sábado, 23 de abril de 2011

Orgulho e Preconceito - Capítulos 21 ao 50

Capítulo XXI


A discussão do oferecimento de Mr. Collins estava agora quase encerrada. Elizabeth sofria apenas do inevitável mal-es­tar que tudo aquilo lhe causava e ocasionalmente das indiretas amargas da mãe. Quanto a Mr. Collins, os seus sentimentos se exprimiam principalmente não por embaraço, ou depressão, nem pelo desejo de evitar a companhia de Elizabeth, mas pela secura das maneiras e por um silêncio rancoroso. Quase não di­rigiu a palavra a Elizabeth, e as assíduas atenções de que ele tinha tanta consciência foram transferidas durante o resto do dia para Miss Lucas, cuja paciência e amabilidade foram um grande alívio para todos, especialmente para Elizabeth.
No dia seguinte Mrs. Bennet continuou indisposta e mal-humorada. Mr. Collins estava igualmente no mesmo estado de orgulho ferido. Elizabeth tivera esperança de que o seu rancor pudesse abreviar a visita; mas esse sentimento não pareceu al­terar-lhe os planos. Ele tencionara partir no sábado e continua­va decidido a ficar até aquele dia.
Depois da primeira refeição as meninas foram a Meryton indagar se Mr. Wickham já tinha voltado e lamentar a sua au­sência no baile de Netherfield. Encontraram-no ao entrar na ci­dade, e ele as acompanhou até a casa da tia delas, onde exprimiu a decepção que sentira por não ter podido comparecer ao baile. Suas palavras foram discutidas e comentadas por todos. Para Elizabeth, entretanto, ele admitiu que a ausência tinha sido voluntária.
— À medida que a hora do baile se aproximava — disse ele —, achei que era melhor não me encontrar com Mr. Darcy. Que necessidade tinha eu de ficar num salão com ele, na mes­ma festa, durante tantas horas? Isto representava um esforço superior às minhas forças e poderia dar lugar a cenas desagra­dáveis para mim e para todo mundo.
Elizabeth aprovou calorosamente a sua prudência; tiveram tempo para discuti-la plenamente, bem como para trocar mutuamente todos os elogios, pois Wickham e outro oficial acompa­nharam as meninas de volta para Longbourn. O fato de Mr. Wickham acompanhá-las oferecia uma dupla vantagem: não só isto revelava a Elizabeth a importância que ela adquirira aos olhos de Mr. Wickham, como lhe dava uma ocasião muito fa­vorável de apresentá-lo ao pai e à mãe.
Pouco depois do regresso, chegou uma carta para Miss Bennet. Vinha de Netherfield e foi aberta imediatamente. O en­velope continha uma pequena folha de papel elegante, escrita em caracteres ornados, por mão feminina. Elizabeth viu que a expressão do rosto de sua irmã se alterara, enquanto ela lia. E que fixava com atenção certos trechos. Jane dominou logo os seus sentimentos e, pondo a carta de lado, procurou tomar par­te na conversa com a sua costumeira alegria, mas Elizabeth sentiu nela uma ansiedade que desviava a sua atenção até mes­mo de Wickham. E, assim que este e o seu companheiro parti­ram, Jane, com um olhar, convidou a irmã a acompanhá-la ao quarto. Aí, mostrou a carta, dizendo:
É de Caroline Bingley. O conteúdo me surpreendeu muito. O grupo todo já deve ter partido de Netherfield a esta hora, a caminho de Londres. E eles não têm intenção de voltar. Ouça o que ela diz.
Jane leu então a primeira frase: continha a informação de que Caroline havia resolvido acompanhar o irmão e tencio­nava jantar naquele mesmo dia em Grosvenor Street, onde morava Mr. Hurst. A frase seguinte continha estas palavras: "Não lhe vou mentir, dizendo que sentirei falta daquilo que deixo no Hertfordshire, a não ser da sua companhia, minha cara amiga. Espero que ainda nos encontremos algum dia para gozar a repetição das muitas conversas interessantes que tive­mos e até lá procuremos atenuar a dor da separação com uma correspondência freqüente e cordial. Conto com você para isto". Elizabeth ouviu estas pretensiosas expressões com a frieza que lhe inspirava a sua desconfiança; e, embora o caráter súbito daquela partida a surpreendesse, nada encontrava nela que la­mentar. Não era a ausência das irmãs que impediria Mr. Bin­gley de morar em Netherfield. E, quanto à perda daquela com­panhia, estava convencida de que Jane se consolaria facilmente, gozando a do próprio Mr. Bingley.
É de fato triste que você não tenha podido ver as suas amigas antes de partirem — disse Elizabeth, depois de uma curta pausa. — Mas espero que o período de felicidade futura a que Miss Bingley se refere chegue mais cedo do que ela pensa. Espero também que os agradáveis momentos que conheceram como amigas sejam repetidos com maior satisfação ainda do que antes. Mr. Bingley não ficará retido em Londres por causa delas.
Caroline diz claramente que nenhum deles voltará para o Hertfordshire este inverno. Vou ler para você: "Quando o meu irmão nos deixou ontem, imaginava que o negócio que o chamava a Londres pudesse ser concluído em três ou quatro dias, mas como estamos certas de que isto não pode ser assim e ao mesmo tempo estamos convencidas de que quando Charles che­gar à cidade não terá pressa em tornar a deixá-la, resolvemos acompanhá-lo, para que ele não seja obrigado a passar as suas horas de folga num hotel sem conforto. Muitos dos nossos co­nhecidos já estão lá para o inverno. Desejaria que você, minha cara amiga, tivesse a intenção de fazer parte deste grupo, mas quanto a isto não tenho muita esperança e desejo sinceramente que o seu Natal no Hertfordshire seja repleto das alegrias que esta festa em geral nos traz, e que seus admiradores sejam tão numerosos que não sentirá falta dos três que lhe arrebatamos". É evidente, portanto — acrescentou Jane —, que ele não vol­tará mais este inverno.
— O que é evidente, apenas, é que Miss Bingley não quer que ele volte.
Você pensa assim? A iniciativa deve ter partido dele. Ele é dono de si mesmo. Mas você não sabe de tudo. Vou ler a mensagem que me magoou particularmente. Não esconderei nada de você: "Mr. Darcy está impaciente para ver a irmã e, para falar a verdade, nós não estamos menos impacientes do que ele. Acho realmente que Georgiana Darcy não tem igual em elegância, beleza e cultura. E à afeição que ela inspira a Louise e a mim mesma acresce alguma coisa mais importante: a esperança que ousamos alimentar de que ela se torne mais tar­de a nossa irmã; não sei se antes já lhe manifestei os meus sentimentos a este respeito. Mas não quero deixar este lugar sem confiar a você os meus desejos. E espero que não os consi­dere insensatos. Meu irmão já a admira muito — ele terá agora freqüentes oportunidades de travar relações íntimas com ela. Todos os seus parentes desejam a aliança do mesmo modo que nós, e penso que não me deixo iludir pela afeição que dedico à irmã, dizendo que acho Charles capaz de conquistar o coração de qualquer mulher. Com todas estas circunstâncias a favor desse casamento e nenhuma que seja contrária, acho, minha cara Jane, que não erro ao alimentar a esperança de um acontecimento que fará a felicidade de tantas pessoas". O que é que você acha desta última frase? — indagou Jane, ao terminar a leitura. — Não é bastante transparente? Não declara ela expressamente que Caroline não espera nem deseja que eu me. torne sua irmã? E que ela está tão perfeitamente convencida da indiferença do irmão que, suspeitando a natureza dos meus sentimentos por ele, tenciona bondosamente avisar-me? Pode haver outra opi­nião a este respeito?
Sim, pode. A minha é totalmente diferente. Quer ouvi-la?
De boa vontade.
Eu a direi em poucas palavras: Miss Bingley viu que o irmão está apaixonado por você e quer que ele se case com Miss Darcy. Ela o acompanhou a Londres com a esperança de detê-lo lá e procurará persuadi-lo de que ele não gosta de você.
Jane sacudiu a cabeça.
É verdade, Jane, você deve me acreditar. Nenhuma pessoa que os tenha visto juntos pode duvidar da afeição de Mr. Bingley por você. Estou certa de que Miss Bingley não pode ter nenhuma dúvida a este respeito. Ela não é tão sim­plória assim. Se ela tivesse recebido metade dar demonstrações de amor que Mr. Bingley lhe dirigiu, teria encomendado o enxoval. Mas o caso é o seguinte: não somos suficientemente ricos e importantes para eles. E ela está tanto mais ansiosa de casar Miss Darcy com o irmão porque espera que esta aliança entre as duas famílias favoreça uma segunda no mesmo sentido; acho que há nisto uma certa ingenuidade. Ela teria alguma pro­babilidade de êxito se não houvesse Miss de Bourgh. Mas, mi­nha cara Jane, você não pode imaginar seriamente que só por­que Miss Bingley disse que o irmão dela admira Miss Darcy ele seja agora menos sensível aos seus méritos do que quando se despediu de você na terça-feira. Ou que está nas mãos de Miss Bingley fazer com que em vez de ter amor por você ele se apaixone pela amiga dela.
Se pensássemos a mesma coisa de Miss Bingley — replicou Jane —, a idéia que você fez de tudo isto me tranqüi­lizaria. Mas eu sei que a base do seu raciocínio é injusto. Caro­line é incapaz de enganar alguém propositadamente. Tudo o que posso esperar no caso é que ela se tenha enganado a si mesma.
Está certo. Você não podia encontrar uma idéia mais feliz, já que não quer se consolar com a minha. Acredite que ela se tenha enganado. Você já fez o seu dever quanto a ela e não precisa mais se preocupar com isto.
Mas, minha cara irmã, você acredita que mesmo no melhor dos casos eu possa ser feliz aceitando um homem cujas irmãs e amigos desejem todos que ele se case com outra pessoa?
Você deve decidir por si mesma — disse Elizabeth; — e, se depois de madura deliberação achar que a infelicidade de descontentar as suas duas irmãs vale mais do que a felicidade de ser a esposa de Mr. Bingley, aconselho-a a recusá-lo sem hesitação.
Como você pode falar assim? — disse Jane sorrindo levemente. — Você sabe que, embora me doesse excessivamente a desaprovação delas, eu não hesitaria.
Nunca acreditei que você hesitasse. É por isto mesmo que não posso considerar a sua situação com muita piedade.
Mas se ele não voltar mais este inverno, minha escolha nunca será solicitada. Mil coisas podem acontecer em seis meses.
Elizabeth considerou com o maior desprezo essa idéia de que ele não voltasse mais. Pareceu-lhe ser apenas uma sugestão do interesse de Caroline. E nem por um momento pôde supor que esses desejos, por mais astutamente que fossem manifes­tados, pudessem influenciar um rapaz tão totalmente diverso de todos.
Exprimiu à irmã o que sentia com toda a convicção de que era capaz e teve o gosto de constatar dentro em pouco o efeito das suas palavras. Jane não tinha tendência a se deprimir e aos poucos recuperou a esperança, embora a sua desconfiança, às vezes, sobrepujasse o anseio de que Bingley voltasse a Nether­field e correspondesse aos desejos do seu coração.
Elizabeth e Jane resolveram comunicar à mãe apenas a partida da família, sem alarmá-la quanto à conduta de Mr. Bin­gley. Mas mesmo esta notícia incompleta causou graves preo­cupações a Mrs. Bennet. Lamentou a infelicidade de a família ter partido justamente quando todos estavam se tornando tão íntimos. Depois de se lamentar durante algum tempo, conso­lou-se com a idéia de que Mr. Bingley voltaria brevemente para jantar em Longbourn e a conclusão de tudo aquilo foi a consoladora declaração de que, embora ele tivesse sido convidado apenas para um jantar de família, ela, Mrs. Bennet, tivera o cuidado de preparar um jantar de vários pratos.

