terça-feira, 7 de junho de 2011

Lua Nova, Capítulos 1 ao 6

1. FESTA 

Eu tinha noventa e nove por cento de certeza de que eu estava sonhando. Os motivos para minha certeza eram que, primeiro, eu estava de pé em um raio brilhante de sol – o sol claro e ofuscante que nunca luzia em minha nova cidade chuvosa, Forks, no estado de Washington – e, segundo, eu olhava minha avó Marie. Vovó morrera havia seis anos, então era um aprova concreta da teoria do sonho. Minha avó não mudara muito; seu rosto estava exatamente igual ao que eu lembrava. A pele era macia e murcha, dobrando-se em centenas de pequenas rugas que pendiam delicadas. Como um damasco seco, mas com uma nuvem de cabelo branco e espesso se destacando em volta dele. Nossas bocas – a dela com rugas ressecadas – se estendiam no mesmo meio sorriso de surpresa, exatamente ao mesmo tempo. Aparentemente, ela também não esperava me ver. Eu estava prestes a lhe fazer uma pergunta; tinha tantas – O que ela estava fazendo ali, no meu sonho? O que ela andara fazendo nos últimos seis anos? Vovô estava bem, e eles se encontraram, onde quer que estivessem? –, mas ela abriu a boca quando tentei falar, então parei para permitir que ela falasse primeiro. Ela fez uma pausa também e depois nós duas sorrimos com o pequeno embaraço. “Bella?” Não era vovó que chamava meu nome, e nós duas nos viramos para ver quem se unira a nossa reuniãozinha. Não precisava olhar para saber quem era; aquela era uma voz que eu reconheceria em qualquer lugar – reconheceria e reagiria a ela, quer estivesse acordada ou dormindo... Ou até morta, posso apostar. A voz pela qual eu pisaria em brasas – ou, sendo menos dramática, pela qual eu chapinharia na lama em cada dia de chuva fria e interminável. Edward.
Embora eu sempre ficasse emocionada ao vê-lo – consciente ou não –, e embora eu quase tivesse certeza de que era um sonho,
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entrei em pânico enquanto Edward se dirigia a nós sob o sol reluzente. Entrei em pânico porque vovó não sabia que eu estava apaixonada por um vampiro – ninguém sabia disso – , então, como eu explicaria o fato de que os feixe brilhantes de sol se dividiam em sua pele em mil fragmentos de arco-íris, como se ele fosse feito de cristal ou diamante? Bom, vó, deve ter percebido que meu namorado brilha. É só uma coisa que ele faz no sol. Não se preocupe com isso... O que ele estava fazendo? O motivo para ele morar em Forks, o lugar mais chuvoso do mundo, era que podia ficar ao ar livre durante o dia sem revelar o segredo de sua família. E no entanto ali estava ele, andando elegantemente em minha direção – com o sorriso mais lindo em seu rosto de anjo, como se eu fosse a única presente. Nesse segundo, desejei não ser a única exceção a seu misterioso talento; em geral eu me sentia grata por ser a única pessoa cujos pensamentos ele não podia ouvir com clareza, como se fossem pronunciados em voz alta. Mas agora eu queria que ele fosse capaz de me ouvir também, assim poderia escutar o alerta que eu gritava em minha cabeça. Lancei um olhar de pânico para minha avó e vi que era tarde demais. Ela estava se virando para olhar para mim de novo, os olhos tão alarmados quanto os meus. Edward – ainda sorrindo daquele jeito tão lindo que fazia meu coração parecer inchar e explodir no peito – pôs o braço em meu ombro e virou-se para olhar minha avó. A expressão de vovó me surpreendeu. Em vez de parecer apavorada, ela me olhava timidamente, como se esperasse por uma repreensão. E ela estava de pé numa posição tão estranha – um braço afastado canhestramente do corpo, esticado e, depois, envolvendo o ar. Como se estivesse abraçando alguém que eu não podia ver, alguém invisível...
Só então, enquanto eu olhava o quadro como um todo, foi que percebi a enorme moldura dourada que cercava as feições de minha avó. Sem compreender, levantei a mão que não estava na cintura de
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Edward e a estendi para tocá-la. Ela imitou o movimento com exatidão, espelhando-o. Mas onde nossos dedos deveriam se encontrar não havia nada, a não ser o vidro frio... Com um sobressalto vertiginoso, meu sonho tornou-se abruptamente um pesadelo. Não havia vovó alguma. Aquela era eu. Eu em um espelho. Eu – anciã, enrugada e murcha. Edward estava a meu lado, sem reflexo, lindo de morrer e com 17 anos para sempre. Ele apertou os lábios perfeitos e gelados em meu rosto desgastado. – Feliz aniversário – sussurrou. Acordei assustada – minhas pálpebras se arregalando – e arfante. A luz cinzenta e embaçada, a familiar luz de uma manhã nublada, tomou o lugar do sol ofuscante de meu sonho. Um sonho, disse a mim mesma. Foi só um sonho. Respirei fundo e pulei novamente quando meu despertador tocou. O pequeno calendário no canto do mostrador do relógio me informou que era dia 13 de setembro. Um sonho, mas pelo menos, de certo modo, bastante profético. Era o dia do meu aniversário. Eu tinha oficialmente 18 anos. Durante meses, tive pavor desse dia. Por todo o verão perfeito – o verão mais feliz que tive na vida, o verão mais feliz que qualquer um em qualquer lugar teria e o verão mais chuvoso da história da península de Olympic – essa triste data ficou de tocaia, esperando para saltar sobre mim. E, agora que chegara, era ainda pior do que eu temia. Eu podia sentir – eu estava mais velha. A cada dia eu ficava mais velha, mas isto era diferente, era pior, quantificável. Eu tinha 18 anos. E Edward jamais teria essa idade.
Quando fui escovar os dentes, quase me surpreendi com o fato de que o rosto no espelho não mudara. Olhei para mim mesma,
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procurando por algum sinal de rugas iminentes em minha pele de marfim. Mas os únicos vincos eram os da minha testa, e eu sabia que, se conseguisse relaxar, eles desapareceriam. Não consegui. Minhas sobrancelhas se alojaram em uma linha de preocupação acima de meus angustiados olhos castanhos. Foi só um sonho, lembrei a mim mesma de novo. Só um sonho... Mas também meu pior pesadelo. Não tomei o café-da-manhã, com pressa para sair de casa o mais rápido possível. Não fui inteiramente capaz de evitar meu pai e tive de passar alguns minutos fingindo-me animada. Tentei ficar empolgada de verdade com os presentes que eu pedira para ele não comprar para mim, mas sempre que tinha de sorrir, parecia que podia começar a chorar. Lutei para me controlar enquanto dirigia para a escola. A visão de minha avó – eu não pensava nela como eu mesma – não saía de minha cabeça. Só o que consegui sentir foi desespero, até que parei no estacionamento conhecido atrás da Forks High School e vi Edward curvado e imóvel sobre seu Volvo prata polido, como um monumento de mármore em homenagem a algum esquecido deus pagão da beleza. O sonho não lhe fizera justiça. E ele esperava ali por mim, exatamente como nos outros dias. O desespero desapareceu por um momento, substituído pela admiração. Mesmo depois de meio ano com ele, eu ainda não acreditava que merecia tanta sorte. Sua irmã, Alice, estava a seu lado, também esperando por mim. É claro que Edward e Alice não eram de fato parentes (em Forks, corria a história de que todos os irmãos Cullen tinham sido adotados pelo Dr. Carlisle Cullen e sua esposa, Esme, os dois indiscutivelmente novos demais para ter filhos adolescentes), mas sua pele tinha exatamente a mesma palidez, os olhos tinham o mesmo tom dourado, com as mesmas olheiras fundas, como hematomas. O rosto de Alice, como o dele, era de uma beleza incrível. Para alguém que sabia – alguém como eu –, essas semelhanças representavam a marca do que eles eram.
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A visão de Alice esperando ali – seus olhos caramelo brilhantes de empolgação e um pequeno embrulho prateado nas mãos – deixou-me carrancuda. Eu disse a Alice que não queria nada, nada mesmo, nenhum presente, nem mesmo alguma atenção pelo aniversário. Obviamente, meus desejos estavam sendo ignorados. Bati a porta de minha picape Chevy 53 – uma chuva de ferrugem caiu do teto molhado – e andei devagar na direção deles. Alice pulou à frente para me receber, a cara de fada reluzente sob o cabelo preto e desfiado. – Feliz aniversário, Bella! – Shhh! – sibilei, olhando o estacionamento para me certificar de que ninguém a ouvira. A última coisa que eu queria era uma espécie de comemoração do melancólico evento. Ela me ignorou. – Quer abrir seu presente agora ou depois? – perguntou ansiosamente enquanto seguíamos para onde Edward ainda esperava. – Nada de presentes – protestei num murmúrio. Ela por fim pareceu entender meu estado de espírito. – Tudo bem... Mais tarde, então. Gostou do álbum que sua mãe mandou para você? E a câmera de Charlie? Suspirei. É claro que ela saberia quais eram meus presentes de aniversario. Edward não era o único membro da família com habilidades incomuns. Alice teria “visto” o que meus pais planejavam assim que eles tomaram a decisão. – É. São ótimos. – Eu acho que é uma ótima idéia. Só se chega ao último ano da escola uma vez. Pode muito bem documentar a experiência. – Quantas vezes você fez o último ano? – Isso é diferente. Chegamos então perto de Edward e ele estendeu a mão para mim. Eu a peguei ansiosa, esquecendo-me, por um momento, de meu mau humor. Sua pele, como sempre, era suave, dura e muito fria. Ele apertou meus dedos com delicadeza. Olhei em seus claros olhos de topázio e meu coração sentiu um aperto não tão delicado. Ouvindo meu coração vacilar, ele sorriu de novo.
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Ele ergueu a mão livre e, ao falar, acompanhou o contorno de meus lábios com a ponta do dedo frio. – E então, como discutimos, não tenho permissão para lhe desejar um feliz aniversário, é isso mesmo? – É. É isso mesmo. – Eu não conseguia imitar o ritmo de sua pronúncia perfeita e formal. Era algo que só poderia ter sido adquirido em um século anterior. – Só estou verificando. – Ele passou a mão no cabelo desgrenhado cor de bronze. – Você bem que podia ter mudado de idéia. A maioria das pessoas parece gostar de aniversários e presentes. Alice riu e o som era todo prata, um sino de vento. – É claro que você vai gostar. Todo mundo deve ser gentil com você hoje e fazer suas vontades, Bella. Qual é a pior coisa que pode acontecer? – Sua pergunta era retórica. – Ficar mais velha – ainda assim respondi, e minha voz não era tão estável como eu queria que fosse. A meu lado, o sorriso de Edward se estreitou em uma linha rígida.– Dezoito anos não é muito velha – disse Alice. – Em geral as mulheres não esperam até ter 29 para se aborrecer com os aniversários? – É mais do que Edward – murmurei. Ele suspirou. – Tecnicamente – disse ela, mantendo o tom leve. – Mas só por um ano. E eu imaginei... Se eu pudesse ter certeza do futuro que queria, certeza de que passaria a eternidade com Edward, Alice e os demais Cullen (de preferência não como uma velhinha enrugada)... Então um ou dois anos a mais ou a menos não me importariam tanto. Mas Edward era rigorosamente contra qualquer futuro que me alterasse. Qualquer futuro que me tornasse igual a ele – que me tornasse imortal também. Um impasse, ele tinha dito.
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Para ser franca, eu não conseguia entender o argumento de Edward. O que havia de tão bom na mortalidade? Ser um vampiro não parecia tão terrível – não como faziam os Cullen, pelo menos. – A que horas você vai estar em casa? – continuou Alice, mudando de assunto. A julgar por sua expressão, ela estava aprontando exatamente o tipo de coisa que eu esperava evitar. – Não sei se vou para casa. – Ah, por favor, Bella! – reclamou ela. – Não vai estragar toda a nossa diversão desse jeito, vai? – Pensei que no meu aniversário eu pudesse fazer o que eu quisesse. – Eu vou apanhá-la em casa logo depois da escola – disse-lhe Edward, ignorando-me completamente. – Tenho que trabalhar – protestei. – Na verdade, não tem – disse-me Alice, convencida. – Já falei com a Sra. Newton sobre isso. Ela vai trocar seus turnos. E me pediu para lhe dizer “Feliz aniversario”. – E-eu ainda não posso ir – gaguejei, procurando uma desculpa. – Eu, bom, ainda não vi Romeu e Julieta para a aula de inglês.Alice bufou. – Você conhece Romeu e Julieta de cor. – Mas o Sr. Berty disse que precisávamos ver uma representação para apreciá-lo plenamente... Era o que Shakespeare pretendia. Edward revirou os olhos. – Você já viu o filme – acusou Alice. – Mas não a versão dos anos 60. O Sr. Berty disse que era a melhor. Por fim, Alice perdeu o sorriso presunçoso e me fitou. – Isso pode ser fácil ou pode ser difícil, Bella, mas se uma forma ou de outra... Edward interrompeu sua ameaça. – Relaxe, Alice. Se Bella quer ver o filme, então pode ver. É o aniversário dela.
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– Viu? – acrescentei. – Vou levá-la por volta das sete – continuou ele. – Isso lhe dará bastante tempo para preparar tudo. O riso de Alice repicou de novo. – Parece ótimo. Nos vemos à noite, Bella! Vai ser divertido, você verá. Ela sorriu com malícia – o sorriso largo expôs todos os dentes perfeitos e reluzentes –, depois me deu um beliscão na bochecha e desapareceu para sua primeira aula antes que eu pudesse responder. – Edward, por favor... – comecei a pedir, mas ele colocou um dedo frio em meus lábios. – Discutiremos isso mais tarde. Vamos nos atrasar para a aula. Ninguém se incomodou em olhar para nós enquanto assumíamos nossos lugares de sempre no fundo da sala (agora assistíamos a quase todas as aulas juntos – eram incríveis os favores que Edward conseguia que as mulheres da secretaria fizessem para ele). Edward e eu estávamos juntos havia tempo demais para ainda sermos objeto de fofoca. Nem Mike Newton se incomodava mais em me lançar o olhar de mau humor que antigamente me fazia sentir meio culpada. Ele agora sorria, e fiquei feliz por ele parecer ter aceitado que podíamos ser só amigos. Mike mudara no verão – estava menos rechonchudo, as maçãs do rosto mais proeminentes e o cabelo louro-claro estava diferente; e vez de arrepiado, estava mais comprido e com gel, em uma desordem cuidadosamente casual. Era fácil ver de onde vinha sua inspiração – mas o visual de Edward não era algo que se pudesse imitar. À medida que o dia avançava, pensei em maneiras de me livrar do que quer que estivesse para acontecer na casa dos Cullen à noite. Já seria bem ruim ter de comemorar quando meu humor era colocar luto. Mas, pior do que isso, aquilo, com certeza, envolveria atenção e presentes. Nunca é bom ter atenção, como concordaria qualquer outro desajeitado com tendência a sofrer acidentes. Ninguém quer um refletor sobre si quando é provável que vá cair de cara no chão.
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E eu insisti – bom, na verdade ordenei – que ninguém me desse nenhum presente este ano. Aparentemente, Charlie e Renée não foram os únicos que decidiram ignorar isso. Nunca tive muito dinheiro, e isso nunca me incomodou. Renée me criou com salário de professora de jardim-de-infância. Charlie também não ia enriquecer com seu emprego – ele era o chefe de policia daqui, a cidadezinha de Forks. Minha única renda vinha dos três dias da semana em que eu trabalhava na loja de artigos esportivos da cidade. Em uma cidade tão pequena, eu tinha sorte por ter um emprego. Cada centavo que ganhava ia para meu microscópico fundo de universidade. (A universidade era o Plano B. Eu ainda esperava pelo Plano A, mas Edward teimava tanto em me deixar humana...). Edward tinha muito dinheiro – eu nem queria pensar em quanto. O dinheiro não significava quase nada para ele e para os demais Cullen. Era só algo que se acumulava quando se tinha tempo ilimitado nas mãos e uma irmã com uma capacidade misteriosa de prever tendências no mercado de ações. Edward não parecia entender por que eu fazia objeção a ele gastar dinheiro comigo – por que me deixava pouco à vontade quando me levava a um restaurante caro em Seattle, por que não podia comprar para mim um carro que pudesse atingir mais de 90 km/h, ou porque eu não deixaria que ele pagasse os custos da minha universidade (ele era ridiculamente entusiasmado com o Plano B). Edward pensava que eu estava sendo difícil sem necessidade. Mas como eu podia deixar que ele me desse presentes quando eu não tinha nada para dar em troca? Ele, por algum motivo insondável, queria ficar comigo. Qualquer coisa que me desse além disso só aumentava mais as diferenças entre nós. Com o passar do dia, nem Edward nem Alice voltaram a comentar o tema de meu aniversário, e eu comecei a relaxar um pouco.Nós nos sentamos à nossa mesa de sempre no almoço.
Havia uma espécie estranha de trégua naquela mesa. Nós três – Edward, Alice e eu – sentávamos no extremo sul da mesa. Agora que
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os irmãos Cullen mais “velhos”, e de certa forma mais assustadores (no caso de Emmett, certamente), tinham se formado, Alice e Edward não pareciam intimidar tanto e não nos sentávamos sozinhos. Meus outros amigos – Mike e Jessica (que estavam na estranha fase de amizade pós-término), Angela e Bem (cuja relação sobreviveu ao verão), Eric, Conner, Tyler e Lauren (embora esta última não contasse de fato na categoria amizade) – sentavam-se à mesma mesa do outro lado de uma fronteira invisível. Essa fronteira se dissolvia nos dias de sol, quando Edward e Alice sempre matavam aula, e então a conversa passava com facilidade a me incluir. Edward e Alice não achavam esse ostracismo estranho nem doloroso, como eu teria achado. Eles mal percebiam. As pessoas sempre se sentiam estranhamente pouco à vontade com os Cullen, quase com medo, por algum motivo que não conseguiam explicar a si mesmas. Eu era uma rara exceção a essa regra. Às vezes, incomodava Edward que eu ficasse à vontade perto dele. Ele pensava que era perigoso para minha saúde – uma opinião que eu rejeitava com veemência sempre que ele a verbalizava. A tarde passou rápido. As aulas terminaram e Edward me acompanhou até a picape, como sempre fazia. Mas dessa vez ele abriu a porta do carona para mim. Alice devia ter levado o carro dele para casa, para que ele pudesse impedir que eu fugisse. Cruzei os braços e não fiz nenhum movimento para sair da chuva. – É meu aniversário, não posso dirigir? – Estou fingindo que não é seu aniversário, como é seu desejo. – Se não é meu aniversário, então não tenho que ir para a sua casa hoje à noite... – Muito bem... – Ele fechou a porta do carona e passou por mim para abrir a do motorista. – Feliz aniversário. – Shhhh – pedi, meio indiferente. Entrei pela porta aberta, querendo que ele aceitasse a outra proposta. Edward ficou mexendo no rádio enquanto eu dirigia, sacudindo a cabeça, desaprovando. – Seu rádio tem uma recepção horrível.
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Fechei a cara. Eu não gostava quando ele mexia na minha picape. O carro era ótimo – tinha personalidade. – Quer um bom sistema de som? Dirija seu próprio carro. – Eu estava tão nervosa com os planos de Alice, além de meu humor já sombrio, que as palavras saíram mais ásperas do que pretendia. Quase nunca me exaltava com Edward, e meu tom de voz o fez apertar os lábios para conter o riso. Quando estacionei diante da casa de Charlie, ele pegou meu rosto entre as mãos. Agia com muito cuidado comigo, colocando a ponta dos dedos de modo suave em minhas têmporas, nas maçãs do rosto, na linha do queixo. Como se eu fosse especialmente quebradiça. O que era exatamente a verdade – comparada com ele, pelo menos. – Devia estar de bom humor, hoje é o seu dia – sussurrou ele. Seu hálito doce soprava em meu rosto. – E se eu não quiser ficar de bom humor? – perguntei, minha respiração irregular. Seus olhos dourados arderam. – Isso e péssimo. Minha cabeça já estava girando quando ele se aproximou mais de mim e colocou os lábios gelados nos meus. Como era a intenção dele, sem dúvida, eu me esqueci de todas as preocupações e me concentrei em lembrar como respirar. Sua boca pairou na minha, fria, suave e gentil, até que passei os braços por seu pescoço e me atirei no beijo com um pouco de entusiasmo demais. Pude sentir os lábios dele se curvarem para cima enquanto ele se afastava de meu rosto e tentava sair do meu abraço. Edward traçara limites muito cuidadosos para nossa relação física, com a intenção de me manter viva. Embora respeitasse a necessidade de preservar uma distância segura entre minha pele e seus dentes afiados, cobertos de veneno, eu tendia a me esquecer de questões banais como essa quando ele me beijava. – Seja boazinha, por favor – sussurrou ele em minha bochecha. Ele apertou os lábios com delicadeza contra os meus mais uma vez e se afastou, cruzando meus braços em minha barriga.
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Minha pulsação martelava nos ouvidos. Coloquei a mão no coração. Ele batia rápido demais sob minha palma. – Acha que um dia vou superar isso? – perguntei, principalmente para mim mesma. – Que meu coração um dia vai parar de tentar pular do peito sempre que você tocar em mim? – Eu realmente espero que não – disse ele, meio presunçoso. Revirei os olhos. – Vamos ver os Capuleto e os Montéquio se dilacerando, está bem? – Seu desejo é uma ordem. Edward se esparramou no sofá enquanto eu passava o filme, acelerando nos créditos de abertura. Quando me empoleirei na beira do sofá na frente dele, ele passou os braços em minha cintura e me puxou para seu peito. Não era exatamente tão confortável quanto um sofá, com seu peito duro e frio – e perfeito – como uma escultura de gelo, mas com certeza eu preferia isso. Ele puxou a velha manta oriental do encosto do sofá e me envolveu com ela, para que eu não congelasse junto de seu corpo. – Sabe, nunca tive muita paciência com Romeu – comentou ele enquanto o filme começava. – O que há de errado com Romeu? – perguntei, meio ofendida. Romeu era um de meus personagens de ficção preferidos. Até conhecer Edward, eu tinha uma espécie de queda por ele. – Bem, antes de tudo, ele está apaixonado por essa Rosalina... Não acha que isso o deixa meio volúvel? E então, minutos depois do casamento, ele mata o primo de Julieta. Não é muito inteligente. Um erro depois do outro. Será que ele poderia destruir a própria felicidade de uma forma mais completa? Eu suspirei. – Quer que eu veja o filme sozinha? – Não, vou assistir com você, de qualquer jeito. – Seus dedos traçaram desenhos em meu braço, me provocando arrepios. – Vai chorar? – É provável – admiti –, se eu estiver prestando atenção. – Então não vou distraí-la.
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Mas senti seus lábios em meu cabelo, e esta era uma distração e tanto. O filme, enfim, prendeu minha atenção, graças em grande parte às falas de Romeu que Edward sussurrava em meu ouvido – sua voz irresistível de veludo fazia com que a voz do ator parecesse fraca e grosseira. E eu chorei, para divertimento dele, quando Julieta acordou e descobriu o novo marido morto. – Devo admitir que tenho um pouco de inveja dele aqui – disse Edward, secando minhas lágrimas com uma mecha do meu cabelo. – Ela é linda. Ele fez um som de repulsa. – Não o invejo por causa da garota... Só pela facilidade do suicídio – esclareceu num tem de provocação. – Para vocês, humanos, é tão fácil! Só o que precisam fazer é engolir um vidrinho de extrato de ervas... – Como é? – ofeguei. – Foi uma idéia que tive certa vez e eu sabia, pela experiência de Carlisle, que não seria simples. Nem tenho certeza de quantas maneiras Carlisle tentou se matar no começo... Depois de perceber no que se transformara... – Sua voz, que se tornara séria, ficou leve de novo. – E ele claramente ainda goza de excelente saúde. Virei-me para poder ver seu rosto. – Do que está falando? – perguntei. – O que quer dizer, essa história de que pensa nisso de vez em quando? – Na primavera passada, quando você estava... quase morta... – Ele parou para tomar fôlego, lutando para recuperar o tom de brincadeira. – É claro que eu tentava me concentrar em encontrar você viva, mas parte de minha mente fazia planos alternativos. Como eu disse, não é fácil para mim, como é para um humano.
Por um segundo, a lembrança de minha última viagem a Phoenix passou por minha cabeça e me deixou tonta. Eu podia ver tudo com tanta clareza – o sol ofuscante, as ondas de calor saindo do concreto enquanto eu corria com uma pressa desesperada para encontrar o vampiro sádico que queria me torturar até a morte. James, esperando na sala de espelhos com minha mãe de refém – ou
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assim eu pensava. Eu não sabia que era tudo um ardil. Assim como James não sabia que Edward estava correndo para me salvar. Edward daquela vez conseguira, mas foi por pouco. Sem pensar, meus dedos acompanharam a cicatriz em crescente lunar em minha mão, que sempre ficava alguns graus mais fria do que o restante de minha pele. Sacudi a cabeça – como se eu pudesse me livrar das lembranças ruins – e tentei entender o que Edward dizia. Meu estômago afundou de um jeito desagradável. – Planos alternativos? – repeti. – Bem, eu não ia viver sem você. – Ele revirou os olhos como se este fato fosse óbvio até para uma criança. – Mas não tinha certeza de como fazer... Eu sabia que Emmett e Jasper não me ajudariam... Então pensei em talvez ir à Itália e fazer algo para provocar os Volturi. Não podia acreditar que ele falava sério, mas seus olhos dourados estavam pensativos, focalizados em alguma coisa distante enquanto ele refletia sobre as maneiras de acabar com a própria vida. Abruptamente, fiquei furiosa. – O que é um Volturi? – perguntei. – Os Volturi são uma família – explicou ele, os olhos ainda distantes. – Uma família muito antiga e muito poderosa de nossa espécie. São a coisa mais próxima que nosso mundo tem de uma família real, imagino. Carlisle morou com eles por pouco tempo em seus primeiros anos, na Itália, antes de se estabelecer na América... Lembra a história? – É claro que lembro.
