegas àquela noite. Em parte era porque achava que não ia conseguir agüentar Fred e Jorge cantando "Teus olhos são verdes como sapinhos cozidos" mais uma vez, e em parte porque queria examinar o diário de Riddle e sabia que Rony achava que era uma perda de tempo.
Harry sentou-se na cama de colunas e folheou as páginas em branco, nenhuma das quais tinha sequer vestígio de tinta vermelha. Então tirou um tinteiro novo do armário ao lado da cama, molhou a pena e deixou cair um pingo na primeira página do diário.
A tinta brilhou intensamente no papel durante um segundo e, em seguida, como se estivesse sendo chupada pela página, desapareceu. Excitado, Harry tornou a molhar a pena uma segunda vez e escreveu: "Meu nome é Harry Potter.”
As palavras brilharam momentaneamente na página e também desapareceram sem deixar vestígios. Então, finalmente, aconteceu uma coisa.
Filtrando-se de volta à página, com a própria tinta de Harry, surgiram palavras que ele nunca escrevera.
"Olá, Harry Potter! Meu nome é Tom Riddle. Como foi que você encontrou o meu diário?”
Essas palavras também se dissolveram, mas não antes de Harry recomeçar a escrever.
"Alguém tentou se desfazer dele no vaso sanitário.”
Ele esperou, ansioso, pela resposta de Riddle.
"Que sorte que registrei minhas memórias em algo mais durável que a tinta. Mas sempre soube que haveria gente que não ia querer que este diário fosse lido.”
"Que quer dizer com isso?", escreveu Harry. Borrando a página de tanta excitação.
"Quero dizer que este diário guarda memórias de coisas terríveis. Coisas que foram abafadas. Coisas que aconteceram na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts.”
"É onde eu estou agora", respondeu Harry depressa. "Estou em Hogwarts e coisas terríveis estão acontecendo. Sabe alguma coisa sobre a Câmara Secreta?”
Seu coração batia forte. A resposta de Riddle veio depressa, a caligrafia mais desleixada, como se estivesse correndo para contar tudo o que sabia.
"Claro que sei alguma coisa sobre a Câmara Secreta. No meu tempo, disseram à gente que era uma lenda, que não existia. Mas era uma mentira. No meu quinto ano, a Câmara foi aberta e o monstro atacou vários alunos e finalmente matou um. Peguei a pessoa que tinha aberto a Câmara e ela foi expulsa. Mas o diretor, Profº. Dippet, constrangido porque uma coisa dessas acontecera em Hogwarts, proibiu-me de contar a verdade. A história que foi divulgada é que a menina morrera em um acidente imprevisível. Eles me deram um troféu bonito, reluzente e gravado, pelo meu trabalho, e me avisaram para ficar de boca fechada. O monstro continuou vivo, e aquele que tinha o poder de libertá-lo não foi preso.”
Harry quase derrubou o tinteiro na pressa de responder.
"Está acontecendo outra vez agora. Houve três ataques, e ninguém parece saber quem está por trás deles. Quem foi da última vez?”
"Posso lhe mostrar, se você’ quiser". Veio a resposta de Riddle. "Você não precisa acreditar no que digo. Posso levá-lo à minha lembrança da noite em que o peguei.”
Harry hesitou, a pena suspensa sobre o diário. Que é que Riddle queria dizer? Como é que ele podia ser levado para dentro da lembrança de outra pessoa? Olhou nervoso, para a porta do dormitório que estava ficando escuro. Quando tornou a olhar para o diário, viu novas palavras se formando.
"Deixe eu lhe mostrar”
Harry parou por uma fração de segundo e em seguida escreveu duas letras:
"OK.”
As páginas do diário começaram a virar como se tivessem sido apanhadas por um vendaval e pararam na metade do mês de junho. Boquiaberto, Harry viu que o quadradinho correspondente ao dia treze de junho parecia ter-se transformado numa telinha de televisão. Com as mãos ligeiramente tremulas, ele ergueu o livro para encostar o olho na janelinha e antes que entendesse o que estava acontecendo, viu-se inclinando para frente; a janela foi se alargando, ele sentiu o corpo abandonar a cama e mergulhar de cabeça na abertura da página, num rodamoinho de cores e sombras.
Depois, sentiu o pé bater em chão firme e ficou parado, trêmulo, e as formas borradas à sua volta entraram de repente em foco.
Soube imediatamente onde se achava. Essa sala circular com os retratos que cochilavam era o escritório de Dumbledore, mas não era Dumbledore quem se sentava à escrivaninha. Um bruxo mirrado e frágil, careca, exceto por alguns fiapos de cabelos brancos, lia uma carta à luz da vela. Harry nunca vira esse homem antes.
— Sinto muito — disse, trêmulo —, não tive intenção de entrar assim...
Mas o bruxo não ergueu a cabeça. Continuou a ler, franzindo ligeiramente a testa.
Harry se aproximou mais da escrivaninha e gaguejou:
— Hum... Vou me retirar, posso?
O bruxo continuou a não lhe dar atenção. Nem parecia tê-lo ouvido. Achando que o bruxo talvez fosse surdo, Harry falou mais alto.
— Sinto muito se o incomodei. Vou-me embora agora — falou quase gritando.
O bruxo dobrou a carta com um suspiro, levantou-se, passou por Harry sem olhá-lo e foi abrir as cortinas da janela.
O céu lá fora estava cor de rubi; parecia ser o pôr-do-sol. O bruxo voltou à escrivaninha, sentou-se e ficou girando os polegares, de olho na porta.
Harry correu o olhar pela sala. Não havia Fawkes, a fênix — nem mecanismos barulhentos de prata. Era a Hogwarts que Riddle conhecera, o que significava que este bruxo desconhecido era o diretor em vez de Durnbledore, e que ele, Harry, era pouco mais do que um fantasma, completamente invisível às pessoas de cinqüenta anos atrás.
Alguém bateu à porta da sala.
— Entre — disse o velho bruxo com a voz fraca.
Um menino de uns dezesseis anos entrou tirando o chapéu cônico. Um distintivo de monitor brilhava em seu peito. Ele era mais alto do que Harry, mas seus cabelos também eram muito negros.
— Ah, Riddle — exclamou o diretor.
— O senhor queria me ver, Profº. Dippet — disse o garoto, que parecia nervoso.
— Sente-se — convidou Dippet. — Acabei de ler a carta que você me mandou.
— Ah — disse Riddle, e se sentou apertando as mãos com força.
— Meu caro rapaz — disse Dippet bondosamente. — Não posso deixá-lo permanecer na escola durante o verão. Com certeza você quer ir para a casa passar as férias?
— Não — respondeu Riddle na mesma hora. — Preferia continuar em Hogwarts do que voltar para aquele... Aquele...
— Você mora num orfanato de trouxas nas férias, não é? — perguntou Dippet, curioso.
— Moro, sim, senhor — respondeu Riddle, corando ligeiramente.
— Você nasceu trouxa?
— Mestiço. Pai trouxa e mãe bruxa.
— E seus pais...
— Minha mãe morreu logo depois que eu nasci. Me disseram no orfanato que ela só viveu o tempo suficiente para me dar um nome... Tom, em homenagem ao meu pai, Servolo, ou meu avo.
Dippet deu um muxoxo de simpatia.
— O problema é, Tom — suspirou ele —, que talvez pudéssemos tomar providências para acomodá-lo, mas nas atuais circunstâncias.
— O senhor se refere aos ataques? — perguntou Riddle, e o coração de Harry deu um salto, ao que ele se aproximou mais, com medo de perder alguma palavra.
— Precisamente — disse o diretor. — Meu rapaz, você deve entender que seria muito insensato de minha parte permitir que você permaneça no castelo quando terminar o ano letivo. Principalmente à luz da recente tragédia... A morte daquela pobre menininha... Você estará muito mais seguro no seu orfanato. Aliás, o Ministério da Magia está neste momento falando em fechar a escola, Não estamos nem perto de identificar a... Hum... Fonte de todos esses contratempos...
Os olhos de Riddle se arregalaram.
— Diretor, se a pessoa fosse apanhada, se tudo isso acabasse...
— Que quer dizer? — perguntou Dippet esganiçando a voz e aprumando-se na cadeira. — Riddle, você está me dizendo que sabe alguma coisa sobre esses ataques?
— Não, senhor — respondeu Riddle depressa.
Mas Harry teve certeza de que era o mesmo tipo de "não” que ele próprio dissera a Dumbledore.
Dippet se recostou parecendo ligeiramente desapontado.
— Pode ir, Tom...
Riddle se levantou escorregando para fora da cadeira e saiu acabrunhado da sala.
Harry acompanhou-o.