Capítulo XXII


Os Bennet foram convidados a jantar com os Lucas e novamente, durante a maior parte do dia, Miss Lucas teve a bondade de dar atenção a Mr. Collins. Elizabeth achou uma oportunidade para agradecer à amiga.
— Conserve-o de bom humor — disse ela. — Fico-lhe mais agradecida do que você imagina.
Charlotte assegurou à amiga que tinha muita satisfação em lhe ser útil, e que isto lhe pagava plenamente o pequeno sacri­fício do seu tempo. Apesar de estas palavras serem muito amá­veis, a bondade de Charlotte ia além do que Elizabeth supunha. O seu objetivo era nada menos do que preservar Elizabeth de qualquer possível recrudescimento das atenções de Mr. Collins, atraindo-as para si mesma. Tal foi o plano de Miss Lucas. E aparentemente foi tão bem sucedida que, quando se separaram à noite, ela se teria sentido quase segura do seu êxito se Mr. Collins não tivesse de partir do Hertfordshire dentro de prazo tão curto. Mas neste ponto ela fazia injustiça ao ímpeto e à independência do caráter de Mr. Collins, pois essas qualidades o levaram a escapar sorrateiramente de Longbourn House na manhã seguinte e a correr até Lucas Lodge para se atirar aos seus pés. Mr. Collins evitou cuidadosamente atrair a atenção das primas, pois estava certo de que se o vissem partir não poderiam deixar de adivinhar a sua intenção. E ele não queria que a tentativa fosse conhecida até que o seu êxito o pudesse ser igualmente, pois, embora estando quase seguro da vitória, e com razão, visto Charlotte o ter encorajado bastante, sentia-se relativamente tímido desde a aventura de quarta-feira. Sua recepção, no entanto, foi das mais amáveis. Miss Lucas o avis­tou de uma janela de cima e imediatamente saiu para encontrá-lo casualmente na aléia. Ela só não ousara esperar que tanto amor e tanta eloqüência aguardassem ali o seu aparecimento.
Num espaço de tempo tão curto quanto o permitiram os longos discursos de Mr. Collins, tudo foi combinado satisfa­toriamente para ambos. E ao entrar em casa, ele pediu grave­mente que ela marcasse o dia em que o faria o mais feliz dos homens. Ainda que uma tal solicitação devesse ser afastada no momento, a moça não se sentiu inclinada a arriscar a sua felici­dade. A impermeabilidade com que o dotara a natureza devia privar a sua corte de qualquer encanto que pudesse fazer uma mulher desejar prolongá-la. Miss Lucas, que o aceitara por puro e desinteressado desejo de firmar a sua situação na vida, se preocupava pouco com a data em que isto acontecesse.
O consentimento de Sir William e de Lady Lucas foi rapidamente solicitado, e concedido com a maior boa vontade. A situação atual de Mr. Collins o tornava um partido muito desejável para a filha, a quem só podiam deixar uma pequena fortuna, e as probabilidades que tinha Mr. Collins de herdar fortuna eram bastante evidentes. Lady Lucas começou a cal­cular diretamente, com um interesse que jamais tivera pelo assunto, quantos anos provavelmente viveria ainda Mr. Bennet, e Sir William manifestou a opinião de que, quando Mr. Collins entrasse na propriedade de Longbourn, seria altamente conve­niente que ambos, ele e a esposa, se apresentassem em St. James. Em suma, toda a família se sentiu profundamente feliz. As filhas mais moças começaram a ter esperança de entrar na vida social um ano ou dois mais cedo do que de outro modo pode­riam fazê-lo e os rapazes se sentiram aliviados da sua apreensão de que Charlotte morresse solteirona. Charlotte, pessoalmente, se mostrou bastante discreta. Conseguira o que almejava e tinha tempo para refletir no assunto. Suas reflexões foram em geral satisfatórias. Mr. Collins não era a bem dizer nem sensato nem agradável. A sua companhia era cansativa. E a sua afeição por ela devia ser imaginária. Mas mesmo assim seria seu ma­rido. Sem ter grandes ilusões a respeito dos homens ou do matrimônio, o casamento sempre fora o seu maior desejo; era a única posição tolerável para uma moça bem-educada e de pouca fortuna. E por mais incertas que fossem as perspectivas de felicidade, era ainda a forma mais agradável de ficar ao abrigo da necessidade. Esta proteção, ela agora a obtivera. Tinha vinte e sete anos e jamais fora bela. Sabia portanto que tivera sorte. A circunstância menos agradável era a surpresa que aqui­lo devia causar a Elizabeth Bennet, de cuja amizade ela preci­sava mais do que a de qualquer outra pessoa. Elizabeth ficaria espantada e provavelmente a censuraria. Embora isto não afe­tasse a sua resolução, ela se sentiria ferida com semelhante desaprovação. Resolveu comunicar-lhe pessoalmente a decisão e, assim, recomendou a Mr. Collins, quando ele voltasse a Longbourn para jantar, que tivesse a maior discrição. Mr. Collins prometeu guardar segredo. Mas tal promessa só poderia ser cumprida com muita dificuldade; pois a curiosidade produzida pela sua longa ausência explodiu em perguntas tão diretas que foi necessário uma grande habilidade a fim de iludi-las e ao mesmo tempo exigiram dele um grande sacrifício, pois ardia de desejo de revelar o seu êxito.
Como ele fosse partir na manhã seguinte muito cedo, a cerimônia de despedida foi realizada na hora em que as senhoras se retiravam para dormir; e Mrs. Bennet, com grande cortesia e cordialidade, exprimiu a felicidade que todos sentiriam em tornar a vê-lo em Longbourn, quando os seus deveres permi­tissem uma nova visita.
Minha cara senhora — replicou ele —, o convite é particularmente agradável, porque é o que eu esperava receber, e pode estar certa de que eu o aceitarei tão depressa quanto me for possível.
Todos ficaram surpresos. Mr. Bennet, que não desejava de modo algum uma volta tão rápida, disse imediatamente:
Mas não haverá perigo da desaprovação de Lady Cathe­rine? Seria melhor desdenhar os seus parentes do que correr o risco de ofender a sua protetora.
Meu caro senhor — replicou Mr. Collins —, agra­deço-lhe a amável previdência; pode ficar certo de que não tomarei tal decisão sem o consentimento de Sua Senhoria.
Todo o cuidado é pouco. Arrisque tudo, menos incor­rer no descontentamento daquela senhora. E, se o senhor achar provável que o fato de nos tornarmos a ver possa acarretar algum aborrecimento, coisa que acho extremamente provável, fique sossegado em sua casa e esteja certo de que não nos ofenderemos.
Acredite, meu caro amigo, que lhe fico muito grato pela sua atenção tão cordial. E pode ficar certo de que o senhor receberá em breve uma carta minha, agradecendo esta e todas as demais provas de afeição que recebi durante a minha visita ao Hertfordshire. Quanto às minhas encantadoras primas, em­bora a minha ausência seja curta, tomo a liberdade de lhes desejar saúde e felicidade, sem excetuar a minha prima Eli­zabeth.
As senhoras então se retiraram, com as cortesias habituais, muito surpreendidas com a intenção que ele manifestara de vol­tar em breve. Mr. Bennet interpretou-a como o desejo de fazer a corte a uma das suas filhas mais moças. E Mary poderia ter sido levada a aceitá-lo. Ela prezava os talentos de Mr. Collins, muito mais do que qualquer uma das outras. Havia uma solidez nas reflexões de Mr. Collins que freqüentemente a impressio­nava. E embora não o achasse nem de longe tão inteligente quanto a si própria, pensava que, se o encorajasse a ler e a se ilustrar como o fizera, ele poderia tornar-se um companheiro muito agradável. Mas na manhã seguinte todas as esperanças dessa natureza foram dissipadas. Miss Lucas veio em visita pouco depois da primeira refeição, e a sós com Elizabeth relatou os acontecimentos do dia anterior.
A possibilidade de imaginar Mr. Collins apaixonado pela amiga já tinha ocorrido a Elizabeth nesses últimos dias, mas não podia crer que Charlotte o encorajasse. Isto" lhe parecia quase tão impossível para a amiga quanto para ela própria. Sua surpresa foi assim tão grande que ultrapassou a princípio os limites da discrição e ela não pôde deixar de exclamar:
Noiva de Mr. Collins? Minha cara Charlotte, não é possível!
A expressão grave com que Miss Lucas contava a sua história se alterou momentaneamente com a confusão que sentia por receber uma censura tão direta. Mas como Charlotte já contava com aquilo, recuperou logo a calma e respondeu:
Por que é que você está espantada, minha cara Eliza? Acha incrível que Mr. Collins agrade a uma mulher? E isto só porque ele não teve a felicidade de lhe agradar?
Mas Elizabeth já tinha recuperado o domínio sobre si mesma. E, fazendo um grande esforço, conseguiu assegurar a Charlotte com certa firmeza que a perspectiva de se tornarem parentes lhe era muito agradável e que ela lhe desejava todas as felicidades imagináveis.
Eu sei o que você está sentindo — replicou Charlotte. — Você está admirada porque Mr. Collins há tão pouco tempo ainda desejava se casar com você. Mas quando você tiver tempo de pensar sobre o assunto, espero que aprove a minha decisão. Bem sabe que não sou romântica. Nunca fui. Desejo apenas um lar confortável. E, considerando o caráter de Mr. Collins, as suas relações e a sua situação na vida, estou convencida de que tenho as mesmas possibilidades de ser feliz no casamento que a maioria das outras mulheres.
Elizabeth respondeu calmamente: — Sem dúvida.
Depois de uma pausa embaraçosa, as duas amigas se reu­niram ao resto da família. Charlotte não se demorou mais por muito tempo. E Elizabeth teve o ensejo de refletir sobre o que acabara de ouvir. Mas só muito tempo depois é que se recon­ciliou com a idéia de um casamento tão disparatado. A extra­vagância de Mr. Collins, fazendo duas propostas de casamento em três dias, não era nada em comparação com o consentimento de Charlotte. Elizabeth sempre desconfiara de que a opinião de Charlotte sobre o casamento não se parecia muito com a sua. Mas nunca poderia ter suposto que no instante de confrontar as suas idéias com a realidade ela fosse capaz de sacrificar todos os seus melhores sentimentos às vantagens mundanas. Char­lotte mulher de Mr. Collins era um quadro humilhante. E à dor de ver uma amiga se rebaixar assim na sua estima acrescia a triste convicção de que era impossível que aquela mesma amiga fosse feliz no caminho que escolhera.

Capítulo XXIII


Elizabeth estava sentada com a mãe e as irmãs, pensando no que ouvira e em dúvida sobre se devia mencioná-lo, quando Sir William Lucas em pessoa apareceu, enviado pela filha, para anunciar o noivado. Depois de muitos cumprimentos e congra­tulações pelas perspectivas da união entre as duas famílias, ele abordou o assunto, para uma audiência não somente atônita, mas também incrédula. Pois Mrs. Bennet, com mais perseve­rança do que polidez, retrucou que ele devia estar completa­mente enganado. E Lydia, que era às vezes muito atirada e qua­se sempre malcriada, exclamou:
— Puxa, Sir William, como é que o senhor pode contar uma história destas? Então não sabe que Mr. Collins quer se casar com Lizzy?
Só um cavalheiro, munido de toda a sua tolerância, pode­ria suportar uma tal desconsideração sem se zangar. Mas a boa educação de Sir William conseguiu fazer com que ele transpu­sesse tudo aquilo. E, embora insistisse para que a família acre­ditasse na verdade da sua informação, suportou todas aquelas impertinências com a mais perfeita cortesia.
Elizabeth, sentindo que lhe cabia o dever de salvá-lo da­quela situação incômoda, adiantou-se e confirmou as suas pala­vras, mencionando o conhecimento prévio que tivera de Char­lotte pessoalmente. E procurou pôr um termo às exclamações da mãe e das irmãs, dando os mais sinceros parabéns a Sir William, atitude que Jane imediatamente secundou, fazendo diversas observações sobre a felicidade que poderia trazer aque­la aliança, o caráter excelente de Mr. Collins e a distância con­veniente que separava Hunsford de Londres.
Mrs. Bennet ficou tão ofuscada que nada pôde dizer en­quanto Sir William esteve presente. Mas, apenas ele saiu, os seus sentimentos transbordaram. Em primeiro lugar ela persis­tiu em duvidar da verdade daquelas afirmações. Em segundo lugar tinha certeza de que Mr. Collins fora iludido. Em terceiro lugar tinha certeza de que eles nunca seriam felizes. E em quar­to, que o compromisso poderia ser rompido. Duas coisas no entanto se podiam claramente deduzir do assunto: primeiro, que era Elizabeth a causa de todo aquele mal, e segundo, que ela, Mrs. Bennet, tinha sido tratada infamemente por todos. E foi sobre estes dois pontos, principalmente, que ela se expandiu durante o resto do dia. Nada a pôde consolar ou aplacar, e aquele dia passou sem que o seu ressentimento diminuísse. Du­rante uma semana não pôde ver Elizabeth sem ralhar com ela. Só depois de decorrido um mês pôde conversar novamente com Sir William e Lady Lucas sem ser grosseira, só perdoando a Charlotte muitos meses depois.
Os sentimentos de Mr. Bennet foram muito mais tranqüi­los. Ele achou a situação muito agradável, pois se sentia satis­feito, dizia, por descobrir que Charlotte Lucas, pessoa que ele julgara toleravelmente sensata, era, na realidade, tão tola quanto a sua mulher e mais tola ainda do que a sua filha.
Jane se confessou um tanto surpresa. Mas falou menos em seu espanto do que no desejo sincero de que eles fossem felizes. Elizabeth não conseguiu persuadi-la de que aquela felicidade era pouco provável. Kitty e Lydia estavam longe de invejar Miss Lucas. Para elas Mr. Collins era apenas um pastor, e a notícia afetou-as apenas como uma novidade que podiam espalhar em Meryton.
Lady Lucas não poderia ter resistido ao triunfo de falar a Mrs. Bennet sobre o conforto que representava para ela o fato de ter uma filha bem casada. Ia a Longbourn com mais freqüência do que de costume, para dizer o quanto se sentia feliz, embora os olhares irados de Mrs. Bennet e as observações rancorosas ameaçassem, por vezes, estragar a sua felicidade.
Entre Elizabeth e Charlotte havia um certo constrangimen­to, que as impedia mutuamente de abordar aquele assunto; e Elizabeth se sentiu persuadida de que nenhuma confiança real poderia subsistir daí por diante entre elas. O desapontamento que sofrera fez Elizabeth aproximar-se mais da irmã, em cuja retidão e delicadeza de sentimentos tinha absoluta confiança e cuja felicidade cada dia mais a preocupava, pois fazia uma se­mana que Bingley partira e ainda ninguém falara na sua volta.
Jane enviara a Caroline uma resposta imediata à sua carta e contava os dias que tinha de esperar até que outra lhe che­gasse. A prometida carta de agradecimento de Mr. Collins che­gou na terça-feira. Era dirigida a Mr. Bennet e escrita com tanta solenidade e gratidão como se ele tivesse residido um ano com a família. Depois de tranqüilizar a sua consciência quanto a este tópico, servindo-se das mais calorosas expressões, Mr. Collins passava a informá-lo da sua felicidade por ter conquis­tado o coração daquela vizinha tão amável, Miss Lucas, e expli­cava que era apenas com a intenção de gozar a companhia de sua prometida que ele manifestara com tanta insistência o de­sejo de tornar a voltar a Longbourn, onde esperava chegar da­quela segunda-feira a quinze dias. Lady Catherine, acrescentava ele, aprovava tanto o seu casamento que desejava que o aconte­cimento tivesse lugar o mais cedo possível. Com esse argumen­to, que ele julgava decisivo, esperava convencer Charlotte a marcar uma data próxima para o dia que havia de torná-lo o mais feliz dos homens.
A volta de Mr. Collins para o Hertfordshire já não parecia mais tão agradável a Mrs. Bennet. Ao contrário, ela estava mui­to disposta a se queixar ao marido. Achava muito curioso que ele viesse a Longbourn em vez de ir morar em Lucas Lodge. A visita era também muito inconveniente e principalmente in­cômoda. Não gostava de ter hóspedes em casa quando a sua saúde não era muito boa. E os noivos eram as pessoas mais desagradáveis do mundo. Esses murmúrios de Mrs. Bennet con­tinuaram, até que surgiu a preocupação muito maior a respeito da ausência prolongada de Mr. Bingley. Nem Jane nem Elizabeth se sentiam tranqüilas quanto a isto. Os dias passavam sem tra­zer nenhuma notícia dele, a não ser o boato que circulou em Meryton de que Mr. Bingley não voltaria para Netherfield du­rante todo o inverno. Boato esse que enfureceu Mrs. Bennet e que ela nunca deixava de contradizer como se se tratasse da mais escandalosa das mentiras.
Elizabeth, por sua vez, começou a temer, não que Bingley fosse indiferente a Jane, mas que as irmãs dele conseguissem impedir-lhe o regresso. Apesar da relutância em admitir uma hipótese tão desfavorável para a felicidade de Jane e tão pouco honrosa para o namorado, não podia impedir que tal idéia lhe ocorresse freqüentemente. Os esforços reunidos daquelas criatu­ras maldosas que eram as duas irmãs e do amigo autoritário, somados aos atrativos de Miss Darcy e aos divertimentos de Londres, seriam talvez superiores ao seu interesse por Jane. Quanto a esta última, a sua ansiedade durante aquele período de incerteza era naturalmente mais dolorosa do que a de Eliza­beth. Mas queria esconder tudo o que sentia, e entre as duas irmãs, portanto, nunca se fazia qualquer alusão àquele assunto. Mas, como nenhuma delicadeza daquela espécie refreava Mrs. Bennet, não se passava uma hora sem que falasse em Bingley, sem que exprimisse a sua impaciência pela chegada dele ou mesmo sem que exigisse que Jane declarasse de uma vez por todas que se Bingley não voltasse ela se consideraria ofendida. Foi necessária toda a doçura e firmeza de Jane para suportar esses ataques com relativa tranqüilidade.
Mr. Collins voltou pontualmente no dia marcado, mas a sua acolhida em Longbourn não foi tão amável quanto da pri­meira vez. Mas ele se sentia tão feliz que não precisava de muita atenção e felizmente para os outros as suas atribuições de noivo os aliviaram grandemente da sua companhia. Passava a maior parte do tempo em Lucas Lodge e muitas vezes voltava a Long­bourn apenas a tempo de desculpar-se pela ausência antes de a família se retirar para os seus aposentos.
Mrs. Bennet estava realmente num estado lamentável. A simples alusão a qualquer detalhe relativo ao casamento a pre­cipitava num acesso de mau humor. Em qualquer lugar onde se encontrasse tinha certeza de ouvir falar naquele assunto. A presença de Miss Lucas era-lhe insuportável. Olhava-a com ciúme, despeito e horror, como à sua sucessora naquela casa. Cada vez que Charlotte vinha visitá-los, ela concluía que a sua intenção era antecipar a hora da posse, e, cada vez que Charlotte falava em voz baixa a Mr. Collins, tinha certeza de que falavam da propriedade de Longbourn, planejando expulsá-la e às suas filhas da casa, assim que Mr. Bennet morresse. Queixava-se amargamente de tudo aquilo ao marido.
Realmente, Mr. Bennet — dizia ela —, é muito duro pensar que Charlotte Lucas será um dia dona desta casa e que eu serei forçada a lhe ceder o meu lugar!
Não pense nestas coisas tristes, meu bem. Tenhamos confiança no futuro. Encaremos a possibilidade de que eu so­breviva a você.
Isto não era muito consolador para Mrs. Bennet. E portan­to, em vez de responder, ela continuou como antes.
Não posso suportar a idéia de que eles possuirão toda esta propriedade. Se não fosse esta questão de sucessão, eu não me importaria.
Com que é que você não se importaria?
Com nada.
Então vamos agradecer a Deus, porque você está pre­servada de cair num tal estado de insensibilidade.
Não posso ser grata a nada que se refira a esta suces­são, Mr. Bennet. Como é que alguém pode ficar tranqüilo ao saber que suas filhas vão ficar privadas da propriedade que possuem? E em favor de quem? De Mr. Collins! Por que ele e não uma outra qualquer pessoa?
Confio-lhe a resolução deste problema — disse Mr. Bennet.