Eu nunca me esqueceria da primeira vez que fui à casa dele, a enorme mansão branca bem no fundo da floresta, ao lado do rio, ou a sala em que Carlisle – pai de Edward de tantas maneiras genuínas – mantinha uma parede de pinturas que ilustravam sua história. A tela mais vívida, a mais colorida dali, a maior, era da época de Carlisle na Itália. É claro que eu me lembrava do tranqüilo quarteto de homens, cada um deles com um extraordinário rosto de serafim, pintados no balcão mais alto que dava para o violento torvelinho de cores. Embora a tela tivesse séculos, Carlisle – o anjo louro – continuava
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inalterado. Edward nunca usou o nome Volturi para o belo trio, dois de cabelos escuros, um de cabelos brancos. Ele os chamou de Aro, Caius e Marcus, patronos noturnos das artes... – De qualquer modo, não se deve irritar os Volturi – prosseguiu Edward, interrompendo meus devaneios. – A não ser que se queira morrer... Ou o que quer que aconteça conosco. – Sua voz era tão calma que o fazia parecer quase entediado com a perspectiva. Minha raiva transformou-se em pavor. Peguei seu rosto marmóreo entre as mãos e o segurei com força. – Você nunca, nunca, jamais pense em nada parecido de novo! – eu disse. – Não importa o que possa acontecer comigo, você não pode se machucar! – Eu jamais a colocarei em risco de novo, então esta é uma discussão inútil. – Me colocar em risco! Pensei que tínhamos combinado que todo o azar era minha culpa. – Eu estava ficando com mais raiva. – Como se atreve a pensar desse jeito? – A idéia de Edward deixando de existir, mesmo que eu estivesse morta, era impossivelmente dolorosa. – O que você faria, se a situação se invertesse? – perguntou ele. – Não é o mesmo caso. Ele não pareceu entender a diferença. Edward riu. – E se alguma coisa acontecer com você? – Empalideci com a idéia. – Gostaria que eu acabasse comigo mesma? Um vestígio de dor tocou seus traços perfeitos. – Acho que entendo seu argumento... Um pouco – admitiu ele. – Mas o que eu faria sem você? – O que estava fazendo antes de eu aparecer e complicar sua vida. Ele suspirou. – Parece tão fácil, do jeito que você fala. – Devia ser. Eu não sou assim tão interessante. Ele estava prestes a discutir, mas deixou passar. – Discussão inútil – lembrou-me.
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De repente, ele se colocou numa postura mais formal, passando-me para o lado para que não nos tocássemos mais. – Charlie? – adivinhei. Edward sorriu. Depois de um minuto, ouvi o som da radiopatrulha parando na entrada de carros. Peguei a mão dele com firmeza. Meu pai podia lidar com aquilo. Charlie entrou segurando uma caixa de pizza. – Oi, pessoal. – Ele sorriu para mim. – Pensei que ia gostar de uma folga da cozinha e dos pratos em seu aniversário. Está com fome?– Claro. Obrigado, pai. Charlie não comentou a aparente falta de apetite de Edward. Ele estava acostumado a ver Edward desprezar o jantar. – Importa-se se eu pegar Bella emprestada esta noite? – perguntou Edward quando Charlie e eu terminamos. Olhei cheia de esperança para Charlie. Talvez ele pensasse em aniversários como um programa de família que era passado em casa – era meu primeiro aniversário com ele, o primeiro aniversário desde que minha mãe, Renée, casara-se de novo e fora morar na Flórida, então eu não sabia o que ele esperava. – Tudo bem... Os Mariners vão jogar contra os Sox esta noite – explicou Charlie, e minha esperança desapareceu. – Então não serei boa companhia... Toma. – Ele pegou a câmera que tinha comprado por sugestão de Renée (por que eu precisava de fotos para encher meu álbum) e a atirou para mim. Ele devia saber muito bem – sempre tive problemas com coordenação. A câmera raspou na ponta de meus dedos e ia caindo no chão. Edward a pegou antes que se espatifasse no piso. – Boa pegada – observou Charlie. – Se fizerem alguma coisa divertida na casa dos Cullen hoje, Bella, devia tirar umas fotos. Sabe como sua mãe é... Ela vai querer ver as fotos mais rápido do que você pode tirá-las. – Boa idéia, Charlie – disse Edward, passando-me a câmera. Liguei a câmera apontada para Edward e bati a primeira foto. – Funciona.
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– Que bom. Ei, dê um alô a Alice por mim. Ela não tem aparecido. – A boca de Charlie se repuxou em um canto. – Faz três dias, pai – lembrei a ele. Charlie era louco por Alice. Ele ficou ligado a ela na última primavera, quando ela o ajudara em minha convalescença; Charlie lhe seria eternamente grato por tê-lo poupado do horror de uma filha quase adulta que precisava de ajuda no banho. – Vou dizer a ela. – Tudo bem. Divirtam-se. – Era claramente uma dispensa. Charlie já estava indo para a sala de estar e a tevê. Edward sorriu, triunfante, e pegou minha mão para me puxar da cozinha. Quando entramos na picape, ele abriu a porta do carona para mim de novo e, desta vez, não discuti. Ainda tinha dificuldades para encontrar o discreto desvio para a casa dele no escuro. Edward dirigiu para o norte, atravessando Forks, visivelmente forçando o limite de velocidade de meu Chevy pré-histórico. O motor gemeu ainda mais alto do que de costume enquanto ele forçava a chegar a 80km/h. – Vá com calma – alertei. – Sabe o que você ia adorar? Um pequeno e lindo cupê Audi. Muito silencioso, muita potência... – Não há nada de errado com minha picape. E por falar em supérfluos caros, se sabe o que é bom para você, não gaste dinheiro nenhum com presentes de aniversário. – Nem um centavo – disse ele castamente. – Ótimo. – Pode me fazer um favor? – Depende do que for. Ele suspirou. Seu lindo rosto agora estava sério. – Bella, o último aniversário de verdade que tivemos foi o de Emmett, em 1935. relaxe um pouco e não seja difícil demais esta noite. Todos estão animados. Sempre me surpreendia um pouco quando ele colocava a situação desse jeito. – Tudo bem, vou me comportar.
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– Preciso avisá-la... – Por favor. – Quando eu digo que estão todos animados... Quero dizer todos eles... – Todos? – sufoquei. – Pensei que Emmett e Rosalie estivessem na África. – O restante de Forks pensava que os mais velhos dos Cullen tinham ido para a universidade este ano, para Dartmouth, mas eu sabia da verdade. – Emmett queria estar aqui. – Mas... Rosalie? – Eu sei, Bella. Não se preocupe, ela vai se comportar bem. Não respondi. Como se eu pudesse não ficar preocupada tão facilmente. Ao contrário de Alice, a outra irmã “adotiva” de Edward, a loura dourada e maravilhosa Rosalie, não gostava muito de mim. Na verdade, o sentimento era um pouco mais forte do que só a antipatia. No que dizia respeito a Rosalie, eu era uma intrusa indesejada na vida secreta de sua família. Senti um remorso terrível pela situação, imaginando que a prolongada ausência de Rosalie e de Emmett era minha culpa, mesmo que no fundo me agradasse não precisar vê-la. De Emmett, o irmão de Edward que era um urso brincalhão, eu tinha saudade. De muitas maneiras, ele era como o irmão mais velho que eu sempre quis... Só que muito, muito mais apavorante. Edward decidiu mudar de assunto. – E, então, já que não me deixa comprar o Audi para você, não há nada que gostaria de aniversário? As palavras saíram num sussurro. – Você sabe o que eu quero. Uma ruga funda vincou sua testa de mármore. Ele, obviamente, preferia ter continuado no assunto de Rosalie. Parece que íamos discutir muito hoje. – Hoje não, Bella, por favor. – Bom, talvez Alice me dê o que eu quero. Edwad grunhiu – um som grave e ameaçador.
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– Este não será seu último aniversário, Bella – jurou ele. – Isso não é justo! Pensei ter ouvido seus dentes trincarem. Agora estávamos parando na casa dele. Uma luz forte saía de cada janela dos dois primeiros andares. Uma longa fila de lanternas japonesas reluzentes pendia do beiral da varanda, refletindo uma radiância suave nos enormes cedros que cercavam a casa. Vasos grandes de flores – rosas cor-de-rosa – ladeavam a escada larga até a porta da frente. Eu gemi. Edward respirou fundo algumas vezes para se acalmar. – Isto é uma festa – lembrou-me ele. – Procure levar na esportiva. – Claro – murmurei. Ele veio até a minha porta e me ofereceu a mão. – Tenho uma pergunta. Ele esperou, preocupado. – Se eu revelar este filme – disse, brincando com a câmera nas mãos –, vocês vão aparecer nas fotos? Edward começou a rir. Ajudou-me a sair do carro, empurrou-me pela escada e ainda estava rindo enquanto abria a porta para mim. Todos esperavam na enorme sala de estar branca; quando passei pela porta, eles me receberam com um coro alto de “Parabéns pra você” enquanto eu corava e olhava para baixo. Alice, imaginei, tinha coberto cada superfície plana da casa com velas cor-de-rosa e dezenas de vasos de cristal repletos de centenas de rosas. Havia uma mesa com uma toalha branca ao lado do piano de cauda de Edward com um bolo de aniversário cor-de-rosa, mais rosas, uma pilha de pratos de vidro e outra, pequena, de presentes embrulhados em papel prateado. Era cem vezes pior do que eu imaginara. Edward, sentindo minha angústia, passou um braço encorajador em minha cintura e beijou o alto de minha cabeça.
Os pais de Edward, Carlisle e Esme – incrivelmente jovens e lindos, como sempre –, eram os que estavam mais perto da porta.
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Esme me abraçou com cuidado, o cabelo macio cor de caramelo roçando meu rosto enquanto ela me dava um beijo na testa, e depois Carlisle pôs o braço em meus ombros. – Desculpe por isso, Bella – ele sussurrou. – Não conseguimos refrear Alice. Rosalie e Emmett estavam atrás deles. Rosalie não sorriu, mas pelo menos não me encarou. O rosto de Emmett estava esticado em um sorriso enorme. Fazia meses desde que eu os vira; tinha me esquecido de como Rosalie era gloriosamente bonita – quase doía olhar para ela. E será que Emmett sempre fora tão... grande? – Você não mudou nada – disse Emmett com uma falsa decepção. – Eu esperava uma diferença perceptível, mas aqui está você, com a cara vermelha de sempre. – Muito obrigado, Emmett – eu disse, corando ainda mais. Ele riu. – Preciso sair por um segundo. – Ele parou para dar uma piscadela para Alice. – Não faça nada de divertido na minha ausência. – Vou tentar. Alice soltou a mão de Jasper e pulou para a frente, todos os dentes cintilando na luz intensa. Jasper sorriu também, mas manteve a distância. Ele se encostou, longo e louro, no pilar ao pé da escada. Nos dias que tivemos de passar juntos em Phoenix, pensei que ele tivesse superado sua aversão por mim, ma ele voltara a agir do mesmo modo que antes – evitando-me ao máximo – no momento em que se livrou da obrigação temporária de me proteger. Eu sabia que não era pessoal, só uma precaução, e tentava não ser muito sensível a isso. Jasper tinha mais problemas para se prender à dieta dos Cullen do que o restante deles; era muito mais difícil para ele resistir ao cheiro de sangue humano do que para os outros – ele não havia tentado por tanto tempo. – Hora de abrir os presentes – declarou Alice. Ela pôs a mão fria sob meu cotovelo e me conduziu à mesa com o bolo e os pacotes cintilantes. Fiz a melhor cara de mártir que pude.
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– Alice, pensei ter dito a você que não queria nada... – Mas eu não dei ouvidos – interrompeu ela, presunçosa. – Abra. – Ela tirou a câmera de minha mão e a substituiu por uma caixa prateada grande e quadrada. A caixa era tão leve que parecia vazia. A etiqueta em cima dizia que era de Emmett, Rosalie e Jasper. Constrangida, rasguei o papel de presente e olhei a caixa que ele abrigava. Era algum produto eletrônico, com um nome cheio de números. Abri a caixa, esperando por mais esclarecimentos. Mas a caixa estava mesmo vazia. – Hmmm... Obrigada. Rosalie realmente deu uma risadinha. Jasper riu. – É um sistema de som para sua picape – explicou ele. – Emmett esta instalando agora mesmo para que você não possa devolver. Alice sempre estava um passo além de mim. – Obrigado, Jasper, Rosalie – eu lhes disse, sorrindo enquanto me lembrava das reclamações de Edward de meu radio naquela tarde; tudo armação, ao que parecia. – Obrigado, Emmett! – gritei mais alto. Ouvi sua risada estrondosa vinda de meu carro e não consegui deixar de rir também. – Abra agora o meu e de Edward – disse Alice, tão empolgada que sua voz era uma melodia aguda. Ela segurava uma caixa quadrada e pequena. Eu me virei para Edward com um olhar venenoso. – Você prometeu. Antes que ele pudesse responder, Emmett irrompeu pela porta. – Bem a tempo! – gritou ele. Ele se espremeu ao lado de Jasper, que também tinha chegado mais perto do que o habitual para ver melhor. – Não gastei um centavo – garantiu-me Edward. Ele tirou uma mecha de cabelo de meu rosto, deixando minha pele formigando com seu toque.
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Respirei fundo e me virei para Alice. – Pode me dar – suspirei. Emmett riu de prazer. Peguei o pacotinho, revirando os olhos para Edward enquanto passava o dedo sob a beira do papel e o puxava da fita. – Droga – murmurei quando o papel cortou meu dedo. Puxei-o para examinar os danos. Uma única gota de sangue saía do corte minúsculo. Então tudo aconteceu com muita rapidez. – Não! – rugiu Edward. Ele se atirou sobre mim, jogando-me de costas contra a mesa. Ela desabou, como eu, espalhando o bolo e os presentes, as flores e os pratos. Aterrissei na bagunça de cristal espatifado. Jasper se lançou sobre Edward e o som era como o estrondo de pedregulhos rolando em uma ladeira. Houve outro barulho, um grunhido terrível que parecia vir do fundo do peito de Jasper. Ele tentou passar por Edward, batendo os dentes a centímetros do rosto dele. Emmett pegou Jasper por trás no segundo exato, fechando-o em um aperto de aço, mas Jasper lutava, os olhos desvairados e vazios focalizados só em mim. Além do choque, também houve a dor. Eu tombei no chão junto ao piano, com os braços estendidos instintivamente para me proteger dos cacos de vidro na queda. Só então senti a lancinante dor em brasa que subia de meu punho até a dobra de meu cotovelo. Tonta e desorientada, desviei a atenção do sangue vermelho e brilhante que jorrava de meu braço – e olhei nos fundos febris dos seis vampiros repentinamente vorazes.
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2. SUTURA 

Apenas Carlisle permaneceu calmo. Os séculos de experiência no pronto-socorro eram evidentes em sua voz tranqüila e cheia de autoridade. – Emmet, Rose levem Jasper para fora. Sem sorrir sequer uma vez, Emmett assentiu. – Vamos, Jasper. Jasper lutou contra o abraço inflexível de Emmett, girando o corpo, lançando-se para o irmão com os dentes à mostra, os olhos ainda irracionais. O rosto de Edward estava mais branco do que osso quando ele se virou e se abaixou junto a mim, assumindo uma clara posição defensiva. Um rosnado baixo de alerta resvalou por entre seus dentes trincados. Eu sabia que ele não estava respirando. Rosalie, o rosto divino estranhamente complacente, meteu-se na frente de Jasper – guardando uma distância cautelosa dos dentes dele – e ajudou Emmett a carregá-lo pela porta de vidro que Esme mantinha aberta, uma das mãos cobrindo com firmeza a boca e o nariz.O rosto em forma de coração de Esme revelava que ela estava envergonhada. – Eu sinto muito, Bella – gritou ao seguir os outros para o pátio.– Deixe que eu me aproxime, Edward – murmurou Carlisle. Um segundo se passou, Edward assentiu lentamente e relaxou. Carlisle se ajoelhou a meu lado, inclinando-se a fim de examinar meu braço. Eu podia sentir o choque congelado em meu rosto e tentei recompô-lo. – Tome, Carlisle – disse Alice, passando-lhe uma toalha. Ele sacudiu a cabeça.
– Há vidro demais no ferimento. – Ele estendeu a mão e rasgou uma tira longa e fina da bainha da toalha de mesa branca. Enrolou-a
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em meu braço pouco acima do cotovelo, fazendo um torniquete. O cheiro de sangue me deixava tonta. Meus ouvidos tiniam. – Bella – disse Carlisle de modo delicado. – Quer que eu a leve ao hospital ou prefere que cuide de você aqui? – Aqui, por favor – sussurrei. Se ele me levasse ao hospital, não haveria jeito de esconder aquilo de Charlie. – Vou pegar sua maleta – disse Alice. – Vamos levá-la para a mesa da cozinha – disse Carlisle a Edward. Edward me levantou sem qualquer esforço, enquanto Carlisle mantinha a pressão firme em meu braço. – Como está se sentindo, Bella? – perguntou Carlisle. – Estou bem. – Minha voz era quase estável, o que me agradou. O rosto de Edward parecia de pedra. Alice estava lá. A maleta preta de Carlisle já estava na mesa, uma mesa pequena, mas reluzente, embutida na parede. Edward me sentou gentilmente em uma cadeira e Carlisle assumiu outra. Logo passou ao trabalho. Edward ficou de pé a meu lado, ainda protetor, ainda em respirar. – Pode ir, Edward – suspirei. – Eu posso lidar com isso – insistiu ele. Mas seu queixo estava rígido; os olhos ardiam pela intensidade da sede que ele combatia, tão mais forte para ele do que para os outros. – Não precisa ser um herói – eu disse. – Carlisle pode cuidar de mim sem sua ajuda. Vá tomar um ar fresco. Estremeci quando Carlisle fez alguma coisa que doeu em meu braço.– Vou ficar – disse ele. – Por que é tão masoquista? – murmurei. Carlisle decidiu interceder. – Edward, você poderia aproveitar e encontrar Jasper antes que ele vá longe demais. Tenho certeza de que ele está aborrecido consigo mesmo e duvido que agora vá ouvir alguém que não seja você.
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– É – concordei ansiosa. – Vá falar com Jasper. – Você podia fazer algo de útil – acrescentou Alice. Os olhos de Edward se estreitaram ao ver que nos uníamos contra ele, mas, por fim, concordou e saiu suavemente pela porta dos fundos da cozinha. Eu tinha certeza de que ele não respirara sequer uma vez desde que cortei o dedo. Uma dormência se espalhava por meu braço. Embora anulasse a pontada de dor, lembrava-me do corte, e fiquei olhando o rosto de Carlisle com atenção para me distrair do que suas mãos faziam. Seu cabelo tinha um brilho dourado na luz forte enquanto ele se curvava sobre o meu braço. Eu podia sentir o desconforto se agitando fraquinho na boca do estômago, mas estava decidida a não deixar que meus melindres habituais me dominassem. Agora não sentia dor, só um repuxar suave, que tentei ignorar. Não havia motivo para ficar nauseada como um bebê. Se ela não estivesse em minha linha de visão, eu não teria percebido Alice desistindo e saindo do cômodo. Com um sorriso mínimo de desculpas nos lábios, ela desapareceu pela porta da cozinha. – Bom, todos foram embora – suspirei. – Pelo menos consigo esvaziar um ambiente. – Não é culpa sua – Carlisle me confortou com uma risadinha. – Podia acontecer com qualquer um. – Podia – repeti. – Mas em geral só acontece comigo. Ele riu de novo. Sua calma relaxada era ainda mais incrível em contraste direto com a reação de todos os outros. Não consegui ver nenhum vestígio de angústia em seu rosto. Ele trabalhava com movimentos rápidos e seguros. O único som além de nossa respiração baixa era o plinc, plinc delicado dos pequenos cacos de vidro largados um a um na mesa.
– Como consegue fazer isso? – perguntei. – Nem Alice e Esme... – Minha voz falhou e eu sacudi a cabeça, pasma. Embora os outros tivessem desistido da dieta tradicional de vampiros com o mesmo rigor de Carlisle, ele era o único que conseguia suportar o
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cheiro de meu sangue sem sofrer uma tentação intensa. Evidentemente, isso era muito mais difícil do que ele demonstrava. – Anos e anos de prática – disse-me ele. – Agora mal percebo o cheiro.–Acha que seria mais difícil se tirasse umas férias longas do hospital? E não houvesse mais sangue por perto? – Talvez. – Ele deu de ombros, mas as mãos continuavam firmes. – Nunca senti necessidade de férias prolongadas. – Ele abriu um sorriso luminoso para mim. – Gosto muito do meu trabalho. Plinc, plinc, plinc. Surpreendi-me com a quantidade de vidro que parecia estar em meu braço. Fiquei tentada a olhar a pilha crescente, só para ver o tamanho, mas sabia que a idéia não seria útil para minha estratégia de não vomitar. – Do que é que você gosta nele? – perguntei. Não fazia sentido para mim; os anos de luta e autonegação que ele deve ter vivido para chegar ao ponto de suportar isso com tanta facilidade. Além de tudo, eu queria que ele continuasse falando; a conversa afastava minha mente de náusea em meu estômago. Seus olhos escuros eram calmos e pensativos quando ele respondeu. – Hmmm. O que mais aprecio é quando minhas... capacidades aprimoradas me permitem salvar alguém que, de outra maneira, seria perdido. É agradável saber que, graças ao que posso fazer, a vida de algumas pessoas é melhor porque eu existo. Às vezes até o cheiro é uma ferramenta diagnóstica útil. – Um lado de sua boca se ergueu em um meio sorriso. Refleti sobre isso enquanto ele examinava meu braço, certificando-se de que todos os cacos de vidro haviam sido retirados. Depois ele mexeu em sua maleta em busca de novos instrumentos e eu tentei não imaginar a agulha e a sutura. – Você se esforça muito para compensar uma situação que não foi culpa sua – comentei, enquanto um novo tipo de puxão começava na beirada de minha pele. – O que quero dizer é que você não quis isso. Não escolheu esse tipo de vida, e ainda assim tem que se esforçar tanto para ser bom.
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– Não sei se estou compensando alguma coisa – ele discordou alegremente. – Como tudo na vida, só tive de decidir o que fazer com o que me foi dado. – Isso faz tudo parecer fácil demais. Ele examinou meu braço de novo. – Pronto – disse, cortando o fio de sutura. – Está terminado. – Ele esfregou uma bola de algodão enorme, pingando um líquido cor de xarope por todo o local do procedimento. O cheiro era estranho; fez minha cabeça girar. O xarope manchou minha pele. – Mas, no começo – falei, pressionando enquanto ele colocava no lugar outra tira de gaze, prendendo-a em minha pele –, por que chegou a pensar num caminho diferente do óbvio? Seus lábios se ergueram num sorriso reservado. – Edward lhe contou essa história? – Sim. Mas estou tentando entender o que você estava pensando... Seu rosto de repente voltou a ficar sério, e me perguntei se os pensamentos de Carlisle tinham chegado ao mesmo ponto que os meus. Imaginando o que eu pensaria quando – eu me recusava a pensar em se – fosse eu. – Meu pai era um clérigo – disse ele ao limpar a mesa com cuidado, esfregando tudo com gaze molhada e repetindo todo o processo. Meu nariz ardeu com o cheiro de álcool. – Ele tinha uma visão muito rigorosa do mundo, que eu já começava a questionar antes da época de minha mudança. Carlisle colocou toda a atadura suja e os cacos de vidro numa tigela vazia de cristal. Não entendi o que ele estava fazendo, mesmo quando ele acendeu um fósforo. Depois ele o atirou nas fibras encharcadas de álcool e o clarão repentino me fez pular. – Desculpe – disse ele. – Foi necessário fazer isso... Assim, eu não concordava com a crença particular de meu pai. Mas nunca, nem em quatrocentos anos, desde que nasci, vi algo que me fizesse duvidar de que Deus existe, de uma forma ou de outra. Nem mesmo o reflexo no espelho.
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Fingi examinar o curativo em meu braço para esconder minha surpresa com o rumo que tomava nossa conversa. Religião era o último tema que eu esperava, considerando tudo aquilo. Minha própria vida era destituída de crenças. Charlie se considerava luterano, porque os pais dele eram, mas aos domingos ele idolatrava o rio com uma vara de pesca na mão. Renée de vez em quando ia à igreja, mas, assim como suas breves passagens por aulas de tênis, cerâmica, ioga e francês, ela abandonava a prática no momento em que eu tomava conhecimento da novidade. – Sei que isso parece meio estranho, partindo de um vampiro. – Ele sorriu, sabendo como seu uso despreocupado daquela palavra jamais deixaria de me chocar. – Mas estou esperando que ainda haja algum sentido nesta vida, até para nós. Admito que as chances são muito poucas – continuou ele, num tom ameno. – Todos dizem que somos amaldiçoados, apesar de tudo. Mas eu espero, talvez como um tolo, que levemos algum crédito por tentar. – Não acho que seja tolice – murmurei. Não conseguia imaginar ninguém, incluindo um deus, que não ficasse impressionado com Carlisle. Além disso, o único tipo de paraíso que eu podia valorizar teria de incluir Edward. – E não acho que alguém acharia. – Na verdade, você é a primeira a concordar comigo. – Os outros não pensam o mesmo? – perguntei, surpresa, pensando em uma única pessoa. Outra vez Carlisle adivinhou o rumo de meus pensamentos. – Até certo ponto, Edward concorda comigo. Deus e o paraíso existem... e o inferno também. Mas ele não acredita que haja outra vida para nossa espécie. – A voz de Carlisle era muito suave; ele olhava a escuridão pela janela grande acima da pia. – Imagine, ele acha que perdemos nossa alma. Imediatamente pensei nas palavras de Edward naquela tarde: A não ser que se queira morrer... Ou o que quer que aconteça conosco. Uma lâmpada se acendeu em minha cabeça. – É este o verdadeiro problema, não é? – presumi. – É por isso que ele está dificultando tanto as coisas comigo.
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Carlisle falou devagar. – Eu olho para meu... filho. Sua força, sua bondade, a luz que emana dele... E isso só alimenta essa esperança, essa fé, mais do que nunca. Como pode não haver mais nada para alguém como Edward? Eu assenti, numa aquiescência fervorosa. – Mas se eu compartilhasse das crenças dele... – Carlisle baixou os olhos insondáveis para mim. – Se você acreditasse nelas. Você colocaria a alma dele a perder? O modo como ele elaborou a pergunta me impediu de responder. Se ele me perguntasse se eu arriscaria minha alma por Edward, a resposta seria óbvia. Mas eu arriscaria a alma de Edward? Franzi os lábios, infeliz. Não era uma troca justa. – Você entende o problema. Sacudi a cabeça, ciente da conformação obstinada de meu queixo.Carlisle suspirou. – A decisão é minha – insisti. – É dele também. – Ele ergueu a mão quando viu que eu estava prestes a discordar. – De qualquer modo, ele é responsável por fazer isso a você. – Ele não é o único capaz de fazer isso. – Olhei especulativamente para Carlisle. Ele riu, tornando de repente a atmosfera mais leve. – Ah, não! Vai ter que resolver isso com ele. – Mas depois Carlisle suspirou. – Esta é a única parte de que não posso ter certeza. Eu penso, de muitas maneiras, que fiz o melhor que pude com aquilo com que tive de lidar. Mas será certo condenar os outros a esta vida? Não consigo chegar a nenhuma conclusão. Não respondi. Imaginei como seria minha vida se Carlisle resistisse à tentação de mudar sua existência solitária... e estremeci. – Foi a mãe de Edward quem me fez decidir. – A voz de Carlisle era quase um sussurro. Ele fitava sem ver as janelas escuras.