Eles desceram pela escada em caracol e saíram ao lado da gárgula no corredor que escurecia. Riddle parou, e Harry fez o mesmo, observando-o. Era visível que Riddle estava pensando em coisas serias. Mordia o lábio e franzia a testa.
Então, como se tivesse repentinamente chegado a uma decisão, afastou-se depressa, e Harry deslizou silenciosamente atrás dele. Não viram mais ninguém até chegarem ao saguão de entrada, onde um bruxo alto, com barba e longos cabelos acajus que cascateavam pelos seus ombros, chamou Riddle da escadaria de mármore.
— Que é que você está fazendo, andando por ai tão tarde, Tom?
Harry boquiabriu-se ao ver o bruxo. Não era outro se não Dumbledore, cinqüenta anos mais novo.
— Tive que ir ver o diretor.
— Então vá logo para a cama — disse Dumbledore, fixando em Riddle exatamente o tipo de olhar penetrante que Harry conhecia tão bem. — É melhor não perambular pelos corredores hoje em dia. Não desde que...
Ele soltou um pesado suspiro, desejou boa noite a Riddle e foi-se embora. Riddle observou-o desaparecer de vista e então, andando depressa, rumou direto para a escada de pedra que levava às masmorras, com Harry nos seus calcanhares.
Mas para desapontamento de Harry, Riddle não o levou nem a um corredor oculto nem a um túnel secreto, mas a mesmíssima masmorra em que Harry tinha aula de Poções com Snape. Os archotes não tinham sido acesos e, quando Riddle empurrou a porta quase fechada, Harry só conseguiu distinguir que ele parara imóvel à porta, vigiando o corredor.
Pareceu a Harry que ficaram ali no mínimo uma hora. Só o que ele via era o vulto de Riddle à porta, espiando pela fresta, esperando como uma estátua. E quando Harry esqueceu a ansiedade e a tensão e começou a desejar voltar ao presente, ouviu alguma coisa do lado de fora da porta.
Alguém estava andando sorrateiramente pelo corredor.
Ouviu esse alguém passar pela masmorra em que ele e Riddle estavam escondidos. Riddle, silencioso como uma sombra, esgueirou-se pela porta e seguiu a pessoa, Harry acompanhou-o nas pontas dos pés, esquecido de que ninguém podia ouvi-lo.
Por uns cinco minutos, talvez, os dois seguiram as pegadas, até que Riddle parou subitamente, a cabeça inclinada, atento a novos ruídos. Harry ouviu uma porta se abrir com um rangido, e alguém falar num sussurro rouco.
— Vamos... Preciso sair daqui... Vamos logo... Para a caixa...
Havia alguma coisa familiar naquela voz...
De um salto Riddle contornou um canto. Harry foi atrás. Via a silhueta escura de um garoto enorme, agachado diante de uma porta aberta, com uma grande caixa ao lado.
— Noite, Rubeo — disse Riddle rispidamente.
O garoto bateu a porta e se levantou.
— Que é que você está fazendo aqui em baixo, Tom?
Riddle se aproximou.
— Acabou — disse. — Vou ter que entregá-lo, Rúbeo. Estão falando em fechar Hogwarts se os ataques não pararem.
— Que é que...
— Acho que você não teve intenção de matar ninguém. Mas monstros não são bichinhos de estimação. Imagino que você o tenha soltado para fazer exercício e...
— Ele nunca mataria ninguém! — disse o garotão, recuando contra a porta fechada.
Atrás dele, Harry podia ouvir uns rumores e uns cliques esquisitos.
— Vamos, Rúbeo — falou Riddle, aproximando-se ainda mais.
— Os pais da garota morta estarão aqui amanhã. O mínimo que Hogwarts pode fazer é garantir que a coisa que matou a filha deles seja abatida...
— Não foi ele! — rugiu o garoto, a voz ecoando no corredor escuro. — Ele não faria isso! Nunca!
— Afaste-se — disse Riddle, puxando a varinha.
Seu feitiço iluminou repentinamente o corredor com uma luz flamejante. A porta atrás do garotão se escancarou com tal força que o empurrou contra a parede oposta. E pelo vão saiu uma coisa que fez Harry soltar um grito comprido e penetrante que ninguém ouviu...
Um corpanzil baixo e peludo e um emaranhado de pernas pretas; um brilho de muitos olhos e um par de pinças afiadíssimas — Riddle tornou a erguer a varinha, mas demorou demais. A coisa derrubou-o e fugiu, desembestou pelo corredor e desapareceu de vista. Riddle levantou-se correndo, procurando a coisa; ergueu a varinha, mas o garotão pulou em cinta dele, tirou-lhe a varinha e o derrubou de novo no chão gritando:
— NAAAAÂÂÃO!
A cena girou, a escuridão foi total; Harry sentiu-se caindo e, com um baque, aterrissou de braços e pernas abertas em sua cama de colunas no dormitório da Grifinória, com o diário de Riddle aberto sobre a barriga.
Antes que tivesse tempo de recuperar o fôlego, a porta do dormitório se abriu e Rony entrou.
— Ah, é aqui que você está! — disse.
Harry se sentou. Estava suado e trêmulo.
— Que aconteceu? — perguntou Rony, olhando-o preocupado.
— Foi Hagrid, Rony. Hagrid abriu a porta da Câmara Secreta há cinqüenta anos.

















CAPÍTULO CATORZE
Cornélio Fudge

Harry, Rony e Mione sempre souberam que Hagrid tinha uma lamentável queda por criaturas grandes e monstruosas. Durante o primeiro ano em Hogwarts, ele tentara criar um dragão em sua casinha de madeira, e levaria muito tempo para os garotos esquecerem o gigantesco cachorro de três cabeças a que ele dera o nome de "Fofo". E se, quando era criança, Hagrid tivesse ouvido falar que havia um monstro escondido em algum lugar do castelo, Harry tinha certeza de que ele teria feito o possível para dar uma espiada. E provavelmente pensaria que era uma vergonha o monstro ficar preso tanto tempo e que merecia uma oportunidade de esticar as pernas; Harry bem podia imaginar o Hagrid de treze anos tentando pôr uma coleira e uma guia no bicho, mas tinha igualmente certeza de que Hagrid jamais quisera matar alguém.
Chegou a desejar que não tivesse descoberto como trabalhar com o diário de Riddle.
Rony e Mione o fizeram repetir várias vezes o que vira, até ele ficar cheio de contar e cheio das conversas compridas e tortuosas que se seguiam à sua historia.
— Riddle pode ter apanhado a pessoa errada — disse Mione. — Talvez fosse outro o monstro que estava atacando as pessoas..
— Quantos monstros vocês acham que cabem aqui no castelo? — perguntou Rony abobado.
-Sempre soubemos que Hagrid foi expulso — disse Harry, infeliz. — E os ataques devem ter parado depois que o mandaram embora. Do contrário, Riddle não teria ganho um prêmio.
Rony tentou um ângulo diferente.
— Riddle se parece com o Percy, afinal quem pediu a ele para dedurar o Hagríd?
— Mas o monstro tinha matado alguém, Rony — lembrou Mione.
— E Riddle ia voltar para um orfanato de trouxas se fechassem Hogwarts — disse Harry. — Não posso culpá-lo por querer ficar aqui...
— Você encontrou o Hagrid na Travessa do Tranco, não foi, Harry?
— Ele estava comprando um repelente para lesmas carnívoras — respondeu Harry depressa.
Os três se calaram. Passado muito tempo Mione deu voz à pergunta mais cabeluda num tom hesitante.
— Vocês acham que devemos perguntar ao Hagrid o que aconteceu?
— Ia ser uma visita animada — disse Rony. — Olá, Hagrid. Conte para a gente, você andou soltando alguma coisa selvagem e peluda no castelo, ultimamente?
Por fim, eles resolveram não dizer nada a Hagrid a não ser que houvesse outro ataque e, como muitos e muitos dias se passaram sem sequer um sussurro da voz invisível, começaram a alimentar esperanças de que nunca precisariam perguntar a ele os motivos de sua expulsão. Fazia agora quase quatro meses desde que Justino e Nick Quase Sem Cabeça tinham sido petrificados, e quase todo mundo parecia pensar que o atacante, fosse quem fosse, tinha se retirado para sempre. Pirraça finalmente se cansara do seu refrão "Ah, Potter podre", Ernie Macmillan pediu certo dia a Harry, com muita educação, para lhe passar um balde de sapos saltitantes na aula de Herbologia, e em março várias mandrágoras deram uma festa de arromba na estufa três, o que deixou a Profª Sprout muito feliz.
— Na hora em que começarem a tentar se mudar para os vasos umas das outras então saberemos que estão completamente adultas — explicou ela a Harry.
— Então poderemos ressuscitar aqueles pobrezinhos na ala hospitalar.