Capítulo XXIV


A carta de Miss Bingley chegou e pôs fim a todas as dú­vidas. Logo a primeira frase evidenciava que eles tinham se instalado em Londres para todo o inverno e concluía transmi­tindo os sentimentos do irmão por não ter tido tempo de apre­sentar os seus respeitos aos amigos do Hertfordshire antes da sua partida.
Todas as esperanças estavam perdidas, completamente per­didas. E quando Jane pôde continuar a leitura, nada encontrou para consolá-la a não ser as expressões de afeto da missivista. O elogio de Miss Darcy era o assunto principal da carta. Seus muitos atrativos eram novamente descritos. Caroline se gabava alegremente da crescente intimidade entre elas; arriscava-se a predizer a realização dos desejos que exprimira na carta ante­rior. Comunicava também, com grande alegria, que seu irmão era hóspede de Mr. Darcy, e mencionava com entusiasmo os planos deste último, relativos a uma nova mobília que enco­mendara.
Elizabeth, a quem Jane comunicou tudo isso sem demora, ouviu-a cheia de silenciosa indignação. Seus sentimentos esta­vam divididos entre a preocupação pela irmã e o ressentimento contra todos os outros. Não deu crédito à afirmação de Caroli­ne, de que o irmão se interessava por Miss Darcy. Continuava a acreditar, mais do que nunca, na sinceridade da afeição que Bingley tinha por Jane. Apesar da simpatia com que sempre o considerara, não podia pensar, sem cólera e quase com desprezo, naquela maleabilidade de gênio, na falta de iniciativa pessoal que o tornava um joguete entre as mãos do seus intrigantes amigos e o levava a sacrificar a própria felicidade ao capricho das inclinações alheias. Se a única coisa em jogo fosse a sua própria felicidade, ele poderia arriscá-la como bem entendesse, mas a irmã dela estava envolvida naquilo, e ele devia ter cons­ciência disso. Enfim, era um assunto ao qual seria necessário dedicar uma longa reflexão antes que se pudesse chegar real­mente a algum resultado. Não encontrava outra hipótese. E no entanto, quer a afeição de Bingley tivesse realmente declinado, sufocada ou não pela interferência dos amigos, quer ele tivesse consciência da afeição de Jane, ou ao contrário, a ignorasse, em qualquer um dos casos, e embora a sua opinião acerca de Bin­gley variasse forçosamente segundo essas hipóteses, a situação da sua irmã permanecia a mesma, a sua paz de espírito igual­mente perturbada. Passaram-se um ou dois dias antes que Jane adquirisse coragem para falar a Elizabeth acerca dos seus sen­timentos; mas afinal, um dia em que Mrs. Bennet, depois de se queixar com mais irritação do que de costume de Netherfield e seu proprietário, as deixara sozinhas, Jane não pôde se impedir de dizer para a irmã:
Oh, eu queria que mamãe tivesse mais domínio sobre si mesma. Ela não tem idéia da dor que me causa, falando con­tinuamente nisto. Mas não me queixarei; não pode durar muito tempo. Ele será esquecido e todos seremos felizes como antes.
Elizabeth olhou para a irmã com solicitude e incredulidade, mas não disse nada.
Você duvida de mim? — exclamou Jane, corando li­geiramente. — Você não tem razão. Talvez ele continue a viver na minha memória como o homem mais atraente das minhas relações. Mas é tudo. Não tenho que esperar ou que temer. E não tenho nenhum motivo para censurá-lo. Graças a Deus não tenho esta dor. Dê-me um pouco de tempo e certamente eu ten­tarei esquecê-lo.
Numa voz mais forte acrescentou, pouco depois:
Eu tenho desde já este consolo. É que tudo não foi mais do que um erro da minha imaginação, e que esse erro não fez mal a ninguém a não ser a mim mesma.
Minha querida Jane — exclamou Elizabeth —, você é boa demais. Sua doçura e seu desinteresse são realmente angéli­cos. Sinto que nunca lhe fiz a devida justiça e que nunca a amei como você merece.
Miss Bennet protestou com veemência contra os méritos extraordinários que lhe atribuíam e atribuiu o elogio à cordial afeição da irmã.
Não — disse Elizabeth —, não está direito. Você quer pensar que todas as pessoas são respeitáveis e se sente ferida se eu falo mal de alguém. Quero apenas pensar que você é per­feita e você se volta contra mim. Não tenha medo de que eu caía em algum excesso, nem lance mão do seu privilégio de boa vontade universal. Seria inútil. São poucas as pessoas a quem eu realmente quero, e menos ainda aquelas das quais tenho uma boa opinião. Quanto melhor conheço o mundo, menos ele me satisfaz; e cada dia vejo confirmada a minha crença na inconsis­tência de todos os caracteres humanos e na pouca confiança que se pode depositar nas aparências do mérito ou do bom senso. Ultimamente encontrei dois exemplos; um deles não menciona­rei. O outro é o casamento de Charlotte. É inexplicável! Sob todos os pontos de vista, é inexplicável.
Minha cara Lizzy, não se entregue a sentimentos desta espécie. Eles arruinarão a sua felicidade. Você não deixa ne­nhuma margem para diferenças de situação e de temperamento. Pense na respeitabilidade de Mr. Collins, no caráter prudente e firme de Charlotte. Lembre-se que a família dela é muito grande; que quanto à fortuna é uma união muito desejável. E mostre-se pronta a acreditar, para bem de todo o mundo, que Charlotte possa sentir realmente respeito e estima pelo nosso primo.
Para lhe fazer a vontade, eu tentarei acreditar em quase tudo. Mas ninguém se beneficiará com isto. Pois, se eu estivesse persuadida de que Charlotte o respeita, realmente ela desceria no conceito que eu tenho da sua inteligência, o mesmo que perdeu antes no valor que eu atribuía ao seu coração. Minha querida Jane, Mr. Collins é um homem tolo, pomposo, preten­sioso e de idéias estreitas. Você sabe que ele é tudo isto tão bem quanto eu. E você deve sentir como eu que uma mulher que se casar com ele não pode ter uma visão muito justa das coisas. Você não há de querer defendê-la só porque ela é Char­lotte Lucas. Você não pode, por causa de um caso individual, mudar o sentido das palavras "bom senso" e "integridade", nem procurar persuadir a si mesma ou a mim que o egoísmo é a prudência e a insensibilidade diante do perigo, certeza de fe­licidade.
Acho que as suas expressões são muito fortes, e espe­ro que você se convença disso, vendo-os casados e felizes. Quanto a isto, basta. Mas você aludiu a outra coisa. Você mencionou dois exemplos. Sei o que está pensando. Mas lhe peço, querida Lizzy, que não me cause mágoa julgando que aquela pessoa é culpada. Nem dizendo que ela perdeu no seu conceito. Não devemos ser precipitadas e julgar que fomos intencionalmente feridas. Não podemos exigir que um rapaz despreocupado seja sempre prudente e circunspecto. Muitas vezes é apenas a nossa vaidade que nos engana. As mulheres superestimam facilmente a admiração dos homens.
E os homens fazem tudo para mantê-las nessa ilusão.
Se o fazem propositadamente, não pode haver justi­ficativa. Mas creio que não há tanta má vontade no mundo quanto as pessoas acreditam.
Estou longe de atribuir qualquer aspecto da conduta de Mr. Bingley a uma intenção perversa — disse Elizabeth; — mas, mesmo sem o propósito deliberado de errar, ou de tornar os outros infelizes, pode haver enganos e tristezas. Pouco-caso, falta de atenção para com os sentimentos de outras pessoas ou falta de firmeza produzem os mesmos efeitos.
E você atribui qualquer desses defeitos a ele?
Sim, todos. Mas se continuar incorrerei no seu desa­grado, dizendo o que penso acerca das pessoas que você estima. Detenha-me enquanto é tempo.
Você persiste então em supor que as irmãs dele o influenciaram?
Sim, de combinação com o amigo dele.
Não posso acreditar nisto. Por que tentariam influen­ciá-lo? Só podem desejar a sua felicidade, e se ele me ama ne­nhuma outra mulher pode lhe trazer esta felicidade.
A sua primeira suposição é falsa. Eles podem desejar muitas coisas além da felicidade dele. Podem desejar o aumento da sua fortuna e da sua importância. Podem desejar que ele se case com uma moça que tem importância social, dinheiro, rela­ções de alta classe e orgulho.
Sem dúvida. Desejam que ele escolha Miss Darcy. Mas isto pode se originar de sentimentos melhores do que você supõe. Eles a conhecem há muito mais tempo do que a mim. Não é de espantar que a prefiram. Mas quaisquer que sejam os seus desejos, é muito pouco provável que elas pudessem se opor à vontade do irmão. Que irmã se sentiria justificada em fazer uma coisa destas, a não ser que existisse um motivo muito mais forte? Se elas acreditassem que ele gosta realmente de mim, não tentariam nos separar, pois, se tal fosse o caso, não o conseguiriam. Mas, supondo tal afeição, você faz todo mundo agir maldosa e erradamente e a mim torna muito infeliz. Não discuta esta minha idéia. Não estou envergonhada por me ter enganado, ou pelo menos a vergonha é pouca. Não é nada em comparação com o que eu sentiria se pensasse mal dele ou das suas irmãs. Deixe-me ver as coisas sob o melhor aspecto, um aspecto capaz de esclarecê-las.
Elizabeth não podia se opor a tal desejo. E a partir desse dia o nome de Mr. Bingley quase nunca mais foi mencionado entre elas. Mrs. Bennet continuou ainda a estranhar e a queixar-se de que ele não voltava mais. E, embora não se passasse um dia sem que Jane desse uma explicação razoável, parecia haver pouca probabilidade de que Mrs. Bennet jamais considerasse aquele fato com menos perplexidade. Sua filha procurava con­vencê-la de uma coisa em que ela mesma não acreditava: de que as atenções de Bingley tinham sido o efeito de uma simpatia transitória, cessando depois que a perdera de vista. Mas, embora a probabilidade dessa afirmação fosse admitida no momento, Jane era obrigada a repeti-la no dia seguinte. O melhor con­solo de Mrs. Bennet era lembrar-se de que Bingley tornaria a voltar para o verão.
Mr. Bennet pensava de maneira diferente.
Então, Lizzy — disse ele um dia —, sua irmã teve um desgosto amoroso, creio eu. Ela merece os meus parabéns. Depois do casamento, o que uma moça mais aprecia é um desgosto amoroso de vez em quando. É uma coisa que dá o que pensar e lhe confere uma espécie de distinção entre as companheiras. Quando chegará a sua vez? Você não há de querer ser suplantada por Jane. Chegou a sua hora. Há bastan­tes oficiais em Meryton, para desapontar todas as moças da região. Escolha Wickham. É um sujeito simpático e lhe daria o fora agradavelmente.
Obrigada, meu pai, mas um homem menos agradável seria suficiente para mim. Não devemos todas esperar a boa sorte de Jane.
É verdade — disse Mr. Bennet —, mas é um conforto pensar que o que quer que lhe suceda nesse gênero, você tem uma mãe afetuosa que saberia tirar o melhor partido disto.
A companhia de Mr. Wickham ajudava eficientemente a dissipar a tristeza que as últimas ocorrências tinham trazido para muitos dos habitantes de Longbourn. Viam-no freqüente­mente agora, e às suas outras qualidades acrescia a de uma franqueza absoluta. O que Elizabeth já sabia, as suas queixas de Mr. Darcy e o que sofrera por sua causa, tudo era agora publicamente discutido. E todos se sentiam contentes de pensar que sempre tinham antipatizado com Mr. Darcy, mesmo antes de saber qualquer coisa contra ele.
Jane era a única criatura que supunha que pudessem exis­tir circunstâncias atenuantes no caso, desconhecidas para a so­ciedade do Hertfordshire. Com doce e firme candura invocava sempre a tolerância e a possibilidade de enganos. Mas todos os outros condenavam Mr. Darcy como ao pior dos homens.

Capítulo XXV


Depois de uma semana passada em declarações de amor e projetos de felicidade, a chegada do sábado veio privar Mr. Collins da companhia da sua amada Charlotte. A dor da sepa­ração, no entanto, poderia ser aliviada quando chegasse em Hunsford, pelos preparativos para a recepção da sua noiva. E logo em seguida ao seu próximo regresso ao Hertfordshire, seria fixado o dia que havia de torná-lo o mais feliz dos homens. Despediu-se dos parentes em Longbourn com tanta solenidade quanto da primeira vez; tornou a desejar às encantadoras pri­mas saúde e felicidades e prometeu a Mr. Bennet nova carta de agradecimentos.
Na segunda-feira seguinte, Mrs. Bennet teve o prazer de receber o irmão e a cunhada, que vieram como de costume pas­sar o Natal em Longbourn. Mr. Gardiner era um homem fino e sensato, muito superior à irmã, tanto em natureza como em educação. As senhoras de Netherfield dificilmente acreditariam que um homem que vivia do comércio e morava próximo aos seus armazéns pudesse ser tão bem-educado e agradável. Mrs. Gardiner, muitos anos mais moça do que Mrs. Bennet ou Mrs. Philips, era uma mulher elegante, agradável e inteligente e mui­to querida pelas sobrinhas de Longbourn. Entre ela e as duas mais velhas, especialmente, existia uma forte amizade. As me­ninas tinham estado muitas vezes em casa dela na cidade.
A primeira parte da atividade de Mrs. Gardiner ao chegar consistiu na distribuição dos presentes que trazia e na descrição das modas mais recentes. Feito isto, o seu papel se tornou me­nos ativo. Chegou a sua vez de ouvir. Mrs. Bennet tinha muitas queixas a relatar. Tinha sofrido grandes decepções desde a últi­ma vez em que vira a irmã. Duas das suas filhas tinham estado a ponto de se casar e afinal tudo tinha dado em nada.
— Eu não culpo Jane — continuou ela —, pois Jane teria aceito Mr. Bingley. Mas Lizzy! Oh, é muito duro pensar que ela podia ser agora a esposa de Mr. Collins se não fosse tão insensata. Ele fez uma proposta aqui mesmo nesta sala. E ela o recusou. A conseqüência disto é que Lady Lucas casará uma das filhas antes de mim. E a propriedade de Longbourn está mais do que nunca destinada a passar para mãos estranhas. Os Lucas são gente muito esperta, minha irmã, eles só pensam nas vantagens que podem obter. Sinto muito dizer isto deles, mas é verdade. Causa-me um grande nervosismo ser assim contra­riada na minha própria família e ter vizinhos que pensem mais em si mesmos do que nos outros. No entanto, a sua visita neste momento é o maior consolo que eu poderia receber, e muito me alegro de saber o que você acaba de nos contar a respeito das mangas compridas.
Mrs. Gardiner, a quem a maior parte dessas notícias já fora transmitida por Jane e por Elizabeth na correspondência que mantinham com ela, deu à irmã uma resposta evasiva. E com pena das sobrinhas, mudou o assunto da palestra.
Mais tarde, sozinha com Elizabeth, tornou a abordar o assunto:
É provável que ele tenha sido um partido desejável para Jane — disse ela. — Sinto que o projeto tenha fracassado. Mas estas coisas acontecem tanto! Um rapaz como Mr. Bingley, a julgar pela descrição que me fizeram, se apaixona facilmente por uma moça bonita durante algumas semanas, e quando um acaso os separa esquece-a facilmente. Inconstâncias dessa espé­cie são muito freqüentes.
De certo modo isso é um excelente consolo — disse Elizabeth. — Mas não serve para nós. Não sofremos por acaso. Não acontece assim tão freqüentemente que um rapaz indepen­dente se deixe persuadir pelos amigos a esquecer uma moça que ele amava apaixonadamente poucos dias antes.
Mas esta expressão "amar apaixonadamente" é tão gasta, tão duvidosa, tão indefinida... Ela não me faz nenhuma imagem clara. Muitas vezes é aplicada a sentimentos que sur­gem depois de meia hora apenas de contato, como igualmente a afeições reais e fortes. Diga-me, qual era o grau de violência do amor de Mr. Bingley?
Nunca vi uma inclinação mais promissora. Ele estava se tornando esquecido das outras pessoas e inteiramente absor­to por ela. Cada vez que se encontravam, isto se tornava mais claro. No baile que ele próprio ofereceu, ofendeu duas ou três moças, esquecendo-se de tirá-las para dançar! E eu mesma falei com ele duas vezes sem ter resposta. Podem existir melhores sintomas? Não é a desatenção geral a própria essência do amor?
_ Oh, sim, dessa espécie de amor que suponho tenha
sido o dele. Pobre Jane! Tenho pena dela, porque com o seu feitio talvez não o esqueça imediatamente. Seria melhor que isto tivesse acontecido a você, Lizzy, pois graças ao seu bom humor você teria esquecido mais depressa. Mas você acha que podemos convencê-la a voltar conosco? As mudanças de lugar podem ser úteis. E talvez a ausência de casa, por algum tempo, faça um grande bem a Jane.
Elizabeth ficou extremamente contente com esta propos­ta e plenamente convencida da pronta aquiescência da irmã.
Espero — acrescentou Mrs. Gardiner — que nenhu­ma consideração por esse rapaz a influencie. Moramos em pontos tão afastados da cidade, todas as nossas relações são tão diferentes e, como você sabe, saímos tão raramente, que é muito pouco provável que eles se encontrem. A não ser que ele venha realmente visitá-la.
E isto é inteiramente impossível, pois ele está sob a vigilância do amigo, e Mr. Darcy não toleraria que ele fosse visitá-la num quarteirão de Londres tão pouco elegante. Mi­nha cara tia, como pode a senhora supor tal coisa? Mr. Darcy talvez tenha ouvido falar em Gracechurch Street, mas, se ele alguma vez entrasse lá, creio que levaria bem um mês purificando-se das impurezas recebidas.
Tanto melhor. Espero que eles não se encontrem. Mas Jane não se corresponde com a irmã de Mr. Bingley? Essa pessoa não poderá deixar de visitá-la.
Ela cortará relações completamente.
Mas apesar da certeza com que Elizabeth fingia acreditar no que diziam, bem como na possibilidade de Bingley ser im­pedido de visitar Jane, esse assunto a preocupava de tal ma­neira que, depois de refletir, convenceu-se de que não consi­derava o caso inteiramente perdido. Parecia-lhe possível e algumas vezes até mesmo provável que a afeição de Mr. Bing­ley recrudescesse e que a influência dos amigos pudesse ser contrabalançada com êxito pelas influências mais naturais dos atrativos de Jane.
Miss Bennet aceitou o convite da tia com prazer. E, se ao mesmo tempo se lembrava dos Bingley, era apenas para desejar que lhe fosse possível ocasionalmente passar uma ou outra manhã com a amiga. E podia fazê-lo sem correr o perigo de ver Bingley, já que Caroline não morava com o irmão.
Os Gardiner ficaram uma semana em Longbourn. E não se passou um dia sem compromissos sociais, sem visitarem ou receberem visitas dos Philips, dos Lucas e dos oficiais. Mrs. Bennet tinha planejado tão cuidadosamente esses divertimen­tos para os parentes que nem uma só vez eles se sentaram juntos para um jantar de família. Quando havia convidados em casa, entre eles se encontravam sempre alguns oficiais, e um deles era sempre Mr. Wickham. E nessas ocasiões Mrs. Gar­diner, em cujo espírito os calorosos elogios de Elizabeth ti­nham despertado suspeitas, observava os dois com grande atenção. Sem supor, pelo que estava vendo, que estivessem seriamente apaixonados, a preferência que manifestavam um pelo outro era suficiente para inquietá-la; resolveu falar a Elizabeth sobre o assunto antes de partir do Hertfordshire e fazer-lhe ver a imprudência que eia cometia, encorajando aquela inclinação. Wickham possuía um meio de interessar a Mrs. Gardiner, independente dos seus múltiplos encantos. Há uns dez ou doze anos atrás, antes do seu casamento, Mrs. Gardiner residira muitos anos na mesma região do Derbyshire em que nascera Mr. Wickham. Tinham portanto muitos co­nhecidos em comum. E, embora Mr. Wickham só tivesse ido lá poucas vezes depois da morte do pai de Mr. Darcy, há cinco anos passados, ele podia dar notícias mais recentes dos anti­gos amigos de Mrs. Gardiner do que as que ela poderia obter de outro modo. Mrs. Gardiner tinha estado em Pemberley e conhecia de nome o falecido Mr. Darcy; aí estava portanto um assunto inesgotável. Comparando as suas lembranças de Pemberley com as descrições minuciosas que Wickham lhe fazia, e prestando ao caráter do seu antigo possuidor o seu tributo de admiração, Mrs. Gardiner deliciava a si mesma e a seu interlocutor. Ao ser informada do tratamento que o atual Mr. Darcy lhe dispensara, ela procurou se lembrar da reputação que ele tinha em criança. É acreditou afinal recor­dar-se de ter ouvido dizer que Mr. Fitzwilliam Darcy tinha sido um menino orgulhoso e de mau caráter.