– A mãe dele? – Sempre que eu perguntava a Edward sobre os pais, ele dizia apenas que haviam morrido muito tempo antes e que suas recordações eram vaga. Percebi que a lembrança que Carlisle
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tinha deles, apesar da brevidade de seu contato, era perfeitamente clara. – Sim. O nome dela era Elizabeth. Elizabeth Masen. O pai dele, Edward Sênior, não recuperou a consciência no hospital. Morreu no primeiro surto de gripe espanhola. Mas Elizabeth ficou alerta quase até o fim. Edward é muito parecido com ela... Elizabeth tinha cabelos do mesmo tom estranho de bronze e os olhos eram daquele mesmo tom de verde. – Os olhos dele eram verdes? – murmurei, tentando imaginar. – Sim... – Os olhos ocre de Carlisle estavam a cem anos de distância. – Elizabeth tinha uma preocupação obsessiva com o filho. Ela anulou as próprias chances de sobrevivência tentando cuidar dele no hospital. Pensei que ele fosse primeiro, seu estado era muito pior do que o dela. Quando chegou o fim de Elizabeth, foi muito rápido. Era pouco depois do poente e eu havia chegado para render os médicos que tinham trabalhado o dia todo. Era tão difícil fingir... Havia muito trabalho a ser feito e eu não precisava descansar. Como eu odiava voltar para casa, esconder-me no escuro e fingir dormir enquanto tantos estavam morrendo! Ele continuou:
– Fui ver Elizabeth e o filho primeiro. Eu me apegara a eles; uma postura que é sempre perigosa, considerando a natureza frágil dos humanos. Logo vi que ela havia piorado. A febre aumentava de modo descontrolado e seu corpo estava fraco demais para continuar lutando. Mas ela não parecia debilitada quando olhou para mim de seu leito. “Salve-o!”, exigiu na voz rouca que era o máximo que sua garganta conseguia emitir. Farei tudo que estiver em meu poder, prometi, pegando-lhe a mão. A febre estava tão alta que ela não devia sentir como minha mão era estranhamente fria. Tudo parecia frio para sua pele. “Deve fazer isso”, insistiu ela, segurando minha mão com tal força que me perguntei se ela, afinal, havia superado a crise. Seus olhos eram duros, feito pedra, como esmeraldas. “Deve fazer tudo que estiver em seu poder. O que os outros não podem fazer, é o que deve fazer por meu Edward”. Isso me assustou. Ela me fitou com aqueles olhos penetrantes, e por um momento tive certeza
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de que sabia de meu segredo. Em seguia febre a dominou e ela não recuperou a consciência. Morreu uma hora depois de fazer seu pedido. Eu passara décadas considerando a idéia de criar uma companhia para mim. Simplesmente outra criatura que pudesse me conhecer de verdade, em vez de apenas o que eu fingia ser. Mas não podia justificar isso para mim mesmo – fazer o que fizeram comigo. Lá estava Edward, morrendo. Era evidente que só lhe restavam algumas horas. Ao lado dele, a mãe, cuja face até então não estava tranqüila, ainda não estava morta. Carlisle viu tudo de novo, a lembrança nítida ao longo do século que se passou. Eu também podia ver com clareza enquanto ele falava – a desesperança do hospital, a atmosfera de morte que a tudo sobrepujava. Edward ardendo de febre, sua vida se esvaindo a cada movimento dos ponteiros do relógio... Estremeci mais uma vez e, à força, tirei a imagem da cabeça. – As palavras de Elizabeth ecoaram em minha mente. Como ela saberia o que eu podia fazer? Será que alguém de fato iria querer isso para um filho? Olhei para Edward, Mesmo tão doente, ele ainda era lindo. Havia algo de puro e bom em seu rosto. O tipo de rosto que eu desejaria que um filho meu tivesse. Depois de todos aqueles anos de indecisão, eu simplesmente agi por capricho. Primeiro levei a mãe dele ao necrotério, depois voltei para levá-lo. Ninguém percebeu que ele ainda respirava. Não havia mãos nem olhos suficientes para atender nem à metade das necessidades dos pacientes. O necrotério estava vazio – pelo menos, de gente viva. Eu o levei pela porta dos fundos e o carreguei pelos telhados até minha casa. Não tinha certeza do que devia ser feito. Preparei-me para recriar as feridas que eu mesmo recebi, tantos séculos antes, em Londres. Mais tarde me senti mal por isso. Foi mais doloroso e mais demorado do que o necessário. Mas eu não lamentava. Nunca lamentei por ter salvado Edward. Ele sacudiu a cabeça, voltando ao presente. Sorriu para mim: – Agora acho que devo levá-la para casa.
– Eu faço isso – disse Edward. Ele passou pela sala de jantar escura, andando devagar ate Carlisle. Seu rosto era suave e
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indecifrável, mas havia algo de errado nos olhos – algo que ele se esforçava muito para esconder. Senti um espasmo de ansiedade no estômago. – Carlisle pode me levar – eu disse. Olhei minha blusa; o algodão azul-claro estava ensopado de meu sangue. Meu ombro direito estava coberto de uma espessa crosta rosada. – Eu estou bem. – A voz de Edward não tinha emoção. – Vai precisar e trocar. Charlie teria um infarto se a visse desse jeito. Vou pedir a Alice para lhe arrumar alguma roupa. – Ele saiu de novo pela porta da cozinha. Olhei ansiosa para Carlisle. – Ele está muito aborrecido. – Sim – concordou Carlisle. – Esta noite aconteceu exatamente o tipo de situação que ele mais teme. Você em perigo devido ao que somos. – Não é culpa dele. – Nem sua. Olhei em seus lindos olhos sábios. Não podia concordar com aquilo.Carlisle me ofereceu a mão e me ajudou a sair da mesa. Eu o segui para a sala principal. Esme voltara; estava limpando o chão onde eu havia caído – com água sanitária, a julgar pelo cheiro que senti. – Esme, deixe que eu faça isso. – Eu podia sentir meu rosto vermelho de novo. – Já terminei. – Ela sorriu para mim. – Como se sente? – Bem – garanti. – Carlisle costura mais rápido do que qualquer outro médico que conheci. Os dois riram. Alice e Edward entraram pela porta dos fundos. Alice correu para meu lado, mas Edward ficou para trás, o rosto indecifrável. – Vamos – disse ela. – Vou lhe dar alguma peça menos macabra para vestir.
Ela encontrou para mim uma blusa de Esme que era de uma cor próxima à que eu usava. Charlie nem perceberia, disso eu tinha
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certeza. A longa atadura branca em meu braço não parecia mais tão grave, agora que eu não estava mais suja de sangue. Charlie nunca se surpreendeu por me ver de curativo. – Alice – sussurrei quando ela voltava à porta. – Sim? – Ela também manteve a voz baixa e olhou para mim com curiosidade, a cabeça tombada de lado. – A coisa está muito ruim? – Eu não podia ter certeza se meus sussurros eram um esforço inútil. Embora estivéssemos no segundo andar, a portas fechadas, talvez ele pudesse me ouvir. O rosto de Alice ficou tenso. – Ainda não tenho certeza. – Como está Jasper? Ela suspirou. – Esta muito infeliz. Isso tudo é um desafio muito maior para Jasper, e ele odeia se sentir fraco. – Não é culpa dele. Você vai dizer a ele que não estou chateada, de maneira alguma, não vai? – Claro que vou. Edward estava esperando por mim na porta da frente. Quando cheguei ao pé da escada, ele abriu a porta sem dizer uma palavra. – Leve suas coisas! – gritou Alice, enquanto eu andava com cautela até Edward. Ela pegou os dois pacotes, um aberto pela metade, e minha câmera no piano, e os colocou em meu braço bom. – Pode me agradecer depois, quando tiver aberto. Esme e Carlisle deram um boa-noite em voz baixa. Vi que eles trocavam olhares rápidos com o filho, tão impassível quanto eu. Foi um alívio sair dali; passei correndo pelas lanternas e pelas rosas, agora lembretes inadequados. Edward me acompanhou em silêncio. Abriu a porta do carona para mim e eu entrei sem me queixar. No painel havia uma grande fita vermelha, presa ao novo sistema de som. Eu a arranquei, atirando-a no chão. Assim que Edward entrou pedi outro lado, chutei a fita para baixo de meu banco.
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Ele não olhou para mim, nem para o som. Nenhum de nós o ligou, e o silêncio de algum modo foi intensificado pelo ronco súbito do motor. Ele dirigiu rápido demais pela rua escura e sinuosa. O silêncio estava me deixando louca. – Diga alguma coisa – pedi, por fim, enquanto ele entrava na estrada. – O que quer que eu diga? – perguntou, numa voz indiferente. Eu me encolhi com seu distanciamento. – Diga que me perdoa. Isso trouxe uma chama de vida ao seu rosto – uma chama de raiva. – Perdoar você? Pelo quê? – Se eu tivesse sido mais cuidadosa, nada teria acontecido. – Bella, você se cortou com papel... Isso não é motivo para pena de morte. – Ainda é minha culpa. Minhas palavras abriram a comporta. – Sua culpa? Se você tivesse se cortado na casa de Mike Newton, com Jessica, Angela e seus outros amigos normais, qual seria a pior coisa que poderia acontecer? Talvez eles não achassem um curativo? Se você tivesse tropeçado e caído sozinha em uma pilha de pratos de vidro... sem que ninguém a atirasse nela... mesmo assim, qual seria a pior conseqüência? Você teria sangrado no banco do carro enquanto eles a levavam para o pronto-socorro? Mike Newton poderia ter segurar sua mão enquanto eles a suturavam... E ele não teria reprimido o impulso de matá-la enquanto estivesse por lá. Não tente assumir responsabilidades por nada disso, Bella. Só me deixará mais revoltado comigo mesmo. – Como é que Mike Newton veio parar nesta conversa? – perguntei. – Mike Newton parou nesta conversa porque Mike Newton seria uma companhia muito mais saudável para você – rosnou ele. – Eu prefiro morrer a ficar com Mike Newton – protestei. – Prefiro morrer a ficar com alguém que não seja você. – Por favor, não seja melodramática.
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– Então não seja ridículo. Ele não respondeu. Olhou pelo pára-brisa, a expressão sombria. Revirei meu cérebro, procurando alguma idéia para salvar a noite. Quando encostamos na frente de minha casa, eu ainda não tinha pensado em nada. Ele desligou o motor, mas as mãos continuavam grudadas ao volante. – Vai passar a noite aqui? – perguntei. – Tenho que ir para casa. A última coisa que eu queria era que ele se afundasse em remorso. – Por meu aniversário. – Não pode ter duas coisas... Ou quer que as pessoas ignorem seu aniversário, ou não. Ou uma, ou outra. Sua voz era severa, mas não tão séria quanto antes. Soltei um suspiro silencioso de alívio. – Tudo bem. Decidi que não quero que você ignore meu aniversário. Vejo você lá em cima. Eu saí do carro, pegando meus pacotes. Ele franziu o cenho. – Não precisa levar isso. – Eu quero – respondi automaticamente e depois me perguntei se ele estava usando de psicologia reversa. – Não quer, não. Carlisle e Esme gastaram dinheiro com você. – Vou sobreviver a isso. – Desajeitada, enfiei os presentes sob o braço bom e bati a porta. Em menos de um segundo ele tinha saído do carro e estava a meu lado. – Pelo menos me deixe levar – disse ele ao pegá-los. – Estarei em seu quarto. Eu sorri. – Obrigada. – Feliz aniversário – ele suspirou e se inclinou para tocar meus lábios com os dele. Fiquei na ponta dos pés para que o beijo durasse mais quando ele se afastou. Ele abriu meu sorriso torto preferido e desapareceu na escuridão.
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O jogo ainda não tinha acabado; assim que passei pela porta da frente, pude ouvir o narrador divagando mais alto que o murmúrio da multidão. – Bell? – chamou Charlie. – Oi, pai – eu disse ao aparecer no canto. Mantive o braço junto do corpo. A leve pressão provocou ardência e franzi o nariz. Ao que parecia, estava passando o efeito do anestésico. – Como foi? – Charlie estava estendido no sofá, com os braços descalços no braço do móvel. O que restava de seu cabelo castanho crespo estava achatado na lateral. – Alice exagerou. Flores, bolo, velas, presentes... O pacote completo. – O que eles deram a você? – Um som para meu carro. – E várias incógnitas. – Puxa vida. – É – concordei. – Bom, vou dormir. – Vejo você de manhã. Eu acenei. – Tchau. – O que aconteceu com seu braço? Eu me virei e xinguei em silêncio. – Tropecei. Não foi nada. – Bella – suspirou ele, sacudindo a cabeça. – Boa noite, pai. Corri para o banheiro, onde eu mantinha o pijama para noites como essa. Vesti o conjunto de blusa e calça de algodão que agora substituía os moletons furados que antes eu usava para dormir, estremecendo quando o movimento puxou os pontos da sutura. Lavei o rosto com uma mão só, escovei os dentes e pulei para meu quarto. Ele estava sentado no meio da cama, brincando ociosamente com uma das caixas prateadas. – Oi – disse. Sua voz era triste. Ele estava chateado. Fui para cama, tirei os presentes das mãos dele e subi em seu colo.
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– Oi. – Eu me aninhei no peito de pedra. – Posso abrir meus presentes agora? – De onde veio esse entusiasmo todo? – perguntou ele. – Você me deixou curiosa. Peguei o retângulo comprido e achatado que devia ser de Carlisle e Esme. – Permita-me – sugeriu ele. Ele pegou o presente de minha mão e rasgou o papel prateado com um único movimento. Entregou-me a caixa branca retangular. – Tem certeza de que consigo levantar a tampa? – murmurei, mas ele me ignorou. Dentro da caixa havia uma longa folha de papel grosso com uma quantidade imensa de letras impressas. Levei um minuto para entender a essência daquelas informações. – Nós vamos a Jacksonville? – E eu fiquei animada, contra minha vontade. Eram passagens de avião, para mim e para Edward. – A idéia é essa. – Nem acredito. Renée vai ficar louca! Mas você não se importa, não é? É ensolarado, você terá que ficar entre quatro paredes o dia inteiro. – Acho que posso lidar com isso – disse ele, depois franziu o cenho. – Se eu fizesse alguma idéia de que você ia reagir de modo assim tão adequado a um presente, eu a teria feito abrir na frente de Carlisle e Esme. Pensei que você fosse reclamar. – Bom, é claro que é demais. Mas vou levar você comigo! Ele riu. – Agora eu queria ter gastado dinheiro com seu presente. Não percebi que você era capaz de ser razoável. Coloquei as passagens de lado e peguei o presente dele, minha curiosidade inflamada de novo. Ele o tirou da minha mão e o desembrulhou, como fizera com o primeiro. Edward me passou uma caixa de CD sem capa, com um CD prateado dentro dela. – O que é? – perguntei, perplexa.
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Ele não disse nada; tirou o CD e estendeu o braço em volta de mim para pegar o CD player na mesinha-de-cabeceira. Apertou play e esperou em silêncio. Depois a música começou. Eu ouvi, muda e de olhos arregalados. Sabia que ele esperava por minha reação, mas eu não conseguia falar. As lágrimas encheram meus olhos e as enxuguei antes que elas pudessem cair. – Seu braço está doendo? – perguntou ele, angustiado. – Não, não é meu braço. É lindo, Edward. Não poderia ter me dado nada que eu amasse mais. Eu nem acredito. – Fiquei quieta para poder ouvir. Era a música dele, as composições dele. A primeira peça no CD era minha cantiga de ninar. – Não achei que me deixaria comprar um piano para eu tocar para você aqui – explicou ele. – E tem razão. – Como está seu braço? – Está bem. – Na verdade, começava a arder por baixo do curativo. Eu queria gelo. Teria sossegado com a mão dele, mas isso me entregaria. – Vou pegar um Tylenol para você. – Não preciso de nada – protestei. Mas ele me tirou do colo e foi para a porta. – Charlie – sibilei. Charlie não estava exatamente ciente de que Edward costumava ficar aqui. Na verdade, ele infartaria se o fato chegasse a seu conhecimento. Mas eu não me sentia muito culpada por enganá-lo. Não era como se estivéssemos prestes a fazer alguma coisa que ele não queria que eu fizesse. Edward e suas regras... – Ele não vai me pegar – prometeu Edward ao desaparecer sem fazer barulho pela porta... e voltar, chegando à porta antes que ela tocasse o batente. Ele trazia o copo do banheiro e o frasco de comprimidos em uma das mãos. Peguei sem questionar os comprimidos que ele me entregou – eu sabia que perderia a discussão. E meu braço estava mesmo começando a incomodar. Minha cantiga de ninar continuava, suave e linda, ao fundo.
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– Está tarde – observou Edward. Ele me levantou da cama com um braço e puxou o cobertor com o outro. Deitou-me com a cabeça no travesseiro e prendeu o cobertor em volta de mim. Deitou-se a meu lado – por cima do cobertor, para que eu não ficasse com frio – e passou o braço por meu corpo. Encostei a cabeça em seu ombro e suspirei, feliz. – Obrigada de novo – sussurrei. – Não há de quê. Fez-se silêncio por um momento, enquanto eu ouvia minha cantiga de ninar se aproximar do fim. Começou outra música. Reconheci a preferida de Esme. – No que está pensando? – perguntei, num sussurro. Ele hesitou por um segundo antes de me dizer. – Estava pensando no certo e no errado. Senti um arrepio gelado percorrer minha espinha. – Lembra que eu decidi que você não deveria ignorar meu aniversário? – perguntei logo, esperando que não ficasse claro demais que eu queria distraí-lo. – Sim – concordou ele, cauteloso. – Bom, eu estava pensando, uma vez que ainda é meu aniversário, que eu gostaria que me beijasse de novo. – Está gananciosa esta noite. – Sim, estou... Mas, por favor, não faça nada que não queira – acrescentei, irritada. Ele riu, depois suspirou. – Deus me livre de fazer algo que eu não queira – disse ele num tom estranhamente desesperado ao colocar a mão sob meu queixo e puxar meu rosto para o dele.
O beijo começou normal – Edward foi cuidadoso, como sempre, e meu coração começou uma reação exagerada, como sempre. E depois algo pareceu mudar. De repente seus lábios ficaram muito mais urgentes, sua mão livre girava por meu cabelo e segurava meu rosto com firmeza no dele. E, embora minhas mãos também mexessem em seu cabelo, embora eu claramente estivesse
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começando a atravessar os limites da cautela, desta vez ele não me impediu. Seu corpo era frio no cobertor fino, ma eu me espremi contra ele com ansiedade. Quando parou, foi repentino; ele me afastou com as mãos firmes e gentis. Eu desabei no travesseiro, arfando, minha cabeça girava. Algo surgia em minha lembrança, esquivo, nas margens. – Desculpe – disse Edward, e ele também estava sem fôlego. – Isso não estava nos planos. – Eu não me importo – disse, ofegando. Ele franziu a testa para mim no escuro. – Procure dormir, Bella. – Não, quero que me beije de novo. – Está superestimando meu autocontrole. – O que é mais tentador para você: meu sangue ou meu corpo? – eu o desafiei. – Dá empate. – Ele abriu um breve sorriso, contra a vontade, depois ficou sério de novo. – Agora, por que não pára de abusar da sorte e vai dormir? – Tudo bem – concordei, aninhando-me mais perto dele. Já me sentia exausta. Fora um longo dia em muitos aspectos, e no entanto não senti alívio algum com seu fim. Era quase como se algo pior fosse acontecer no dia seguinte. Era uma premonição boba – o que podia ser pior do que aquele dia? Era o choque que só agora me ocorria, sem dúvida. Tentando me esquivar dessa sensação, apertei o braço machucado contra o ombro dele, para que sua pele fria atenuasse a ardência. Melhorou imediatamente. Eu estava meio adormecida, talvez mais, quando percebi o que o beijo dele me lembrou: na primavera passada, quando precisou me deixar para desviar James de mim, Edward me deu um beijo de despedida, sem saber quando – ou se – nos veríamos outra vez. Este beijo teve o mesmo toque quase doloroso por um motivo que eu não conseguia perceber. Estremeci em minha inconsciência, como se já estivesse tendo um pesadelo.
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3. O FIM

Pela manhã, eu me sentia absolutamente horrível. Não tinha dormido bem; meu braço queimava e a cabeça doía. Não ajudou em nada o fato de que o rosto de Edward estivesse calmo e distante quando ele beijou minha testa às pressas e saiu pela janela do quarto. Eu tinha medo do tempo que passara inconsciente, medo de que mais uma vez ele tivesse pensado no certo e no errado enquanto me via dormir. A angústia parecia intensificar o latejar em minha cabeça. Edward esperava por mim na escola, como sempre, mas sua fisionomia ainda não estava boa. Havia algo no fundo de seus olhos que eu não conseguia entender – e isso me assustava. Eu não quis falar a respeito na noite anterior, mas não tinha certeza se seria pior evitar o assunto. Ele abriu a porta para mim. – Como você está? – Perfeita – menti, encolhendo-me quando a batida da porta ecoou em minha cabeça. Andamos em silêncio, ele diminuindo o ritmo para me acompanhar. Havia tantas perguntas que eu queria fazer, mas a maioria delas teria de esperar, por que eram para Alice: Como estava Jasper esta manhã? O que eles disseram quando fui embora? O que Rosalie disse? E, mais importante, o que ela achava que ia acontecer agora, pelas visões estranhas e imperfeitas que tinha do futuro? Ela poderia adivinhar o que Edward estava pensando, por que ele estava tão sombrio? Havia fundamento para os medos sutis e instintivos que eu não conseguia afugentar? A manhã passou devagar. Fiquei impaciente para ver Alice, embora não pudesse de fato conversar com ela na presença de Edward. Ele continuou indiferente. De vez em quando, perguntava sobre meu braço, e eu mentia. Alice, em geral, chegava antes de nós no almoço; ela não precisava acompanhar uma lerda como eu. Mas ela não estava à mesa, esperando com uma bandeja de comida que não ia consumir.
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Edward não disse nada sobre a ausência dela. Imaginei se sua aula teria se estendido até mais tarde – até que vi Conner e Bem, que freqüentavam a aula de francês com ela no quarto tempo. – Onde está Alice? – perguntei a Edward ansiosa. Ao responder, ele olhava a barra de granola que quebrava devagar com as pontas dos dedos. – Está com Jasper. – Ele está bem? – Ele se afastou por um tempo. – O quê? Para onde? Edward deu de ombros. – Nenhum lugar específico. – E Alice também – eu disse, num desespero mudo. É claro que, se Jasper precisava dela, ela também iria. – Sim. Ela vai ficar fora por um tempo. Estava tentando convencê-lo a ir a Denali. Era em Denali que morava o outro clã de vampiros singulares – bons, como os Cullen. Tanya e a família dela. De vez em quando eu ouvia falar deles. Edward tinha fugido para lá no inverno passado, quando minha chegada tornou Forks difícil para ele. Laurent, o membro mais civilizado do pequeno bando de James, tinha ido para lá em vez de ficar ao lado de James contra os Cullen. Fazia sentido para Alice incentivar Jasper a ir. Engoli em seco, tentando desalojar o bolo repentino na garganta. A culpa fez minha cabeça explodir e meus ombros caírem. Eu os expulsara da própria casa, assim como Rosalie e Emmett. Eu era uma praga. – Seu braço está incomodando? – perguntou ele, cheio de atenção. – Quem liga para meu braço idiota? – murmurei, revoltada. Ele não respondeu e eu abaixei a cabeça na mesa. No final do dia, o silêncio estava se tornando ridículo. Não queria que fosse quebrado por mim, mas, ao que parecia, essa seria a única opção se quisesse que Edward voltasse a falar comigo.
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– Vai aparecer esta noite? – perguntei enquanto ele me acompanhava em silêncio até minha picape. Ele sempre me acompanhava. – Mais tarde? Fiquei satisfeita por ele parecer surpreso. – Tenho que trabalhar. Preciso compensar com a Sra. Newton por ter faltado ontem. – Ah! – murmurou ele. – Então, você vai quando eu estiver em casa, não vai? – Eu odiava me sentir, de repente, insegura com relação a isso. – Se quiser. – Eu sempre quero – lembrei a ele, talvez com intensidade um pouco maior do que a conversa exigia. Eu esperava que ele risse, ou desse um sorriso, ou reagisse de algum modo às minhas palavras. – Tudo bem, então – disse ele com indiferença. Edward me deu outro beijo na testa antes de fechar a porta para mim. Depois virou as costas e saltou, gracioso, para o carro dele. Consegui sair do estacionamento antes que o pânico realmente me atingisse, mas estava sem ar quando cheguei à loja dos Newton. Ele só precisava de tempo, eu disse a mim mesma. Edward superaria aquilo. Talvez estivesse triste porque sua família estava desaparecendo. Mas Alice e Jasper voltariam em breve, e Rosalie e Emmett também. Se fosse de alguma ajuda, eu me manteria longe da grande casa branca na margem do rio – nunca mais colocaria os pés lá. Isso não importava. Ainda veria Alice na escola. Ela voltaria à escola, não é? E ela ia até minha casa o tempo todo. Não ia querer magoar os sentimentos de Charlie, afastando-se desse jeito. Sem dúvida, eu também veria Carlisle com regularidade – no pronto-socorro.
Afinal, o que acontecera na noite passada não tinha sido nada. Nada acontecera. Eu caí – essa era a história de minha vida. Comparada com a primavera passada, parecia especialmente insignificante. James me quebrara os ossos e me deixara quase morta devido à perda de sangue – e, no entanto, Edward lidara com as
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semanas intermináveis no hospital muito melhor do que agora. Seria porque, desta vez, não era de um inimigo que ele precisava me proteger? Porque era o irmão dele? Talvez fosse melhor se ele me levasse embora, em vez de a família dele se espalhar. Fiquei um pouco menos deprimida ao considerar todo o tempo ininterrupto que teríamos sozinhos. Se ele conseguisse agüentar o ano letivo inteiro, Charlie não poderia fazer qualquer objeção. Podíamos ir para a faculdade, ou fingir que era o que estávamos fazendo, como Rosalie e Emmett este ano. Certamente, Edward podia esperar um ano. O que era um ano para um imortal? Nem para mim parecia muito tempo. Consegui recuperar compostura suficiente para sair da picape e entrar na loja. Hoje Mike Newton havia chegado antes de mim, e sorriu e acenou quando entrei. Peguei meu avental, assentindo vagamente para ele. Ainda estava imaginando hipóteses agradáveis que consistiam em Edward fugindo comigo para vários lugares exóticos. Mike interrompeu minha fantasia. – Como foi seu aniversário? – Argh – murmurei. – Fico feliz que tenha acabado. Mike me olhou pelo canto do olho como se eu fosse louca. O trabalho se arrastava. Eu queria ver Edward de novo, rezando para que ele tivesse superado o pior da situação, o que quer que fosse exatamente, quando o visse de novo. Não é nada, disse a mim mesma repetidas vezes. Tudo vai voltar ao normal. O alívio que senti quando entrei na minha rua e vi o carro prata de Edward estacionado diante da minha casa foi dominador e estonteante. E me incomodou profundamente que fosse assim. Corri para a porta da frente, chamado antes de entrar por completo. – Pai? Edward? Ao falar, eu podia ouvir a inconfundível música tema do SportsCenter da ESPN vindo da sala de estar. – Aqui – gritou Charlie. Pendurei minha capa de chuva e corri para o canto.