Os alunos do segundo ano receberam algo novo em que pensar durante os feriados de Páscoa. Chegara à hora de escolher as matérias para o terceiro ano, um assunto que pelo menos Mione levou muito a sério.
— Pode afetar todo o nosso futuro — disse a Harry e Rony enquanto examinavam as listas das novas matérias, marcando-as com tiques.
— Eu só quero desistir de Poções — falou Harry .
— Não podemos — contrapôs Rony desanimado. — Continuamos com todas as matérias antigas ou eu teria descartado Defesa contra as Artes das trevas.
Mas essa é muito importante! — exclamou Mione chocada.
— Não do jeito que o Lockhart ensina — disse Rony. — Eu não aprendi nada com ele a não ser que é perigoso deixar diabretes soltos.
Neville Longbottom recebera cartas de todos os bruxos e bruxas da família, cada um deles lhe dando um conselho diferente sobre o que escolher. Confuso e preocupado, ele se sentou para ler as listas de matérias, com a língua de fora, perguntando às pessoas se achavam que Aritmancia parecia mais difícil do que o estudo das Runas Antigas. Dino Thomas que, como Harry, crescera entre trouxas, por fim fechou os olhos e ia apontando a varinha para a lista e escolhendo as matérias em que ela tocava. Mione não pediu conselho de ninguém, matriculou-se em todas.
Harry sorriu constrangido em pensar o que o tio Válter e a tia Petúnia diriam se ele tentasse discutir sua carreira de bruxo com os dois. Não que ele não recebesse nenhuma orientação:
Percy Weasley estava ansioso para partilhar com ele a experiência que tinha.
— Depende aonde você quer chegar Harry — disse. — Nunca é cedo demais para pensar no futuro, por isso eu recomendo Adivinhação. As pessoas dizem que Estudo dos Trouxas é moleza, e pessoalmente acho que os bruxos deviam ter uma compreensão total da comunidade não-mágica, particularmente se estão pensando em trabalhar em contato com eles, olhe só o meu pai, tem que tratar de assuntos dos trouxas o tempo todo.  Meu irmão Carlinhos sempre foi uma pessoa que gostou do ar livre, por isso se especializou na Criação de Criaturas Mágicas. Favoreça suas inclinações, Harry.
Mas a única coisa em que Harry se achava muito bom era no Quadribol. Por fim ele acabou escolhendo as mesmas matérias novas que Rony, achando que se fosse mal, pelo menos teria um amigo para ajudá-lo.
O próximo jogo da Grifinória seria contra a Lufa-Lufa. Wood insistia em fazer treinos todas as noites depois do jantar, de modo que Harry mal tinha tempo para mais nada, exceto o Quadribol e os deveres de casa. Entretanto, os treinos estavam mais amenos, ou pelo menos estavam mais secos e, na véspera do jogo de sábado, ele foi ao dormitório guardar a vassoura, sentindo que as chances da Grifinória para a taça de Quadribol nunca tinham sido maiores.
Mas sua animação não durou muito. No alto da escada para o dormitório, ele encontrou Neville Longbottom, que parecia transtornado.
— Harry, não sei quem fez aquilo, acabei de encontrar...
Olhando para Harry amedrontado, Neville abriu a porta.
O conteúdo do malão de Harry estava espalhado por todos os lados. Sua capa estava rasgada no chão. As roupas de cama tinham sido arrancadas, e a gaveta puxada do armário ao lado da cama, e seu conteúdo espalhado em cima do colchão.
Harry aproximou-se da cama, boquiaberto, pisando em cima de umas páginas soltas de Viagens com trasgos. Enquanto ele e Neville rearrumavam a cama, Rony, Dino e Simas entraram. Dino disse um palavrão em voz alta.
— Que aconteceu, Harry?
— Não faço idéia — disse Harry. Mas Rony examinava as vestes de Harry. Todos os bolsos tinham sido revirados.
— Alguém andou procurando alguma coisa — disse Rony. — Tem alguma coisa faltando?
Harry começou a apanhar as coisas e a atirá-las para dentro do malão. Somente quando ele atirou o último livro de Lockhart foi que se deu conta do que estava faltando.
— O diário de Riddle desapareceu — disse em voz baixa a Rony.
Harry indicou com a cabeça a porta do dormitório, e Rony o seguiu para fora. Juntos desceram correndo até a sala comunal da Grifinória, quase vazia àquela hora, e se reuniram a Mione, que estava sentada sozinha, lendo um livro chamado Runas Antigas sem Mistérios.
Mione ficou perplexa com as notícias.
— Mas... Só outro aluno da Grifinória poderia ter roubado, ninguém mais sabe a senha...
— Exatamente — disse Harry.
Eles acordaram na manhã seguinte com um sol radioso e uma brisa leve e fresca.
— Condições perfeitas para o Quadriboll — exclamou Wood, entusiasmado, à mesa da Grifinória, enchendo os pratos dos jogadores com ovos mexidos. -Harry, mexa-se, você precisa de um café da manhã decente.
Harry estivera observando a mesa da Grifinória, cheia de alunos, imaginando se o novo dono do diário de Riddlle estaria ali, bem diante dos seus olhos.
Mione andou insistindo que ele comunicasse o roubo, mas Harry não gostou da idéia. Teria que contar a um professor tudo que sabia sobre o diário, e quantas pessoas sabiam por que Hagrid fora expulso há cinqüenta anos? Não queria ser a pessoa a trazer tudo à tona de novo.
Quando saiu do Salão Principal com Rony e Mione para ir apanhar o equipamento de Quadribol, mais uma preocupação muito séria se somou à sua lista crescente.
Tinha acabado de pôr o pé na escadaria de mármore quando ouviu outra vez...
"Matar desta vez... deixe-me cortar.. Estraçalhar..”
Ele deu um grito alto e Rony e Mione saltaram para longe assustados.
— A voz! — disse Harry, espiando por cima do ombro. — Acabei de ouvi-la de novo, vocês não ouviram?
Rony sacudiu a cabeça, os olhos arregalados. Mione, porém, deu uma palmada na testa.
— Harry, acho que acabei de entender uma coisa! Tenho de ir até a biblioteca!
E, deixando os amigos, subiu as escadas correndo.
— Que é que ela entendeu? — perguntou Harry distraído, ainda olhando à volta, tentando descobrir de onde vinha a voz.
— Muito mais do que eu — disse Rony, sacudindo a cabeça.
— Mas por que ela tem de ir à biblioteca?
— Porque é isso que Mione faz — disse Rony sacudindo os ombros. — Quando tiver uma dúvida, vá à biblioteca.
Harry ficou parado, indeciso, tentando ouvir a voz novamente, mas os alunos agora vinham saindo do Salão Principal as suas costas, falando alto, dirigindo-se à porta da frente a caminho do campo de Quadribol.
— É melhor você ir andando — disse Rony. — São quase onze horas, o jogo...
Harry correu até a Torre da Grifinória, apanhou sua Nimbus 2000 e se juntou à multidão que atravessava os jardins, mas sua cabeça continuava no castelo com a voz invisível e, enquanto vestia o uniforme vermelho no vestiário, seu único consolo era que todo mundo estava lá fora para assistir ao jogo.
Os times entraram em campo sob aplausos estrondosos. Olivio Wood decolou para um vôo de aquecimento em volta das balizas; Madame Hooch lançou as bolas. Os jogadores da Lufa-Lufa, que jogavam de amarelo-canário, estavam amontoados num bolinho, discutindo táticas de última hora.
Harry ia montar a vassoura quando viu a Profª. McGonagall vir decidida em sua direção, quase correndo, com um enorme megafone púrpura na mão.
O coração de Harry sofreu um baque violento.
— O jogo foi cancelado — a Profª. McGonagall anunciou pelo megafone, dirigindo-se ao estádio. Ouviram-se vaias e gritos.
Olívio Wood, arrasado, pousou e correu para a professora sem desmontar da vassoura.
— Mas, professora! — gritou. — Temos que jogar, a taça, Grifinória...
McGonagall não lhe deu atenção e continuou a falar pelo megafone:
— Todos os alunos devem se dirigir às salas comunais de suas casas, onde os diretores das casas darão maiores informações. O mais rápido que puderem, por favor!
Então, baixou o megafone e chamou Harry.
— Potter, acho que é melhor você vir comigo...
Imaginando como é que ela poderia suspeitar dele desta vez, Harry viu Rony se separar da multidão que reclamava; correu para os dois que já iam a caminho do castelo. Para surpresa de Harry, a professora não fez objeção.
— É, talvez seja melhor você vir também, Weasley...
Alguns alunos que caminhavam perto deles reclamavam do cancelamento do jogo; outros pareciam preocupados. Harry e Rony acompanharam a Profª. McGonagall de volta à escola e subiram a escadaria de mármore. Mas não foram levados à sala de ninguém desta vez.