Capítulo XXVI


As recomendações de Mrs. Gardiner para Elizabeth fo­ram transmitidas cordialmente na primeira oportunidade fa­vorável que encontrou de falar a sós com a sobrinha; depois de dizer francamente o que pensava, continuou da seguinte maneira:
Você é uma moça sensata demais, Lizzy, para se apaixonar por um rapaz apenas porque alguém lhe previne que não o faça. E portanto não tenho medo de falar aberta­mente. Seriamente, queria que você estivesse prevenida. Não se comprometa nem procure comprometê-lo numa afeição que a ausência de fortuna tornaria muito imprudente. Nada tenho contra o rapaz. É dos mais interessantes. E se tivesse a situa­ção que deveria ter, acho que você não poderia encontrar melhor. Mas, não sendo este o caso, você não deve se deixar levar pela sua imaginação. Você tem bom senso e todos nós esperamos que o utilize. Seu pai confia na sua resolução e na boa conduta. Não pode desapontá-lo.
Minha cara tia, a senhora está tomando as coisas mui­to a sério.
Sim, e espero que você as considere com a mesma seriedade.
Bem, neste caso não precisa se alarmar. Eu tomarei conta de mim mesma e de Mr. Wickham também. Se depen­der de mim, ele não se apaixonará.
Elizabeth, você não está falando sério.
Desculpe, vou tentar novamente. No momento, não estou apaixonada por Mr. Wickham; não, certamente não estou. Mas, sem comparação, ele é o homem mais agradável que jamais conheci. E se ele realmente se interessar por mim acredito que é melhor que não se apaixone. Vejo perfeita­mente a imprudência que há nisto. Oh, aquele abominável Mr. Darcy! A opinião que meu pai tem de mim me orgulha muito. E eu seria uma criatura indigna se a traísse. No entanto, meu pai simpatiza muito com Mr. Wickham. Em suma, minha cara tia, eu ficaria mesmo muito triste se causasse algum aborrecimento a algum de vocês. Mas como estamos vendo todos os dias que, quando existe uma afeição real, os jovens dificilmente se deixam separar pelas condições imediatas de fortuna, como poderei lhe prometer que serei mais prudente do que tantas das minhas semelhantes, se eu for tentada? Como posso mesmo saber que a prudência consiste em resis­tir? Tudo o que posso lhe prometer, portanto, é que não agirei precipitadamente. Não terei pressa em me considerar o mais alto objeto da afeição de Mr. Wickham. Em suma, farei o possível.
Talvez fosse melhor que você não o encorajasse a vir aqui tantas vezes. Pelo menos você não devia lembrar a sua mãe de convidá-lo.
Como fiz no outro dia — disse Elizabeth, com um sorriso intencional. — É verdade, será mais prudente não o fazer. Mas não imagine que ele vem aqui tão freqüentemente assim. Foi só por sua causa que ele foi convidado tantas vezes esta semana. A senhora sabe que mamãe gosta de ter muita gente em casa a fim de distrair os convidados. Mas eu lhe dou a minha palavra de que seguirei o caminho que achar mais prudente. E agora espero que esteja satisfeita.
A tia lhe assegurou que estava, e Elizabeth agradeceu o carinho das suas sugestões. Em seguida se separaram. Belo exemplo de conselhos referentes a um tal assunto serem acei­tos sem ressentimento.
Mr. Collins voltou para o Hertfordshire pouco depois da partida de Jane e dos Gardiner. E desta vez a sua chegada não causou grandes transtornos a Mrs. Bennet, pois ele se instalou na casa dos Lucas. O dia do casamento estava próximo. Mrs. Bennet se resignara enfim ao inevitável. Costumava até dizer com insistência, num tom amargo, que desejava que eles fos­sem felizes. O casamento seria realizado na quinta-feira se­guinte. E na quarta, Miss Lucas veio fazer a sua visita de despedida. Quando ela se levantou para sair, Elizabeth, enver­gonhada com os parabéns forçados da mãe, e sinceramente comovida, acompanhou a antiga amiga até a porta. Quando desciam as escadas juntas, Charlotte disse:
Espero que me escreva freqüentemente, Eliza.
Pode contar com isto.
E tenho outro favor a lhe pedir. Você virá me visitar?
— Espero que nos encontremos muitas vezes, aqui no
Hertfordshire.
— Não é provável que eu possa sair do Kent durante algum tempo. Prometa-me portanto que você virá a Hunsford.
Elizabeth não pôde recusar, embora não encarasse aquela visita com prazer.
— Meu pai e Maria virão me visitar em março — acres­centou Charlotte. — E espero que você consinta em vir na companhia deles. Realmente, Eliza, você será tão bem-vinda quanto qualquer deles.
Enfim teve lugar o casamento. O noivo e a noiva partiram para o Kent diretamente da igreja. E todos tiveram muita coisa que dizer e que ouvir, como de costume nessas ocasiões. Eli­zabeth recebeu logo uma carta da amiga, e a correspondência entre elas continuou tão regular e freqüente como sempre. Mas era-lhe impossível manter o mesmo tom de franqueza de anti­gamente. Elizabeth nunca se dirigia à amiga sem sentir que todo o prazer e intimidade que havia nas suas relações tinham ces­sado. E, embora decidida a não desleixar da correspondência, quando escrevia pensava no passado mais do que no presente.
As primeiras cartas de Charlotte foram recebidas com mui­ta ansiedade. Elizabeth estava curiosa para saber como a amiga falaria da nova casa, o que tinha achado de Lady Catherine e até que ponto ela ousaria se declarar feliz. Quando as cartas chegaram, porém, Elizabeth sentiu que Charlotte se externava sobre todos esses pontos, exatamente como tinha previsto. Escrevia alegremente, parecia rodeada de conforto e só mencio­nava o que podia louvar. A casa, a mobília, a vizinhança, as estradas, tudo achava a seu gosto. E Lady Catherine se mos­trara benevolente e amável. Era o mesmo quadro de Hunsford e de Rosings que Mr. Collins pintara. Apenas mais esbatido. Elizabeth compreendeu que teria de esperar até o dia da sua visita para saber o resto.
Jane já tinha escrito algumas linhas à irmã, anunciando a chegada em Londres, sem novidades. Elizabeth tinha esperança de que quando ela tornasse a escrever pudesse transmitir algu­ma notícia dos Bingley.
A impaciência pela segunda carta foi recompensada como costuma sê-lo. Jane tinha estado uma semana em Londres sem ver Caroline e sem ter notícias dela. Explicava o fato, no entan­to, supondo que a sua última carta de Longbourn para a ami­ga se extraviara. "Minha tia", continuou ela, "vai amanhã para aqueles lados da cidade. E eu terei a oportunidade de visitar Grosvenor Street." Depois da visita ela tornou a escre­ver dizendo que tinha visto Miss Bingley. "Não creio que Caroline estivesse de bom humor", dizia ela. "Mas pareceu muito contente de me ver e censurou-me por não ter avisado da minha chegada a Londres. Portanto eu tinha razão. Ela não recebeu a minha última carta. Perguntei como estava o irmão dela, é claro. Estava bem, mas tão ocupado com Mr. Darcy que quase nunca suas irmãs tinham ocasião de vê-lo. Soube que Miss Darcy estava sendo esperada para o jantar. Eu desejava conhecê-la. Minha visita não foi longa, pois Caroline e Mrs. Hurst estavam para sair. Espero que elas venham em breve visitar-me aqui."
Elizabeth sacudiu a cabeça. A carta lhe provava que só por um acaso Mr. Bingley descobriria que sua irmã estava em Londres.
Passaram-se quatro semanas e Jane nem uma só vez o viu. Tentou persuadir a si mesma de que não o lamentava. Mas não podia continuar cega às intenções de Miss Bingley. E de­pois de esperar em casa todas as manhãs durante quinze dias, recebendo todas as noites novas desculpas, finalmente a visi­tante apareceu. Mas a brevidade da visita e sobretudo a mu­dança das suas maneiras não deixaram a Jane nenhuma ilusão. A carta que escreveu à irmã naquela ocasião mostrava bem o que sentia:

"Minha cara Lizzy:
Estou certa de que você é incapaz de regozijar-se à minha custa se eu lhe confessar que me enganei inteiramente quanto à afeição de Miss Bingley por mim. Mas, minha cara irmã, em­bora o que se passou tenha provado que você tinha razão, não me acuse de obstinação se eu continuo a sustentar que, consi­derando a conduta antiga de Caroline, a minha confiança era tão natural quanto as suas suspeitas. Não compreendo absoluta­mente as razões que ela tinha para desejar ter relações íntimas comigo, mas, se essas mesmas circunstâncias se repetissem, estou certa de que eu tornaria a ser iludida. Caroline não retribuiu a visita senão ontem; não recebi no intervalo nem uma nota, nem um bilhete, nem uma linha. E quando ela veio tornou-se evi­dente que não tinha nenhum prazer em me ver. Deu ligeiras desculpas, inteiramente formais, e não disse uma só vez que desejava tornar a ver-me; achei-a sob todos os aspectos tão indiferente que, quando partiu, eu estava perfeitamente resol­vida a cortar relações. Tenho pena dela mas não posso deixar de culpá-la. Fez muito distinguindo-me a princípio, como acon­teceu. Posso dizer com certeza que ela tomou todas as iniciati­vas, mas tenho pena dela porque deve sentir que procedeu erradamente e porque tenho plena certeza de que a causa de tudo isto foi a preocupação que tem com o irmão. Não preciso me explicar melhor. E, embora eu e você saibamos que esta preocupação é inteiramente inútil, se ela a sente realmente ficará facilmente explicada a sua conduta para comigo. E se tem tanta afeição pelo irmão, afeição que ele aliás merece, qualquer preocupação que sinta por ele será natural e louvável. No entanto espanta-me que ela continue ainda a ter estes re­ceios, pois se ele gostasse realmente de mim já nos teríamos encontrado há muito tempo. Ele sabe que estou em Londres, pois ouvi-a referir-se a isto. E no entanto a maneira com que fala dá a entender que deseja persuadir a si mesma de que o irmão se interessa realmente por Miss Darcy. Não posso com­preendê-la. Se eu não tivesse receio de fazer um julgamento precipitado, estaria quase tentada a dizer que em tudo isto há uma forte aparência de duplicidade. Mas procurarei banir todos os pensamentos dolorosos e pensar somente no que me pode tornar feliz: a sua afeição e a inalterável bondade dos meus caros tios. Escreva-me breve. Miss Bingley disse alguma coisa a respeito de nunca mais voltar a Netherfield, de desistir da casa, mas não deu toda a certeza. É melhor não falar nisto. Estou extremamente satisfeita por você ter recebido notícias tão agradáveis dos nossos amigos de Hunsford. Peço-lhe que vá visitá-los com Sir William e Maria. Estou certa de que você se sentirá muito bem lá. Sua, etc."

Esta carta causou uma certa tristeza a Elizabeth; mas a coragem lhe voltou ao considerar que, pelo menos, Jane não seria mais enganada pela irmã de Bingley. Quanto a este, todas as esperanças estavam agora perdidas. Jane nem sequer dese­jaria tornar a receber as suas atenções. Sob todos os pontos de vista seu conceito caíra na opinião de todos. E, como castigo para ele, bem como para uma possível compensação para Jane, Elizabeth desejava sinceramente que na verdade ele se casasse com a irmã de Mr. Darcy, pois segundo a descrição que da mes­ma lhe fizera Wickham ela o faria se arrepender amargamente de ter rejeitado Jane.
Nessa ocasião Mrs. Gardiner relembrou por carta a Eliza­beth a promessa que esta lhe fizera a respeito de Wickham. E as notícias que Elizabeth lhe mandou em resposta eram mais satisfatórias para a tia do que para ela mesma. O interesse de Mr. Wickham parecia ter-se desvanecido. Suas atenções ele as dedicava a outra pessoa. Elizabeth observara tudo, mas podia escrever a respeito disto com certo desprendimento. O seu co­ração fora apenas ligeiramente afetado. E seu amor-próprio se aplacava com a reflexão de que se a fortuna o tivesse permi­tido, ela, Elizabeth, teria sido a escolhida. A súbita aquisição de dez mil libras era o encanto mais notável da jovem que ele agora cortejava.
Mas Elizabeth, menos arguta neste caso do que no de Charlotte, não censurou a Wickham o desejo de independência. Nada, ao contrário, poderia ser mais natural. E, embora tivesse razões para supor que Mr. Wickham não renunciara a ela sem algumas lutas, estava pronta a admitir que aquela renúncia era uma medida sensata e desejável para ambos. E queria sincera­mente a felicidade do antigo admirador.
Tudo isto foi comunicado a Mrs. Gardiner; e depois de relatar estas circunstâncias ela continuou da seguinte maneira:

"Estou convencida agora, minha cara tia, de que nunca me apaixonei realmente. Pois, se eu tivesse experimentado essa paixão pura e elevada, detestaria agora a simples menção de seu nome. E desejaria a Mr. Wickham todos os males. Mas não só os meus sentimentos continuam cordiais para com ele, mas são até mesmo imparciais para com Miss King. Não consigo encontrar em mim nenhum ódio para com ela e continuo a pensar que ela é uma moça muito decente. Em tudo isto não pode haver amor. Minha intenção foi coroada de êxito. Embora eu me tornasse um objeto de maior interesse para todos os meus conhecidos, caso estivesse perdidamente apaixonada, não posso dizer que lamento a minha comparativa insignificância. A importância custa às vezes um preço demasiado elevado. Kitty e Lydia tomam essa traição muito mais a sério do que eu. São ainda muito ignorantes acerca dos caminhos do mundo e não chegaram ainda à mortificante convicção de que os belos rapazes precisam tanto de dinheiro para viver quanto os menos favorecidos pela beleza".