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Edward estava na poltrona, meu pai no sofá. Os dois tinham os olhos grudados na tevê. O interesse era normal para meu pai. Mas não muito para Edward. – Oi – eu disse baixinho. – Ei, Bella – respondeu meu pai, sem desviar os olhos. – Acabamos de comer pizza. Acho que ainda está na mesa. – Tudo bem. Esperei na soleira da porta. Por fim, Edward olhou para mim com um sorriso educado. – Vou logo depois de você – prometeu ele. Seus olhos se voltaram para a tevê. Fiquei olhando por um minuto, chocada. Nenhum dos dois pareceu perceber. Eu podia sentir alguma coisa crescendo em meu peito, talvez pânico. Fugi para a cozinha. A pizza não me interessava. Sentei em minha cadeira, botei as pernas para cima e abracei os joelhos. Algo estava muito errado, talvez mais errado do que eu percebera. O som de conversas e brincadeiras masculinas continuava vindo do televisor. Tentei me controlar, raciocinar comigo mesma. Qual é a pior coisa que pode acontecer? Eu me encolhi. Esta era, sem dúvida, a pergunta errada. Eu tinha dificuldade de respirar direito. Tudo bem, pensei novamente, qual é a pior coisa pela qual posso passar? Também não gostei muito desta pergunta. Mas pensei nas possibilidades que considerei hoje. Ficar longe da família de Edward. É claro que ele não podia esperar que Alice compactuasse com isso. Mas se Jasper estava longe, isso diminuiria o tempo que eu teria com ela. Assenti para mim mesma – eu podia viver com isso. Ou ir embora. Talvez ele não quisesse esperar até o final do ano letivo, talvez tivesse de ser agora.
Na minha frente, na mesa, os presentes de Charlie e de Renée estavam onde eu os havia deixado, a câmera que não tive oportunidade de usar na casa dos Cullen ao lado do álbum. Toquei a capa bonita do álbum de retratos que minha mãe me dera e suspirei, pensando em Renée. De algum modo, viver sem ela por tanto tempo
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não tornava mais fácil para mim a idéia de uma separação mais permanente. E Charlie continuaria aqui completamente sozinho, abandonado. Os dois ficariam tão magoados... Mas voltaríamos, não é? Viríamos de visita, é claro, não viríamos? Eu não podia ter certeza dessa resposta. Encostei o rosto no joelho, olhando para as provas concretas do amor de meus pais. Eu sabia que o caminho que escolhi seria difícil. E, afinal, eu estava pensando na pior hipótese – a pior pela qual eu pudesse passar. Toquei o álbum de novo, virando a capa. Já havia cantoneiras de metal para segurar a primeira foto. Não era má idéia fazer um registro de minha vida aqui. Senti o impulso estranho de começar. Talvez não me restasse muito tempo em Forks. Brinquei com a alça da câmera, perguntando-me sobre a primeira foto do rolo. Poderia surgir alguma imagem parecida com o original? Eu duvidava disso, mas ele não demonstrou preocupação com a possibilidade de não aparecer na foto. Sorri comigo mesma, pensando em seu riso despreocupado na noite anterior. O sorriso desapareceu. Tanto havia mudado, e tão de repente. A idéia me deixou meio tonta, como se eu estivesse parada na beira de um precipício de algum lugar muito alto. Não queria mais pensar nisso. Peguei minha câmera e subi a escada. Meu quarto não mudara quase nada nos dezessete anos desde que minha mãe estivera aqui. As paredes ainda eram azul-claras, as mesmas cortinas de renda amarelada pendiam diante da janela. Havia uma cama, em vez de um berço, mas ela reconheceria a manta desarrumada por cima dela – fora um presente de minha avó. Apesar disso, tirei uma foto de meu quarto. Não havia muito mais a fazer esta noite – estava escuro demais lá fora e a sensação ficava mais forte, agora era quase uma compulsão. Eu registraria tudo sobre Forks antes de ter de partir.
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A mudança estava vindo. Eu podia sentir. Não era uma perspectiva agradável, não quando a vida era perfeita do jeito que estava.Levei algum tempo para descer a escada, com a câmera na mão, tentando ignorar a agonia em meu estômago ao pensar na estranha distância que eu não queria ver nos olhos de Edward. Ele ia superar isso. Provavelmente, estava preocupado que eu me aborrecesse quando ele me pedisse para ir embora. Eu o deixaria lidar com isso sem me intrometer. E estaria preparada quando ele pedisse. Estava com a câmera pronta ao chegar na sala, andando de modo furtivo. Tinha certeza de que não era possível pegar Edward de surpresa, mas ele não olhou. Senti um breve tremor, como se algo gelado revirasse em minha barriga; ignorei a sensação e bati a foto. Os dois olharam para mim, Charlie de testa franzida. A cara de Edward era vazia, sem expressão. – O que está fazendo, Bella? – reclamou Charlie. – Ah, sem essa. – Fingi sorrir ao me sentar no chão diante do sofá em que Charlie se espreguiçava. – Você sabe que mamãe vai ligar logo para saber se estou usando meus presentes. Tenho de fazer alguma coisa antes que ela fique magoada. – Mas por que está tirando fotos de mim? – rosnou ele. – Porque você é lindo – respondi, mantendo o ânimo. – E porque, como comprou a câmera, tem a obrigação de ser um de meus modelos. Ele murmurou alguma frase ininteligível. – Ei, Edward – eu disse com uma indiferença admirável. – Tire uma de mim e meu pai juntos. Entreguei a câmera a ele, com o cuidado de evitar seus olhos, e me ajoelhei ao lado do braço do sofá, onde estava o rosto de Charlie, que suspirou. – Você tem que sorrir, Bella – murmurou Edward. Fiz o melhor que pude e o flash da câmera disparou. – Deixem que eu tire uma de vocês, crianças. – sugeriu Charlie.
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Eu sabia que ele só estava tentando desviar dele mesmo o foco da câmera. Edward se levantou e jogou a câmera para ele cuidadosamente. Fui me colocar ao lado de Edward,e a composição me pareceu formal e estranha. Ele pôs a mão de leve em meu ombro e eu abracei mais forte sua cintura. Eu queria olhar no rosto dele, mas tive medo. – Sorria, Bella – lembrou-me Charlie de novo. Respirei fundo e sorri. O flash me cegou. – Chega de fotos por hoje – disse Charlie então, enfiando a câmera numa fresta das almofadas do sofá e rolando sobre ela. – Não precisa usar o filme todo agora. Edward tirou a mão de meu ombro e livrou-se com delicadeza de meu braço. Voltou a se sentar na poltrona. Eu hesitei, depois me sentei encostada no sofá de novo. De repente senti tanto medo que minhas mãos tremiam. Apertei-as contra a barriga para escondê-las, coloquei o queixo nos joelhos e fitei a tela da tevê diante de mim, sem ver nada. Quando o programa terminou, não me mexi nem um centímetro. Pelo canto do olho, vi Edward se levantar. – É melhor eu ir para casa – disse ele. Charlie não desviou os olhos do comercial. – Tchau. Coloquei-me desajeitada de pé – eu estava rígida de ficar sentada tão imóvel – e acompanhei Edward até a porta da frente. Ele foi direto para o carro. – Vai ficar? – Perguntei, sem esperança na voz. Já sabia qual seria a reposta dele, então não doeu tanto assim. – Esta noite não. Não pedi um motivo para isso. Ele entrou no carro e arrancou enquanto eu estava parada ali, sem me mexer. Mal percebi que chovia. Esperei, sem saber o que aguardava, até que a porta se abriu atrás de mim. – Bella, o que você está fazendo? – perguntou Charlie, surpreso por me ver parada ali, sozinha e tomando chuva. – Nada. – Virei-me e cambaleei de volta para casa.
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Foi uma noite longa, com pouco descanso. Levantei assim que uma luz fraca entrou pela janela. Vesti-me mecanicamente para a escola esperando que o tempo clareasse, e depois que comi uma tigela de cereais concluí que havia luz suficiente para as fotos. Tirei uma da minha picape, depois uma da frente da casa. Virei-me e tirei algumas do bosque ao lado da casa de Charlie. Engraçado como não parecia sinistro como costumava ser. Percebi que ia sentir falta disso – do verde, daquele caráter eterno, do mistério do bosque. De tudo. Coloquei a câmera na mochila da escola antes de sair. Tentei me concentrar em meu novo projeto, em vez de pensar que Edward pelo visto não tinha superado os acontecimentos durante a noite. Junto com o medo, eu começava a sentir impaciência. Quanto tempo isso duraria? Durou a manhã inteira. Ele andou em silêncio ao meu lado, sem parecer olhar realmente para mim. Tentei me concentrar nas aulas, mas nem a de inglês conseguiu prender minha atenção. O Sr. Berty teve de repetir a pergunta sobre Lady Capuleto duas vezes antes que eu percebesse que estava falando comigo. Edward sussurrou a resposta correta e voltou a me ignorar. No almoço, o silêncio continuou. Achei que ia começar a gritar a qualquer momento, então, para me distrair, inclinei-me por sobre a linha invisível da mesa e falei com Jessica. – Ei, Jess? – Que foi, Bella? – Pode me fazer um favor? – perguntei, pegando minha mochila. – Minha mãe quer que eu tire algumas fotos de meus amigos para um álbum. Então, tire umas fotos de todo mundo, está bem? Entreguei a câmera a ela. – Claro – disse ela, sorrindo, e se virou para fazer uma foto indiscreta de Mike com a boca cheia.
Seguiu-se uma previsível batalha de fotos. Eu os vi passar a câmera pela mesa, rindo, paquerando e reclamando por aparecer no
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filme. Parecia estranhamente infantil. Talvez hoje eu não estivesse com humor para o comportamento humano normal. – Epa – disse Jessica, desculpando-se ao devolver a câmera. – Parece que usamos todo o seu filme. – Está tudo bem. Acho que já tirei fotos de tudo mais que precisava. Depois da escola, Edward andou em silêncio comigo até o estacionamento. Eu tinha de trabalhar de novo, e desta vez fiquei feliz. Era óbvio que ficar comigo não estava ajudando. Talvez um tempo sozinho fosse melhor. A caminho da loja dos Newton, deixei meu filme para revelar, depois peguei as fotos prontas ao sair do trabalho. Em casa, cumprimentei Charlie com afobação, peguei uma barra de granola na cozinha e corri para meu quarto com o envelope de fotos enfiado debaixo do braço. Sentei-me no meio da cama e abri o envelope com uma curiosidade cautelosa. Era ridículo, mas eu ainda esperava um pouco que a primeira foto estivesse em branco. Quando a retirei, suspirei alto. Edward estava lindo como na vida real, fitando-me da foto com aqueles olhos calorosos dos quais senti falta nos últimos dias. Era quase um mistério que alguém pudesse ser tão... tão... indescritível. Nem mil palavras podiam equivaler àquela foto. Folheei com pressa as outras da pilha, depois coloquei três delas na cama, lado a lado. A primeira era a de Edward na cozinha, os olhos calorosos com um toque de diversão tolerante. A segunda era de Edward e Charlie, assistindo à ESPN. A diferença na expressão de Edward era patente. Aqui os olhos eram cuidadosos e reservados. Ainda era incrivelmente bonito, mas o rosto estava mais frio, mais como uma escultura, menos vivo.
A última era a foto de Edward e eu, lado a lado, desajeitados. A expressão de Edward era a mesma da última, fria e de estátua. Mas não era essa a parte mais perturbadora da foto. O contraste entre nós dois era doloroso. Ele parecia um deus. Eu era medíocre, até para
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uma humana, quase vergonhosamente simples. Virei a foto com sensação de repulsa. Em vez de fazer o dever de casa, fiquei acordada colocando as fotos no álbum. Com uma caneta esferográfica, escrevi legendas embaixo de todas as fotos, os nomes e as datas. Cheguei à foto de Edward comigo e, sem olhar muito tempo para ela, dobrei-a ao meio e a enfiei sob as cantoneiras de metal, com Edward virado para cima. Quando terminei, coloquei o segundo grupo de fotos em um envelope novo e escrevi uma longa carta de agradecimento para Renée.Edward ainda não tinha aparecido. Eu não queria admitir que ele era o motivo de eu ficar acordada até tão tarde, mas e claro que era. Tentei me lembrar da última vez que ele ficara longe desse jeito, sem uma desculpa, um telefonema... Ele nunca tinha feito isso. Mais uma vez, não dormi bem. Na escola seguiu-se o padrão de silêncio, frustração e pavor dos dois dias anteriores. Foi um alívio ver Edward esperando por mim no estacionamento, mas a sensação logo desapareceu. Ele não estava diferente, a não ser, talvez, mais distante. Era difícil até me lembrar do motivo para toda essa confusão. Meu aniversário já parecia pertencer a um passado distante. Se ao menos Alice voltasse. Logo. Antes que tudo saísse ainda mais de controle. Mas eu não podia contar com isso. Decidi que se não conseguisse conversar com ele, conversar mesmo, ia procurar Carlisle no dia seguinte. Eu precisava agir. Depois da aula, Edward e eu resolveríamos isso, prometi a mim mesma. Eu não ia aceitar nenhuma desculpa. Ele me acompanhou até a picape e eu criei coragem para fazer minhas exigências. – Importa-se se eu aparecer hoje? – perguntou ele antes de chegarmos ao carro, antecipando-se. – É claro que não. – Agora? – perguntou novamente, abrindo a porta para mim.
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– Claro. – Mantive o tom firme, embora não gostasse da urgência na voz dele. – No caminho, vou colocar uma carta no correio para Renée. Encontro você lá. Ele olhou o envelope volumoso no banco do carona. De repente, estendeu o braço por mim e o pegou. – Eu faço isso – disse baixinho. – E ainda vou chegar em sua casa antes de você. – Ele abriu meu sorriso torto preferido, mas era o sorriso errado. Não chegava aos olhos dele. – Tudo bem – concordei, incapaz de sorrir também. Ele fechou a porta e foi para o próprio carro. Edward chegou antes de mim. Tinha estacionado na vaga de Charlie quando parei na frente da casa. Isso era mau sinal. Então, ele não pretendia ficar. Sacudi a cabeça e respirei fundo, tentando reunir alguma coragem. Quando desci da picape, ele saiu do carro e veio ao meu encontro. Estendeu a mão para pegar minha mochila com os livros. Isso era normal. Mas ele a colocou no banco traseiro do carro. Isso não era normal. – Vamos dar uma caminhada – sugeriu numa voz sem emoção, pegando minha mão. Não respondi. Não conseguia pensar numa forma de protestar, mas imediatamente sabia que queria fazer isso. Eu não estava gostando. Isso é ruim, é muito ruim, a voz na minha cabeça repetia sem parar. Mas ele não esperou por uma resposta. Puxou-me para o lado leste do jardim, onde o bosque o invadia. Eu o segui de má vontade, tentando pensar em meio ao pânico. Era o que eu queria, lembrei a mim mesma. A oportunidade de discutir tudo isso. Então, por que o pânico me sufocava? Demos somente alguns passos entre as árvores quando ele parou. Mal estávamos na trilha – eu ainda podia ver a casa. Uma caminhada. Edward encostou numa árvore e me fitou, a expressão indecifrável.
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– Tudo bem, vamos conversar – eu disse. Pareci mais corajosa do que me sentia. Ele respirou fundo. – Bella, nós vamos embora. Respirei fundo também. Era uma opção aceitável. Pensei que estivesse preparada. Mas ainda precisei perguntar. – Por que agora? Mais um ano... – Bella, está na hora. Afinal, quanto tempo mais poderemos ficar em Forks? Carlisle não pode passar dos 30, e ele agora diz ter 33. Logo teremos de recomeçar, de qualquer forma. A resposta dele me confundiu. Pensei que o sentido de ir embora era deixar que sua família vivesse em paz. Por que tínhamos de ir embora se eles estavam partindo? Olhei para Edward, tentando entender o que ele queria dizer. Ele me encarou com frieza. Com uma onda de náusea, percebi que tinha entendido mal. – Quando você diz nós... – sussurrei. – Quero dizer minha família e eu. – Cada palavra separada e distinta. Balancei a cabeça para trás e para a frente mecanicamente, tentando organizá-la. Ele esperou sem nenhum sinal de impaciência. Precisei de alguns minutos para conseguir falar. – Tudo bem – eu disse. – Vou com você. – Não pode, Bella. Aonde vamos... não é o lugar certo para você. – Onde você está é o lugar certo para mim. – Não sou bom para você, Bella. – Não seja ridículo. – Queria aparentar raiva, mas pareceu apenas que eu estava implorando. – Você é a melhor parte da minha vida. – Meu mundo não é para você – disse ele de maneira sombria. – O que aconteceu com Jasper... Não foi nada, Edward! Nada! – Tem razão – concordou ele. – Foi exatamente o esperado. – Você prometeu! Em Phoenix, você prometeu que ficaria...
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– Desde que fosse o melhor para você – ele interrompeu para me corrigir. – Não! Tem a ver com a minha alma, não é? – eu gritava, furiosa, as palavras saindo de mim numa explosão. De algum modo, ainda parecia uma súplica. – Carlisle me falou disso, e eu não me importo, Edward. Não me importo! Você pode ter minha alma. Não a quero sem você... Ela já é sua! Ele respirou fundo e por um longo momento encarou o chão, sem ver. Sua boca se retorceu um pouco. Quando enfim ele se voltou para mim, seus olhos estavam diferentes, mais duros – como se o ouro líquido tivesse solidificado. – Bella, não quero que você venha comigo. – Ele pronunciou as palavras de modo lento e preciso, os olhos frios em meu rosto, observando-me absorver o que ele realmente estava dizendo. Houve uma pausa enquanto eu repetia as palavras em minha cabeça algumas vezes, procurando seu verdadeiro significado. – Você... não... me quer? – experimentei dizer, confusa pelo modo como as palavras soavam, colocadas nessa ordem. – Não. Eu olhei, sem compreender, nos olhos dele. Ele me fitava de volta sem desculpas. Seus olhos eram como topázio – duros, claros e muito profundos. Eu parecia poder enxergar dentro deles por quilômetros, e, no entanto, em nenhum lugar das profundezas sem fim conseguia ver uma contradição para o que ele acabara de dizer. – Bom, isso muda tudo. – Fiquei surpresa ao ver como minha voz parecia calma e razoável. Devia ser porque eu estava cem por cento entorpecida. Não conseguia entender o que ele me dizia. Ainda não fazia sentido algum. Ele desviou os olhos para as árvores ao voltar a falar. – È claro que sempre a amarei... de certa forma. Mas o que aconteceu na outra noite me fez perceber que está na hora de mudar. Porque... estou cansado de fingir ser uma coisa que não sou, Bella. Não sou humano. – Ele voltou a me olhar, e a superfície gelada de seu rosto perfeito não era humana. – Permiti que isso durasse tempo demais, e lamento.
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– Não lamente. –Agora minha voz era só um sussurro; a consciência começava a me invadir, gotejando como ácido em minhas veias. – Não faça isso. Ele simplesmente olhou para mim, e em seus olhos eu pude ver que minhas palavras chegaram tarde demais. Ele tinha feito. – Você não é boa para mim, Bella. – Ele mudara de idéia, e eu não tinha argumentos. Eu sabia muito bem que não era boa o suficiente para ele. Abri a boca para falar, depois voltei a fechá-la. Ele esperou, paciente, o rosto sem emoção alguma. Tentei novamente. – Se... é isso que você quer. Ele assentiu uma vez. Todo o meu corpo ficou dormente. Eu não conseguia sentir nada abaixo do pescoço. – Mas gostaria de lhe pedir um favor, se não for demais – disse ele. Perguntei-me o que ele viu em meu rosto, porque algo passou pela expressão dele, uma reação. Mas, antes que eu pudesse identificar, ele recompôs as feições na mesma máscara serena. – O que quiser – prometi, a voz um pouco mais forte. Enquanto eu olhava, seus olhos congelados derreteram. O ouro tornou-se líquido de novo, fundido, ardendo nos meus com uma intensidade que me oprimia. – Não cometa nenhuma imprudência, nenhuma idiotice – ordenou ele, agora sem aquele desligamento. – Entende o que estou dizendo? Eu assenti, desamparada. Seus olhos esfriaram e a distância voltou. – Estou pensando em Charlie, é claro. Ele precisa de você. Cuide-se... por ele. Assenti de novo. – Vou me cuidar – sussurrei. Ele pareceu relaxar um pouco.
– E, em troca, vou lhe fazer uma promessa – disse ele. – Prometo que esta será a última vez que vai me ver. Não voltarei. Não
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a farei passar por nada como isso novamente. Você poderá seguir com sua vida sem qualquer interferência minha. Será como se eu nunca tivesse existido. Meus joelhos devem ter começado a tremer, porque de repente as árvores oscilaram. Eu podia ouvir o sangue martelando mais rápido do que o normal em meus ouvidos. A voz dele parecia distante. Ele sorriu gentilmente. – Não se preocupe. Você é humana... Sua memória não passa de uma peneira. O tempo cura todas as feridas para a sua espécie. – E as suas lembranças? – perguntei. Parecia que havia algo preso em minha garganta, como se eu estivesse sufocando. – Bem... – ele hesitou por um breve segundo – ...não vou esquecer. Mas minha espécie... Nós nos distraímos com muita facilidade. – Ele sorriu; o sorriso era tranqüilo e aparecia em seus olhos.Ele se afastou um passo de mim. – Acho que isso é tudo. Não vamos incomodá-la de novo. O plural atraiu minha atenção. Isso me surpreendeu; achava que perceber qualquer coisa estava além de minha capacidade. – Alice não vai voltar – percebi. Não sei como ele me ouviu; as palavras não tinham som algum, mas ele pareceu entender. Ele sacudiu a cabeça devagar, sempre olhando meu rosto. – Não. Todos já foram. Fiquei para trás para lhe dizer adeus. – Alice foi embora? – Minha voz descrente era inexpressiva. – Ela queria se despedir, mas a convenci de que uma ruptura sem trauma seria o melhor para você. Eu estava tonta; era difícil me concentrar. As palavras dele giravam em minha cabeça e ouvi o médico do hospital de Phoenix, na primavera anterior, enquanto me conduzia para a radiografia. Pode-se ver que é uma ruptura sem trauma, com os dedos acompanhando a imagem de meu osso quebrado. Isso é bom. Vai se curar com mais facilidade, com mais rapidez. Tentei respirar num ritmo normal. Eu precisava me concentrar, encontrar uma forma de sair daquele pesadelo.
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– Adeus, Bella – disse ele na mesma voz baixa e tranqüila. – Espere! – Eu me engasguei com a palavra, estendendo o braço para ele, obrigando minhas pernas dormentes a me levarem para a frente. Pensei que ele também estivesse estendendo os braços para mim. Mas suas mãos frias se fecharam em meus pulsos e prenderam-nos ao lado de meu corpo. Ele se inclinou e tocou os lábios muito de leve na minha testa pelo mais breve dos instantes. Meus olhos se fecharam. – Cuide-se – sussurrou ele, frio contra minha pele. Veio uma brisa leve, nada natural. Meus olhos se abriram. As folhas de um pequeno bordo estremeceram com o vento suave de sua passagem. Ele se fora. Com as pernas trêmulas, ignorando o fato de que minha atitude era inútil, eu o segui para a floresta. O sinal de sua passagem desapareceu de imediato. Não havia pegadas, as folhas estavam imóveis de novo, mas avancei sem pensar. Não podia agir de outro modo. Precisava continuar em movimento. Se parasse de procurar por ele, estaria tudo acabado. O amor, a vida, o significado... acabados. Andei e andei. O tempo não fazia sentido enquanto eu avançava bem devagar pelo denso bosque. Passavam-se horas, mas também apenas segundos. Talvez eu tivesse a impressão de que o tempo congelara porque a floresta parecia a mesma, independentemente da distância que eu percorresse. Comecei a me preocupar que estivesse andando em círculos, um pequeno círculo, mas continuei andando. Tropecei várias vezes e, à medida que o dia escurecia, caí muitas vezes também. Por fim, dei uma topada em alguma coisa – agora estava escuro, eu não fazia idéia do que prendera meu pé – e caí. Rolei de lado, para conseguir respirar, e me enrosquei nas samambaias úmidas.
Enquanto estava deitada ali, tive a sensação de que se passara mais tempo do que eu percebera. Não conseguia me lembrar de
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quanto tempo se passara desde o anoitecer. Será que ali era sempre tão escuro à noite? Com certeza, como sempre, alguns feixes da luz do luar se infiltrariam pelas nuvens, através das frestas no dossel das árvores, e encontrariam o chão. Não naquela noite. Naquela noite o céu estava completamente negro. Talvez não houvesse lua – um eclipse lunar, uma lua nova. Uma lua nova. Eu tremi, embora não estivesse com frio. Ficou escuro por um longo tempo antes que eu os ouvisse chamando. Alguém gritava meu nome. Era abafado, amortecido pelas plantas úmidas que me cercavam, mas sem dúvida era meu nome. Não reconheci a voz. Pensei em responder, mas estava confusa e precisei de um bom tempo para chegar à conclusão de que devia responder. Até lá, o chamado tinha cessado. Algum tempo depois, a chuva me acordou. Não acho que eu realmente tenha dormido; só me perdi num estupor sem pensamentos, prendendo-me com todas as forças ao torpor que me impedia de perceber o que eu não queria. A chuva me incomodava um pouco. Era fria. Soltei os braços que envolviam as pernas para cobrir o rosto. Foi então que ouvi o chamado mais uma vez. Agora estava mais distante, e parecia que várias vozes me chamavam ao mesmo tempo. Tentei respirar fundo. Eu me lembrava, de que devia responder, mas não achei que conseguiriam me ouvir. Eu seria capaz de gritar alto o suficiente? De repente, houve outro som, assustadoramente perto. Uma espécie de fungadela, um ruído animal. Parecia grande. Perguntei-me se devia sentir medo. Não senti – só torpor. Não importava. O farejar se afastou. A chuva continuou e eu podia sentir a água empoçando em meu peito. Estava tentando reunir forças para virar a cabeça quando vi a luz.