— Vai ser um pouco chocante para vocês — disse a Profª. McGonagall, num tom surpreendentemente gentil quando se aproximavam da enfermaria. — Houve mais um ataque... Mais um ataque duplo.
As entranhas de Harry deram uma terrível cambalhota. A professora abriu aporta e ele e Rony entraram.
Madame Pomfrey estava curvada sobre uma menina do quinto ano, de cabelos longos e crespos. Harry reconheceu a aluna da Corvinal a quem por acaso perguntaram onde ficava a sala da Sonserina. E na cama ao lado achava-se...
— Mione! — gemeu Rony.
Mione estava deitada absolutamente imóvel, os olhos abertos e vidrados.
— Elas foram encontradas perto da biblioteca — disse a Profª. McGonagall. — Suponho que nenhum dos dois tenha uma explicação para isto. Estava no chão ao lado delas...
Segurava um pequeno espelho circular.
Harry e Rony balançaram a cabeça, com os olhos fixos em Mione.
— Vou acompanhá-los de volta à Torre da Grifinoria — continuou a professora deprimida. — Tenho mesmo que falar com os alunos.
— Todos os alunos devem voltar à sala comunal de suas casas até as seis horas da tarde.  Nenhum aluno deve sair dos dormitórios depois dessa hora. Um professor os acompanhará a cada aula. Nenhum aluno deve usar o banheiro a não ser escoltado por um professor. Todos os treinos e jogos de Quadribol estão adiados. Não haverá mais atividades noturnas.
Os alunos da Grifinória aglomerados na sala comunal ouviram a professora em silêncio. Ela enrolou o pergaminho que acabara de ler e disse com a voz um tanto embargada:
— Não preciso acrescentar que raramente me senti tão aflita. É provável que fechem a escola a não ser que o autor desses ataques seja apanhado. Eu pediria a quem achar que talvez saiba alguma coisa que me procure.
Foi ela sair um tanto desajeitada pelo buraco do retrato e os alunos começarem a falar imediatamente.
— São dois alunos da Grifinória atacados, sem contar o nosso fantasma, um aluno da Corvinal e um da Lufa-Lufa — disse o amigo dos gêmeos Weasley, Lino Jordan, contando nos dedos. — Será que nenhum professor reparou que os alunos da Sonserina não foram tocados? Não é óbvio que essa coisa toda está vindo da Sonserina? O herdeiro de Slytherin, o monstro da Sonserina, por que é que eles não mandam embora todo o pessoal da Sonserina? — vociferou ele, em meio a acenos de concordância e aplausos.
Percy Weasley estava sentado em uma poltrona atrás de Lino, mas desta vez não parecia ansioso para dizer o que pensava. Parecia pálido e atordoado.
— Percy ficou em estado de choque — disse Jorge a Harry, baixinho. — Aquela menina da Corvinal, Penelope Clearwater, é monitora. Acho que ele não pensou que o monstro se atrevesse a atacar um monitor.
Mas Harry só estava ouvindo com metade da atenção. Não estava conseguindo se livrar da visão de Mione deitada na cama de hospital como se tivesse sido talhada em pedra. E se o culpado não fosse apanhado logo, o que o aguardava era uma vida com os Dursley. Tom Riddle entregara Hagrid porque teria que enfrentar um orfanato de trouxas se a escola fechasse.
Harry agora sabia exatamente o que ele sentira.
— Que é que vamos fazer? — perguntou Rony baixinho ao ouvido de Harry. — Você acha que eles suspeitam de Hagrid?
— Precisamos ir falar com ele — disse Harry decidindo-se. — Não posso acreditar que desta vez ele seja o culpado, mas se soltou o monstro da última vez saberá como entrar na Câmara Secreta, e isto é um começo.
— Mas McGonagall disse para ficarmos em nossa torre a não ser na hora das aulas...
— Acho — disse Harry, mais baixinho ainda — que está na hora de tirar outra vez da mala a velha capa do meu pai.
Harry herdara somente uma coisa do pai: uma longa capa de invisibilidade prateada. Era a única chance que tinham de sair escondidos da escola para visitar Hagrid, sem ninguém ficar sabendo. Assim, foram se deitar na hora de costume, esperaram até Neville, Dino e Simas pararem de discutir sobre a Câmara Secreta e irem finalmente dormir, então se levantaram, vestiram-se outra vez e jogaram a capa por cima dos dois.
A viagem pelos corredores escuros e desertos do castelo não foi um prazer. Harry, que perambulara pelo castelo à noite várias vezes antes, nunca os vira tão cheios depois do pôr-do-sol. Professores, monitores e fantasmas andavam pelos corredores aos pares, olhando tudo atentamente, à procura de alguma atividade incomum.
A capa da invisibilidade não os impedia de fazer barulho, e houve um momento particularmente tenso em que Rony deu uma topada a poucos metros do lugar onde Snape estava montando guarda. Felizmente, Snape espirrou quase ao mesmo tempo que Rony xingou. Foi com alivio que chegaram às portas de entrada e as abriram devagarinho.
Fazia uma noite clara e estrelada. Eles correram em direção às janelas iluminadas da casa de Hagrid e despiram a capa somente quando estavam à sua porta de entrada.
Segundos depois de terem batido, Hagrid escancarou a porta.
Eles deram de cara com um arco que o amigo apontava. Canino, o cão de caçar javalis, o acompanhava dando fortes latidos.
— Ah — exclamou ele, baixando a arma e encarando os meninos. — Que é que vocês estão fazendo aqui?
— Para que é isso? — perguntou Harry, ao entrarem, apontando para o arco.
— Nada... Nada... — murmurou Hagrid. — Estava esperando... Não faz mal... Sentem... Vou preparar um chá...
Ele parecia não saber muito bem o que estava fazendo. Quase apagou a lareira ao derramar água da chaleira e em seguida amassou o bule com um movimento nervoso da mão enorme.
— Você está bem, Hagrid? — perguntou Harry. — Soube do que aconteceu com a Mione?
— Ah, soube, soube, sim — respondeu Hagrid, com a voz ligeiramente falha.
Ele não parava de olhar nervoso para as janelas. Serviu aos meninos dois canecôes de água fervendo (esquecera-se de pôr chá na chaleira) e ia servindo uma fatia de bolo de frutas num prato quando ouviram uma forte batida na porta.
Hagrid deixou cair o bolo de frutas. Harry e Rony se entreolharam em pânico, mas logo se cobriram com a capa e se retiraram para um canto. Hagrid se certificou de que os garotos estavam escondidos, apanhou o arco e escancarou mais uma vez a porta.
— Boa-noite, Hagrid.
Era Dumbledore. Ele entrou, parecendo mortalmente sério e vinha acompanhado por um homem de aspecto muito esquisito.
O estranho tinha os cabelos grisalhos despenteados, uma expressão ansiosa e usava uma estranha combinação de roupas: terno de risca de giz, gravata vermelha, uma longa capa preta e botas roxas de bico fino. Sob o braço carregava um chapéu-coco cor de limão.
— É o chefe do papai! — cochichou Rony. — Cornélio Fudge, Ministro da Magia!
Harry deu uma forte cotovelada em Rony para fazê-lo calar-se.
Hagrid empalidecera e suava. Deixou-se cair em uma cadeira e olhava de Dumbledore para Cornélio Fudge.
— Problema sério, Hagrid — disse Fudge em tom seco. — Problema muito sério. Tive que vir. Quatro ataques em alunos nascidos trouxas. As coisas foram longe demais. O Ministério teve que agir.
— Eu nunca — disse Hagrid, olhando suplicante para Dumbledore. — O senhor sabe que eu nunca, Profº. Dumbledore...
— Quero que fique entendido, Cornélio, que Hagrid goza de minha inteira confiança — disse Dumbledore fechando a cara para Fudge.
— Olhe, Alvo — respondeu Fudge, constrangido. — A ficha de Hagrid depõe contra ele. O Ministério teve que fazer alguma coisa, o conselho diretor da escola entrou em contato...
— Contudo, Cornélio, continuo a afirmar que levar Hagrid não vai resolver nada — disse Dumbledore. Seus olhos azuis tinham uma intensidade que Harry nunca vira antes.
— Procure entender o meu ponto de vista — disse Fudge, manuseando o chapéu coco. — Estou sofrendo muita pressão. Precisam ver que estou fazendo alguma coisa. Se descobrirmos que não foi Hagrid, ele voltará e não se fala mais no assunto. Mas tenho que levá-lo. Tenho. Não estaria cumprindo o meu dever...
— Me levar? — perguntou Hagrid, começando a tremer. — Me levar aonde?
— Só por um tempo — disse Fudge sem encarar Hagrid nos olhos. — Não é um castigo, Hagrid, é mais uma precaução. Se outra pessoa for apanhada, você será solto com as nossas desculpas...