Capítulo XXVII


E sem maiores acontecimentos na família de Longbourn, janeiro e fevereiro, algumas vezes frios e não raro lamacentos, passaram sem outras diversões senão passeios ocasionais a Me­ryton. Março deveria levar Elizabeth para Hunsford. Ela não tinha encarado a princípio com muita seriedade a possibilidade de ir, mas Charlotte contava com ela e aos poucos Elizabeth se habituou a pensar na visita com mais interesse, bem como com mais certeza. A ausência aumentara o desejo de rever Charlotte e enfraquecia a sua repugnância por Mr. Collins. Havia também o sabor da novidade. E além disso, com a mãe que tinha, e irmãs tão pouco camaradas, a sua casa não seria um lugar muito divertido. Além do que a viagem lhe daria a oportunidade de se avistar com Jane. Em suma, à medida que o dia se aproxi­mava, menos ela desejava adiar a partida. Tudo pois ficou com­binado de acordo com os planos de Charlotte. E Elizabeth iria em companhia de Sir William e da segunda filha deste. Ao plano primitivo acrescentou-se um novo detalhe: passariam a noite em Londres.
Elizabeth sentia apenas ter de deixar o pai, que certamente sentiria a sua falta; e que, chegado o dia, se mostrou tão pouco satisfeito com a sua partida que recomendou à filha que lhe escrevesse e quase prometeu responder a sua carta. A despedida entre Elizabeth e Mr. Wickham foi perfeitamente cordial. E, da parte dele, ainda mais do que isto. Os seus planos atuais não o faziam esquecer que Elizabeth fora a primeira a despertar e a merecer-lhe a admiração. A primeira que o ouvira e se com­padecera dele; e quando disse adeus a Elizabeth desejou-lhe todos os prazeres, lembrou-lhe a descrição que fizera de Lady Catherine de Bourgh e disse esperar que a opinião de ambos a respeito daquela senhora, bem como sobre todas as outras pes­soas, coincidisse. Em todas as suas palavras transpareciam, en­fim, solicitude e interesse. Elizabeth sentiu que esses sentimen­tos sempre a uniriam a ele, numa sincera afeição. E se separou de Mr. Wickham convencida de que, casado ou solteiro, ele sempre representaria a seus olhos o ideal de uma pessoa agra­dável e sedutora.
Os seus companheiros de viagem não eram capazes de fazer empalidecer a lembrança de Mr. Wickham. Sir William Lucas e sua filha Maria, moça bem-humorada mas de cabeça tão oca quanto o pai, nada tinham a dizer que fosse digno de atenção, e o que eles falavam produzia em Elizabeth o mesmo prazer que o arrastar de uma cadeira. Elizabeth gostava de observar os ridículos, mas conhecia Sir William demasiado bem. Nenhuma das maravilhas que ele contava a respeito do seu título e de sua apresentação na corte eram novidades para ela. E as suas amabilidades eram tão gastas quanto as suas infor­mações.
Era uma viagem de vinte e quatro milhas apenas. E eles partiram tão cedo que chegaram a Gracechurch Street ao meio-dia. Ao se aproximarem da casa de Mr. Gardiner, avistaram Jane na janela da sala. Quando chegaram na entrada, ela estava lá para saudá-los. Elizabeth, perscrutando ansiosamente a fisio­nomia da irmã, teve o prazer de constatar que o seu rosto con­tinuava saudável e lindo como sempre. Sobre os degraus da escada estavam vários meninos e meninas, que não tinham po­dido resistir à tentação de ver a prima chegar e não tinham tido a paciência de esperar na sala. Mas, tímidos, pois há um ano não a viam, não ousavam descer. Tudo foi alegria e doçura. O dia passou da forma mais agradável. De manhã fizeram com­pras e à noite foram ao teatro.
Afinal Elizabeth conseguiu conversar com a tia. O primei­ro assunto foi Jane. E sentiu mais tristeza do que espanto ao ouvir, em resposta às suas minuciosas perguntas, que, embora Jane sempre lutasse para conservar a coragem, atravessava períodos de depressão. Era razoável no entanto acreditar que não durariam muito tempo. Mrs. Gardiner deu também os de­talhes da visita de Miss Bingley. E repetiu conversas que ela, Mrs. Gardiner, tinha tido com Jane, e que provavam que esta última tinha renunciado de coração àquelas relações. Mrs. Gar­diner, então, gracejou com a sobrinha a respeito da deserção de Wickham e deu-lhe os parabéns por suportá-la tão bem.
Mas, minha cara Elizabeth — acrescentou ela —, que espécie de moça é Miss King? Ficaria triste de pensar que o nosso amigo é interesseiro.
Por favor, minha tia, diga-me qual é a diferença para os negócios matrimoniais entre os motivos interesseiros e os motivos da prudência. Até onde vai a discrição e onde começa a cobiça? No Natal passado, a senhora tinha medo de que Wi­ckham se casasse comigo porque seria uma imprudência. E agora quer achá-lo interesseiro porque está tentando conquistar uma moça que tem dez mil libras de fortuna.
Se você me disser que espécie de moça é Miss King, eu saberei o que pensar.
É uma moça muito boa, creio eu; nada sei de mal a seu respeito.
Mas Wickham não lhe deu a menor atenção, até que a morte do avô a tornou herdeira da fortuna.
Não, nada mais natural. Se não lhe era permitido con­quistar a minha afeição porque eu não tinha dinheiro, por que iria ele fazer a corte a uma moça de quem ele não gostava e que era igualmente pobre?
Mas parece pouco delicado da parte dele ter se lançado a isto tão pouco tempo depois de lhe ter feito a corte.
Um homem em situação desesperada não tem tempo para todas essas delicadezas elegantes que outros podem manter. Se ela não se importa, por que nos importaremos nós?
O fato de ela não se importar não o justifica. Mostra apenas que lhe falta também alguma coisa. Bom senso ou deli­cadeza de sentimentos.
Bem — exclamou Elizabeth —, faça a sua escolha. Ele é interesseiro e ela doida.
Não, Lizzy, isto é o que eu não escolho. Muito me entristeceria, você sabe, pensar mal de um rapaz que viveu tanto tempo no Derbyshire.
Oh, se isto é tudo, tenho uma fraca opinião a respeito dos rapazes que moram no Derbyshire. E seus íntimos amigos que moram no Hertfordshire não são muito melhores. Estou farta deles todos. Graças a Deus irei amanhã para um lugar onde não encontrarei nenhum homem amável e de belas ma­neiras. Os homens estúpidos são os únicos que vale a pena conhecer.
Cuidado, Lizzy, essas suas palavras cheiram fortemente a despeito.
Antes que o fim da peça a que assistiam os separasse, Elizabeth teve o prazer inesperado de receber um convite para acompanhar os tios numa excursão de recreio que se propunham fazer no verão.
Ainda não decidimos onde terminará o nosso passeio — disse Mrs. Gardiner. — Mas iremos talvez até os lagos.
Nenhum plano poderia ter sido mais agradável a Eliza­beth, e o aceite ao convite foi pronto e entusiasta.
Minha querida tia! — exclamou ela, deliciada. — Que encanto, que felicidade! A senhora me inspira nova vida e vigor. Adeus desapontamentos e tristezas. Que importam os homens aos rochedos e às montanhas? Oh, quantas horas agradáveis vamos passar! E quando voltarmos, não faremos como os outros viajantes que nada podem descrever com precisão. Nós nos lem­braremos dos lugares que visitamos e das coisas que vimos. Lagos, montanhas e rios não se confundirão nas nossas lem­branças. Nem quando tentarmos descrever uma cena, discuti­remos a respeito da sua localização. E que as nossas primeiras efusões sejam menos insuportáveis do que as da maioria dos viajantes!

Capítulo XXVIII


No dia seguinte, durante a viagem, tudo pareceu a Eliza­beth novo e interessante. Sua disposição era excelente. Encon­trara a irmã tão bem que todas as preocupações sobre a sua saúde se tinham dissipado. E as perspectivas da viagem para o norte eram uma fonte permanente de prazer.
Quando deixaram a estrada principal para entrar no ca­minho que levava a Hunsford, todos os olhos estavam atentos para divisar a reitoria, e a cada volta esperavam vê-la surgir. A cerca de Rosings Park limitava a estrada de um lado. Elizabeth sorria ao lembrar-se de tudo o que lhe tinham dito a respeito de seus habitantes.
Afinal a reitoria apareceu. O jardim, descendo em rampa suave pela estrada, a casa que o encimava, a cerca verde, as sebes de loureiro, tudo declarava que estavam chegando. Mr. Collins e Charlotte apareceram à porta, e a carruagem parou junto ao pequeno portão; uma aléia ensaibrada conduzia até a casa. Num instante saltaram todos do carro, contentes de se re­ver. Mrs. Collins acolheu a amiga com muita alegria e Eliza­beth, ao ver-se tão afetuosamente recebida, ficou cada vez mais satisfeita de ter vindo. Viu imediatamente que os modos do primo não se tinham alterado com o casamento. A sua amabi­lidade convencional permanecia exatamente a mesma. E ele a deteve alguns instantes no portão, para fazer perguntas a res­peito de cada uma das pessoas da família. Foram então condu­zidos ao interior da casa. Mr. Collins fez ressaltar a beleza da entrada, e assim que chegaram à sala tornou a dar as boas-vin­das com pomposa formalidade, e repetiu meticulosamente todas as recomendações da esposa para que os visitantes se pusessem à vontade.
Elizabeth estava preparada para vê-lo em toda a sua glória. E não pôde deixar de imaginar, ao ouvi-lo elogiar o tamanho da sala, seu aspecto e sua mobília, que ele se dirigia a ela par­ticularmente, como se desejasse fazer-lhe sentir tudo o que tinha perdido ao recusar a sua mão. Mas, embora tudo tivesse bom aspecto, Elizabeth não podia contentá-lo mostrando qualquer sinal de arrependimento, antes se espantava de que a amiga pudesse se mostrar tão alegre vivendo com um tal companheiro. Quando Mr. Collins dizia alguma coisa de que sua mulher po­dia, com razão, se envergonhar, o que aliás era bastante fre­qüente, Elizabeth voltava os olhos involuntariamente para Char­lotte. Uma ou duas vezes pôde perceber um leve rubor. Mas em geral Charlotte, sensatamente, fingia que não tinha ouvido. Depois de ficarem sentados na sala o tempo suficiente para admirar cada peça da mobília, desde o guarda-louças até a grade da lareira, e contarem a viagem e tudo o que tinha acontecido em Londres, Mr. Collins convidou-os para um passeio no jar­dim, que era grande e bem traçado, e de cujo trato ele se encar­regava pessoalmente. Trabalhar no jardim era um dos seus pra­zeres mais respeitáveis. E Elizabeth se admirou da seriedade com que Charlotte se referiu àquele exercício saudável e admi­tiu que ela o encorajava nisto o mais que podia. Aí, conduzindo-os através de todos os caminhos e atalhos, sem lhes deixar tempo de exprimir os elogios que ele próprio desejava, fazia ressaltar cada detalhe do jardim com uma minúcia que destruía toda a beleza. Sabia enumerar os campos em todas as direções e sabia quantas árvores havia nos maciços mais distantes. Mas de todas as vistas de que o seu jardim, o condado ou o reino inteiro se podiam gabar, nenhuma se podia comparar com a vista de Rosings descortinada através das árvores que bordejavam o parque, quase defronte da sua casa. Era um belo edifício moderno, bem situado numa elevação. Do jardim, Mr. Collins queria conduzi-los para uma volta em torno dos seus dois pra­dos. Mas as senhoras, que não tinham os sapatos adequados para andar no campo, ainda recobertos por um resto de geada, preferiram voltar. E enquanto Sir William acompanhava Mr. Collins, Charlotte conduziu a irmã e a amiga para lhes mostrar a casa, contente por ter uma oportunidade de fazê-lo sem o auxílio do marido. A casa era pequena, porém bem construída e cômoda. E tudo estava arrumado com uma simplicidade e uma lógica que Elizabeth atribuiu inteiramente a Charlotte. Abstraindo a presença de Mr. Collins, reinava realmente em tudo um ar de conforto. E a julgar pelo prazer com que Char­lotte mostrava tudo aquilo, Elizabeth supôs que a presença de Mr. Collins era freqüentemente esquecida.
Já lhe tinham informado que Lady Catherine continuava ainda no campo. Tornaram a falar nisto ao jantar e Mr. Collins observou:
Sim, Miss Elizabeth terá a honra de ver Lady Cathe­rine de Bourgh domingo que vem na igreja. E não precisa dizer que ficará encantada com Lady Catherine. Ela é toda afabili­dade e condescendência. E não duvido de que Miss Elizabeth seja honrada com a sua atenção, depois que terminar o serviço. Não hesito em afirmar que ela a incluirá, bem como a minha irmã Maria, em todos os convites com que nos honrar durante a sua visita aqui. A atitude dela para com a minha cara Char­lotte é encantadora. Costumamos jantar em Rosings duas vezes por semana e Lady Catherine nunca permite que voltemos a pé para casa. Sempre nos oferece a sua carruagem, ou melhor, uma das suas carruagens, pois ela tem várias.
Lady Catherine é uma senhora muito respeitável e de muita sensibilidade — acrescentou Charlotte. — É uma vizi­nha muito atenciosa.
É verdade, meu bem, é exatamente o que eu digo. Ela é dessas senhoras que a gente não pode deixar de tratar com a maior deferência.
Passaram a maior parte da noite falando sobre as novida­des do Hertfordshire, e repetindo verbalmente o que já tinha sido comunicado por carta. E mais tarde, na solidão do seu quarto, Elizabeth teve que meditar sobre o extraordinário con­tentamento de Charlotte, a fim de compreender a serenidade e a habilidade com que ela conduzia o marido; pensou também nos dias que passaria ali, nos calmos divertimentos que os en­cheriam, nas irritantes interrupções de Mr. Collins e nas ale­grias das visitas a Rosings. A sua imaginação traçou uma ima­gem viva de tudo isto.
No dia seguinte, depois do almoço, enquanto Elizabeth se aprontava no quarto para o passeio, um ruído súbito lá em­baixo pareceu lançar a casa em confusão. Depois de ficar atenta um minuto, Elizabeth ouviu alguém subir as escadas correndo, gritando o seu nome. Abriu a porta e no patamar encontrou Maria, que, sem fôlego, de tanta agitação, exclamou:
Oh, Eliza, apronte-se depressa e desça para a sala de jantar. Você não sabe quem está aí. Não vou lhe dizer quem é. Venha depressa, desça imediatamente.
Elizabeth fez várias perguntas em vão. Maria se recusou a lhe dar resposta. Correram para baixo e entraram na sala de jantar que ficava defronte da alameda. No portão do jardim estava estacionado um faéton baixo com duas senhoras.
É só isto? — exclamou Elizabeth. — Eu supus no mí­nimo que os porcos tinham entrado no jardim. F. nada vejo a não ser Lady Catherine e sua filha.
Oh — exclamou Maria, escandalizada com o engano. — Não é Lady Catherine; aquela senhora é Mrs. Jenkinson, que mora com eles. A outra é Miss de Bourgh. Olhe para ela, como é pequena, quem imaginaria que ela pudesse ser assim tão miúda e tão magra?
Eu acho uma grande falta de cortesia da sua parte obrigar Charlotte a ficar lá fora com esse vento. Por que é que ela não entra?
Charlotte disse que ela quase nunca entra. É o maior favor que ela pode conceder.
A sua aparência me agrada — disse Elizabeth, a quem outros pensamentos tinham ocorrido. — Ela parece doentia e triste. Sim, ela serve para ele muito bem. Convém-lhe perfeita­mente como esposa.
Mr. Collins e Charlotte estavam ambos em conversa com as senhoras. E, para alegria de Elizabeth, Sir William estava postado na porta de entrada, absorto pela grandeza que tinha diante de si, e inclinando-se constantemente, cada vez que Miss de Bourgh olhava para aquele lado.
Finalmente a conversação se esgotou; o carro partiu e os outros voltaram para casa. Assim que Mr. Collins avistou as duas moças, pôs-se a cumprimentá-las pela sorte que tinham; Charlotte explicou que todos tinham sido convidados para jan­tar em Rosings no dia seguinte.