No início era só um brilho fraco refletido nos arbustos ao longe. E foi se tornando cada vez mais forte, iluminando um grande espaço, ao contrário do feixe concentrado de uma lanterna. A luz
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atravessou o arbusto mais próximo e pude ver que era uma lanterna de propano, mas foi só o que consegui ver – a claridade me cegou por um momento. – Bella A voz era grave e desconhecida, mas cheia de reconhecimento. Ele não chamava meu nome para me procurar, mas porque havia me encontrado. Olhei para cima – parecia incrivelmente alto –, para a face escura que agora podia ver acima de mim. Eu tinha vaga noção de que o estranho só parecia tão alto porque minha cabeça ainda estava no chão. – Machucaram você? Sabia que as palavras significavam alguma coisa, mas só conseguia olhar para a frente, desnorteada. Como o significado poderia importar a essa altura? – Bella, meu nome é Sam Uley. Não havia nada de familiar no nome dele. – Charlie me mandou procurar você. Charlie? Isso me lembrou de alguma coisa e tentei prestar mais atenção ao que ele estava dizendo. Charlie importava, se nada mais importasse. O homem alto estendeu a mão. Olhei para ela, sem saber o que devia fazer. Seus olhos escuros me avaliaram por um segundo, depois ele deu de ombros. Num movimento rápido e flexível, me tirou do chão e me colocou nos braços. Fiquei pendurada ali, molenga, enquanto o homem andava rapidamente pelo bosque úmido. Alguma parte de mim sabia que isso devia me aborrecer – ser carregada por um estranho. Mas não havia mais nada em mim para ser contrariado. Não pareceu ter passado muito tempo até que houvesse luzes e o balbuciar grave de muitas vozes masculinas. Sam Uley reduziu o passo ao se aproximar do tumulto. – Eu a encontrei! – gritou ele numa voz de trovão.
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O balbuciar cessou, depois recomeçou com mais intensidade. Um redemoinho confuso de rostos se moveu acima de mim. A voz de Sam era a única que fazia sentido no caos, talvez porque meu ouvido estivesse encostado em seu peito. – Não, não acho que esteja ferida – disse ele a alguém. – Ela só ficou dizendo “Ele foi embora”. Eu disse em voz alta? Mordi o lábio. – Bella, querida, você está bem? Esta era uma voz que eu reconheceria em qualquer lugar – mesmo distorcida, como agora, de preocupação. – Charlie? – Minha voz parecia estranha e fraca. – Estou bem aqui, garota. Houve um remexer embaixo de mim, seguido pelo cheiro de couro da jaqueta de xerife de meu pai. Charlie cambaleou com meu peso. – Talvez eu deva levá-la – sugeriu Sam Uley. – Eu a levo – disse Charlie, meio sem fôlego. Ele andou devagar, com esforço. Queria poder lhe dizer para me colocar no chão e me deixar andar, mas não consegui encontrar minha voz. Havia luzes em toda parte, carregadas por uma multidão que andava com ele. Senti-me num desfile. Ou num cortejo fúnebre. Fechei os olhos. – Estamos quase em casa, querida – murmurava Charlie de vez em quando. Abri os olhos novamente quando ouvi a porta ser destrancada. Estávamos na varanda de nossa casa, e o homem alto e escuro chamado Sam segurava a porta para Charlie, um braço estendido para nós, como se estivesse se preparando para me pegar quando os braços de Charlie falhassem. Mas Charlie conseguiu me levar pela porta até o sofá na sala de estar. – Pai, estou toda molhada – reclamei, baixo.
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– Isso não tem importância. – A voz dele estava rouca. E depois ele estava falando com outra pessoa. – Os cobertores estão no segundo andar. – Bella? – perguntou uma nova voz. Olhei o homem grisalho inclinado sobre mim e o reconheci depois de alguns demorados segundos. – Dr. Gerandy? – murmurei. – Isso mesmo, querida – disse ele. – Está machucada, Bella? Precisei de um minuto para pensar nisso. Eu estava confusa com a lembrança da pergunta semelhante de Sam Uley no bosque. Só que Sam tinha perguntado de outra maneira: Machucaram você?, dissera ele. A diferença parecia de algum modo significativa. O Dr. Gerandy esperava, uma sobrancelha grisalha erguida e as rugas da testa mais fundas. – Não estou machucada – menti. As palavras eram bastante verdadeiras para o que ele perguntara. Sua mão quente tocou minha testa e os dedos pressionaram a face interna de meu pulso. Observei seus lábios enquanto ele contava consigo mesmo, os olhos no relógio. – O que aconteceu com você? – perguntou com calma. Fiquei paralisada sob sua mão, sentindo o gosto do pânico no fundo da garganta. – Você se perdeu no bosque? – incitou ele. Eu sabia que havia várias outras pessoas ouvindo. Três homens altos com rosto moreno – de La Push, a reserva indígena quileute descendo pelo litoral, imaginei –, entre eles Sam Uley, estavam parados muito perto e me olhavam. O Sr. Newton estava ali com Mike e o Sr. Weber, pai de Angela; todos me olhavam mais de esguelha do que os estranhos. Outras vozes graves trovejaram da cozinha e do lado de fora da porta da frente. Metade da cidade devia estar procurando por mim. Charlie estava mais perto. Ele se inclinou para ouvir minha resposta. – Sim – sussurrei. – Eu me perdi.
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O médico assentiu, pensativo, os dedos sondando delicadamente as glândulas sob meu queixo. O rosto de Charlie enrijeceu. – Está cansada? – perguntou o Dr. Gerandy. Eu assenti e fechei os olhos, obediente. – Não acho que haja nada de errado com ela – ouvi o médico murmurar para Charlie logo depois. – É só exaustão. Deixe que ela durma e voltarei amanhã para vê-la. – Ele parou. Deve ter olhado o relógio, porque acrescentou: – Bem, na verdade hoje ainda, mais tarde.Houve um rangido quando os dois se levantaram do sofá. – É verdade? – sussurrou Charlie. As vozes agora eram mais distantes. Eu me esforcei para ouvir. – Eles foram embora? – O Dr. Cullen nos pediu para não contar nada – respondeu o Dr. Gerandy. – A oferta foi muito repentina; tiveram de decidir de imediato. Carlisle não queria fazer alarde de sua partida. – Um pequeno aviso teria sido bom – grunhiu Charlie. O Dr. Gerandy pareceu pouco à vontade quando respondeu. – Sim, bem, nesta situação, eles poderiam ter avisado. Eu não queria ouvir mais. Tateei em volta, procurando pela manta que alguém colocara em cima de mim, e a puxei sobre meus ouvidos. Fiquei vagando entre o sono e a vigília. Ouvi Charlie sussurrar agradecimentos aos voluntários enquanto, um por um, eles saíam. Senti os dedos dele em minha testa e depois o peso de outro cobertor. O telefone tocou algumas vezes e ele correu para atender antes que pudesse me acordar. Ele murmurava palavras tranqüilizadoras em voz baixa a quem ligava. “Sim, nós a encontramos.” “Ela está bem.” “Ela se perdeu. Agora está bem”, disse ele repetidas vezes. Ouvi as molas da poltrona rangerem quando ele se acomodou ali para passar a noite. Alguns minutos depois, o telefone tocou novamente.
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Charlie gemeu enquanto se levantava, depois correu, tropeçando, até a cozinha. Afundei mais a cabeça no cobertor, sem querer ouvir a mesma conversa de novo. – Sim – disse Charlie, e bocejou. Sua voz mudou, era muito mais alerta quando voltou a falar. – Onde? – Houve uma pausa. – Tem certeza de que é fora da reserva? – Outra pausa curta. – Mas o que poderia estar queimando lá? – Ele pareceu ao mesmo tempo preocupado e aturdido. – Espere, vou ligar para lá e verificar. Ouvi com mais interesse enquanto ele discava um número. – Oi, Billy, é o Charlie... Desculpe ligar a essa hora... Não, ela está bem. Está dormindo... Obrigado, mas não foi por isso que telefonei. Acabo de receber uma ligação da Sra. Stanley e ela disse que da janela do segundo andar ela vê fogo nos penhascos da praia, mas eu não... Oh! – De repente havia tensão em sua voz, irritação... ou raiva. – E por que estão fazendo isso? Arrã. É mesmo? – disse isso com sarcasmo. – Bom, não se desculpe a mim. Sim, sim. Só cuide para que o fogo não se espalhe... Sei, sei, estou surpreso que tenham acendido com esse clima. Charlie hesitou e acrescentou, com relutância: – Obrigado por mandar Sam e os outros rapazes. Você tinha razão... Eles conhecem o bosque melhor do que nós. Foi Sam quem a achou, então eu lhe devo uma... É, converso com você mais tarde – concordou ele, ainda amargo, antes de desligar. Charlie murmurou algumas palavras incoerentes ao voltar se arrastando para a sala de estar. – Qual é o problema? – perguntei. Ele correu para meu lado. – Desculpe se a acordei, querida. – Tem algum incêndio? – Não é nada – garantiu-me ele. – Só umas fogueiras no penhasco. – Fogueiras? – perguntei. Minha voz não parecia curiosa. Parecia morta. Charlie franziu o cenho.
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– Uns garotos da reserva aprontando – explicou. – Por quê? – perguntei, desanimada. Eu sabia que ele não queria responder. Ele olhou para o chão. – Estão comemorando a novidade. – Seu tom era amargurado. Só havia uma novidade em que eu podia pensar, apesar de sequer poder tentar. E depois as peças se encaixaram. – Porque os Cullen se foram – sussurrei. – Eles não gostam dos Cullen em La Push... Tinha me esquecido disso. Os quileutes tinham suas superstições a respeito dos “frios”, os bebedores de sangue que eram inimigos da tribo, assim como tinham suas lendas da grande inundação e de ancestrais lobisomens. Só histórias, folclore, a maior parte delas. Mas havia os poucos que acreditavam. Billy Black, grande amigo de Charlie, acreditava, embora Jacob, seu filho, pensasse que ele era cheio de superstições idiotas. Billy me alertara para ficar longe dos Cullen... O nome agitou alguma coisa dentro de mim, algo que começou a mostrar as garras na superfície, algo que eu sabia que não queria enfrentar. – É ridículo – cuspiu Charlie. Ficamos sentados em silêncio por um momento. O céu não estava mais preto do lado de fora da janela. Em algum lugar por trás da chuva, o sol começava a nascer. – Bella? – perguntou Charlie. Olhei para ele com inquietude. – Ele a deixou sozinha no bosque? – sondou Charlie. Eu me desviei da pergunta. – Como você sabia onde me encontrar? – Minha mente recuou da consciência inevitável que agora chegava rápido. – Seu bilhete – respondeu Charlie, surpreso. Ele tirou do bolso do jeans um pedaço de papel muito surrado. Estava sujo e molhado, com vários vincos por ter sido aberto e redobrado várias vezes. Ele o abriu de novo e ergueu como prova. A caligrafia confusa era extraordinariamente parecida com a minha. Fui dar uma caminhada com Edward na trilha, dizia. Volto logo, B.
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– Como você não voltou, liguei para os Cullen, e ninguém atendeu – disse Charlie em voz baixa. – Depois liguei para o hospital e o Dr. Gerandy me contou que Carlisle tinha ido embora. – Para onde eles foram? – murmurei. Ele me encarou. – Edward não contou a você? Sacudi a cabeça, recuando. O som daquele nome desatrelou aquilo que arranhava com suas garras dentro de mim – uma dor que me tirou o fôlego, atordoou-me com sua força. Charlie me olhou em dúvida ao responder. – Carlisle aceitou um emprego num grande hospital de Los Angeles. Acho que ofereceram muito dinheiro a ele. A ensolarada Los Angeles. O último lugar aonde eles realmente iriam. Lembrei-me de meu pesadelo com o espelho... O sol forte cintilando na pele dele... Fui tomada de agonia ao me lembrar de seu rosto. – Quero saber se Edward deixou você sozinha no meio do bosque – insistiu Charlie. O nome provocou outra onda de tortura em mim. Sacudi a cabeça, frenética, desesperada para escapar da dor. – Foi minha culpa. Ele me deixou aqui na trilha, à vista da casa... Mas eu tentei segui-lo. Charlie começou a dizer alguma coisa; como uma criança, eu tapei os ouvidos. – Não posso mais falar disso, pai. Quero ir para o meu quarto. Antes que ele pudesse responder, tropecei para fora do sofá e me lancei escada acima. Alguém esteve na casa e deixou um bilhete para Charlie, um bilhete que o levaria a me encontrar. No minuto em que percebi isso, uma suspeita horrível começou a crescer em minha mente. Disparei para meu quarto, batendo e trancando a porta antes de correr até o CD player ao lado de minha cama. Tudo parecia exatamente como deixei. Apertei a tampa do CD player. A trava se soltou e a tampa se abriu devagar. Estava vazio.
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O álbum que Renée me dera estava no chão ao lado da cama, exatamente onde eu o colocara. Virei a capa com a mão trêmula. Não precisei passar de primeira página. As pequenas cantoneiras de metal não prendiam mais a foto. A página estava vazia, a não ser por minha própria letra rabiscada embaixo: Edward Cullen, cozinha de Charlie. 13 de setembro. Parei por ali. Tinha certeza de que ele faria o serviço completo. Será como se eu nunca tivesse existido, ele me prometera. Senti o chão de madeira liso sob meus joelhos, depois sob a palma das mãos e, em seguida, comprimido sob a pele de meu rosto. Eu esperava estar desmaiando, mas, para minha decepção, não perdi a consciência. As ondas de dor que haviam me assaltado pouco tempo antes se erguiam agora com força e inundaram minha cabeça, puxando-me para baixo. Não voltei à superfície.
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OUTUBRO
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NOVEMBRO
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DEZEMBRO
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JANEIRO
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4. DESPERTAR 

O tempo passa. Mesmo quando isso parece impossível. Mesmo quando cada batida do ponteiro dos segundos dói como o sangue pulsando sob um hematoma. Passa de modo inconstante, com guinadas estranhas e calmarias arrastadas, mas passa. Até para mim. O punho de Charlie bateu na mesa. – É isso, Bella! Vou mandar você para casa. Desviei os olhos dos cereais, que eu analisava em vez de comer, e encarei Charlie, chocada. Eu não estava acompanhando a conversa – na verdade, nem estava ciente de que havia uma conversa – e não sabia bem o que ele queria dizer. – Eu estou em casa – murmurei, confusa. – Vou mandar você para Renée, para Jacksonville – esclareceu ele. Charlie olhava exasperado enquanto eu lentamente compreendia o significado das palavras dele. – O que eu fiz? – Senti meu rosto franzir. Era tão injusto! Meu comportamento tinha sido irrepreensível nos últimos quatro meses. Depois daquela primeira semana, da qual nenhum de nós jamais falava. Não perdi nenhum dia de aula ou de trabalho. Minhas notas eram perfeitas. Nunca desrespeitava o toque de recolher – também, não fui a lugar algum para que pudesse desrespeitar o toque de recolher. Só muito raramente servia comida de véspera. Charlie estava com cara de poucos amigos. – Você não fez nada. É esse o problema. Você nunca faz nada. – Quer que eu me meta em problemas? – perguntei, minhas sobrancelhas se unindo de perplexidade. Fiz esforço para prestar atenção. Não foi fácil. Estava tão acostumada a me desligar de tudo que meus ouvidos pareciam tampados.
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– Ter problemas ainda seria melhor do que isso... Essas lamentações o tempo todo! Isso me magoou um pouco. Tive cuidado de evitar todas as formas de mau humor, inclusive resmungar. – Não estou me lamentando de nada. – Palavra errada – concordou ele de má vontade. – Lamentar ainda seria melhor... Seria agir. Você está simplesmente... sem vida, Bella. Acho que as palavras que quero usar são essas. A acusação acertou na mosca. Suspirei e tentei colocar algum ânimo em minha resposta. – Desculpe, pai. – Minhas desculpas pareciam meio tediosas, até para mim. Pensei que o estivesse enganando. O sentido de todo esse esforço era evitar que Charlie sofresse. Como era deprimente pensar que o esforço tinha sido em vão. – Não quero que você se desculpe. Suspirei. – Então me diga o que quer que eu faça. – Bella. – Ele hesitou, avaliando minha reação às palavras que ia dizer. – Querida, você não é a primeira pessoa a passar por esse tipo de situação, sabe disso. – Eu sei. – A careta que fiz foi hesitante e não impressionou nada. – Olhe, querida. Acho que... que talvez você precise de ajuda. – Ajuda? Ele parou, procurando de novo pelas palavras. – Quando sua mãe foi embora – recomeçou, com a testa franzida –, e levou você com ela. – Ele respirou fundo. – Bom, foi uma época muito difícil para mim. – Eu sei, pai – murmurei. – Mas consegui superar isso – assinalou ele. – Querida, você não está superando nada. Esperei, tive esperanças de que ficaria melhor. – Ele me encarou e eu baixei a cabeça depressa. – Acho que nos dois sabemos que não vai ficar melhor. – Eu estou bem. Ele me ignorou.
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– Talvez, bom, talvez, se você conversasse com alguém sobre isso. Com um profissional. – Quer que eu procure um psicólogo? – Minha voz ficou um pouco mais aguda quando percebi aonde ele queria chegar. – Talvez ajude. – E talvez não ajude em nada. Não entendo muito de psicanálise, mas tinha certeza absoluta de que só funcionava se o analisado fosse relativamente sincero. É claro que eu podia contar a verdade – se quisesse passar o restante da minha vida em uma cela acolchoada. Ele examinou minha expressão obstinada e passou para outra linha de ataque. – Está além de minha capacidade, Bella. Talvez sua mãe... – Escute – eu disse numa voz inexpressiva –, vou sair hoje à noite, se você quiser. Vou ligar para Jess ou para Angela. – Não é isso que quero – argumentou ele, frustrado. – Não acho que eu possa viver vendo você se esforçar ainda mais. Nunca vi ninguém se esforçar tanto. É doloroso ver isso. Fingi intensidade, baixando os olhos para a mesa. – Não entendo, pai. Primeiro você fica chateado porque não estou fazendo nada, depois diz que não quer que eu saia. – Quero que você seja feliz... Não, nem tanto assim. Só quero que você não seja infeliz. Acho que terá mais chances se sair de Forks.Meus olhos arderam com a primeira centelha de sentimento que tive em tanto tempo de contemplação. – Não vou embora – eu disse. – E por que não? – perguntou ele. – Estou no último semestre da escola... Ia estragar tudo. – Você é boa aluna... Vai superar isso. – Não quero ser demais entre mamãe e Phil. – Sua mãe morre de vontade de ter você de volta. – A Flórida é muito quente. Seu punho desceu na mesa de novo.
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– Nós dois sabemos o que está de fato acontecendo aqui, Bella, e não é bom para você. – Ele respirou fundo. – Já se passaram meses. Nenhum telefonema, nenhuma carta, nenhum contato. Não pode continuar esperando por ele. Fechei a cara para Charlie. O calor quase chegou ao meu rosto. Já se passara muito tempo desde que eu havia corado por alguma emoção. Aquele assunto era terminantemente proibido, e ele sabia muito bem disso. – Não estou esperando nada. Não espero nada – argumentei num tom monótono e baixo. – Bella... – começou Charlie, a voz grossa. – Tenho que ir para a escola – interrompi, levantando-me e tirando da mesa o café-da-manhã intocado. Coloquei minha tigela na pia sem parar para lavá-la. Não podia suportar mais nem um minuto de conversa. – Vou combinar alguma coisa com Jessica – gritei por sobre o ombro enquanto pegava a mochila da escola, sem olhar para ele. – Talvez não venha jantar em casa. Vamos a Port Angeles ver um filme.Saí pela porta da frente antes que ele pudesse reagir. Na pressa para me afastar de Charlie, acabei sendo uma das primeiras a chegar à escola. O lado bom disso é que consegui uma vaga muito boa no estacionamento. A desvantagem é que fiquei com tempo livre, e eu tentava a todo custo evitar o tempo livre. Rapidamente, antes que eu pudesse começar a pensar nas acusações de Charlie, saquei meu livro de cálculo. Abri-o na parte que devíamos começar no dia e tentei ver sentido naquilo. Ler matemática era ainda pior do que ouvi-la, mas eu estava melhorando. Nos últimos meses, consumira dez vezes mais tempo em cálculo do que já gastara em matemática na vida. Como conseqüência, eu estava conseguindo me manter na faixa de A-. Eu sabia que o Sr. Varner acreditava que minha melhora se devia cem por cento a seus métodos de ensino superiores. E se isso o deixava feliz, tudo bem para mim.
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Obriguei-me a continuar até que o estacionamento estivesse cheio, e acabei correndo para a aula de inglês. Estávamos trabalhando em A revolução dos bichos, um tema fácil. Eu não ligava para o comunismo; era uma mudança bem-vinda dados os romances exaustivos que compunham a maior parte do currículo. Acomodei-me em minha carteira, satisfeita por me distrair com a aula do Sr. Berty.O tempo passava facilmente quando eu estava na escola. O sinal tocou cedo demais. Comecei a guardar meus pertences. – Bella? Reconheci a voz de Mike, e já sabia quais seriam suas palavras antes que ele as pronunciasse. – Vai trabalhar amanhã? Olhei para cima. Ele estava encostado no corredor com uma expressão ansiosa. Toda sexta-feira ele me fazia a mesma pergunta. Não fazia diferença que eu tivesse faltado por motivo de saúde raríssimas vezes. Bom, com uma exceção, meses atrás. Mas ele não tinha motivos para me olhar com tanta preocupação. Eu era uma funcionária modelo. – Amanhã é sábado, não é? – eu disse. Depois de Charlie ter me chamado a atenção para isso, percebi que minha voz parecia mesmo sem vida. – Sim – concordou ele. – Vejo você na aula de espanhol. – Ele acenou uma vez antes de dar as costas. Mike não se incomodava mais em me acompanhar às aulas. Fui para a aula de cálculo com um sorriso forçado. Essa era a aula em que me sentava ao lado de Jessica. Já fazia semanas, talvez meses, que Jess deixara até de me cumprimentar quando eu passava por ela no corredor. Eu sabia que a havia ofendido com meu comportamento anti-social, e ela estava chateada. Não ia ser fácil falar com ela agora – em especial lhe pedir para me fazer um favor. Pesei minhas opções com todo o cuidado enquanto me demorava do lado de fora da sala, ganhando tempo.
Eu não ia enfrentar Charlie de novo sem ter alguma interação social para contar. Eu sabia que não podia mentir, embora a idéia de
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ir e voltar de carro a Port Angeles sozinha – certificando-me de que meu hodômetro mostrasse a quilometragem correta, para o caso de ele verificar – fosse muito tentadora. A mãe de Jessica era a maior fofoqueira da cidade e Charlie sem dúvida ia correr até a Sra. Stanley assim que pudesse. Quando fizesse isso, certamente falaria na viagem. Mentir estava fora de questão. Com um suspiro, abri a porta. O Sr. Varner me olhou torto – ele já havia começado a aula. Corri para minha carteira. Jessica não levantou o olhar quando me sentei ao lado dela. Fiquei feliz porque isso me daria cinqüenta minutos para me preparar psicologicamente. A aula voou mais rápido do que a de inglês.Uma pequena parte da velocidade se devia à minha preparação piegas aquela manhã na picape – mas em especial tinha origem no fato de que o tempo sempre se acelerava quando eu estava ansiosa para fazer algo desagradável. Fiz uma careta quando o Sr. Varner dispensou a turma cinco minutos mais cedo. Ele sorria como se estivesse sendo um cara legal. – Jess? – Meu nariz franziu enquanto eu me encolhia, esperando que ela se virasse para mim. Ela girou na cadeira para me encarar, olhando-me incrédula. – Está falando comigo, Bella? – Claro que sim. – Arregalei os olhos para dar a impressão de inocência. – Que foi? Precisa de ajuda com cálculo? – o tom de sua voz era um pouco ríspido. – Não. – Sacudo a cabeça. – Na verdade, eu queria saber se você... quer ir ao cinema comigo hoje à noite. Estou precisando muito de uma noitada de garotas. – As palavras pareciam desajeitadas, como frases mal-formuladas, e ela ficou desconfiada. – Por que está me convidando? – perguntou, ainda pouco amistosa.
– Você é a primeira pessoa em quem eu penso quando quero ficar entre amigas. – Sorri e esperei que o sorriso parecesse autêntico.
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Devia ser verdade. Ela pelo menos era a primeira pessoa em quem eu pensava quando queria evitar Charlie. Dava no mesmo. Jess pareceu amolecer um pouco. – Bom, não sei. – Tem algum compromisso? – Não... Acho que posso ir com você. O que você quer ver? – Não sei bem o que está passando – disse, de forma vaga. Essa era a parte perigosa. Revirei meu cérebro procurando uma dica. Não ouvi ninguém falar de um filme recentemente? Não vi nenhum cartaz? – Que tal aquele com a presidente? Ela me olhou com estranheza. – Bella, esse saiu de cartaz há séculos. – Ah! – Franzi o cenho. – Há algum filme que você queira ver? A tagarelice natural de Jéssica começava a vazar contra sua vontade enquanto ela pensava em voz alta. – Bom, tem aquela comédia romântica nova que recebeu críticas muito boas. Quero ver essa. E meu pai viu Terror sem fim e gostou. Agarrei-me ao título promissor. – Esse é sobre o quê? – Zumbis ou coisa assim. Ele disse que há anos não via nada tão apavorante. – Parece perfeito. – Eu preferia lidar com zumbis de verdade a assistir a um romance. – Tudo bem. – Ela ficou surpresa com minha reposta. Tentei me lembrar se gostava de filmes de terror, mas não tive certeza. – Quer que pegue você depois da aula? – propôs ela. – Claro. Antes de sair Jessica sorriu para mim tentando ser simpática. Meu sorriso de resposta veio um pouco tarde demais, mas acho que ela viu.