— Não para Azkaban? — lamentou Hagrid, rouco.
Antes que Fudge pudesse responder, ouviram outra batida forte na porta.
Dumbledore atendeu-a. Foi a vez de Harry levar uma cotovelada nas costelas; deixara escapar uma exclamação audível.
O Sr. Lúcio Malfoy entrou decidido na cabana de Hagrid, envolto em uma longa capa de viagem, com um sorriso frio e satisfeito. Canino começou a rosnar.
— Já está aqui, fudge — disse em tom de aprovação. — Muito bem...
— Que é que o senhor está fazendo aqui? — perguntou Hagrid furioso. — Saia da minha casa!
— Meu caro, por favor acredite em mim, não me dá nenhum prazer estar no seu... Hum... Você chama isso de casa?— disse Lúcio Malfoy, desdenhoso, correndo os olhos pela pequena cabana. — Simplesmente vim à escola e me disseram que o diretor se encontrava aqui.
— E o que era exatamente que você queria comigo, Lúcio? — perguntou Dumbledore. Falou com cortesia, mas a intensidade ainda encandecia os seus olhos azuis.
— É Lamentável, Dumbledore — disse Malfoy sem pressa, puxando um rolo de pergaminho —, mas os conselheiros acham que está na hora de você se retirar. Tenho aqui uma Ordem de Suspensão, com as doze assinaturas. Receio que o Conselho pense que você está perdendo o jeito. Quantos ataques houve até agora? Mais dois hoje à tarde, não foi? Nesse ritmo, não sobrarão alunos nascidos trouxas em Hogwarts, e todos sabemos que perda horrível isto seria para a escola.
— Ah, olhe aqui, Lúcio — disse Fudge, parecendo assustado —, Dumbledore suspenso, não, não, a última coisa que queremos neste momento...
— A nomeação, ou a suspensão de um diretor é assunto do Conselho, Fudge — disse o Sr. Malfoy suavemente. — E como Dumbledore não conseguiu fazer parar os ataques...
— Olhe aqui, Malfoy, se Dumbledore não consegue fazê-los parar — disse Fudge, cujo lábio superior estava úmido de suor —, eu pergunto, quem vai conseguir?
— Isto resta ver — disse o Sr. Malfoy com um sorriso desagradável. — Mas como todo o Conselho votou...
Hagrid levantou-se de um salto, a cabeça desgrenhada raspando o teto.
— E quantos você precisou ameaçar e chantagear para concordarem hein, Malfoy? — vociferou.
— Ai, ai, ai, sabe, esse seu mau gênio ainda vai lhe causar problemas um dia desses, Hagrid — disse o Sr. Malfoy. — Eu aconselharia você a não gritar assim com os guardas de Azkaban, eles não vão gostar nadinha.
— Você não pode afastar Dumbledore! — gritou Hagrid, fazendo Canino se agachar e choramingar no cesto de dormir.
— Afaste ele, e os alunos nascidos trouxas não terão a menor chance. Vai haver mortes em seguida.
— Acalme-se, Hagrid — ordenou Dumbledore. Virou-se então para Lúcio Malfoy. — Se o Conselho quer que eu me afaste, Lúcio, naturalmente eu vou obedecer...
— Mas... — gaguejou Fudge.
— Não!— disse Hagrid com raiva.
Dumbledore não tirara seus olhos azuis cintilantes dos olhos frios e cinzentos de Lúcio Malfoy.
— Porém — continuou ele, falando muito lenta e claramente de modo que ninguém perdesse uma só palavra —, você vai descobrir que só terei realmente deixado a escola quando ninguém mais aqui for leal a mim. Você também vai descobrir que Hogwarts sempre ajudará aqueles que a ela recorrerem.
Por um segundo Harry teve quase certeza de que os olhos de Dumbledore piscaram em direção ao canto em que ele e Rony estavam escondidos.
— Admiráveis sentimentos — disse Malfoy fazendo uma reverência. — Todos sentiremos falta do seu... Hum... Modo muito pessoal de dirigir as coisas, Alvo, e só espero que o seu sucessor consiga impedir... Ah... Matanças.
E dirigiu-se à porta da cabana, abriu-a, fez um gesto largo indicando a porta para Dumbledore.
Fudge, manuseando seu chapéu-coco, esperou Hagrid passar à sua frente, mas Hagrid continuou firme, inspirou profundamente e disse com clareza:
— Se alguém quiser descobrir alguma coisa, é só seguir as aranhas. Elas indicariam o caminho certo!  É só o que digo.
Fudge olhou-o muito admirado.
— Tudo bem, estou indo — disse Hagrid, vestindo o casacão de pele de toupeira. Mas quando ia saindo para acompanhar Fudge, ele parou outra vez e disse em voz alta: — Alguém vai ter que dar comida a Canino enquanto eu estiver fora.
A porta se fechou com força e Rony tirou a capa da invisibilidade.
— Estamos enrascados agora — disse ele rouco. — Dumbledore foi-se embora. Seria melhor que fechassem a escola hoje à noite.  Com a saída dele haverá um ataque por dia.
Canino começou a uivar, arranhando a porta fechada.






CAPÍTULO QUINZE
Aragogue

 O verão espalhou-se lentamente pelos jardins que cercavam o castelo; o céu e o lago, os dois, ficaram azul-clarinhos, e flores do tamanho de repolhos se abriram repentinamente nas estufas. Mas sem a visão de Hagrid caminhando pelos jardins com Canino nos calcanhares, a paisagem vista das janelas do castelo não parecia normal para Harry; aliás, era pouco melhor do que o interior do castelo, onde as coisas pareciam terrivelmente erradas.
Harry e Rony tentaram visitar Mione, mas as visitas à ala hospitalar agora não eram permitidas.
— Não queremos mais nos arriscar — disse Madame Pomfrey, com severidade, por uma fresta na porta da enfermaria. — Não, sinto muito, há grande possibilidade de o atacante voltar para liquidar os pacientes...
Com a saída de Dumbledore, o medo se espalhou como nunca antes, de modo que o sol que aquecia as paredes do castelo por fora parecia se deter nas janelas de caixilhos. Quase não se via na escola um rosto que não parecesse preocupado e tenso, e qualquer risada que ecoasse pelos corredores soava aguda e artificial e era rapidamente abafada.
Harry repetia constantemente para si mesmo as ultimas palavras de Dumbledore "Só terei realmente deixado a escola quando ninguém mais aqui for leal a mim... Hogwarts sempre ajudará aqueles que a ela recorrerem”. Mas de que adiantavam essas palavras?
A quem exatamente pediriam ajuda quando todos estavam tão confusos e apavorados quanto eles?
A dica de Hagrid sobre as aranhas era muito mais fácil de entender — o problema era que não parecia ter restado uma única aranha no castelo para se seguir.
Harry procurava por todo lado aonde ia, com a ajuda (um tanto relutante) de Rony. Eles eram atrapalhados, é claro, pelo fato de não poderem andar sozinhos, tinham que se deslocar pelo castelo com um grupo de alunos da Grifinória. A maioria dos seus colegas parecia satisfeita em ser acompanhada de aula em aula por professores, mas Harry achava isso muito aborrecido.
Havia, porém uma pessoa que parecia estar se divertindo muito com a atmosfera de terror e suspeita. Draco Malfoy andava se pavoneando pela escola como se tivesse acabado de ser nomeado monitor-chefe. Harry não entendeu por que andava tão satisfeito até a aula de Poções, duas semanas depois de Dumbledore e Hagrid terem ido embora, quando, sentado atrás de Malfoy, Harry ouviu-o se gabar para Crabbe e Goyle.
— Eu sempre achei que meu pai era a pessoa que iria se livrar de Dumbledore — disse sem se preocupar em manter a voz baixa. — Falei com vocês que ele achava que Dumbledore era o pior diretor que a escola já tinha tido. Talvez a gente tenha um diretor decente agora. Alguém que não queira manter a Câmara Secreta fechada. McGonagall não vai durar muito tempo, ela só está substituindo...
Snape passou por Harry, sem fazer comentários sobre a cadeira e o caldeirão vazios de Mione.
— Professor — perguntou Draco em voz alta. — Professor, por que é que o senhor não se candidata ao lugar de diretor?
— Vamos, Malfoy — respondeu Snape, embora não conseguisse refrear um sorrisinho. — O Profº. Dumbledore foi apenas suspenso pelo Conselho. Quero crer que estará de volta conosco logo, logo.
— É claro — disse Draco, rindo-se. — Acho que o senhor teria o voto do meu pai, professor, se quisesse se candidatar, vou dizer ao meu pai que o senhor é o melhor professor que temos, professor...
Snape sorriu enquanto andava pela masmorra, felizmente sem ter visto que Simas Finnigan fingia vomitar no caldeirão.