Capítulo XXIX


O triunfo de Mr. Collins com aquele convite foi completo. A possibilidade de mostrar a grandeza da sua protetora e a amabilidade com que Lady Catherine. o tratava, bem como à esposa, era exatamente o que ele tinha desejado. O que mais lhe agradava, lançando-o numa admiração sem limites, era a condescendência que Lady Catherine mostrara, convidando-os tão cedo.
Confesso — disse ele — que eu não teria ficado sur­preso se Lady Catherine nos convidasse para tomar chá e pas­sar a tarde em Rosings no sábado. A experiência que tenho da sua afabilidade me autorizava a fazer essa suposição. Mas quem poderia ter previsto tamanha atenção? Quem poderia ter ima­ginado que iríamos receber um convite para jantar, um convite aliás que abrange todo o grupo, tão imediatamente depois da chegada de vocês?
A mim não me surpreende tanto — replicou Sir Wil­liam —, pois conheço os hábitos dos grandes, graças à minha situação na vida. Na corte, por exemplo, essas coisas não são raras.
Durante o resto do dia, e na manhã seguinte, não se falou quase em outro assunto. Mr. Collins teve a precaução de lhes descrever as maravilhas que os esperavam para que o espetáculo dos salões, dos inúmeros criados e do opulento jantar não os ofuscasse inteiramente.
Antes de as senhoras se retirarem para os seus quartos a fim de se preparar, ele disse a Elizabeth:
Não fique inquieta, minha cara prima, a respeito da sua toalete. Lady Catherine está longe de exigir de nós a ele­gância que ela e a filha ostentam. Aconselho-a apenas a pôr o seu vestido mais elegante. Não é necessário mais do que isto. Lady Catherine não ficará aborrecida de vê-la vestida com sim­plicidade. Ela gosta de manter as distinções de classe.
Enquanto as moças se vestiam, Mr. Collins veio bater duas ou três vezes em cada porta, para recomendar que se apressas­sem, pois Lady Catherine não gostava que a fizessem esperar para o jantar. Maria Lucas, que tinha pouca prática da socie­dade, estava assustada com as formidáveis descrições da suntuosidade de Lady Catherine e do seu estilo de vida. E a sua apreensão não era menor do que a que o seu pai sentira antes da sua apresentação em St. James.
Como o tempo estava bom, o passeio através do parque foi muito agradável. Todos os parques têm as suas belezas e as suas perspectivas. Elizabeth o achou bonito, embora não visse motivo para os êxtases de Mr. Collins. A enumeração que este fez das janelas da fachada da frente e a sua revelação da soma que tudo aquilo custara a Sir Lewis de Bourgh a impressiona­ram pouco.
Enquanto subiam as escadas para o hall, a emoção de Ma­ria crescia a olhos vistos. E mesmo Sir William não parecia perfeitamente calmo. A coragem de Elizabeth não lhe faltou. Pelo que ouvira falar a respeito de Lady Catherine, não acre­ditava que ela se impusesse graças a talentos extraordinários ou virtudes miraculosas. E ela acreditava poder contemplar sem desfalecer a simples pompa do dinheiro e da ostentação social.
Do hall de entrada, cujas belas proporções e ricos orna­mentos Mr. Collins fez ressaltar com ar extático, as visitas acom­panharam os criados através de uma antecâmara até uma sala onde estavam Lady Catherine, a filha e Mrs. Jenkinson. Ao vê-los, Lady Catherine, com grande condescendência, levantou-se para recebê-los. E como Mrs. Collins tinha combinado com o marido que a formalidade das apresentações deveria ficar a cargo da esposa, a cerimônia decorreu corretamente, sem todas aquelas desculpas e agradecimentos que Mr. Collins teria jul­gado necessários.
Apesar de já ter sido recebido em St. James, Sir William estava tão impressionado que se limitou a fazer profundas reve­rências e a sentar na sua cadeira sem dizer uma palavra. E sua filha, quase fora de si de medo, sentou na beirada da sua ca­deira, sem saber para que lado olhar. Elizabeth não se sentiu absolutamente perturbada e pôde observar serenamente as três damas à sua frente.
Lady Catherine era uma senhora alta, bastante gorda, com traços fortemente marcados, que outrora deveriam ter sido boni­tos. O seu ar não era conciliador, nem a sua maneira de receber as visitas era tal que lhes fizesse esquecer a sua inferioridade social. Os seus silêncios não a tornavam formidável, mas tudo o que ela dizia era pronunciado num tom tão autoritário que revelava a sua pretensão; Elizabeth se lembrou imediatamente da descrição de Mr. Wickham. E achou que Lady Catherine deveria ser exatamente como ele a tinha descrito.
Quando, depois de examinar a mãe, em cujo rosto e gestos ela percebeu logo uma forte parecença com Mr. Darcy, voltou os olhos para a filha, achou-a tão mirrada que quase lhe escapou dos lábios a mesma exclamação de espanto que Maria tivera. Não havia a menor semelhança entre a mãe e a filha, nem no tipo nem no rosto. Os traços de Miss de Bourgh, embora não fossem desagradáveis, eram insignificantes. Falava muito pouco e só em voz baixa para Mrs. Jenkinson, cuja aparência nada ti­nha de excepcional e que se ocupava exclusivamente em ouvir o que ela dizia e em colocar um biombo em situação convenien­te diante dos olhos da moça.
Depois de ficarem sentados durante alguns minutos, eles se dirigiram até a janela para admirar a vista; Mr. Collins se encarregava de lhes detalhar as belezas enquanto Lady Cathe­rine tinha a bondade de informar aos convidados que a vista era muito mais bela no verão.
O jantar foi dos melhores. Mr. Collins não tinha exagerado o número de pratos e de criados. Como previra igualmente, ele se sentou na extremidade da mesa, por desejo expresso de Lady Catherine, mas a sua atitude era a de um homem a quem nada de melhor na vida pudesse suceder. Serviu-se, comeu e elogiou tudo com deliciada alegria; e todos os pratos foram louvados, primeiro por ele, em seguida por Sir William, que, agora mais tranqüilo, repetia tudo o que o genro dizia, como um eco, de tal modo que Elizabeth perguntou a si mesma se Lady Cathe­rine não o acharia cacete. Mas Lady Catherine parecia satisfeita com a admiração excessiva dos hóspedes e sorria da maneira mais graciosa, especialmente quando era servido algum prato que eles não conheciam. Os outros conversavam pouco. Eliza­beth estava sempre pronta para falar quando encontrava uma ocasião. Estava sentada entre Charlotte e Miss de Bourgh. A primeira seguia com atenção as palavras de Lady Catherine, e a segunda não deu uma palavra durante todo o jantar. Mrs. Jenkinson fiscalizava o apetite de Miss de Bourgh, e se mos­trava preocupada porque ela comia tão pouco, insistindo para que ela provasse dos vários pratos e temerosa de que Miss de Bourgh estivesse indisposta. Maria nunca se atreveria a falar. E os cavalheiros nada mais faziam senão comer e admirar.
Em seguida as senhoras voltaram para a sala. E até a hora do café tiveram que ficar ouvindo Lady Catherine falar. Falava sem interrupção, dando a sua opinião sobre cada assunto, com uma segurança que mostrava que não estava habituada a que lhe contestassem as palavras. Fez perguntas a Charlotte a res­peito de assuntos domésticos, com familiaridade e minúcia. E deu-lhe muitos conselhos; disse-lhe como tudo deveria ser regu­lado numa família pequena como a sua e ensinou-lhe a cuidar das vacas e das aves domésticas. Elizabeth verificou que ne­nhum assunto, por mais humilde que fosse, escapava à atenção de Lady Catherine, contanto que encontrasse neles uma opor­tunidade para doutrinar. Nos intervalos das recomendações a Mrs. Collins, fazia uma série de perguntas a Maria e Elizabeth, especialmente a esta última, que conhecia menos e que, obser­vou ela para Mrs. Collins, era uma mocinha muito gentil e bo­nita. Perguntou-lhe várias vezes quantas irmãs ela tinha, se eram mais moças ou mais velhas do que ela, se era provável que alguma delas se casasse, se eram bonitas, onde tinham sido educadas, qual era a situação do seu pai e qual o nome de sol­teira de sua mãe. Elizabeth sentiu toda a impertinência contida nessas perguntas, mas respondeu com grande simplicidade. La­dy Catherine então observou:
A propriedade do seu pai está destinada, pela suces­são, a cair nas mãos de Mr. Collins. Alegro-me por sua causa — continuou ela, virando-se para Charlotte. — Mas não vejo a necessidade de privar a descendência feminina do direito de herdar propriedades. Na família de Sir Lewis de Bourgh, isto não foi julgado necessário. Sabe tocar piano e cantar, Miss Bennet?
Um pouco.
Então, um dia destes precisa nos dar este prazer. O nosso instrumento é dos melhores. Provavelmente superior ao... Precisa experimentá-lo qualquer dia. As suas irmãs tam­bém sabem tocar e cantar?
Uma delas sabe.
Por que as outras também não aprenderam? Deviam todas saber música. As senhoritas Webbs todas sabem tocar. E o pai delas não tinha tanto rendimento quanto o seu. Sabe desenhar?
Não, senhora.
O quê? Nenhuma de vocês?
Nenhuma.
Isto é muito curioso. Mas com certeza não tiveram oportunidade. Sua mãe devia ter levado vocês todas as prima­veras para a cidade, para tomar lições.
Minha mãe não faria objeção a isto, mas meu pai de­testa Londres.
A sua governanta foi despedida?
Nós nunca tivemos governanta.
Nunca tiveram governantas? Como é possível! Educar cinco filhas sem uma governanta! Nunca ouvi tal coisa! Sua mãe deve ter ficado escravizada à educação de vocês!
Elizabeth não pôde deixar de sorrir ao responder que este não fora o caso.
Então quem ensinou a vocês? Quem se encarregou da sua educação? Sem uma governanta, ela deve ter sido relaxada.
Em comparação com a de certas famílias, acredito que sim. Mas lá em casa, às meninas que quiseram aprender nunca lhes faltou meios para isto. Sempre nos encorajaram a ler e tivemos todos os professores necessários. Mas às que preferiram não estudar foi-lhes feita a vontade.
Sem dúvida, mas isto é justamente o que uma gover­nanta teria evitado. Se eu tivesse conhecido a sua mãe, eu a teria aconselhado com muita insistência a que tomasse uma go­vernanta. Sempre digo que não é possível fazer nada em educa­ção sem uma instrução constante e regular, e só uma governanta pode fazer isto. É espantoso o número de famílias para a qual eu arranjei governantas. É sempre com prazer que vejo uma mo­ça bem empregada. Graças aos meus cuidados, quatro sobrinhas de Mrs. Jenkinson foram magnificamente colocadas. E outro dia mesmo recomendei outra jovem cujo nome ouvi apenas acidentalmente e a família ficou muito satisfeita com ela. Mrs. Collins, já lhe contei que Lady Metcalf veio me visitar ontem para me agradecer? Ela acha Miss Pope um tesouro. "Lady Catherine", disse ela, "a senhora me deu um tesouro." Alguma das suas irmãs mais moças já foi apresentada à sociedade, Miss Bennet?
Sim, minha senhora, todas.
O quê? As cinco de uma vez? É muito estranho. E você é apenas a segunda! As mais moças já frequentam a socie­dade antes de as mais velhas se casarem! Suas outras irmãs são muito moças?
A mais moça ainda não fez dezesseis anos. Talvez seja um pouco cedo demais para fazer vida social. Mas realmente, minha senhora, acho que seria uma crueldade recusar-lhes a sua parte de distrações e sociedade só porque a mais velha não teve os meios ou a inclinação para se casar mais cedo. As mais moças têm os mesmos direitos aos prazeres da mocidade que as mais velhas. E trancá-las em casa creio que não seria um bom meio de promover a afeição fraternal ou a delicadeza de sentimentos.
Sob minha palavra — disse Lady Catherine —, você dá a sua opinião muito decididamente para uma pessoa de tão pouca idade. Diga-me, quantos anos tem?
Com três irmãs mais moças já crescidas — replicou Elizabeth —, Vossa Senhoria não pode esperar que eu lhe dê uma resposta.
Lady Catherine pareceu ficar atônita com a resposta e Elizabeth suspeitou que ela tinha sido a primeira pessoa que já ousara fazer pouco de uma tão pomposa impertinência.
Você não pode ter mais de vinte anos, portanto não precisa esconder a idade.
Ainda não fiz vinte e um anos.
Depois do chá, quando os cavalheiros se reuniram a elas, as mesas de jogo foram colocadas. Lady Catherine, Sir William, Mr. e Mrs. Collins se sentaram para jogar quadrille. E como Miss de Bourgh preferisse jogar cassino, as duas moças e Mrs. Jenkinson tiveram a honra de formar uma segunda mesa com ela. Esta mesa foi extremamente cacete. Não se ouviu uma síla­ba que não se referisse ao jogo, exceto quando Mrs. Jenkinson exprimia os seus receios de que Miss de Bourgh estivesse agasalhada de mais ou de menos ou que a luz estivesse deficiente ou em excesso. A outra mesa era muito mais animada. Lady Catherine em geral estava sempre falando, apontando os erros dos três outros, ou contando algum caso a respeito de si mesma. Mr. Collins estava ocupado em concordar com tudo o que Lady Catherine dizia, agradecendo-lhe cada ponto que ganhava e pe­dindo desculpas se achava que estava ganhando demais. Sir William pouco dizia. Estava sondando na memória anedotas e nomes nobres que conhecia.
Quando Lady Catherine e a filha se fartaram de jogar, as mesas foram carregadas, a carruagem foi oferecida a Mrs. Col­lins, aceita com gratidão e imediatamente chamada. Todos se reuniram em torno da lareira para ouvir Lady Catherine lançar suas previsões sobre o tempo que faria no dia seguinte. A chegada da carruagem a interrompeu. E, depois de muitas tira­das de agradecimentos da parte de Mr. Collins e outras tantas reverências de Sir William, eles partiram. Mal tinham passado a porta. Mr. Collins pediu à prima que desse a sua opinião sobre tudo o que tinham visto em Rosings. Para o bem de Charlotte, Elizabeth deu uma resposta mais favorável do que realmente tinha vontade de dar. Os seus louvores, embora lhe custassem algum trabalho, de nenhum modo foram julgados suficientes por Mr. Collins e imediatamente ele se sentiu obri­gado a tomar a seu cuidado o elogio de Lady Catherine.