O restante do dia passou rápido, meus pensamentos centrados nos planos para a noite. Eu sabia, por experiência própria, que depois que conseguisse que Jessica falasse poderia me safar com alguns
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murmúrios nos momentos certos. Só precisava de uma interação mínima. A essa altura a densa névoa que embaçava meus dias era, às vezes, perturbadora. Fiquei surpresa quando me vi em meu quarto, sem me lembrar com clareza de ter ido para casa de carro, nem mesmo de ter aberto a porta da frente. Mas isso não importava. Não ver o tempo passar era o que eu mais queria na vida. Não combati a névoa ao seguir para meu armário. O torpor era mais essencial em alguns lugares do que em outros. Mal registrei o que olhava ao abrir a porta e revelar a pilha de lixo do lado esquerdo, debaixo das roupas que nunca usei. Meus olhos não vagaram para o saco de lixo preto que guardava meu presente daquele último aniversário, não viram o formato do aparelho de som que se projetava no plástico preto; eu não pensei em como minhas unhas ficaram terríveis quando terminei de arrancá-lo do painel. Peguei a bolsa velha, que raras vezes usava, no gancho em que estava pendurada e bati a porta. Nesse exato momento ouvi uma buzina. Tirei rapidamente a carteira da mochila da escola e a coloquei na bolsa. Eu estava com pressa, como se correr pudesse fazer com que a noite passasse mais rápido.Olhei-me no espelho do corredor antes de abrir a porta, arrumando com cuidado minhas feições em um sorriso e tentando mantê-lo ali. – Obrigada por sair comigo hoje – disse a Jess enquanto me acomodava no banco do carona, tentando colocar gratidão em minha voz. Já se passara algum tempo desde quando eu realmente pensava no que dizia a alguém além de Charlie. Jess era mais difícil. Eu não tinha certeza das emoções que devia fingir. – Claro. E aí, o que provocou isso? – perguntou Jess ao arrancar com o carro na minha rua. – Provocou o quê? – Por que de repente você decidiu... sair? – Parecia que ela mudara a pergunta no meio da frase.
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Dei de ombros. – Só precisava variar um pouco. Reconheci a música no rádio e logo estendi a mão para o painel.– Importa-se? – perguntei. – Não, pode mudar. Procurei pelas emissoras até encontrar uma que fosse inofensiva. Espiei a expressão de Jess enquanto a nova música enchia o ar. Seus olhos se estreitaram. – Desde quando você ouve rap? – Não sei. Há algum tempo. – Você gosta disso? – perguntou ela, em dúvida. – Claro. Seria muito mais difícil interagir normalmente com Jessica se eu tivesse de desligar a música também. Balancei a cabeça, na esperança de estar no ritmo da batida. – Tudo bem... – Ela olhou pelo pára-brisa com os olhos arregalados. – E como é que você e o Mike têm estado? – perguntei rápido a ela. – Você o vê mais do que eu. A pergunta não a fez começar a falar, como eu esperava que fizesse. – É difícil conversar no trabalho – murmurei e tentei de novo. – Tem saído com alguém nos últimos dias? – Na verdade, não. Só com o Conner, algumas vezes. Saí com o Eric há duas semanas.– Ela revirou os olhos e eu senti que havia uma longa história. Agarrei-me à oportunidade. – Eric Yorkie? Quem convidou quem? Ela gemeu, animando-se. – Ele convidou, é claro! Não consegui pensar numa maneira gentil de dizer “não”. – Aonde ele levou você? – perguntei, sabendo que ela interpretaria minha ansiedade como interesse. – Conte tudo.
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Ela se lançou à historia e eu me acomodei no banco, agora mais à vontade. Prestei total atenção, murmurando em solidariedade e arfando de pavor quando era necessário. Quando ela terminou a história sobre Eric, continuou com uma comparação com Conner, sem precisar de incentivo. O filme começava cedo, então Jess acho que devíamos pegar a seção do anoitecer e comer depois. Fiquei feliz por acompanhá-la no que ela quisesse; afinal, eu estava conseguindo o que desejava – tirar Charlie do meu pé. Mantive Jess falando durante os trailers, assim eu podia ignorá-los com mais facilidade. Mas fiquei nervosa quando o filme começou. Um casal de jovens andava por uma praia, balançando as mãos e discutindo seu afeto mútuo com uma hipocrisia grudenta. Resisti ao impulso de tapar os ouvidos e começar a cantarolar. Eu não podia agüentar um romance. – Pensei que tivéssemos escolhido o filme de zumbis – sibilei para Jessica. – Este é o filme de zumbis. – Então por que não tem ninguém sendo devorado? – perguntei desesperada. Ela olhou para mim com os olhos arregalados e quase alarmados. – Tenho certeza de que essa parte vai chegar – sussurrou. – Vou comprar pipoca. Quer também? – Não, obrigada. Alguém pediu silêncio atrás de nós. Eu me demorei bastante no balcão de guloseimas, olhando o relógio e debatendo que porcentagem de um filme de noventa minutos podia ser gasta com romantismo. Concluí que dez minutos eram mais do que suficientes, mas parei logo depois de passar pelas portas da sala de projeção para ter certeza. Eu podia ouvir gritos de pavor berrando dos alto-falantes, então vi que tinha esperado tempo suficiente. – Você perdeu tudo – murmurou Jess quando deslizei para o meu lugar. – Agora quase todo mundo é zumbi.
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– Fila comprida. – Ofereci a pipoca a ela. Ela pegou um punhado. O restante do filme tinha apenas ataques de zumbis horripilantes e gritos intermináveis de algumas pessoas que sobreviveram, cujo número diminuía bem depressa. Eu tinha pensado que não havia nada para me perturbar ali. Mas me sentia inquieta e de início não sabia bem o motivo. Foi só perto do final, quando um zumbi desfigurado arrastava-se atrás da última sobrevivente escandalosa, que percebi qual era o problema. A cena cortava da expressão apavorada da heroína para o rosto morto e sem emoção de seu perseguidor, indo e voltando enquanto a distância se encurtava. E então percebi o que ela me lembrava. Eu me levantei. – Aonde você vai? Ainda faltam uns dois minutos – sibilou Jess. – Preciso de uma bebida – murmurei enquanto corria para a saída.Sentei-me no banco do lado de fora do cinema e tentei ao máximo não pensar na ironia. Mas era irônico, considerando tudo, que no final das contas eu tivesse acabado como uma zumbi. Eu não havia percebido isso acontecendo. Não que um dia eu não tivesse sonhado em me transformar num monstro mítico – mas jamais num cadáver grotesco e animado. Sacudi a cabeça para me desvencilhar daquela linha de raciocínio, em pânico. Não conseguia pensar naquilo com que um dia havia sonhado. Era deprimente perceber que eu não era mais uma heroína, que minha história tinha acabado. Jessica saiu da sala e hesitou, talvez se perguntando qual seria o melhor lugar onde procurar por mim. Pareceu aliviada quando me viu, mas só por um momento. Depois ficou irritada. – O filme era apavorante demais para você? – perguntou. – É – concordei. – Acho que sou uma covarde.
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– Que engraçado. – Ela franziu o cenho. – Não achei que você estivesse com medo... Eu gritei o tempo todo, mas não ouvi você gritar nem uma vez. Então não entendi por que você saiu. Dei de ombros. – Foi só medo. Ela relaxou um pouco. – Acho que esse foi o filme mais apavorante que vi na vida. Aposto que vamos ter pesadelos esta noite. – Não duvido – disse eu, tentando manter minha voz normal. Era inevitável que eu tivesse pesadelos, mas eles não seriam sobre zumbis. Os olhos dela lampejaram para meu rosto e se desviaram. Talvez eu não tivesse conseguido fazer uma voz normal. – Onde você quer comer? – perguntou Jess. – Qualquer lugar. – Tudo bem. Jess começou a falar do protagonista do filme enquanto andávamos. Eu assentia enquanto ela se entusiasmava com a beleza dele, incapaz de me lembrar de ter visto um homem não-zumbi na história. Não vi para onde Jessica me levava. Só percebi vagamente que agora estava escuro e mais tranqüilo. Precisei de mais tempo do que devia para notar por que era silencioso. Jessica tinha parado de tagarelar. Olhei para ela com ar de desculpas, na esperança de não ter ferido seus sentimentos. Jessica não estava me olhando. Seu rosto estava tenso; ela olhava para a frente e andava rápido. Observei seus olhos disparando para a direita, do outro lado da rua, e voltando à frente. Olhei em volta pela primeira vez. Estávamos num curto trecho de calçada sem iluminação. As lojinhas que ladeavam a rua estavam fechadas, com as vitrines escuras. As luzes voltavam meia quadra adiante, e pude ver, mais ao longe, os arcos dourados do McDonald’s, para onde ela ia.
Do outro lado da rua havia uma loja aberta. As vitrines estavam tapadas por dentro e havia placas de néon, anúncios de diferentes marcas de cerveja brilhando na frente. A placa maior, em verde-
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berrante, era o nome do bar – One-Eyed Pete’s. Imaginei se havia algum tema pirata que não era visível de fora. A porta de metal estava aberta; o interior era mal iluminado, e flutuavam pela rua o murmúrio baixo de muitas vozes e o som de gelo tilintando nos copos. Encostados na parede ao lado da porta, havia quatro homens. Olhei para Jessica. Seus olhos estavam fixos no caminho à frente e ela andava com rapidez. Não parecia assustada – só preocupada, tentando não chamar atenção para si mesma. Parei sem pensar, olhando os quatro homens com uma forte sensação de déjà vu. Fora numa rua diferente, numa noite diferente, mas a cena era praticamente a mesma. Um deles era mais baixo e moreno. Enquanto eu parava e me virava para eles, o moreno olhou para mim, interessado. Eu o encarei, paralisada na calçada. – Bella? – sussurrou Jess. – O que está fazendo? Sacudi a cabeça, indecisa. – Acho que os conheço... – murmurei. O que eu estava fazendo? Eu devia correr daquela lembrança o mais rápido que pudesse, bloqueando em minha mente a imagem dos quatro homens, protegendo-me com o torpor sem o qual não conseguia viver. Por que eu atravessava, tonta, a rua? Parecia coincidência demais que eu estivesse em Port Angeles com Jessica, inclusive em uma rua escura. Meus olhos focalizaram o baixinho, tentando combina suas feições com a lembrança que eu tinha do homem que me ameaçara naquela noite, quase um ano antes. Imaginava se havia algum modo de reconhecer o homem, se fosse mesmo ele. Meu corpo se lembrava melhor do que minha mente; a tensão em minhas pernas enquanto eu tentava decidir se corria ou se ficava parada ali, o ressecamento na garganta enquanto eu lutava para compor um grito decente, a pele esticada nos nós dos dedos enquanto eu cerrava as mãos em punho, os arrepios na nuca quando o moreno me chamou de “docinho”...
Havia uma ameaça indefinida e implícita naqueles homens que nada tinha a ver com aquela outra noite. Vinha do fato que eram estranhos, ali era escuro e eles estavam em maior número. Nada mais
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especifico do que isso. Mais foi o bastante para a voz de Jessica desafinar de pânico ao gritar por mim. – Bella, vamos! Eu a ignorei, andando bem devagar sem sequer tomar a decisão consciente de mexer meus pés. Eu não entendia por quê, mas a ameaça nebulosa representada pelos homens me atraía para eles. Foi um impulso insensato, mas eu não tinha nenhum tipo de impulso havia tanto tempo... Eu o segui. Algo desconhecido correu por minhas veias. Adrenalina, percebi, há muito ausente de meu sistema, acelerando minha pulsação e combatendo a ausência de sensações. Era estranho – por que a adrenalina quando não havia medo? Era quase como se houvesse um eco da última vez que passei por aquilo, numa rua escura de Port Angeles, com estranhos. Não vi motivo para ter medo. Nem conseguia imaginar nada no mundo que ainda pudesse me fazer temer, pelo menos nada fisicamente. Essa era uma das poucas vantagens de se perder tudo. Eu estava no meio da rua quando Jess me alcançou e pegou meu braço. – Bella! Não pode entrar em um bar! – sibilou ela. – Não vou entrar – eu disse distraída, livrando-me de sua mão. – Só queria checar uma coisa... – Ficou maluca? – sussurrou ela. – Você é suicida? A pergunta chamou minha atenção e meus olhos focalizaram Jess. – Não, não sou. – Minha voz parecia defensiva, mas era verdade. Eu não era suicida. Nem no começo, quando a morte inquestionavelmente teria sido um alívio, eu pensava nisso. Eu devia muito a Charlie. Sentia-me responsável demais por Renée. Tinha de pensar neles. E fiz a promessa de não fazer qualquer idiotice, nem nenhuma imprudência. Por todos esses motivos, eu ainda respirava. Lembrando-me da promessa, senti uma pontada de culpa, mas o que eu fazia agora não contava. Eu não ia passar uma lâmina nos pulsos.
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Os olhos de Jess giravam pela rua, a boca escancarada. A pergunta sobre o suicídio fora retórica, como percebi tarde demais. – Vá comer – eu a incitei, acenando para a lanchonete. Não gostei do modo como Jess me olhava. – Irei para lá daqui a pouco. Afastei-me dela, de volta para os homens que nos observavam com olhos curiosos e divertidos. “Bella, pare com isso agora!” Meus músculos travaram, paralisando-me onde eu estava. Porque agora não era voz de Jessica que me repreendia. Era uma voz furiosa, uma voz conhecida, uma voz linda – suave como veludo, mas mesmo assim colérica. Era a voz dele – eu tinha o cuidado excepcional de não pensar em seu nome –, e fiquei surpresa que o som não me prostrasse de joelhos, não me fizesse me enroscar na calçada, torturada pela perda. Mas não havia dor, nenhuma dor. No instante em que ouvi a voz dele, tudo ficou muito claro. Como se minha cabeça de repente tivesse ido à superfície de um poço escuro. Eu estava mais consciente de tudo – do que via e ouvia, da sensação do ar frio que não percebera soprando cortante em meu rosto, dos cheiros que vinham da porta aberta do bar. Olhei em volta, chocada. “Volte para Jessica”, ordenou a voz adorável, ainda com raiva. “Você prometeu... Nada de idiotices.” Eu estava sozinha. Jessica estava a alguns passos de mim, observando-me com os olhos assustados. Encostados na parede, os estranhos olharam, confusos, imaginando o que eu estava fazendo, parada ali, imóvel, no meio da rua. Sacudi a cabeça, tentando entender. Eu sabia que ele não estava ali, e, no entanto, sentia-o improvavelmente perto, perto pela primeira vez desde... desde o fim. A raiva em sua voz era de preocupação, a mesma raiva que no passado era tão familiar – algo que eu não ouvia fazia tanto tempo que parecia toda uma vida. “Cumpra sua promessa.” A voz se afastava, como o volume de um rádio sendo diminuído.
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Comecei a desconfiar de que estava tendo algum tipo de alucinação. Provocada, sem dúvida, pela lembrança – o déjà vu, a estranha familiaridade da situação. Repassei depressa as possibilidades em minha mente. Primeira opção: eu estava louca. Esse era o termo leigo para as pessoas que ouviam vozes. Era possível. Segunda opção: meu subconsciente me dava o que eu pensava que queria. Isso era satisfação de um desejo – um alívio momentâneo para a dor ao adotar a idéia incorreta de que ele se importava se eu estava viva ou morta. Projetando o que ele teria dito se A) ele estivesse ali e B) ele, de algum modo, se incomodasse caso algo de ruim acontecesse comigo. Era provável. Eu não via uma terceira opção, então esperei que fosse a segunda e que meu subconsciente estivesse operando furiosamente, em vez de ser alguma alternativa que exigisse minha hospitalização. Mas minha reação não foi nada insana – e fiquei grata. O som da voz dele era algo que eu temia ter perdido e, assim, mais do que qualquer outra sensação, senti-me tomada de gratidão por meu inconsciente ter guardado aquele som melhor do que minha mente consciente. Eu não podia pensar nele. Isso era algo a que eu tentava me prender. É claro que eu cometia deslizes; eu era apenas humana. Mas estava ficando melhor, e assim a dor era algo que agora eu conseguia evitar durante dias. Para compensar, tinha o torpor interminável. Entre a dor e o nada, eu escolhera o nada. Agora eu esperava pela dor. Não estava entorpecida – meus sentidos pareciam incomumente intensos depois de tantos meses de névoa –, mas a dor normal não vinha. A única dor foi a decepção pelo desaparecimento da voz dele. Houve um segundo de decisão. A atitude sensata seria correr da evolução potencialmente destrutiva – e com certeza mentalmente instável – daquela situação. Seria idiotice estimular alucinações.
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Mas a voz dele estava sumindo. Dei outro passo à frente, testando. “Bella, volte”, grunhiu ele. Suspirei de alívio. O que eu queria ouvir era a raiva – uma prova falsa e fabricada de que ele se importava, um presente dúbio de meu subconsciente. Passaram-se pouquíssimos segundos enquanto eu raciocinava sobre tudo isso. Minha pequena platéia observava, curiosa. Devia parecer que eu só estava agitada, indecisa se ia ou não me aproximar deles. Como podiam adivinhar que eu estava parada ali desfrutando um momento inesperado de insanidade? – Oi – gritou um dos homens, o tom de voz ao mesmo tempo confiante e meio sarcástico. Ele tinha a pele clara, era louro e estava parado com a segurança de alguém que se julgava bonito. Eu não sabia se ele era bonito ou não. Tinha minhas preferências. A voz em minha cabeça respondeu com um rosnado intenso. Eu sorri e o homem confiante pareceu entender isso como um estímulo. – Posso ajudá-la? Você parece perdida. – Ele sorriu e piscou. Passei com cuidado pela sarjeta, onde corria uma água que era preta na escuridão. – Não. Não estou perdida. Agora que eu estava mais perto – e meus olhos entraram estranhamente em foco – analisei a cara do baixinho. Não era nada familiar. Senti uma curiosa decepção por aquele não ser o homem terrível que tentara me ferir um ano antes. A voz em minha cabeça agora silenciara. O baixinho percebeu meu olhar. – Posso lhe pagar uma bebida? – ofereceu, nervoso, parecendo lisonjeado por eu tê-lo escolhido como objeto de meu interesse. – Sou nova demais – respondi de modo automático. Ele ficou confuso, perguntando-se por que eu tinha me aproximado deles. Senti-me obrigada a explicar. – Do outro lado da rua, você parecia alguém que eu conheço. Desculpe, eu me enganei.
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A ameaça que me fizera atravessar a rua tinha evaporado. Aqueles não eram os homens perigosos de que eu me lembrava. Deviam ser boa gente. Era seguro. Eu perdi o interesse. – Está tudo bem – disse o louro confiante. – Fique aqui conosco. – Obrigada, mas não posso. Jessica hesitava no meio da rua, os olhos arregalados de ultraje e traição. – Ah, só alguns minutos. Sacudi a cabeça e me virei para me juntar a Jessica. – Vamos comer – sugeri, mal olhando para ela. Embora por um momento eu parecesse livre da abstração do zumbi, também estava distante. Minha mente estava preocupada. O torpor seguro da inércia não voltara e eu ficava mais ansiosa a cada minuto que passava sem seu retorno. – O que você estava pensando? – disse Jessica. – Você não os conhece... Eles podiam ser psicopatas! Dei de ombros, querendo que ela deixasse o assunto de lado. – Só achei que conhecia aquele cara. – Você está tão estranha, Bella Swan. Parece que não a conheço. – Desculpe. – Eu não sabia mais o que dizer. Seguimos para o McDonald’s em silêncio. Eu seria capaz de apostar que ela queria pegar o carro em vez de ir a pé pelo curto trajeto do cinema até ali, para poder usar o drive-thru. Ela agora estava tão ansiosa para que a noite terminasse quanto eu no início. Tentei começar uma conversa algumas vezes enquanto comíamos, mas Jessica não cooperou. Eu devia tê-la ofendido mesmo. Quando voltamos ao carro, ela ligou o som de novo em sua emissora preferida e colocou o volume alto para dificultar a conversa.
Não tive de lutar tanto como sempre fazia para ignorar a música. Embora minha mente, pela primeira vez, não estivesse
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cuidadosamente entorpecida e vazia, eu tinha muito no que pensar para ouvir a letra da música. Esperei que o torpor voltasse, ou a dor. Porque a dor devia estar vindo. Eu quebrara minhas próprias regras. Em vez de fugir assustada das lembranças, eu me dirigi a elas e as acolhi. Ouvi a voz dele com muita clareza em minha mente. Isso seria penoso para mim, eu tinha certeza. Em especial se eu não pudesse resgatar a névoa para me proteger. Sentia-me alerta demais, o que me assustava. Mas o alívio ainda era a emoção mais forte em meu corpo – um alívio que vinha bem lá do fundo. Por mais que lutasse para não pensar nele, eu não lutava para esquecê-lo. Eu me preocupava – tarde da noite, quando a exaustão da privação de sono penetrava em minhas defesas – que tudo desaparecesse. Que minha mente fosse uma peneira e um dia não conseguisse me lembrar da cor exata de seus olhos, da sensação de sua pele fria ou da textura de sua voz. Eu podia não pensar naquilo, mas queira me lembrar de tudo. Por que só havia uma coisa em que eu precisava acreditar para poder viver – eu precisava saber que ele existira. Era só. Todo o restante eu podia suportar. Desde que ele tivesse existido. Era por isso que eu estava mais presa a Forks do que antes, por isso briguei com Charlie quando ele sugeriu uma mudança. Sinceramente, não devia importar; ninguém voltaria para cá. Mas se eu fosse para Jacksonville, ou qualquer outro lugar iluminado e desconhecido, como poderia ter certeza de que ele foi real? Em um lugar onde eu nunca pudesse imaginá-lo, a convicção desapareceria... E eu não podia conviver com isso. Proibida de lembrar, com medo de esquecer; era uma situação limite.Fiquei surpresa quando Jessica parou o carro na frente da minha casa. A viagem não demorara muito, mas, embora tenha parecido curta, eu não imaginava que Jessica pudesse passar tanto tempo sem falar.
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– Obrigada por ir comigo, Jess – eu disse ao abrir a porta. – Foi... divertido. – Esperava que divertido fosse a palavra adequada. – Claro – murmurou ela. – Desculpe por... depois do filme. – Tudo bem, Bella. – Ela olhou para fora em vez de olhar para mim. Parecia estar cada vez mais irritada, em vez de ter superado o problema. – A gente se vê na segunda? – É. Tchau. Desisti e fechei a porta. Ela foi embora, ainda sem olhar para mim. Quando entrei em casa já tinha me esquecido dela. Charlie esperava por mim no meio do corredor, os braços cruzados, firmes, com as mãos fechadas em punho. – Oi, pai – disse, distraída, enquanto tentava passar por Charlie, indo para a escada. Andei pensando nele por tempo demais e queria subir antes que isso me dominasse. – Aonde você foi? – perguntou Charlie. Olhei para meu pai, surpresa. – Fui ver um filme em Port Angeles com Jessica. Como lhe disse hoje de manhã. – Umpf – grunhiu ele. – Está tudo bem? Ele examinou meu rosto, os olhos se arregalando como se visse algo inesperado. – É, está tudo bem. Você se divertiu? – Claro – respondi. – Vimos zumbis comendo gente. Foi ótimo. Seus olhos se estreitaram. – Boa noite, pai. Ele me deixou passar. Corri para meu quarto. Deitei na cama alguns minutos depois, resignada enquanto a dor finalmente resolvia aparecer.
Era paralisante, aquela sensação de que um buraco imenso tinha sido cavado em meu peito e que meus órgãos mais vitais tinham sido arrancados por ele, restando apenas sobras, cortes
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abertos que continuavam a latejar e a sangrar apesar do passar do tempo. Racionalmente, eu sabia que meus pulmões ainda estavam intactos, e no entanto eu arfava e minha cabeça girava como se meus esforços não dessem em nada. Meu coração também devia estar batendo, mas eu não conseguia ouvir o som de minha pulsação nos ouvidos, minhas mãos pareciam azuis de frio. Eu me encolhi, abraçando as costelas para não partir ao meio. Lutei para ter meu torpor, minha negação, mas isso me fugia. E, no entanto, achei que podia sobreviver. Eu estava alerta, sentia a dor – a perda dolorosa que se irradiava de meu peito, provocando ondas arrasadoras de dor pelos membros e pela cabeça –, mas era administrável. Eu podia sobreviver a isso. Não parecia que a dor tivesse diminuído com o tempo; na verdade, eu é que ficara forte o bastante para suportá-la. O que quer que tivesse acontecido naquela noite – e quer tenha sido responsabilidade dos zumbis, da adrenalina, ou das alucinações –, tinha me despertado. Pela primeira vez em muito tempo eu não sabia o que esperar da manhã.
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5. TRAPAÇA 

– Bella, por que você não encerra seu expediente? – sugeriu Mike, os olhos voltados para o lado, sem realmente olhar para mim. Perguntei-me por quanto tempo aquilo estava acontecendo sem que eu percebesse. Era uma tarde monótona na Newton’s. No momentos só havia dois clientes na loja, mochileiros devotados, a julgar pela conversa deles. Mike passara a última hora lhes falando dos prós e contras de duas marcas de mochilas leves. Mas eles pararam por um momento de avaliar os preços para se entregar a uma competição das mais recentes histórias de trilhas de cada um. A distração deles deu a Mike a oportunidade de escapar. – Não me importo de ficar – eu disse. Eu ainda não conseguira afundar em minha concha protetora de torpor, e naquele dia tudo parecia próximo e nítido, o que era estranho, como se eu tivesse tirado algodões dos ouvidos. Tentei sem sucesso me desligar dos mochileiros que riam. – Estou dizendo – falou o homem atarracado, com uma barba alaranjada que não combinava com o cabelo castanho-escuro. – Vi uns ursos-pardos muito de perto em Yellowstone, mas eles não eram tão grandes. – O cabelo dele estava fosco e ele parecia ter ficado em sua mochila por vários dias. Direto das montanhas. – Não pode ser. Os ursos-negros não ficam tão grandes assim. Os ursos que você viu deviam ser filhotes. – O segundo homem era alto e magro, o rosto bronzeado e maltratado pelo vento como uma impressionante crosta de couro. – É sério, Bella, assim que esses dois desistirem, vou fechar a loja – murmurou Mike. – Se quer que eu vá embora... – Dei de ombros.