— Fico surpreso que os sangues-ruins não tenham feito as malas — continuou Draco. — Aposto cinco galeões que o próximo vai morrer. Pena que não tenha sido a Granger...
A sineta tocou nesse instante, o que foi uma sorte; ao ouvir as últimas palavras de Draco, Rony tinha saltado do banquinho e, na agitação para reunirem mochilas e livros, seus esforços para se atracar com Draco passaram despercebidos.
— Me deixe agarrar ele — rosnou Rony, enquanto Harry e Dino o seguravam pelos braços. — Nem estou ligando, não preciso da minha varinha, vou matar ele com as mãos...
— Vamos depressa, tenho de levá-los à aula de Herbologia — disse rispidamente Snape à classe e logo saíram, com Harry, Rony e Dino fechando a fila, Rony ainda tentando se desvencilhar. Os amigos só acharam que era seguro soltá-lo quando Snape já levara a turma para fora do castelo e estavam atravessando a horta em direção às estufas.
A aula de Herbologia foi muito tranqüila; faltavam agora dois alunos na classe: Justino e Mione.
A Profª. Sprout mandou todos podarem figueiras cáusticas da Abissínia. Harry foi despejar uma braçada de galhos mortos na composteira e deu de cara com Ernie Macmillan. Ernie tomou fôlego e disse, muito formal:
— Eu só quero dizer, Harry, que lamento muito ter suspeitado de você. Sei que você nunca atacaria Mione Granger e peço desculpas por tudo que disse. Estamos todos no mesmo barco agora, e, bom...
Ele estendeu a mão gorducha e Harry a apertou.
Ernie e sua amiga Ana vieram trabalhar na mesma figueira que Harry e Rony.
— Aquele tal de Draco Malfoy — disse Ernie quebrando galhinhos secos — parece muito satisfeito com tudo isso, não é? Sabe, eu acho que ele bem poderia ser o herdeiro de Slytherin.
— Você é tão inteligente! — disse Rony, que pelo jeito não perdoara Ernie tão depressa quanto Harry.
— Você acha que foi Malfoy, Harry? — perguntou Ernie.
— Não — respondeu Harry com tanta firmeza que Ernie e Ana arregalaram os olhos.
Segundos depois. Harry viu uma coisa.
Várias aranhas de bom tamanho estavam andando pelo chão do lado de fora da vidraça, deslocando-se numa estranha linha reta como se tomassem o caminho mais curto para ir a um encontro combinado. Harry bateu na mão de Rony com a tesoura de poda.
— Ai! Que é que você...
Harry apontou para as aranhas, seguindo o trajeto que faziam com os olhos apertados contra o sol.
— Ah, é — exclamou Rony, tentando parecer satisfeito, sem conseguir. — Mas não podemos segui-las agora...
Ernie e Ana ouviam curiosos.
Os olhos de Harry se apertaram e ele focalizou as aranhas.
Se elas prosseguissem naquele curso, não havia dúvida onde iriam parar.
— Parece que estão indo para a Floresta Proibida...
E Rony pareceu ainda mais infeliz com essa idéia.
Ao fim da aula a Profª. Sprout acompanhou os alunos ate a aula de Defesa Contra as Artes das Trevas. Harry e Rony deixaram-se ficar para trás para poder falar sem serem ouvidos.
— Teremos que usar a capa da invisibilidade outra vez — disse Harry a Rony. — Podemos levar Canino conosco. Ele está acostumado a entrar na floresta com Hagrid, talvez possa ajudar.
— Certo — concordou Rony, que revirava a varinha nos dedos, nervoso. — Hum... Não dizem que tem... Não dizem que tem lobisomens na floresta? — acrescentou quando se sentavam nos lugares de sempre, no fundo da classe de Lockhart.
Preferindo não responder àquela pergunta, Harry disse:
— Mas lá também tem coisas boas. Os centauros são legais, e os unicórnios...
Rony nunca estivera na Floresta Proibida antes. Harry entrara somente uma vez e alimentava esperanças de não repetir a experiência.
Lockhart entrou aos saltos na sala, e a classe ficou olhando para ele. Todos os outros professores na escola pareciam mais sérios do que o normal, mas Lockhart estava, no mínimo, animado e confiante.
— Vamos, garotos — exclamou, sorrindo para todos os lados. — Por que essas caras tristes?
Os garotos trocaram olhares exasperados, mas ninguém respondeu.
— Vocês não percebem — disse Lockhatt, falando lentamente, como se todos fossem um pouco retardados — que o perigo passou! O culpado foi levado embora..
— Quem disse? — perguntou Dino em voz alta.
— Meu caro rapaz, o Ministro da Magia não teria levado Hagrid se não estivesse cem por cento convencido de que era culpado — disse Lockhart, num tom de voz de alguém que explica que um mais um são dois.
— Ah, teria levado, sim — disse Rony, ainda mais alto do que Dino.
— Me lisonjeia dizer que sei um tantinho mais sobre a prisão de Hagrid do que o senhor,  Weasley — disse Lockhart num tom presunçoso.
Rony começou a dizer que achava que não, mas parou no meio da frase quando Harry o chutou com força por baixo da carteira.
— Não estávamos lá, lembra? — resmungou Harry. Mas a animação desagradável de Lockhart, suas insinuações de que sempre achara que Hagrid não prestava, sua confiança de que a história toda agora chegara ao fim, irritou tanto Harry que ele teve ganas de atirar Como se Divertir com Vampiros bem no meio da cara boba do professor. Em vez disso contentou-se em rabiscar um bilhete para Rony:  Vamos hoje à noite.
Rony leu o bilhete, engoliu com força e olhou de esguelha para a carteira vazia em que Mione normalmente se sentava. A visão pareceu fortalecer sua decisão, e ele concordou com um aceno de cabeça.
A sala comunal da Grifinória andava sempre muito cheia ultimamente, porque a partir das seis horas os alunos da casa não podiam ir a lugar algum. E, também, tinham muito o que conversar, por isso a sala só se esvaziava depois da meia-noite.
Harry foi buscar a capa da invisibilidade no malão logo depois do jantar e passou a noite sentado em cima dela, esperando a sala se esvaziar. Fred e Jorge desafiaram Harry e Rony para umas partidas de snap explosivo, e Gina se sentou para apreciar, muito quieta na cadeira que Hermione geralmente usava. Os dois amigos perdiam todas as partidas de propósito, tentando terminar o jogo depressa, mas mesmo assim, já era mais de meia-noite quando Fred, Jorge e Gina finalmente foram se deitar.
Harry e Rony esperaram até ouvir os ruídos distantes das portas dos dormitórios se fechando antes de apanhar a capa, atirá-la sobre seus corpos e sair pelo buraco do retrato.
Foi outra travessia difícil do castelo, evitando esbarrar nos professores. Finalmente chegaram ao saguão de entrada, puxaram o trinco das portas de carvalho, esgueiraram-se entre as duas folhas tentando impedir que elas rangessem e saíram para os jardins banhados de luar. 
— Claro — disse Rony abruptamente quando atravessavam o gramado —, podemos chegar na floresta e descobrir que não há nada para seguir. Aquelas aranhas talvez nem estivessem indo para lá. Sei que parecia que se deslocavam naquela direção geral, mas...
A voz dele foi emudecendo cheia de esperança.
Os garotos chegavam à casa de Hagrid, que parecia triste e pobre com as janelas às escuras. Quando Harry empurrou a porta, Canino ficou louco de alegria de vê-los. Preocupados que ele pudesse acordar todo mundo no castelo com seus latidos fortes e ressonantes, eles lhe deram quadradinhos de chocolate, que grudava os maxilares, de uma lata em cima do console da lareira.
Harry deixou a capa da invisibilidade em cima da mesa de Hagrid. Não precisariam dela na floresta escura como breu.
— Vamos, Canino, vamos dar um passeio — disse Harry dando palmadinhas na perna, e Canino saiu de casa dando saltos de felicidade atrás deles, correu para a orla da floresta e levantou a perna contra um enorme sicomoro.
Harry puxou a varinha, murmurou "Lumos!" e brilhou uma luzinha na ponta, suficiente para deixá-los ver o caminho à procura das aranhas.
— Bem pensado — disse Rony. — Eu acenderia a minha também, mas você sabe, provavelmente iria explodir ou fazer outra maluquice qualquer..
Harry bateu no ombro de Rony, apontando para o capim. Duas aranhas solitárias corriam para longe da luz da varinha procurando a sombra das árvores.
— Muito bem — suspirou Rony resignado com o pior. Estou pronto. Vamos.