Capítulo XXX


Sir William ficou apenas uma semana em Hunsford; mas a visita foi suficiente para convencê-lo de que a filha estava instalada da maneira mais confortável e que possuía um marido e uma vizinha difíceis de encontrar iguais. Enquanto Sir Wil­liam ficou em Hunsford, Mr. Collins lhe consagrou as manhãs. Passeava com ele no seu cabriolet para lhe mostrar a região; mas, depois que ele partiu, a família voltou para as suas ocupa­ções habituais e Elizabeth ficou satisfeita porque não tinha que ficar tão constantemente com o primo, pois a maior parte das horas, entre o café da manhã e o almoço, ele passava agora trabalhando no jardim, lendo ou escrevendo e olhando pela janela da biblioteca, que confrontava a estrada. A sala das se­nhoras ficava nos fundos. Elizabeth a princípio se espantou de que Charlotte não preferisse a sala de almoço para uso comum; era maior e mais agradável de aspecto. Mas logo compreendeu que a amiga tinha um excelente motivo para o que fazia, pois sem dúvida Mr. Collins passaria muito menos tempo na sua biblioteca se elas ficassem numa sala igualmente agradável.
Da sala de visitas nada se podia ver da estrada. E depen­diam de Mr. Collins para saber quais as carruagens que surgiam e quantas vezes Miss de Bourgh passava no seu faéton, coisa que ele jamais deixava de anunciar. E, embora isto acontecesse quase todos os dias, muitas vezes Miss de Bourgh parava na reitoria e conversava alguns minutos com Charlotte. Mas quase nunca apeava. Poucos dias decorriam sem que Mr. Collins fosse a Rosings. E freqüentemente a esposa achava que devia acom­panhá-lo. E Elizabeth só compreendeu o sacrifício de tantas horas quando se lembrou de que possivelmente existiam outros cargos eclesiásticos que dependiam da família. De vez em quan­do Lady Catherine os honrava com uma visita. E nessas oca­siões nada do que se passava na sala escapava à sua atenção. Ela observava as ocupações das moças, olhava para os seus tra­balhos e aconselhava que os fizessem de maneira diferente.
Achava errada a disposição dos móveis ou descobria uma negli­gência da criada. E, se ficava às vezes para as refeições, era só para observar que os assados de Mrs. Collins eram grandes de­mais para a família.
Elizabeth logo descobriu que a grande senhora, embora não fosse comissionada com o título de juiz de paz para o con­dado, era um magistrado muito ativo para a sua própria paró­quia e levava as menores coisas ao conhecimento de Mr. Col­lins; e quando qualquer dos aldeões se mostrava descontente ou caía na miséria, ou quando surgia uma contenda, ela corria para a aldeia, a fim de dirimir as questões, silenciar as queixas e harmonizar as disputas e as desgraças com reprimendas e dinheiro. Os jantares em Rosings foram repetidos duas vezes por semana e, se não fosse a ausência de Sir William e o fato de só haver uma mesa de jogo, seriam uma repetição exata do primeiro. Os outros compromissos sociais eram mínimos, pois o gênero de vida das famílias da vizinhança estava em geral além dos meios da família Collins. Isto entretanto não desa­gradava a Elizabeth, que, em suma, passava o tempo bastante agradavelmente. Havia horas de conversação interessante com Charlotte e, como fizesse um tempo excepcionalmente belo pa­ra aquela época do ano, podia passear freqüentemente ao ar livre. O seu passeio favorito, que fazia em geral enquanto os outros visitavam Lady Catherine, era no bosque aberto que limitava aquele lado do parque, onde havia uma bela alameda coberta que ninguém mais parecia apreciar e onde ela se sentia protegida da curiosidade de Lady Catherine.
Dessa maneira tranqüila se passaram os primeiros quinze dias da visita. A Páscoa estava se aproximando, e durante a se­mana que a precedia devia chegar uma pessoa a Rosings; e como a família era tão pequena, esse acréscimo devia ser importante. Pouco depois da sua chegada, Elizabeth ouviu dizer que Mr. Darcy estava sendo esperado em Rosings daí a poucas semanas. E, embora preferisse qualquer outra pessoa do seu conhecimen­to, a chegada de Mr. Darcy viria contribuir para o apareci­mento de um rosto comparativamente novo nos jantares em Rosings. Além disso ela teria ocasião de observar, pela sua ati­tude para com a prima, a quem ele estava evidentemente desti­nado por Lady Catherine, até que ponto os desígnios de Miss Bingley eram infundados. Lady Catherine falava na chegada dele com a maior satisfação, referia-se a ele nos termos mais elogiosos e quase ficou zangada ao saber que Miss Lucas e Eli­zabeth já o conheciam. A notícia de sua chegada foi logo sabida na reitoria, pois Mr. Collins passou a manhã inteira passeando perto dos portões do parque, a fim de ser o primeiro a vê-lo. Ao surgir a carruagem, fez uma reverência e depois correu para casa.
Na manhã seguinte, apressou-se a visitar Rosings para apresentar os seus respeitos. E teve que apresentá-los duas ve­zes, pois havia dois sobrinhos de Lady Catherine. Mr. Darcy tinha trazido consigo o Coronel Fitzwilliam, o filho mais moço do seu tio, o Lorde ...; para grande surpresa de todos, quando Mr. Collins voltou para casa, viu-os atravessarem a estrada. E, imediatamente, correndo para o outro quarto, avisou as meni­nas da honra que as esperava, acrescentando:
É a você, Eliza, que agradeço esta amabilidade. Mr. Darcy não viria aqui tão cedo por minha causa.
Elizabeth ainda não acabara de protestar contra esta ho­menagem quando a chegada dos dois cavalheiros foi anunciada pela campainha da porta e pouco depois eles entraram na sala. O Coronel Fitzwilliam, que vinha na frente, parecia ter aproxima­damente trinta anos de idade; não era bem-apessoado mas tinha as atitudes e os modos de um verdadeiro gentleman. Mr. Darcy não tinha mudado. Apresentou os seus cumprimentos a Mrs. Collins com a reserva habitual e, quaisquer que fossem os seus sentimentos para com a amiga da dona da casa, cumprimentou-a discretamente. Elizabeth fez uma curta reverência, sem dizer uma só palavra. O Coronel Fitzwilliam começou a palestrar imediatamente, com a simplicidade de um homem bem-educado. A sua conversa era muito agradável; mas seu primo, depois de dirigir uma ligeira observação sobre a casa e o jardim, perma­neceu sentado durante algum tempo em silêncio. E afinal julgou que devia indagar da saúde dos parentes de Elizabeth. Ela lhe respondeu com a simplicidade de sempre e depois de uma curta pausa acrescentou:
Minha irmã mais velha tem estado em Londres nestes últimos três meses. Nunca lhe aconteceu encontrá-la?
Ela sabia perfeitamente que ele nunca a tinha encontrado. Mas queria ver se ele deixaria transparecer que estava infor­mado do que se tinha passado entre os Bingley e Jane. Pare­ceu-lhe que Mr. Darcy se mostrava um pouco confuso ao res­ponder que nunca tivera a boa sorte de encontrar Miss Bennet. O assunto não foi mais mencionado e pouco depois os dois cavalheiros partiram.

Capítulo XXXI


As maneiras do Coronel Fitzwilliam foram muito aprecia­das na reitoria. Todas as senhoras acharam que ele contribuiria consideravelmente para alegrar os jantares em Rosings. Passa­ram-se alguns dias, no entanto, antes que recebessem novo convite, pois havendo visitas em casa eles não eram mais ne­cessários. E foi só no domingo de Páscoa, quase uma semana depois da chegada dos cavalheiros, que o tal convite foi feito, ao saírem da igreja; assim mesmo foram apenas convidados pa­ra ir a Rosings depois do jantar. Durante a última semana não tinham tido quase ocasião de ver Lady Catherine ou a filha. O Coronel Fitzwilliam tinha estado de visita à reitoria mais de uma vez neste intervalo. Mas Mr. Darcy fora visto apenas na igreja. O convite naturalmente foi aceito, e à hora designada eles se reuniram ao grupo que já se encontrava na sala de Lady Catherine. Esta os recebeu amavelmente, mas era evidente que a companhia daquela gente não era nem de longe tão aceitável agora como nos dias em que não havia mais ninguém lá. Lady Catherine era toda atenção com os sobrinhos e falava com eles, especialmente com Darcy, muito mais do que com qualquer outra pessoa na sala.
O Coronel Fitzwilliam pareceu realmente contente de vê-los. Em Rosings, tudo o que aparecesse de fora era para ele um alívio bem-vindo e a bela amiga de Mrs. Collins o interessava muito. Sentou-se ao lado dela e falou muito agradavelmente acerca do Kent, do Hertfordshire, de viagens, livros e música; Elizabeth sentiu que jamais se divertira tanto naquela sala; a conversa era tão animada que atraiu a atenção de Lady Cathe­rine, bem como a de Mr. Darcy. Os olhos deste último se volta­ram repetidamente para eles com uma expressão de curiosidade; e dentro em pouco tornou-se evidente que Lady Catherine com­partilhava dos sentimentos do sobrinho, pois exclamou, sem nenhuma reserva:
— Que é que você estava dizendo, Fitzwilliam? De que é que vocês conversavam? Que é que você estava contando para Miss Bennet? Quero saber o que é.
Estávamos falando de música — disse ele, impossibi­litado de se esquivar a uma resposta.
De música? Então fale em voz alta. É de todos os assuntos o meu favorito. Se estão falando de música, quero tomar parte na conversa. Creio que existem poucas pessoas na Inglaterra que apreciam mais a música do que eu. Ou que tenha um gosto mais fino. Se eu tivesse aprendido música, seria uma grande intérprete. E Anne também, aliás, se a saúde dela o tivesse permitido. Estou certa de que ela tocaria admiravelmente. Georgiana tem feito muitos progressos, Darcy?
Mr. Darcy louvou afetuosamente o talento da irmã.
Estou muito satisfeita com isto — disse Lady Cathe­rine; — diga a ela que nunca poderá brilhar se não estudar muito.
Eu lhe asseguro, minha tia — replicou ele —, que ela não precisa de tal conselho. Estuda com muita constância.
Tanto melhor. Nunca é demais. E na próxima vez que escrever para ela recomendarei que não se descuide do seu piano. Eu sempre digo às moças que nenhuma distinção pode ser alcançada sem um estudo constante. Já disse a Miss Bennet várias vezes que nunca tocará realmente bem se não estudar mais. E como não há piano em casa de Mrs. Collins, ela está convidada, com já disse muitas vezes, a vir a Rosings todos os dias estudar piano no quarto de Mrs. Jenkinson. Naquela parte da casa ela não incomodaria a ninguém.
Mr. Darcy pareceu um pouco envergonhado da grosseria da tia e nada respondeu. Depois do café o Coronel Fitzwilliam lembrou a Elizabeth a sua promessa de tocar para eles; e a moça se sentou imediatamente ao piano. Ele aproximou a sua cadeira. Lady Catherine ouviu metade de uma canção e em seguida con­tinuou a conversar como antes com o outro sobrinho, até que este se afastou dela e, dirigindo-se resolutamente ao piano, colo­cou-se de modo a poder observar o rosto da bela executante. Elizabeth percebeu o que ele estava fazendo e, na primeira pau­sa, virou-se para ele e disse, com um sorriso malicioso:
É para me assustar, Mr. Darcy, que se aproximou com toda esta imponência? Mas não ficarei alarmada, embora a sua irmã toque tão bem. Tenho uma persistência que a vontade dos outros é incapaz de intimidar. Nesses momentos a minha cora­gem sempre me socorre.
Eu não direi que a senhora está enganada — replicou ele —, porque é impossível que acredite realmente que eu tives­se a intenção de alarmá-la. Eu tenho o prazer de conhecê-la já há bastante tempo para saber que gosta muito de exprimir de vez em quando opiniões que de fato não são as suas.
Elizabeth riu cordialmente com essa descrição da sua pes­soa e disse para o Coronel Fitzwilliam:
Seu primo vai lhe dar uma bela idéia a meu respeito, ensinando-lhe a não acreditar numa só palavra do que eu falo. É uma falta de sorte ter encontrado uma pessoa capaz de expor aos outros o meu caráter real num lugar onde eu tinha tido a esperança de deixar uma boa impressão. Realmente, Mr. Darcy, é uma falta de generosidade da sua parte mencionar aqui tudo o que descobriu sobre as minhas fraquezas, do Hertfordshire. E além disso acho a sua atitude muito pouco política, pois me incita a represálias. Neste caso podem sair coisas que escanda­lizarão os seus parentes.
Eu não tenho medo de você — disse ele, sorrindo.
Não deixe de dizer as coisas de que o acusa — excla­mou o Coronel Fitzwilliam. — Queria saber como é que ele se comporta entre os estranhos.
O senhor o saberá. Mas prepare-se para ouvir coisas horríveis. Na primeira vez em que eu o vi no Hertfordshire foi num baile. E nesse baile o que é que o senhor acha que ele fez? Dançou apenas quatro danças. Sinto muito causar-lhe essa de­silusão, mas é verdade. Ele dançou apenas quatro danças, em­bora faltassem cavalheiros. E sei que mais de uma moça ficou sentada por falta de um par. Mr. Darcy, o senhor não pode negar o fato.
Naquela ocasião eu não tinha a honra de conhecer outras moças no salão a não ser as do meu próprio grupo.
É verdade, e ninguém pode ser apresentado a uma pessoa estranha num salão de baile. Bem, Coronel Fitzwilliam, que devo tocar agora? Meus dedos esperam a sua ordem.
Talvez — disse Darcy — eu tivesse feito melhor se houvesse solicitado uma apresentação. Mas me considero mal qualificado para me recomendar pessoalmente aos estranhos.
Devemos perguntar a seu primo a razão para isto — disse Elizabeth, continuando a se dirigir ao Coronel Fitzwilliam. — Devemos perguntar-lhe por que um homem bem-educado e sensato, que tem a experiência do mundo, está mal qualificado para se recomendar às pessoas estranhas?
Posso responder a sua pergunta sem consultá-lo — respondeu Fitzwilliam. — É porque ele não quer se dar ao trabalho.
É certo que eu não tenho um talento que muita gente possui — disse Darcy: — o de conversar facilmente com pes­soas que não conheço. Não consigo encontrar o tom apropriado nem me fingir interessado pelos assuntos dos outros, como vejo acontecer freqüentemente.
Meus dedos não se movem sobre este instrumento de uma maneira tão magistral quanto os de muitas outras mulhe­res. Eles não têm a mesma força e a mesma rapidez, nem pos­suem a mesma força de expressão. Mas disso eu sempre me acusei como de um defeito. Porque nunca me dei ao trabalho de estudar; não é que eu acredite que os meus dedos sejam inferiores aos de outra mulher qualquer.
Darcy sorriu e disse:
Tem toda a razão. Empregou o seu tempo muito me­lhor. Ninguém que tenha tido o privilégio de ouvi-la pode pen­sar que lhe falta alguma coisa. Nenhum de nós dois executa para os estranhos.
Nesse momento foram interrompidos por Lady Catherine, que perguntou qual era o assunto da conversa. Elizabeth ime­diatamente recomeçou a tocar. Lady Catherine se aproximou e, depois de ouvir durante alguns minutos, disse para Darcy:
Miss Bennet não estaria tão fora de forma se estudasse mais e tivesse a vantagem de ter um professor de Londres. Ela articula bem, mas não tem tanta expressão quanto Anne. Anne seria uma pianista notável se a sua saúde o tivesse permitido.
Elizabeth olhou para Darcy, para ver como ele acolhia aquele elogio à sua prima; mas nem naquele momento, nem em outra qualquer ocasião pôde discernir qualquer sintoma de amor. E, a julgar pela atitude geral de Mr. Darcy, Elizabeth pôde fazer a seguinte reflexão consoladora para Miss Bingley: que se Miss Bingley fosse também sua prima teria a mesma possibilidade de se casar com ele.
Lady Catherine continuou com as suas observações sobre a execução de Elizabeth, alternando-as com conselhos sobre técnica e expressão. Elizabeth os recebeu com toda a paciência e amabilidade; e, a pedido dos cavalheiros, continuou tocando, até que a carruagem de Lady Catherine foi chamada a fim de conduzir as visitas para casa.