– Sobre as quatro patas, era mais alto do que você – insistiu o barbudo enquanto eu pegava minhas coisas.– Grande como uma casa e preto feito breu. Vou avisar à guarda florestal daqui. As pessoas
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devem ser alertadas... Este não estava lá no alto da montanha, imagine... Estava a poucos quilômetros da trilha. O cara de couro riu e revirou os olhos. – Deixe-me adivinhar... Você estava chegando lá? Não comia comida de verdade ou dormia sem ser no chão havia uma semana, não é?– Ei, hã, Mike, não é? – chamou o barbudo, olhando para nós. – Vejo você na segunda – murmurei. – Sim, senhor – respondeu Mike, virando-se. – Diga uma coisa, vocês tiveram alerta de ursos-negros por aqui recentemente? – Não, senhor. Mas é sempre bom guardar distância e armazenar sua comida de modo correto. Já viu as novas latas à prova de ursos? Pesam menos de um quilo... As portas se abriram e eu saí para a chuva. Encolhi-me dentro do casaco e disparei para minha picape. O martelar da chuva no teto do carro também parecia estranhamente alto, mas logo o rugido do motor abafou todo o restante. Eu não queria voltar para a casa vazia de Charlie.A noite anterior fora brutal de modo particular, e eu não desejava revisitar a cena do sofrimento. Mesmo depois que a dor cedeu o suficiente para que eu dormisse, não tinha acabado. Como disse a Jessica depois do filme, não havia dúvida de que eu teria pesadelos. Agora eu sempre tinha pesadelos, todas as noites. Não pesadelos, na verdade, não no plural, porque sempre era o mesmo pesadelo. Seria de imaginar que eu ficaria entediada depois de tantos meses, que acabaria imune a ele. Mas o sonho nunca deixava de me apavorar e só terminava quando eu acordava aos gritos. Charlie não vinha mais ver o que havia de errado, para se assegurar de que nenhum invasor estivesse me estrangulando ou coisa assim – ele agora estava acostumado.
Meu pesadelo, provavelmente, não assustaria outra pessoa. Nada pulava e gritava “Buuu!”. Não havia zumbis, nem fantasmas, nem psicopatas. Não havia nada, na verdade. Só o nada. Só o labirinto interminável de árvores cobertas de musgos, tão quietas que
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o silêncio era uma pressão desagradável em meus tímpanos. Era escuro, como o anoitecer de um dia nublado, com luz suficiente para apenas mostrar que não havia nada a se ver. Eu corria pela escuridão sem uma trilha, sempre procurando, procurando, procurando, ficando mais frenética à medida que o tempo passava, tentando andar mais rápido, embora a velocidade me deixasse desajeitada... Depois chegava o ponto em meu sonho – e agora podia pressenti-lo, mas parecia nunca conseguir acordar antes de ele chegar – em que eu não conseguia me lembrar do que estava procurando. Era quando eu percebia que não havia nada a procurar nem nada a encontrar. Que nunca existira nada além de apenas aquele bosque vazio e apavorante, e nunca haveria nada para mim... Nada de nada... Em geral, era aí que os gritos começavam. Eu não prestava atenção para onde dirigia – fiquei apenas vagando pelas ruas secundárias vazias e molhadas enquanto evitava os caminhos que me levariam para casa – porque eu não tinha para onde ir.Queria poder sentir o torpor de novo, mas não conseguia me lembrar de como o conseguira. O pesadelo importunava minha mente e me fazia pensar em assuntos que me provocavam dor. Eu não queria me lembrar da floresta. Mesmo enquanto afugentava as imagens, senti meus olhos cheios de lagrimas, e a dor começou a cercar o buraco em meu peito. Tirei uma das mãos do volante e coloquei-a no peito, para não perder o controle. Será como se eu nunca tivesse existido. As palavras passavam por minha cabeça sem a clareza perfeita da alucinação da noite anterior. Eram só palavras, sem som, como se estivessem impressas numa página. Só palavras, mas abriam ainda mais o buraco, e eu pisei no freio, sabendo que não devia dirigir enquanto estivesse tão incapacitada. Eu me curvei, comprimindo o rosto contra o volante e tentando respirar sem pulmões.
Perguntei-me quanto tempo aquilo ia durar. Talvez um dia, anos mais tarde – se a dor diminuísse a um ponto que eu pudesse suportar –, eu fosse capaz de olhar o passado, aqueles poucos meses
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que sempre seriam os melhores de minha vida. E, se fosse possível que a dor se atenuasse o suficiente para me permitir isso, eu tinha certeza de que me sentiria grata pelo tanto que ele me dera. Fora mais do que eu pedira, mais do que eu merecia. Talvez um dia eu conseguisse ver os fatos desse modo. Mas e se esse buraco jamais melhorasse? Se as bordas feridas nunca se curassem? Se os danos fossem permanentes e irreversíveis? Eu me controlava. Como se ele nunca tivesse existido, pensei desesperada. Que promessa mais idiota e impossível! Ele podia roubar minhas fotos e tomar de volta os presentes, mas isso não colocaria as coisas no lugar em que estavam antes de eu conhecê-lo. A prova material era a parte mais insignificante da equação. Eu tinha mudado, meu íntimo fora alterado de modo que ficasse quase irreconhecível. Até por fora eu parecia diferente – meu rosto pálido, branco, exceto pelos círculos roxos dos pesadelos que ficavam sob meus olhos. Meus olhos eram tão escuros em minha pele branca, que – se eu fosse bonita, vista de longe – agora podia passar por uma vampira. Mas que não era bonita e devia estar parecida com um zumbi. Como se ele nunca tivesse existido? Era loucura. Uma promessa que ele jamais poderia cumprir; uma promessa que foi quebrada assim que ele a fez. Bati a cabeça no volante, tentando me distrair da dor mais intensa. Sentia-me boba por em algum momento ter me preocupado em manter a minha promessa. Onde estava a lógica de se prender a um acordo que já fora violado pela outra parte? Quem se importava se eu era imprudente e idiota? Não havia motivo para evitar a imprudência, nenhuma razão para não ser idiota. Eu ri sozinha, sem nenhum humor, ainda tentando respirar. Imprudente em Forks – ora, essa era uma proposição impossível. O humor negro me distraiu e a distração atenuou a dor. Minha respiração ficou mais fácil e consegui me recostar no banco do carro. Embora fizesse frio, minha testa estava molhada de suor.
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Concentrei-me em minha proposição impossível para não resvalar nas lembranças aflitivas. Ser imprudente em Forks exigiria muita criatividade – talvez mais do que eu tinha. Mas eu queria encontrar um modo... Poderia me sentir melhor se não me mantivesse fiel, completamente só, a um pacto rompido. Se eu também quebrasse juramentos. Mas como eu poderia trapacear em minha parte do acordo ali, naquela cidadezinha inócua? É claro que Forks nem sempre era tão inócua, mas agora era exatamente o que sempre pareceu ser. Era apática, era segura. Olhei pelo pára-brisa por um longo tempo, meus pensamentos se arrastando – eu não conseguia fazer com que as idéias chegassem a algum lugar. Desliguei o motor, que gemia de um jeito lamentável depois de ficar em ponto morto por tanto tempo, e saí para o chuvisco que caía. A chuva escorreu por meu cabelo e se arrastou pelas bochechas como lágrimas de água fresca. Ajudou a clarear a minha mente. Pisquei para afastar a água dos olhos, olhando a rua sem enxergar. Depois de um minuto olhando para frente, reconheci onde estava. Eu estacionara no meio da pista norte da Russell Avenue. Estava de pé na frente da casa dos Cheney – minha picape bloqueava a entrada de carros deles – e do outro lado da rua moravam os Marks. Eu sabia que precisava tirar meu carro dali e que devia ir para casa. Era errado ficar vagando como eu fizera, distraída e debilitada, uma ameaça nas ruas de Forks. Além disso, alguém logo me notaria e contaria a Charlie. Enquanto eu respirava fundo, preparando-me para me mexer, uma placa no jardim dos Marks chamou minha atenção – era um pedaço grande de papelão encostado na caixa de correio, com letras pretas rabiscadas em maiúsculas. Às vezes, a sorte lhe sorri.
Coincidência? Ou era o que devia ser? Eu não sabia, mas parecia meio tolo pensar que de algum modo era o destino, que as motos dilapidadas enferrujando no jardim dos Marks ao lado da placa pintada à mão de VENDEM-SE COMO ESTÃO servissem a
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um propósito mais elevado por estarem ali, bem onde eu precisava que estivessem. Então talvez não fosse sorte. Talvez houvesse todo tipo de maneiras de ser imprudente, e meus olhos só agora se abriam para elas. Imprudente e idiota. Aquelas eram as duas palavras preferidas de Charlie com relação a motocicletas. O trabalho de Charlie não tinha muita ação se comparado com o dos policiais das cidades grandes, mas ele era chamado no caso de acidentes de trânsito. Com as ruas longas e molhadas estendendo-se da estrada que serpenteava pelo bosque, com um canto cego depois de outro, não faltava esse tipo de ação. Mas mesmo com todas as enormes carretas de madeira atrapalhando nas curvas, a maioria das pessoas guardava distância. As exceções a essa regra em geral eram as motos, e Charlie vira vítimas demais, quase sempre jovens, vencidas na estrada. Antes de eu completar 10 anos, ele me fez prometer que jamais aceitaria carona de moto. Mesmo nessa idade, não precisei pensar duas vezes antes de prometer. Quem ia querer andar de moto aqui? Seria como tomar um banho a 90km/h. Tantas promessas que cumpri... Então me deu um estalo. Eu queria ser idiota e imprudente, e queria quebrar promessas. Por que parar em uma só? Isso foi tudo que pensei sobre o assunto. Caminhei na chuva para a porta da frente dos Marks e toquei a campainha. Um dos filhos dos Marks abriu a porta, o mais novo, o calouro na escola. Eu não conseguia me lembrar o nome dele. O garoto de cabelo cor de areia só alcançava meu ombro. Ele não teve dificuldades para lembrar meu nome. – Bella Swan? – perguntou, surpreso. – Quanto quer pela moto? – Eu ofegava, apontando o polegar por sobre o ombro para a placa de vende-se. – Esta falando sério? – perguntou ele. – É claro que estou. – Elas não funcionam.
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Suspirei com impaciência – isso eu já havia deduzido pela placa.– Quanto? – Se quer mesmo uma, pode levar. Minha mãe obrigou meu pai a colocar todas na rua, para serem recolhidas com o lixo. Olhei as motos de novo e vi que estavam encostadas numa pilha de grama aparada e galhos mortos. – Tem certeza? – Claro, quer perguntar a ela? Provavelmente era melhor não envolver adultos que podiam falar do assunto com Charlie. – Não, acredito em você. – Quer uma ajuda? – ofereceu ele. – Elas não são leves. – Tudo bem, obrigada. Mas só vou precisar de uma. – Podia muito bem levar as duas – disse o menino. – Talvez possa aproveitar algumas peças. Ele me seguiu pela chuva e me ajudou a colocar as duas motos pesadas na traseira de minha picape. Parecia ansioso para se livrar delas, então não discuti. – O que vai fazer com elas, aliás? – perguntou. – Não funcionam há anos. – Imaginei isso – disse eu, dando de ombros. Meu capricho de momento não viera com um plano perfeito. – Talvez as leve ao Dowling. Ele bufou. – O Dowling cobraria mais para consertá-las do que valeriam funcionando.
Não podia questionar isso. John Dowling ganhara fama pelo preço que cobrava; ninguém o procurava, a não ser numa emergência. A maioria das pessoas preferia ir até Port Angeles, se o carro pudesse fazer a viagem. Eu tinha muita sorte nesse ponto – quando Charlie me deu minha picape antiga, fiquei preocupada de não conseguir mantê-la funcionando. Mas nunca tive qualquer problema com ela, a não ser o motor barulhento e o limite de
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velocidade de 90 km/h. Jacob Black a mantivera em ótimo estado enquanto pertenceu ao pai dele, Billy... A inspiração me veio como um raio – o que não era irracional, considerando a tempestade. – Sabe de uma coisa? Está tudo bem. Conheço alguém que monta carros. – Ah! Isso é bom. – Ele sorriu, aliviado. Ele acenou quando eu arranquei, ainda sorrindo. Um garoto simpático. Agora eu dirigia em alta velocidade e tinha um objetivo, com pressa para chegar em casa antes que houvesse a menor possibilidade de Charlie aparecer, mesmo na eventualidade muito improvável de que ele chegasse do trabalho mais cedo. Disparei pela casa até o telefone, as chaves ainda na mão. – O chefe Swan, por favor – disse quando o subdelegado atendeu. – É a Bella. – Ah, oi, Bella – respondeu afavelmente o subdelegado Steve. – Vou passar para ele. Eu esperei. – Qual é o problema, Bella? – perguntou Charlie assim que pegou o fone. – Não posso ligar para seu trabalho sem que seja uma emergência? Ele ficou em silêncio por um minuto. – Você nunca fez isso. É uma emergência? – Não. Só queria que me explicasse como chegar à casa dos Black... Não sei bem se me lembro do caminho. Queria visitar Jacob. Não o vejo há meses. Quando voltou a falar, a voz de Charlie estava muito mais feliz. – É uma ótima idéia, Bella. Tem uma caneta? As orientações que ele me deu eram simples. Garanti-lhe que voltaria para o jantar, embora ele tentasse me dizer para não ter pressa. Ele queria me encontrar em La Push, e eu não estava disposta a isso.
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Então foi como se eu tivesse hora marcada que dirigi rápido demais pelas ruas escurecidas pela tempestade, saindo da cidade. Eu queria encontrar Jacob sozinho. Billy me entregaria se soubesse o que eu estava aprontando. Enquanto dirigia, fiquei um pouco preocupada com a reação de Billy ao me ver. Ele ia ficar muito satisfeito. Na cabeça de Billy, sem dúvida, tudo se saíra melhor do que ele ousaria pensar. Seu prazer e alívio só me lembrariam daquele de quem eu não suportava me lembrar. Hoje de novo não, supliquei em silêncio. Eu estava esgotada. A casa dos Black era vagamente familiar, uma casinha de madeira com janelas estreitas, a tinta vermelha desbotada deixando-a parecida com um celeiro minúsculo. A cabeça de Jacob apontou para fora da janela antes mesmo que eu saísse do carro. Sem dúvida, o rugido familiar do motor o alertara de minha aproximação. Jacob ficou muito grato quando Charlie comprou a picape de Billy para mim, poupando-o de ter de dirigi-la quando tivesse idade para isso. Eu gostava muito do meu carro, mas Jacob parecia considerar as restrições de velocidade um defeito. Ele me recebeu a meio caminho da casa. – Bella! – Seu sorriso animado se espalhou pelo rosto, os dentes brilhantes destacando-se num contraste vívido com a cor avermelhada de sua pele. Eu nunca vira seu cabelo sem o rabo-de-cavalo habitual. Caía como uma cortina de cetim preto dos dois lados do rosto largo. Jacob desenvolvera parte de seu potencial nos últimos oito meses. Ele passara da fase em que os músculos macios da infância se endureciam na estrutura sólida e desajeitada de um adolescente; os tendões e veias tornaram-se proeminentes sob a pele castanho-avermelhada dos braços e das mãos. Seu rosto ainda era doce, como eu lembrava, embora também tivesse se tornado mais duro – as maçãs do rosto mais acentuadas, o queixo mais quadrado, todos os traços infantis desaparecidos.
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– Oi, Jacob! – Senti um surto desconhecido de entusiasmo ao ver o sorriso dele. Percebi que estava contente em vê-lo. Descobrir isso me surpreendeu. Eu também sorri e algo se encaixou em silêncio, como duas peças correspondentes de um quebra-cabeça. Tinha me esquecido do quanto gostava de Jacob Black. Ele parou a pouca distância de mim e eu o olhei surpresa, inclinando a cabeça para trás, apesar da chuva que golpeava meu rosto. – Você cresceu de novo! – apontei, maravilhada. Ele riu, o sorriso se alargando de uma forma impossível. – Um e noventa e quatro – anunciou, convencido. Sua voz era mais grave, mas tinha o tom rouco que eu conhecia. – Não vai parar nunca? – Sacudi a cabeça com descrença. – Você está enorme. – Mas ainda sou um varapau. – Ele sorriu. – Vamos entrar! Você vai ficar encharcada. Ele foi na frente, torcendo o cabelo com as mãos grandes enquanto andava. Pegou um elástico no bolso da calça e prendeu os cabelos. – Ei, pai – gritou ao se curvar para passar pela porta da frente. – Olhe quem parou por aqui. – Billy estava na sala de estar quadrada e mínima com um livro nas mãos. Ele baixou o livro no colo e girou para a frente ao me ver. – Ora, quem diria! É bom ver você, Bella. Trocamos um aperto de mãos. A minha ficou perdida em seu aperto largo. – O que a traz aqui? Está tudo bem com Charlie? – Sim, claro que sim. Só queria ver o Jacob... Havia séculos eu não o via. Os olhos de Jacob brilharam com minhas palavras. Tinha um sorriso tão largo que parecia que ia machucar as bochechas. – Pode ficar para o jantar? – Billy também estava ansioso. – Não, preciso alimentar o Charlie, você sabe.
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– Vou ligar para ele agora – sugeriu Billy. – Ele é sempre um convidado. Ri para esconder meu desconforto. – Mas até parece que vocês nunca mais vão me ver. Prometo que vou voltar logo... Tanto que vão ficar enjoados de mim. – Afinal, se Jacob conseguisse consertar a moto, alguém precisaria me ensinar a pilotar. Billy riu. – Tudo bem, talvez da próxima vez. – E então, Bella, o que quer fazer? – perguntou Jacob. – Qualquer coisa. O que estava fazendo antes de eu interromper? – Ali era estranhamente reconfortante. Era familiar, mas de um modo distante. Não havia lembretes dolorosos do passado recente. Jacob hesitou. – Estava indo trabalhar no carro, mas podemos fazer outra coisa...–Não, isso é perfeito! – interrompi. – Eu adoraria ver seu carro.– Tudo bem – disse ele, sem se convencer. – Está lá nos fundos, na garagem. Melhor ainda, pensei comigo mesma. Acenei para Billy. – A gente se vê. Uma fila espessa de árvores e arbustos mantinha a garagem escondida da casa. O espaço não passava de dois grandes telheiros pré-moldados que tinham sido unidos, com as paredes internas derrubadas. Sob esse abrigo, sustentado por blocos de concreto, estava o que me pareceu um automóvel inteiro. Reconheci, pelo menos, o símbolo na grade do radiador. – Que modelo de Volkswagen é esse? – perguntei. – É um Rabbit antigo... de 1986, um clássico. – Como está indo? – Quase terminado – disse ele com alegria. E depois sua voz caiu para um tom mais baixo. – Meu pai cumpriu a promessa dele na primavera passada.
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– Ah! – eu disse. Ele pareceu entender minha relutância em tocar no assunto. Tentei não me lembrar de maio passado, no baile da escola. Jacob fora subornado pelo pai com dinheiro e peças de carro para levar um recado lá. Billy queria que eu ficasse a uma distância segura da pessoa mais importante de minha vida. Acabou que a preocupação dele, no final, foi desnecessária. Eu agora estava completamente segura. Mas eu ia ver o que podia fazer para mudar isso. – Jacob, o que você entende de motocicletas? – perguntei. Ele deu de ombros. – Alguma coisa. Meu amigo Embry tem uma moto velha. Às vezes trabalhamos nela juntos. Por quê? – Bom... – Fiz um beicinho enquanto pensava. Não tinha certeza de se ele conseguiria manter a boca fechada, mas não tinha muitas alternativas. – Comprei há pouco tempo duas motos e elas não estão na melhores condições. Pensei se você poderia colocá-las para funcionar. – Legal! – Ele pareceu satisfeito de verdade com o desafio. Seu rosto se iluminou. – Vou tentar. Eu estendi um dedo, alertando. – O caso é que – expliquei. – Charlie não aprova motos. Francamente, uma veia explodiria na testa dele se descobrisse. Então não pode contar a Billy. – Claro, claro. – Jacob sorriu. – Eu entendo. – Vou pagar a você – continuei. Isso o ofendeu. – Não. Quero ajudar. Não pode me pagar. – Bom... E uma troca, hein? – Eu inventava enquanto falava, mas parecia bem razoável. – Eu só preciso de moto... E vou necessitar de umas aulas também. Então, que tal isso: eu lhe dou a outra moto, depois você pode me ensinar? – De-mais. – Ele dividiu a palavra em duas sílabas. – Espere um minutinho... Você já pode dirigir? Quando é seu aniversário?
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– Você esqueceu – brincou ele, semicerrando os olhos num ressentimento fingido. – Tenho 16 anos. – Como se sua idade o impedisse antes – murmurei. – Desculpe por seu aniversário. – Não se preocupe. Eu perdi o seu. Quantos anos você tem, 40? Eu funguei. – Perto. – Vamos fazer uma festa conjunta para compensar. – Parece mais um encontro. Os olhos dele brilharam ao ouvir a palavra. Eu precisava conter o entusiasmo antes que lhe passasse a idéia errada – simplesmente tinha se passado muito tempo desde que eu me sentira tão leve e animada. A raridade da sensação a tornava mais difícil de administrar. – Talvez quando as motos estiveram prontas... Nosso presente mútuo – acrescentei. – Fechado. Quando vai trazê-las aqui? Mordi o lábio, constrangida. – Já estão na minha picape – admiti. – Ótimo. – Ele parecia sincero. – Será que Billy vai ver se trouxermos para cá? Ele piscou para mim. – Vamos agir de fininho. Contornamos devagar a garagem, grudados nas árvores quando estávamos à vista das janelas, fingindo um passeio despreocupado, só por segurança. Jacob descarregou as motos depressa da traseira do carro, empurrando um após a outra para os arbustos onde eu me escondia. Pareceu fácil demais para ele – pelo que me lembrava, as motos eram muito, muito mais pesadas do que pareciam agora. – Não estão tão ruins – avaliou Jacob enquanto as empurrávamos pela cobertura das árvores. – Esta aqui, na verdade, vai valer alguma coisa quando eu terminar... É uma Harley Sprint antiga.–Então esta é sua. – Tem certeza?
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– Absoluta. – Mas vai custar algum dinheiro – disse ele, franzindo a testa para o metal escurecido. – Antes vamos ter que economizar para comprar as peças. – Nós coisa nenhum – discordei. – Se vai fazer isso de graça, vou pagar pelas peças. – Não sei não... – murmurou ele. – Tenho algum dinheiro guardado. Do fundo da universidade, sabe como é. Quem precisa de faculdade?, pensei comigo mesma. Eu não estava poupando o suficiente para nenhum lugar especial; e, além de tudo, eu não queria mesmo sair de Forks. Que diferença ia fazer se eu tirasse um pouquinho? Jacob só assentiu. Isso fazia perfeito sentido para ele. Enquanto fugíamos para a oficina improvisada, pensei em minha sorte. Só um adolescente concordaria com isso: enganar nossos pais enquanto consertava veículos perigosos usando dinheiro que devia ser para minha educação universitária. Ele não via nada de errado nisso. Jacob era um presente dos deuses.
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6. AMIGOS 

Não precisamos esconder as motos, bastou colocá-las no galpão de Jacob. A cadeira de rodas de Billy não passava pelo terreno irregular que separava a garagem da casa. Jacob começou na mesma hora a desmontar a primeira moto – a vermelha, que seria minha. Ele abriu a porta do carona do Rabbit para eu me sentar no banco, e não no chão. Enquanto trabalhava, Jacob conversava animado e só precisava de meu mais sutil aceno de cabeça para continuar a conversar. Ele me atualizou sobre o progresso de seu segundo ano na escola, falando sem parar das aulas e dos dois melhores amigos. – Quil e Embry? – interrompi. – São nomes incomuns. Jacob riu. – Quil é nome herdado de família e acho que Embry foi uma homenagem a um ator de novela. Mas não posso ficar comentando. Eles ficam furiosos se você fala sobre o nome deles... Vão partir para cima de você. – Amigos legais. – Ergui uma sobrancelha. – Não, eles são mesmo. É só não mexer com o nome deles. Nesse momento um chamado ecoou ao longe. – Jacob? – gritou alguém. – É o Billy? – perguntei. – Não. – Jacob baixou a cabeça e parecia estar corando sob a pele castanha. – E por falar no diabo – murmurou –, aparece o capeta. – Jake? Você está aí fora? – Agora a voz que gritava estava mais perto. – Estou! – gritou Jacob e suspirou. Esperamos por um curto silêncio até que dois rapazes altos e morenos entraram na garagem.
Um era mais magro e quase da altura de Jacob. O cabelo preto caía na altura do queixo, repartido ao meio, um lado enfiado atrás da orelha esquerda enquanto o lado direito balançava livre. O mais
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baixo era mais forte. A camiseta branca estava suja no peito bem desenvolvido e ele parecia alegremente consciente disso. O cabelo muito curto era quase uma penugem. Os dois garotos deram uma parada. O magro olhou rápido de Jacob para mim, enquanto o musculoso mantinha os olhos em mim, um sorriso lento se espalhando pelo rosto. – Oi, rapazes – Jacob os cumprimentou, desanimado. – Oi, Jake – disse o mais baixo sem tirar os olhos de mim. Tive de sorrir também, o sorriso dele era bem malicioso. Quando sorri, ele piscou para mim. – Oi, e aí? – Quil, Embry... Esta é minha amiga Bella. Quil e Embry, eu ainda não sabia quem era quem, trocaram um olhar intenso. – A filha de Charlie, não é? – perguntou-me o musculoso, estendendo a mão. – É isso mesmo – confirmei, trocando um aperto de mãos com ele. Seu aperto era firme; parecia que ele estava contraindo o bíceps. – Sou Quil Ateara – anunciou ele de forma majestosa antes de soltar minha mão. – É um prazer conhecê-lo, Quil. – Oi, Bella. Eu sou o Embry, Embry Call... Mas você já deve ter deduzido isso. – Embry deu um sorriso tímido e acenou, depois meteu a mão no bolso do jeans. Eu assenti. – É um prazer conhecê-lo também. – Então, o que vocês estão fazendo? – perguntou Quil, ainda olhando para mim. – Bella e eu vamos consertar estas motos – explicou Jacob sem muita exatidão. Mas motos pareceu ser a palavra mágica. Os dois garotos examinaram o projeto de Jacob, enchendo-o de perguntas como se fossem profissionais. Muitas palavras que usaram eram desconhecidas para mim e imaginei que teria de ter um cromossomo Y para entender a empolgação deles.
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Eles ainda estavam imersos numa conversa sobre peças quando decidi que precisava ir para casa antes que Charlie aparecesse por ali. Com um suspiro, deslizei para fora do Rabbit. Jacob olhou como quem se desculpa. – Estamos chateando você, não é? – Não. – E não era mentira. Eu estava gostando... Que estranho. – É que preciso fazer o jantar para Charlie. – Ah... Bom, vou terminar de desmontar as duas hoje à noite e ver que vamos precisar para começar a restaurá-las. Quando vai querer trabalhar nelas de novo? – Posso voltar amanhã? – Os domingos eram a ruína de minha existência. Nunca havia dever de casa suficiente para me manter ocupada. Quil cutucou o braço de Embry e eles trocaram um sorriso. Jacob sorriu delicado. – Seria ótimo! – Se fizer uma lista, podemos comprar as peças – sugeri. A cara de Jacob desabou um pouco. – Ainda não sei se devo deixar você pagar tudo. Sacudi a cabeça. – De jeito nenhum, eu estou bancando a festa. Você só tem que entrar com a mão-de-obra e o conhecimento. Embry revirou os olhos para Quil. – Isso não está certo – Jacob sacudiu a cabeça. – Jake, se eu as levasse a um mecânico, quanto ele me cobraria? – ressaltei. Ele sorriu. – Tudo bem, temos um acordo. – Para não falar nas aulas de direção – acrescentei. Quil deu um sorriso largo para Embry e cochichou alguma coisa que não entendi. A mão de Jacob disparou para dar um tapa na cabeça de Quil. – Já chega, saiam – murmurou ele. – Não, eu tenho que ir mesmo – protestei, indo para a porta. – A gente se vê amanhã, Jacob.