Então, com Canino correndo à volta, cheirando raízes e folhas de árvores, eles se embrenharam na floresta. Orientados pela luz da varinha de Harry, seguiram o fluxo constante de aranhas que iam pelo caminho. Seguiram-no por uns vinte minutos, sem falar, procurando ouvir outros ruídos que não fossem os dos gravetos estalando ou das folhas rumorejando. Então, quando o arvoredo se tornou mais denso que nunca, de modo que já não avistavam as estrelas no alto, e a varinha de Harry brilhava solitária num mar de trevas, eles viram as aranhas que os guiavam abandonarem o caminho.
Harry parou, tentando ver onde as aranhas estavam indo, mas tudo fora do seu pequeno círculo de luz estava escuríssimo. Ele nunca se embrenhara tão fundo na floresta. Lembrava-se vivamente de Hagrid aconselhando-o a não se afastar do caminho da floresta da última vez que estivera ali. Mas o guarda-caça se achava a quilômetros de distância, provavelmente sentado em uma cela de Azkaban, e também lhe dissera para seguir as aranhas.
Alguma coisa úmida encostou na mão de Harry, e ele deu um pulo para trás, esmagando o pé de Rony, mas era apenas o nariz de Canino.
— Que é que você acha? — perguntou Harry a Rony, cujos olhos ele mal conseguia vislumbrar, refletindo a luz de sua varinha.
— Já chegamos até aqui — disse Rony.
Então os dois acompanharam as sombras velozes das aranhas entrando pelo meio das árvores. Não podiam mais andar muito depressa; havia raízes e tocos de árvores no caminho, pouco visíveis na escuridão quase total. Harry sentia o hálito quente de Canino em sua mão. Mais de uma vez tiveram que parar para que Harry pudesse se agachar procurando as aranhas.
Caminharam pelo que pareceu pelo menos meia hora, as vestes agarrando nos galhos baixos e espinheiros. Passado algum tempo, repararam que o chão parecia estar descendo, embora o arvoredo estivesse mais denso que nunca.
Então Canino soltou de repente um latido que ecoou por todos os lados, fazendo Harry e Rony darem um pulo de fazer a alma se soltar do corpo.
— Que foi? — perguntou Rony alto, olhando a escuridão à volta e segurando o cotovelo de Harry com força.
— Tem alguma coisa se mexendo ali adiante — sussurrou Harry. — Escute... Parece uma coisa grande...
Eles escutaram. A uma certa distância para a direita, a coisa grande estava partindo galhos à medida que abria caminho por entre as árvores.
— Ah, não — exclamou Rony. — Ah, não, ah, não, ah...
— Cale a boca — mandou Harry muito nervoso. — A coisa vai ouvir você.
— Me ouvir? — exclamou Rony numa voz estranhamente aguda. — Ela já ouviu o Canino!
A escuridão parecia estar empurrando para dentro das órbitas dos olhos deles enquanto aguardavam aterrorizados. Ouviram um ronco esquisito e em seguida o silêncio.
— Que acha que ela está fazendo? — perguntou Harry.
— Provavelmente está se preparando para atacar.
Os dois esperaram, tremendo, mal atrevendo a se mexer.
— Você acha que foi embora? — cochichou Harry.
— Sei lá...
Então, para a direita, eles viram um clarão repentino tão intenso, na escuridão, que os dois ergueram as mãos para proteger os olhos. Canino latiu e tentou correr, mas ficou preso num emaranhado de espinhos e latiu ainda mais alto.
— Harry! — gritou Rony, a voz esganiçando de alivio. — Harry é o nosso carro!
— Ande!
Harry acompanhou o amigo como pôde em direção à luz, esbarrando e tropeçando nas coisas e um instante depois saíram numa clareira.
O carro do Sr. Weasley estava parado, vazio, no meio de um círculo de árvores grossas sob uma ramagem densa, os faróis acesos. Quando Rony avançou boquiaberto, ele foi ao encontro do garoto, exatamente como um canzarrão turquesa cumprimentando o dono.
— Estava aqui o tempo todo! — disse Rony encantado, andando à volta do carro. — Olhe só para ele. A floresta fez ele virar selvagem...
As laterais do carro estavam arranhadas e sujas de lama. Pelo jeito ele passara a rodar na floresta sozinho. Canino pareceu não gostar nada do carro; ficou colado em Harry, que sentia o cão tremer. A respiração mais calma outra vez, Harry guardou a varinha nas vestes.
— E nós achamos que ele ia nos atacar! — disse Rony, apoiando-se no carro e lhe dando palmadinhas. — Fiquei muito tempo imaginando onde teria sumido!
Harry apurou a vista à procura de sinais de aranhas no chão iluminado, mas todas fugiram da claridade dos faróis.
— Perdemos a pista. Vem, vamos tentar encontrá-las.
Rony ficou calado. Nem se mexeu. Tinha os olhos fixos em um ponto a uns três metros acima do chão da floresta, logo atrás de Harry. Seu rosto estava lívido de terror.
Harry nem teve tempo de se virar. Ouviu um som estalado e alto e de repente sentiu uma coisa comprida e peluda agarrá-lo pela cintura e erguê-lo do chão, deixando-o de cara para baixo. Debatendo-se cheio de terror, ele ouviu o mesmo som e viu as pernas de Rony abandonarem o chão, também, e Canino choramingar e uivar — no instante seguinte, ele estava sendo arrebatado para o meio das árvores escuras.
A cabeça pendurada, Harry viu que a coisa que o segurava andava sobre seis pernas imensamente compridas e peludas, as duas dianteiras agarravam-no com firmeza sob um par de pinças pretas e reluzentes. Atrás, ele ouvia outro bicho igual, sem dúvida carregando Rony. Estavam entrando no coração da floresta. Harry ouvia Canino lutando para se libertar de um terceiro monstro, ganindo alto, mas Harry não poderia ter berrado nem se tivesse querido; parecia ter deixado a voz no carro lá na clareira.
Ele nunca soube quanto tempo ficou nas garras do bicho; só soube que de repente a escuridão diminuiu o suficiente para deixá-lo ver que o chão coberto de folhas agora estava pululando de aranhas. Esticou o pescoço para o lado e percebeu que tinham chegado à borda de uma vasta depressão, uma depressão que fora desmatada, de modo que as estrelas iluminaram claramente a pior cena que ele jamais vira.
Aranhas, aranhinhas como aquelas que cobriam as folhas embaixo. Aranhas do tamanho de cavalos, com oito olhos, oito pernas, pretas, peludas, gigantescas.
O maciço espécime que carregava Harry desceu uma encosta íngreme em direção a uma teia enevoada em forma de cúpula, bem no meio da depressão, enquanto suas companheiras acorriam de todos os lados, batendo as pinças excitadas à vista do carregamento.
Harry caiu no chão de quatro quando a aranha o soltou. Rony e Canino caíram com um baque surdo ao lado dele. Canino não uivava mais, encolhia-se em silêncio onde caíra. Rony era a imagem exata do que Harry sentia. Tinha a boca arreganhada numa espécie de grito silencioso, e seus olhos saltavam das órbitas.
O garoto de repente percebeu que a aranha que o soltara estava falando alguma coisa.
Fora difícil entender, porque ela batia as pinças a cada palavra.
— Aragogue! — a aranha chamou. — Aragogue!
E do meio da teia enevoada em forma de cúpula, emergiu lentamente uma aranha do tamanho de um filhote de elefante. Havia fios cinzentos na pelagem do seu corpo e nas pernas negras, e cada olho, em sua feia cabeça provida de pinças, era leitoso. A aranha era cega.
— Que é? — disse, batendo rapidamente as pinças.
— Homens — bateu a aranha que apanhara Harry.
— É Hagrid? — perguntou a aranha aproximando-se, os oito olhos leitosos movendo-se vagamente.
— Estranhos — bateu a aranha que trouxera Rony.
— Mate-os — bateu Aragogue preocupada. — Eu estava dormindo...
— Somos amigos de Hagrid — gritou Harry. Seu coração parecia ter saltado do peito e ido bater na garganta.
Clique, clique, clique fizeram as pinças das aranhas por toda a depressão.
Aragogue parou.
— Hagrid nunca mandou homens à depressão antes — disse lentamente.
— Hagrid está enrascado — disse Harry respirando muito rápido. — Foi por isso que viemos.
— Enrascado? — exclamou a aranha idosa, e Harry pensou ter sentido preocupação no clique das pinças. — Mas por que o mandou?
Harry pensou em se levantar, mas decidiu o contrário; achou que as pernas não o agüentariam. Então falou do chão, o mais calmo que pôde.
— Na escola acham que Hagrid andou fazendo uma... Uma coisa com os alunos. Levaram ele para Azkaban.
Aragogue bateu as pinças furiosamente, e a toda volta da depressão o som foi repetido pela multidão de aranhas; era como um aplauso, exceto que, em geral, aplausos não faziam Harry sentir náuseas de medo.