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Assim que fiquei fora de vista, ouvi o coro de Quil e Embry: “Caraaaaa!” Seguiu-se o som de uma curta briga, intercalado com um “ai” e um “ei!”. – Se um de vocês puser um dedo que seja no meu terreno amanhã... – ouvi Jacob ameaçar. A voz dele se perdeu enquanto eu passava pelas árvores. Eu ri baixinho. O som fez com que meus olhos se arregalassem de surpresa. Eu estava rindo, rindo de verdade, e não havia ninguém olhando. Senti-me tão leve que ri de novo, só para que a sensação durasse mais. Cheguei em casa antes de Charlie. Quando ele entrou, eu tinha acabado de colocar o frango frito sobre uma pilha de toalhas de papel.– Oi, pai. – Abri um sorriso para ele. O choque passou rapidamente pelo rosto de Charlie antes de ele recompor a expressão. – Oi, querida – disse, a voz indecisa. – Você se divertiu com Jacob?Comecei a passar a comida para a mesa. – É, eu me diverti. – Isso é bom. – Ele ainda estava cauteloso. – O que vocês dois fizeram? Agora era minha vez de ter cautela. – Fiquei na garagem dele, vendo-o trabalhar. Sabia que ele está restaurando um Volkswagen? – É, acho que o Billy falou sobre isso. O interrogatório teve de parar quando Charlie começou a mastigar, mas ele continuou a examinar meu rosto enquanto comia. Depois do jantar fiquei agitada, limpei a cozinha duas vezes e depois fiz meu dever de casa devagar, na sala, enquanto Charlie assistia a um jogo de hóquei. Esperei o máximo que pude, mas enfim Charlie disse que era tarde. Como não respondi, ele se levantou, espreguiçou-se e depois saiu, apagando a luz ao passar. Com relutância, eu o segui.
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Enquanto eu subia a escada, tive a última sensação anormal do bem-estar da tarde sendo drenada de meu sistema, substituída por um medo depressivo da idéia do que teria de suportar. Eu não estava mais entorpecida. Aquela noite, sem dúvida, seria tão apavorante quanto a anterior. Deitei-me na cama e me encolhi como uma bola, preparando-me para a investida. Fechei bem os olhos... a próxima coisa que percebi é que já era manhã. Olhei pasma a luz prateada e pálida que entrava pela janela. Pela primeira vez em mais de quatro meses eu tinha dormido sem sonhar. Sem sonhar nem gritar. Eu não sabia qual emoção era a mais forte – o alívio ou o choque. Fiquei imóvel na cama por alguns minutos, esperando que voltasse. Porque alguma sensação devia vir. Se não a dor, então o torpor. Esperei, mas nada aconteceu. Eu estava descansada como não me sentia havia muito tempo. Não acreditei que fosse durar. Estava me equilibrando na beira escorregadia e instável de um penhasco e não seria necessário muito para me derrubar de volta. Só olhar meu quarto com os olhos subitamente claros – percebendo como parecia estranho, arrumado demais, como se eu não morasse ali – já era perigoso. Afastei aquele pensamento de minha mente e me concentrei, enquanto me vestia, no fato que ia ver Jacob de novo. A idéia fez com que eu me sentisse quase... esperançosa. Talvez fosse como na véspera. Talvez eu não precisasse ficar me lembrando de parecer interessada e assentir ou sorrir em intervalos adequados, como tinha de fazer com todo mundo. Talvez... Mas eu não confiava que isso também fosse durar. Não confiava que seria a mesma situação – tão fácil – do dia anterior. Eu não ia me animar para depois ter uma decepção. No café-da-manhã, Charlie também foi cuidadoso. Tentou esconder seu olhar minucioso, concentrando-se nos ovos até acreditar que eu não estava percebendo. – O que você vai fazer hoje? – perguntou ele, olhando um fio solto na beira do punho como se não estivesse prestando muita atenção em minha resposta.
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– Vou ficar com Jacob de novo. Ele assentiu, sem olhar para mim. – Ah! – disse. – Você se importa? – Fingi me preocupar. – Eu posso ficar... Ele olhou para cima rapidamente, uma pontada de pânico nos olhos.– Não, não! Pode ir. Harry vai aparecer mesmo para ver o jogo comigo. – Talvez Harry possa dar uma carona ao Billy – sugeri. Quanto menos testemunhas, melhor. – É uma ótima idéia. Eu não tinha certeza de se o jogo era só uma desculpa para ele me colocar para fora de casa, mas agora Charlie parecia bem animado. Ele foi até o telefone enquanto eu vestia o casaco de chuva. Fiquei pouco à vontade com o talão de cheques no bolso do casaco. Era algo que eu nunca usava. Lá fora a chuva caía como água derramada de um balde. Tive de dirigir mais devagar do que queria; mal conseguia enxergar a um carro de distância da picape. Mas por fim consegui passar pelas ruas enlameadas e chegar à casa de Jacob. Antes que eu desligasse o motor, a porta da frente se abriu e Jacob veio correndo com um enorme guarda-chuva preto. Ele o segurou acima de minha porta enquanto eu a abria. – Charlie ligou... Disse que você estava a caminho – explicou Jacob com um sorriso. Sem esforço, sem um comando consciente para os músculos de meus lábios, meu sorriso de resposta se espalhou pelo rosto. Uma estranha sensação de calor borbulhou em minha garganta, apesar da chuva gelada que espirrava nas bochechas. – Oi, Jacob. – Boa idéia convidar o Billy. – Ele ergueu a mão para me cumprimentar. Tive de esticar tanto o braço para bater na mão de Jacob que ele riu.
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Harry apareceu para pegar Billy poucos minutos depois. Jacob me levou em um breve tour por seu quarto minúsculo enquanto esperávamos ficar sem supervisão. – Então, para onde, Sr. Supermecânico? Jacob pegou um papel dobrado do bolso e o desamassou. – Vamos começar pelo ferro-velho, para ver se temos sorte. Isso pode ficar meio caro – alertou ele. – Essas motos vão precisar de muita ajuda antes de funcionarem de novo. – Meu rosto não parecia muito preocupado, então ele continuou. – Estou falando de talvez mais de cem dólares. Peguei meu talão de cheques, abanei-me com ele e revirei os olhos para as preocupações de Jacob. – Estamos cobertos. Foi um dia muito estranho. Eu me diverti. Mesmo no ferro-velho, com a chuva que caía e a lama até os joelhos. No início me perguntei se era só o choque depois de perder o torpor, mas não achei a explicação suficiente. Eu estava começando a pensar que era em especial por Jacob. Não só por ele sempre ficar feliz em me ver, ou por não ficar me olhando pelo canto do olho, esperando que eu tomasse alguma atitude que me rotulasse de louca ou deprimida. Não era nada relacionado comigo. Era o próprio Jacob. Jacob era apenas uma pessoa eternamente feliz, e carregava essa felicidade como uma aura, dividindo-a com quem quer que estivesse por perto. Como um sol na terra, Jacob sempre aquecia quem estava em seu campo gravitacional. Era natural, fazia parte de sua personalidade. Não surpreendia que eu ficasse tão ansiosa para vê-lo. Mesmo quando ele comentou sobre o buraco no painel de meu carro, não me provocou o pânico que eu deveria sentir. – O som quebrou? – perguntou ele. – É – menti. Ele cutucou o buraco. – Quem tirou? Estragou muita coisa... – Fui eu – admiti.
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Ele riu. – Talvez seja melhor você não tocar muito nas motos. – Tudo bem. De acordo com Jacob, tivemos sorte no ferro-velho. Ele ficou muito animado com várias peças de metal retorcido, sujas de graxa, que encontrou; eu só fiquei impressionada que ele conseguisse saber o que aquelas coisas deviam ser. Dali, fomos ao Checker Autopeças, em Hoquiam. Em minha picape, eram mais de duas horas de viagem para o sul pela estrada sinuosa, mas o tempo passava rápido com Jacob. Ele tagarelou sobre os amigos e a escola, e me vi fazendo perguntas, sem sequer fingir, com sincera curiosidade para ouvir o que ele tinha a dizer. – Estou falando o tempo todo – reclamou ele depois de uma longa história sobre Quil e o problema que ele criou ao convidar para sair a namorada de um garoto do último ano. – Por que não fala um pouco agora? O que está acontecendo em Forks? Deve ser mais animado do que La Push. – Errado – suspirei. – Não há absolutamente nada. Seus amigos são muito mais interessantes do que os meus. Gosto dos seus amigos. Quil é divertido. Ele franziu a testa. – Acho que o Quil gosta de você também. Eu ri. – Ele é meio novo para mim. O vinco na testa de Jacob se aprofundou. – Ele não é muito mais novo do que você. Só um ano e alguns meses.Tive a sensação de que não estávamos falando mais de Quil. Mantive a voz despreocupada e brincalhona. – Claro, mas, considerando a diferença de maturidade entre meninos e meninas, você não tem que contar como idade de cachorro? Isso me deixa o quê, uns doze anos mais velha? Ele riu, revirando os olhos.
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– Tudo bem, mas se você vai ser tão criteriosa, terá que considerar a média da altura também. Você é tão baixinha que vou ter que tirar dez anos do seu total. – Um e sessenta e dois estão perfeitamente na média. – Eu funguei. – Não é minha culpa que você seja uma anomalia. Ficamos brincando com isso até Hoquiam, ainda discutindo sobre a fórmula correta para determinar a idade – eu perdi mais dois anos porque não sabia trocar um pneu, mas ganhei um por ser encarregada de cuidar das contas da casa –, até que estávamos no Checker e Jacob teve de se concentrar de novo. Achamos tudo o que restava da lista e ele estava confiante de que faria muito progresso com nossas aquisições. Quando estávamos de volta a La Push, eu tinha 23 anos e ele, 30 – sem dúvida ele estava pesando os critérios em seu favor. Eu não tinha me esquecido do motivo do que eu estava fazendo. E, embora estivesse me divertindo mais do que pensei ser possível, não houve nenhuma diminuição de meu desejo original. Eu ainda queria trapacear. Não tinha sentido, e eu na verdade não me importava. Ia ser imprudente ao máximo em Forks. Conseguir passar o dia com Jacob era só um bônus maior do que eu esperava. Billy ainda não tinha voltado, então não precisamos descarregar furtivamente o ganho do dia. Assim que colocamos tudo no piso de plástico ao lado da caixa de ferramentas de Jacob, logo começamos a trabalhar, ainda conversando e rindo enquanto os dedos dele mexiam com habilidade nas peças de metal que tinha à sua frente. A destreza de Jacob com as mãos era fascinante. Elas pareciam grandes demais para as tarefas delicadas que realizavam com facilidade e precisão. Trabalhando, ele era quase gracioso. Ao contrário de quando estava de pé; desse modo, a altura e os pés grandes o tornavam quase tão perigoso quanto eu. Quil e Embry não apareceram, então talvez a ameaça que Jacob fizera na véspera tivesse sido leva a sério. O dia passou rápido demais. Ficou escuro antes do que eu esperava, e depois ouvimos Billy chamando por nós.
Fiquei de pé num salto para ajudar Jacob a guardar as coisas, hesitando porque não sabia em que podia mexer. – Deixe como está – disse ele. – Vou trabalhar nisso mais tarde.– Não se esqueça de seu dever de casa – eu disse, sentindo-me meio culpada. Eu não queria que ele se metesse em encrencas. Esse plano era só para mim. – Bella? Nossas cabeças se ergueram de repente ao ouvir a conhecida voz de Charlie flutuando por entre as árvores, parecendo mais próxima do que a distância da casa. – Droga – murmurei. – Estou indo! – gritei na direção da casa. – Vamos. – Jacob sorriu, gostando do perigo. Ele apagou a luz e por um momento fiquei cega. Jacob segurou minha mão e me conduziu para fora da garagem e por entre as árvores, os pés encontrando facilmente o caminho com que estavam familiarizados. A mão dele era grossa e muito quente. Apesar da trilha, tropeçamos na escuridão. Então também estávamos rindo quando avistamos a casa. O riso não era intenso; era tranqüilo e superficial, mas ainda assim foi bom. Eu tinha certeza de que ele não perceberia a leve pontada de histeria. Não estava acostumada a rir, e parecia ao mesmo tempo certo e muito errado. Charlie estava de pé na pequena varanda dos fundos e Billy estava sentado atrás, na soleira da porta. – Oi, pai – dissemos os dois ao mesmo tempo, e isso nos fez rir de novo. Charlie me fitou com olhos arregalados, que se desviaram para baixo e notaram a mão de Jacob na minha. – Billy nos convidou para jantar – disse-nos num tom distraído. – Minha super-receita secreta de espaguete. Transmitida ao longo de gerações – disse Billy, sério. Jacob bufou. – Não acho que os molhos prontos existam há tanto tempo.
A casa ficou abarrotada. Harry Clearwater estava lá também, com sua família – a esposa, Sue, que eu conhecia vagamente de meus verões em Forks, na infância, e os dois filhos. Leah cursava o último ano, como eu, mas era um ano mais velha. Tinha uma beleza exótica – a pele acobreada perfeita, o cabelo preto cintilante, cílios como espanadores de penas – e era pensativa. Ela estava ao telefone de Billy quando entramos e não o largou. Seth tinha 14 anos; ele absorvia cada palavra de Jacob com olhos de idolatria. Éramos muitos para a mesa da cozinha, então Charlie e Harry levaram cadeiras para o jardim e comemos espaguete com o prato no colo, à luz fraca da porta aberta de Billy. Os homens conversaram sobre o jogo, e Harry e Charlie fizeram planos para pescar. Sue implicava com o marido por causa do colesterol e tentou, sem sucesso, obrigá-lo a comer algum alimento verde e folhoso. Jacob conversou mais comigo e com Seth, que interrompia ansioso sempre que Jacob parecia se esquecer dele. Charlie me observava, tentando disfarçar, com olhos felizes, porém cautelosos. Ficava barulhento e às vezes confuso quando todos falavam juntos, e o riso de uma piada interrompia a outra a ser contada. Não tive de falar com freqüência, mas sorri muito, e só porque tive vontade. Eu não queria ir embora. Mas ali era Washington e a chuva inevitável por fim interrompeu a festa; a sala de estar de Billy era pequena demais para servir de opção para continuarmos com o encontro. Harry tinha dado uma carona a Charlie, então fomos juntos em minha picape para casa. Ele me perguntou sobre meu dia e eu contei praticamente a verdade – que fora com Jacob procurar peças e depois o vira trabalhar na garagem. – Acha que vai visitá-lo de novo em breve? – perguntou ele, tentando parecer despreocupado. – Amanhã, depois da aula – admiti. – Vou levar o dever de casa, não se preocupe. – Faça isso mesmo – ordenou ele, tentando disfarçar a satisfação.
Eu estava nervosa quando chegamos em casa. Não queria ir para o segundo andar. O calor da presença de Jacob estava desaparecendo, e, em sua ausência, a ansiedade ficava mais forte. Eu tinha certeza de que não conseguiria duas noites seguidas de sono tranqüilo. Para protelar a hora de dormir, chequei meu e-mail; havia uma nova mensagem de Renée. Ela escreveu sobre o dia que tivera, um novo clube do livro que preencheu o tempo vago das aulas de meditação que abandonara, a semana substituindo uma professora da segunda série, sentindo falta dos alunos do jardim-de-infância. Escreveu que Phil estava gostando do novo emprego de técnico e que eles pretendiam fazer uma viagem de segunda lua-de-mel a Disney World. E eu percebi que a coisa toda parecia uma entrada de diário, em vez de uma carta a outra pessoa. O remorso me inundou, deixando uma pontada desagradável. Que bela filha eu era. Escrevi a ela depressa, comentando cada parte de sua carta, dando voluntariamente informações minhas – descrevi a festa de espaguete na casa de Billy e como me sentia vendo Jacob construir coisas úteis a partir de peças pequenas de metal, impressionada e com certa inveja. Não fiz referência à mudança que aquela mensagem representava, comparada aos e-mails que ela recebera nos últimos meses. Mal conseguia me lembrar do que escrevera para ela, mesmo na semana anterior, mas tinha certeza de que não estive muito animada. Quanto mais pensava nisso, mais culpada me sentia; devia tê-la preocupado de verdade. Fiquei acordada até bem tarde, fazendo mais dever de casa do que o estritamente necessário. Mas nem a privação de sono nem o tempo passado com Jacob – sendo quase feliz, de uma forma superficial – poderiam afugentar o sonho por duas noites seguidas. Acordei tremendo, meu grito abafado pelo travesseiro. Enquanto a luz fraca da manhã se infiltrava pela névoa do lado de fora da janela, fiquei deitada imóvel e tentei afugentar o sonho. Houve uma pequena diferença naquela noite, e eu me concentrei nisso.
Naquela noite eu não estava sozinha no bosque. Sam Uley – o homem que me tirara do chão quando eu mal conseguia pensar
conscientemente – estava lá. Foi uma mudança estranha e inesperada. Os olhos escuros do homem eram de surpreendente hostilidade, cheios de um segredo que ele não parecia inclinado a compartilhar. Olhava para ele sempre que minha busca frenética permitia; deixou-me pouco à vontade, sob todo o pânico de sempre, tê-lo ali. Talvez porque, quando eu não o olhava diretamente, sua forma parecia tremer e se transformar em minha visão periférica. E, no entanto, ele não fez nada além de olhar, imóvel. Ao contrário de quando nos conhecemos na vida real, ele não me ofereceu ajuda. Charlie me encarava durante o café-da-manhã e eu tentei ignorá-lo. Achei que eu merecia aquilo. Não podia esperar que ele não se preocupasse. Deveria levar semanas até que ele parasse de vigiar a volta do zumbi, e eu precisava apenas tentar não deixar que isso me incomodasse. Afinal, eu também estava vigiando a volta do zumbi. Dois dias dificilmente eram tempo suficiente para me considerar curada. A escola foi o contrário. Agora que eu estava prestando atenção, ficou claro que ninguém ali estava olhando. Eu me lembrei do meu primeiro dia na Forks High School – como desejei desesperadamente ficar cinza, desaparecer no concreto molhado da calçada como um camaleão gigante. Parecia que eu estava realizando esse desejo um ano depois. Era como se eu não estivesse lá. Até os olhos de meus professores passavam por minha carteira como se estivesse vazia. Fiquei escutando a manhã toda, ouvindo mais uma vez a voz das pessoas em volta de mim. Tentei acompanhar o que estava acontecendo, mas as conversas eram tão desconjuntadas que desisti. Jessica não olhou para mim quando me sentei ao lado dela na aula de cálculo. – Oi, Jess – disse com uma indiferença forçada. – Como foi o restante de seu fim de semana? Ela olhou para mim com desconfiança. Será que ainda estava com raiva? Ou só estava impaciente demais para lidar com uma louca?– Ótimo – disse, voltando para o livro.
– Que bom – murmurei. A figura de linguagem levar um gelo parecia ter uma verdade literal. Eu podia sentir o ar quente soprando dos respiradouros do andar, mas a sala ainda estava gelada demais. Tirei o casaco do encosto da cadeira e o vesti novamente. A aula do quarto tempo terminou tarde e a mesa de almoço em que sempre me sentava estava cheia quando cheguei. Estavam lá Mike, Jessica, Angela, Conner, Tyler, Eric e Lauren. Katie Marshall, a ruiva do primeiro ano que morava na esquina da minha rua, estava sentada com Eric, e Austin Marks – o irmão mais velho do menino das motocicletas – estava ao lado dela. Imaginei há quanto tempo se sentavam ali, incapaz de me lembrar se aquele era o primeiro dia ou se era um hábito. Eu começava a ficar irritada comigo mesma. Podia muito bem ter ficado empacotada numa caixa de isopor no último semestre. Ninguém olhou quando me sentei ao lado de Mike, embora a cadeira tenha feito um barulho estridente no linóleo quando a arrastei para trás. Tentei acompanhar a conversa. Mike e Conner falavam de esportes, então desisti dessa de imediato. – Cadê o Ben? – perguntou Lauren a Angela. Espiei, interessada, perguntando-me se isso significava que Angela e Ben ainda estavam juntos. Mal reconheci Lauren. Ela cortara o cabelo louro de palha de milho – agora tinha um corte tão curto que a nuca estava raspada como a de um menino. Que coisa estranha para ela fazer. Desejei saber o motivo. Será que tinha grudado chiclete no cabelo? Ela o vendera? Será que todos com quem ela costumava ser desagradável a pegaram atrás do ginásio e a escalpelaram? Concluí que não era justo julgá-la a partir da opinião que eu tinha muito tempo atrás; pelo visto, ela se tornara uma pessoa legal. – Ben pegou uma virose gástrica – disse Angela com sua voz calma e baixa. – Por sorte só vai durar umas vinte e quatro horas. Ele ficou muito enjoado ontem à noite.
Angela também tinha mudado o cabelo. Deixou crescer em camadas. – O que vocês fizeram no fim de semana? – perguntou Jessica, sem parecer se importar com a resposta. Pude apostar que era só uma deixa para ela contar as próprias histórias. Imaginei se ela falaria de Port Angeles comigo ali, sentada a duas cadeiras de distância. Será que eu estava tão invisível que ninguém se sentiria desconfortável discutindo sobre mim na minha presença? – Íamos fazer um piquenique no sábado, mas... mudamos de idéia – disse Angela. Havia uma tensão na voz dela que atraiu meu interesse. O de Jess, nem tanto. – Que chato – disse ela, prestes a se lançar em sua história. Mas eu não era a única que estava prestando atenção. – O que aconteceu? – perguntou Lauren com curiosidade. – Bom – disse Angela, parecendo mais hesitante do que o normal, embora sempre fosse reservada –, nós fomos de carro para o norte, quase até a estação de águas... Tem um lugar bom por ali, a um quilômetro da trilha. Mas quando estávamos na metade do caminho... vimos uma coisa. – Viram uma coisa? O quê? – As sobrancelhas claras de Lauren se uniram. Agora até Jess parecia estar ouvindo. – Não sei – disse Angela. – Achamos que fosse um urso. Era preto, de qualquer forma, mas era... grande demais. Lauren bufou. – Ah, não, você também, não! – Havia escárnio nos olhos dela, e concluí que não precisava lhe dar o benefício da dúvida. Obviamente, sua personalidade não mudara tanto quanto o cabelo. – Tyler tentou me convencer da mesma coisa na semana passada. – Você não vai ver nenhum urso tão perto do resort – disse Jessica, apoiando Lauren. – É verdade – protestou Angela em voz baixa, olhando para a mesa. – Nós vimos mesmo. Lauren deu uma risadinha. Mike ainda falava com Conner, sem prestar atenção nas meninas.
– Não, ela tem razão – eu me intrometi, impaciente. – Tivemos um montanhista no sábado que também viu o urso, Angela. Ele disse que era imenso e preto, e estava nos arredores da cidade, não foi, Mike?Houve um momento de silêncio. Cada par de olhos na mesa se virou para mim, em choque. A garota nova, Katie, escancarou a boca como se tivesse acabado de testemunhar uma explosão. Ninguém se mexeu. – Mike? – murmurei, mortificada. – Você se lembra do cara com a história do urso? – C-claro – gaguejou ele depois de um segundo. Não sei por que me olhava de um jeito tão estranho. Eu falava com ele no trabalho, não falava? Não falava? Assim eu pensava... Mike se recuperou. – É, teve um cara que disse ter visto um urso-preto enorme na trilha... Maior do que um urso-pardo – confirmou ele. – Umpf! – Lauren se virou para Jessica, os ombros rígidos, e mudou de assunto. – Soube alguma coisa da universidade? – perguntou ela. Todos desviaram os olhos também, exceto Mike e Angela. Angela sorriu para mim, indecisa, e eu me apressei a retribuir o sorriso. – Então, o que você fez no fim de semana, Bella? – perguntou Mike, curioso, mas estranhamente cauteloso. Todos olharam, exceto Lauren, esperando por minha resposta. – Na sexta à noite, Jessica e eu fomos a um cinema em Port Angeles. E depois passei a tarde de sábado e a maior parte do domingo em La Push. Os olhos disparavam de Jessica para mim. Jess parecia irritada. Perguntei-me se ela não queria que ninguém soubesse que tinha saído comigo ou se queria contar ela mesma a história. – Que filme vocês viram? – perguntou Mike, começando a abrir um sorriso.
– Terror sem fim... Aquele dos zumbis. – Eu sorri, estimulando-o. Talvez eu pudesse recuperar parte dos danos que provocara naqueles meses como zumbi. – Soube que é de dar medo. Você achou? – Mike estava aflito para continuar a conversa. – Bella teve que sair no final, de tão apavorada que ficou – intrometeu-se Jessica com um sorriso malicioso. Assenti, tentando parecer constrangida. – Foi apavorante mesmo. Mike não parou de me fazer perguntas até que o almoço tivesse acabado. Aos poucos, os outros conseguiram recomeçar as próprias conversas, embora ainda olhassem muito para mim. Angela conversou principalmente com Mike e comigo, e quando me levantei para descartar a bandeja, ela me seguiu. – Obrigada – disse ela numa voz baixa quando estávamos longe da mesa. – Pelo quê? – Por falar, me dando apoio. – Sem problemas. Ela olhou para mim preocupada, mas não daquele jeito ofensivo de talvez-ela-esteja-maluca. – Você está bem? Foi por isso que escolhi Jessica e não Angela – embora eu sempre tenha gostado mais de Angela – para a noite de cinema. Angela era perceptiva demais. – Não completamente – admiti. – Mas estou um pouco melhor. – Fico feliz com isso – disse ela. – Senti sua falta. E então Lauren e Jessica vieram em nossa direção e ouvi Lauren cochichar alto: – Ah, que alegria. A Bella voltou. Angela revirou os olhos para as duas e sorriu para mim, encorajando-me. Suspirei. Era como se estivesse começando tudo de novo.– Que dia é hoje? – perguntei de repente. – Dezenove de janeiro.
– Hmmmm. – Que foi? – perguntou Angela. – Ontem completou um ano que cheguei aqui – refleti. – Nada mudou muito – murmurou Angela, olhando para Lauren e para Jessica. – Eu sei – concordei. – Era nisso mesmo que eu estava pensando.

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