— Mas isso foi há anos — disse Aragogue preocupada. — Anos e anos atrás. Lembro-me muito bem. Foi por isso que o fizeram sair da escola. Acreditaram que eu era o monstro que morava na chamada Câmara Secreta. Acharam que Hagrid tinha aberto a Câmara e me libertado.
— E você... Você não veio da Câmara Secreta? — perguntou Harry, que sentia um suor frio na testa.
— Eu! — exclamou Aragogue, batendo as pinças zangada. — Eu não nasci no castelo. Vim de uma terra distante. Um viajante me deu de presente a Hagrid quando eu ainda estava no ovo. Hagrid era só um garoto, mas cuidou de mim, me escondeu num armário do castelo, me alimentou com restos da mesa. Hagrid é um bom amigo e um bom homem. Quando fui descoberta e responsabilizada pela morte da garota, ele me protegeu. Tenho vivido aqui na floresta desde então, onde Hagrid ainda me visita. Ele até me arranjou uma esposa, Mosague, e você está vendo como a nossa família cresceu, tudo graças a bondade de Hagrid...
Harry reuniu o que restava de sua coragem.
— Então você nunca... Nunca atacou ninguém?
— Nunca — falou rouca a aranha. — Teria sido o meu instinto, mas por respeito a Hagrid, eu nunca fiz mal a um ser humano. Não conheço parte alguma do castelo a não ser o armário em que cresci. A nossa espécie gosta do escuro e do silêncio...
— Mas então... Você sabe o que matou aquela garota? — perguntou Harry. — Porque a coisa que matou está de volta atacando pessoas outra vez...
Suas palavras foram abafadas por uma eclosão de cliques e o ruído de muitas pernas longas a se agitar com raiva; grandes sombras escuras moveram-se a toda volta.
— A coisa que mora no castelo — disse Aragogue — é um bicho que nós aranhas tememos mais do que qualquer outro. Lembro-me muito bem como supliquei a Hagrid que me deixasse ir embora, quando senti a fera rondando pela escola.
— O que é? — perguntou Harry pressuroso.
Mais cliques altos, mais movimentos; as aranhas pareciam estar fechando o cerco.
— Nós não falamos nisso! — disse Aragogue com rispidez. — Não mencionamos seu nome! Eu nunca disse nem a Hagrid o nome daquele temível bicho, embora ele tenha me perguntado muitas vezes.
Harry não quis insistir no assunto, não com as aranhas se aproximando por todos os lados.
Aragogue parecia ter-se cansado de falar. Estava recuando lentamente para sua teia em forma de cúpula, mas as outras aranhas continuaram a se aproximar devagarinho de Harry e Rony.
— Bem, então vamos embora — falou Harry, desesperado, a Aragogue, ouvindo as folhas farfalharem às suas costas.
— Embora? — repetiu Aragogue lentamente. — Acho que não...
— Mas... Mas...
— Meus filhos e minhas filhas não fazem mal a Hagrid, porque eu assim ordeno.  Mas não posso negar a eles carne fresca, quando ela entra com tanta boa vontade em nosso ninho.  Adeus, amigo de Hagrid.
Harry virou-se depressa. A poucos passos, erguendo-se acima dele, havia uma parede maciça de aranhas, dando cliques, os muitos olhos brilhando nas cabeças feias.
Mesmo enquanto pegava a varinha, Harry percebeu que não ia adiantar. Havia aranhas demais, mas ao tentar se levantar, pronto para morrer lutando, ouviu uma nota alta e longa, e um clarão de luz atravessou a depressão.
O carro do Sr. Weasley roncou encosta abaixo, os faróis acesos, a buzina tocando, derrubando aranhas para os lados; várias foram atiradas de costas, as múltiplas pernas sacudindo no ar. O carro parou cantando os pneus diante dos garotos e as portas se abriram.
— Apanhe o Canino! — gritou Harry, mergulhando no banco da frente; Rony agarrou o cão pela barriga e atirou-o, ganindo, no banco de trás, as portas se fecharam.
Rony nem tocou no acelerador, pois o carro não precisou disso; o motor roncou e eles partiram, atropelando mais aranhas. Subiram a encosta a toda velocidade, saíram da depressão e logo estavam correndo pela floresta, os ramos fustigando as janelas do carro enquanto ele rodava com inteligência pelos vãos mais largos, seguindo um caminho que obviamente conhecia.
Harry olhou de esguelha para Rony. A boca do amigo continuava aberta num grito silencioso, mas seus olhos não estavam mais arregalados.
— Você está bem?
Rony olhava fixo para frente, incapaz de responder.
Eles rodaram pelo mato rasteiro, Canino uivando alto no banco de trás, e Harry viu o espelho lateral se partir ao tirarem um fino de um grande carvalho.
Depois de dez minutos de estrépito e saculejões, as árvores foram se espaçando e Harry pôde novamente ver pedaços do céu.
O carro parou tão de súbito que eles quase saíram pelo pára-brisa. Tinham chegado à orla da floresta. Canino atirou-se contra a janela tal era a sua ansiedade para sair e quando Harry abriu a porta, ele disparou por entre as árvores para a casa de Hagrid, o rabo entre as pernas. Harry desceu também e, passado pouco mais de um minuto, Rony pareceu recuperar a sensibilidade nas pernas e o seguiu, ainda de pescoço duro e olhar fixo. Harry deu uma palmadinha de agradecimento no carro enquanto ele dava marcha a ré na floresta e desaparecia de vista.
Harry voltou à cabana de Hagrid para apanhar a capa da invisibilidade. Encontrou Canino tremendo debaixo de um cobertor no seu cesto. Quando Harry saiu de novo, encontrou Rony vomitando violentamente na horta de abóboras.
— Siga as aranhas — disse Rony, fraco, limpando a boca na manga. — Não vou perdoar o Hagrid nunca. Temos sorte de estar vivos.
— Aposto como ele pensou que Aragogue não faria mal a amigos dele.
— Este é exatamente o problema de Hagrid! — retrucou Rony, dando murros na parede da cabana. — Ele sempre acha que os monstros não são maus por natureza, e olhe onde é que ele foi parar! Numa cela em Azkaban! — Rony tremia sem parar agora. — Para que foi que ele nos mandou lá? Que foi que descobrimos? Eu gostaria de saber.
— Que Hagrid nunca abriu a Câmara Secreta — disse Harry, atirando a capa sobre Rony e cutucando-o no braço para fazê-lo andar. — Ele era inocente.
Rony bufou. Evidentemente, criar Aragogue em um armário não correspondia à idéia que ele fazia de ser inocente.
Quando o castelo surgiu mais próximo, Harry ajeitou a capa para ter certeza de que os pés dos dois estavam escondidos, depois entreabriu as portas de entrada, que sempre rangiam. Atravessaram cautelosamente o saguão de entrada e subiram a escada de mármore, prendendo a respiração ao passar pelos corredores que as sentinelas vigilantes percorriam. Finalmente alcançaram a segurança da sala comunal da Grifinória, onde o fogo da lareira se consumira até virar uma cinza luminosa. Tiraram a capa e subiram a escada em caracol para o dormitório.
Rony caiu na cama sem se dar o trabalho de tirar a roupa.
Harry, porém, não sentia sono. Sentou-se na borda de sua cama de colunas, pensando em tudo que Aragogue dissera.
A coisa que se escondia em algum lugar do castelo, pensou, parecia uma espécie de monstro Voldemort — nem mesmo outros monstros gostavam de nomeá-lo. Mas ele e Rony não estavam nem perto de descobrir o que era, nem como petrificava suas vítimas. Até mesmo Hagrid jamais soubera o que havia na Câmara Secreta.
Harry puxou as pernas para cima da cama e se recostou nos travesseiros, espiando a lua brilhar para ele através da janela da torre.
Não conseguia ver o que mais poderiam fazer. Tinha encontrado becos sem saída por todos os lados. Riddle apanhara a pessoa errada, o herdeiro de Slytherin escapara, e ninguém saberia dizer se era a mesma pessoa ou outra diferente, que abrira a Câmara desta vez. Não havia mais ninguém a quem perguntar. Harry ficou deitado, ainda pensando no que Aragogue dissera.
O sono vinha chegando quando o que lhe pareceu a ultimissima esperança lhe veio à cabeça e ele de repente se sentou na cama.
— Rony — sibilou no escuro — Rony...
O amigo acordou com um ganido como o de Canino, correu os olhos arregalados à volta e viu Harry.
— Rony, aquela garota que morreu.  Aragogue disse que ela foi encontrada no banheiro — falou Harry sem dar atenção aos roncos fungados de Nevillle que vinham de um canto. — E se ela nunca saiu do banheiro? E se ela continua lá?
Rony esfregou os olhos, franzindo a cara para a lua. E então ele também entendeu.
— Você não acha que... Não a Murta Que Geme?


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