Capítulo XXXII


No dia seguinte, de manhã, Elizabeth estava sentada sozi­nha escrevendo para Jane, quando a campainha da porta a fez sobressaltar-se. Mrs. Collins e Maria tinham ido fazer compras na aldeia. Como Elizabeth não tinha escutado nenhuma carrua­gem se aproximar, pensou que provavelmente a visita seria Lady Catherine e, apreensiva, estava escondendo a carta que escrevia, a fim de escapar a perguntas indiscretas, quando a porta se abriu e Mr. Darcy, sozinho, entrou na sala.
Ele também pareceu surpreso ao encontrá-la só. Descul­pou-se pela intrusão, dizendo que pensava estarem todas as senhoras em casa.
Em seguida se sentaram e, depois das perguntas de estilo, estavam a ponto de cair num silêncio total. Era absolutamente necessário, pois, encontrar assunto. E nessa emergência Eliza­beth, lembrando-se da última vez em que o vira no Hertford­shire, e curiosa de saber o que ele diria para justificar a sua súbita partida, observou:
Com que rapidez todos partiram de Netherfield em novembro passado, Mr. Darcy! Deve ter sido uma surpresa muito agradável para Mr. Bingley revê-los todos tão cedo depois da sua partida. Se não me engano, ele saiu no dia anterior, não? Espero que o tenha deixado bem, a ele e às irmãs, agora quando deixou Londres.
Perfeitamente, obrigado.
Elizabeth compreendeu que não receberia outra resposta. E depois de uma curta pausa acrescentou:
Se não me engano, ouvi dizer que Mr. Bingley não tenciona voltar mais a Netherfield.
Nunca ouvi dizer tal coisa; mas é provável que ele passe lá muito pouco tempo de cada vez, daqui para o futuro. Ele tem muitos amigos e está numa idade em que os amigos e os compromissos aumentam continuamente.
Se tenciona ficar tão pouco em Netherfield seria me­lhor para a vizinhança que desistisse inteiramente do lugar. Pois neste caso outra família poderia se instalar lá. Mas talvez Mr. Bingley a tenha tomado pensando menos na conveniência dos vizinhos do que na sua própria. E naturalmente não deve­mos esperar que ele se guie agora por outros princípios.
Eu não ficaria surpreso se ele passasse a propriedade a outros assim que se oferecesse uma oportunidade vantajosa — respondeu Darcy.
Elizabeth não respondeu. Tinha medo de falar mais lon­gamente sobre Mr. Bingley. E nada mais tendo a dizer resolveu deixar a cargo de Mr. Darcy o trabalho de encontrar um novo assunto.
Ele percebeu aquela intenção e logo começou:
Esta casa parece muito confortável. Creio que Lady Catherine a reformou bastante depois da vinda de Mr. Collins.
Acredito que sim. E estou certa de que ela não poderia ter dispensado a sua bondade a uma pessoa mais reconhecida.
Mr. Collins parece ter tido muita sorte na escolha da esposa.
Realmente. Seus amigos têm motivos para satisfação, pois ele encontrou uma das poucas mulheres sensatas que o teriam aceito. E, tendo-o aceito, capaz de torná-lo feliz. A mi­nha amiga é muito compreensiva, e, embora eu não considere o seu casamento com Mr. Collins o seu ato mais ajuizado, reco­nheço no entanto que ela parece perfeitamente feliz. E, consi­derando as coisas com prudência, parece de fato que ela fez um bom casamento.
Deve ser certamente muito agradável para ela ter a casa a uma distância relativamente tão curta da família e dos amigos.
O senhor chama isto uma distância curta? São quase cinqüenta milhas.
E o que são cinqüenta milhas numa boa estrada? Pou­co mais do que meio dia de viagem. Considero uma distância fácil.
Nunca consideraria a distância como uma das vanta­gens do casamento — exclamou Elizabeth. — Eu jamais teria dito que Mrs. Collins está instalada perto da família.
É uma prova da sua afeição pelo Hertfordshire. Qual­quer lugar que não se encontre nas proximidades de Longbourn deve lhe parecer longínquo.
Enquanto falava, havia nele uma espécie de sorriso que Elizabeth julgou compreender. Ele devia supor que ela estava pensando em Jane e enrubesceu, ao responder.
Não quero dizer com isto que uma mulher não deva morar um pouco longe da família. O longe e o perto são rela­tivos e dependem de várias circunstâncias. Quando existe for­tuna e as despesas de viagem são pouco importantes, as dis­tâncias não têm inconveniência. Mas este não é o caso aqui. Mr. e Mrs. Collins têm um rendimento que lhes permite uma vida confortável, porém não é suficiente para viagens freqüen­tes. Estou persuadida de que minha amiga só se consideraria perto da família se morasse na metade da atual distância.
Mr. Darcy aproximou um pouco a sua cadeira e disse:
Mas a senhora não tem direito de ser tão bairrista. A senhora não pode ter morado sempre em Longbourn.
Elizabeth olhou para ele, surpresa.
Mr. Darcy pareceu mudar de idéia. Recuou a cadeira, to­mou um jornal em cima da mesa e percorrendo-o disse, num tom mais frio:
Agrada-lhe o Kent?
Seguiu-se um curto diálogo sobre o condado, calmo e con­ciso de ambas as partes, que a chegada de Charlotte e da irmã, um pouco depois, veio interromper. O tête-à-tête pareceu sur­preendê-las. Mr. Darcy relatou o engano que ocasionara a sua intrusão, e depois de ficar sentado mais alguns minutos sem dizer quase nada foi-se embora.
Qual pode ser a significação dessa visita? — disse Charlotte, depois que ele partiu. — Minha cara Eliza, ele deve estar apaixonado por você. Sem o que nunca nos teria visitado dessa forma pouco cerimoniosa.
Mas quando Elizabeth contou que ele ficara em silêncio, a hipótese não pareceu muito plausível, mesmo para Charlotte, que a desejava. E depois de várias conjeturas supuseram afinal que a visita era devido apenas à dificuldade de encontrar ocupa­ção, coisa que naquela época do ano não era nada de estranhar. Todos os jogos em campo aberto estavam fora de questão. Dentro de casa havia Lady Catherine, livros e uma mesa de bilhar. Mas os cavalheiros não podem ficar sempre trancados dentro de casa; e fosse porque a reitoria era tão próxima, ou porque a caminhada fosse agradável, ou os seus moradores interessantes, o fato é que os dois primos se acharam tentados a caminhar até lá quase todas as manhãs. Chegavam em horas diferentes, ora juntos, outras vezes separados, e de vez em quando acompanhados pela tia. Era evidente para todos que o Coronel Fitzwilliam vinha porque achava agradável a compa­nhia dos habitantes de Hunsford, coisa que naturalmente o recomendava ainda mais. E a satisfação que Elizabeth experi­mentava ao vê-lo, bem como aquela com a qual recebia a sua evidente admiração, lembrava-lhe o antigo favorito, George Wickham. E embora, ao compará-los, visse que havia menos doçura cativante nas maneiras do Coronel Fitzwilliam, acredi­tava que ele fosse dos dois o mais culto.
Era mais difícil compreender por que Mr. Darcy vinha tão freqüentemente à reitoria. Não podia ser pela companhia, pois ele ficava a maior parte do tempo calado, às vezes durante dez minutos seguidos. E quando falava parecia fazê-lo mais pela dura obrigação de ser polido do que por prazer. Raramente parecia ficar de fato animado. Mrs. Collins não sabia o que fa­zer com ele. E o fato de o Coronel Fitzwilliam caçoar ocasio­nalmente da casmurrice do primo provava que ele havia muda­do; o pouco que Charlotte sabia a respeito de Mr. Darcy não era suficiente para que compreendesse, por si, este fato. Teria ficado satisfeita se descobrisse que esta mudança era o efeito do amor, e o objeto daquele amor a sua amiga Eliza. Portanto se dispôs seriamente a encontrar a causa daquela mudança. Observava-o todas as vezes que o encontrava em Rosings, ou quando ele vinha a Hunsford, mas sem grande sucesso. Ele decerto olhava bastante para a sua amiga, mas a expressão da­quele olhar era duvidosa. Era um olhar sério, fixo, e Charlotte perguntava-se muitas vezes se havia realmente nele alguma admiração. Outras vezes, parecia-lhe apenas um olhar distraído. Uma ou duas vezes sugerira a Elizabeth a possibilidade de Mr. Darcy se achar interessado por ela, mas esta sempre ria de se­melhante idéia. E Mrs. Collins achou que era melhor não des­pertar esperanças que pudessem acabar em desapontamento; pois, na sua opinião, toda a relutância da amiga se desvaneceria no momento em que o supusesse em seu poder.
Nos planos afetuosos que às vezes fazia para Elizabeth, pensava em casá-la com o Coronel Fitzwilliam; ele era, sem comparação, o mais agradável dos dois. Era evidente que sentia admiração por Elizabeth, e a sua situação na vida era das me­lhores; mas, para contrabalançar as suas vantagens, Mr. Darcy tinha uma influência considerável na igreja, e seu primo não podia ter nenhuma.

Capítulo XXXIII


Mais de uma vez, durante os seus passeios pelo parque, Elizabeth teve a surpresa de se encontrar com Mr. Darcy. Ela percebeu a perversidade do acaso, que o trazia onde ninguém mais costumava aparecer. E para impedir que isto tornasse a suceder, deu-se ao trabalho de preveni-lo de que aqueles passeios constituíam um dos seus hábitos favoritos. Achou muito estra­nho portanto que o acaso se repetisse uma segunda vez, e mes­mo uma terceira. Parecia o efeito de uma vontade maléfica, ou então de uma voluntária mortificação, pois nessas ocasiões Mr. Darcy não se limitava a fazer simples perguntas de cortesia, e depois de uma pausa esquerda ir embora; voltava sobre os seus passos e a acompanhava. Ele pouco falava e Elizabeth não se dava ao trabalho de ouvi-lo com muita atenção. Mas da ter­ceira vez Mr. Darcy lhe fez umas perguntas estranhas e des­conexas sobre o prazer de estar em Hunsford, o gosto que ela parecia encontrar naqueles passeios solitários e a opinião de Elizabeth sobre a felicidade do casal Collins; e disse também que por falar em Rosings, e já que parecia que ela compreendia bem aquela casa, esperava que quando ela voltasse novamente para o Kent fosse residir lá também. Era isto que as suas pala­vras pareciam subentender. Estaria ele pensando no Coronel Fitzwilliam? Elizabeth pensou que se aquilo fosse uma indireta seria esse o sentido mais provável. Ficou um pouco perturbada e deu graças a Deus porque naquele instante estavam se apro­ximando do portão da reitoria.
Certo dia em que Elizabeth estava caminhando, relendo a última carta de Jane, especialmente um determinado trecho que parecia provar que Jane estava deprimida, viu, ao levantar os olhos, que se encontrava diante do Coronel Fitzwilliam, e não de Mr. Darcy, como tinha suposto. Guardando a carta imedia­tamente e forçando um sorriso, disse:
— Eu não sabia que o senhor costumava passear por esses lados.
Estive fazendo a volta do parque — respondeu ele —, como o faço todos os anos, e tencionava encerrá-la com uma visita à reitoria. Tenciona ir mais adiante?
Não, eu ia voltar logo.
E dizendo isto ela se virou. Juntos voltaram até a casa.
Está mesmo decidido a deixar o Kent sábado? — per­guntou Elizabeth.
Sim, a menos que Darcy torne a adiar a partida. Estou a seu dispor. Ele que decida como lhe aprouver.
Ele parece ter grande prazer em exercer a faculdade de escolha. Não conheço ninguém que pareça ter tanto prazer em fazer as suas vontades como Mr. Darcy.
É verdade, ele gosta mesmo de fazer o que quer — respondeu o Coronel Fitzwilliam. — Mas todos nós gostamos. Somente que ele tem em geral mais meios de realizar os seus desejos do que o comum dos homens. Falo com sinceridade. Como filho caçula, tenho que estar preparado para o sacrifício e a obediência.
Na minha opinião o filho mais moço de um nobre pou­co sabe a respeito dessas virtudes. Agora fale seriamente, que é que o senhor sabe a respeito do sacrifício e da obediência? Quando foi impedido, por falta de dinheiro, de se locomover livremente ou de obter as coisas que desejava?
Isto são perguntas particulares. E talvez eu não possa dizer que tenha experimentado muitas dificuldades desta natu­reza, mas em outras questões de importância é possível que eu sofra falta de dinheiro. Os filhos mais moços não podem se casar como desejam.
A não ser que se apaixonem por mulheres ricas, e creio que muitas vezes isto acontece.
O hábito que temos de gastar dinheiro nos torna de­pendentes demais. E não há muitos na minha situação que se podem casar sem considerar a questão monetária.
"Será uma indireta para mim?", pensou Elizabeth. E a idéia fê-la enrubescer; mas, dominando-se, disse, num tom alegre:
E diga-me, qual é o preço usual para o filho mais moço de um nobre? A não ser que o irmão mais velho seja muito doente, não creio que possam exigir além de cinqüenta mil libras.
Ele respondeu no mesmo tom e o assunto morreu. Para interromper um silêncio que poderia fazer crer ao coronel que ela se sentira afetada pelo que acabavam de dizer, Elizabeth disse, pouco depois:
Imagino que o seu primo deve tê-lo trazido consigo com o intuito principal de ter alguém à disposição. Não sei por que ele não se casa. Teria desse modo uma pessoa sempre à disposição. Mas talvez a irmã dele preencha esses requisitos no momento. E, como ela se encontra sob os seus cuidados exclu­sivos, ele pode fazer com ela o que quiser.
Não — disse o Coronel Fitzwilliam —, esta é uma van­tagem que ele tem que compartilhar comigo. Exerço juntamente com ele a tutela de Miss Darcy.
Ah, sim? Diga-me, que espécie de tutores são os se­nhores? A sua tutelada lhes dá muito trabalho? As moças nessa idade são às vezes difíceis de governar. E, se ela possui o ver­dadeiro espírito dos Darcy, deve ser voluntariosa.
Enquanto falava, Elizabeth via que o coronel a olhava sé­rio e, pela maneira com que lhe perguntou pouco depois por que é que ela supunha que Miss Darcy lhe pudesse causar preocupações, ficou convencida de que tinha chegado próximo à verdade.
Elizabeth respondeu diretamente:
Não precisa se assustar. Nunca ouvi nada de mal a respeito dela. E ouvi dizer até que ela é uma das pessoas mais tratáveis do mundo. Duas senhoras minhas conhecidas gostam muito dela: Mrs. Hurst e Miss Bingley. Penso que já ouvi o senhor dizer que também as conhece.
Conheço-as um pouco. O irmão delas é um cavalheiro muito agradável e bem-educado. É um grande amigo de Darcy.
Oh, sim — disse Elizabeth, secamente. — Mr. Darcy é muito atencioso para com Mr. Bingley. Tem um cuidado real­mente prodigioso com ele.
Sim, acredito realmente que Darcy cuide de certas coisas dele, que na verdade precisam de cuidados. Por um fato que ele citou durante a nossa viagem para cá, tenho razões para pensar que Bingley deve muita coisa a Darcy. Mas tenho de desculpar-me com ele, pois não tenho o direito de pensar que Bingley seja a pessoa a que se refere a história. É uma simples conjetura.
Qual é essa história?
É um caso que Darcy naturalmente não pode desejar que se espalhe, pois se chegasse aos ouvidos da família da moça poderia ser uma coisa desagradável.
Pode ficar certo de que nunca falarei a este respeito.
E lembre-se de que não tenho muitas razões para su­por que esta pessoa seja Bingley. O que me contou foi apenas o seguinte: que ele se felicitava a si mesmo por ter salvo um amigo dos inconvenientes de um casamento dos mais impruden­tes, mas sem mencionar nomes ou quaisquer outros detalhes. E suspeitei que fosse Bingley apenas porque acredito que ele é desses rapazes que se metem em aventuras dessa espécie e porque sei que eles estiveram juntos durante todo o verão passado.
E Mr. Darcy apresentou os motivos dessa interfe­rência?
Compreendi que havia objeções muito fortes contra a moça.
E de que artifícios usou ele para separá-los?
Ele não me falou a respeito dos artifícios que tenha usado — disse Fitzwilliam sorrindo. — Disse-me apenas o que acabo de lhe contar.
Elizabeth não respondeu e continuou a andar, com o co­ração repleto de indignação. Depois de observá-la durante alguns instantes, Fitzwilliam perguntou-lhe por que estava tão pensativa.
Estive pensando no que acaba de me contar — disse ela. — A conduta do seu primo não se coaduna com os meus sentimentos. Por que é que ele se arrogou o direito de julgar?
Parece que a senhora está disposta a considerar a inter­ferência dele inoportuna.
Não sei com que direito Mr. Darcy pode decidir a respeito da legitimidade das inclinações do amigo, ou baseado apenas no seu julgamento determinar de que maneira aquele amigo poderia ser feliz. Mas — continuou ela, voltando a si — como não conhecemos as circunstâncias, não é justo condená-lo. Não suponho que existisse grande afeição nesse caso.
A suposição não é improvável — disse Fitzwilliam —, porém diminui bastante o triunfo do meu primo.
Estas palavras foram ditas em tom de gracejo; mas pare­ceu a Elizabeth que traçavam um retrato tão justo de Mr. Darcy que ela resolveu refrear a resposta. E portanto, mudando abrup­tamente de assunto, falou de coisas banais até que chegaram à reitoria. Aí, logo depois que o visitante partiu, ela se trancou no quarto para pensar sem interrupção em tudo o que tinha ouvido. Não era de supor que fossem outras as pessoas envolvi­das. Não poderiam existir no mundo dois homens sobre os quais Mr. Darcy exercesse um domínio tão absoluto. Ela nunca duvi­dara de que ele tivesse tido a sua parte nas medidas que tinham sido adotadas para separar Mr. Bingley de Jane. Mas sempre atribuíra a Miss Bingley a iniciativa do plano e a parte mais importante da execução. Se ele não tivesse sido portanto iludido pela própria vaidade, Mr. Darcy, com o seu orgulho e seu capri­cho, era a causa de tudo o que Jane tinha sofrido. Tinha arrui­nado por algum tempo todas as esperanças de felicidade para o coração mais afetuoso e mais generoso do mundo. E ninguém poderia dizer quão duradouro era o mal que ele tinha causado.
Havia objeções muito fortes contra a moça, tais tinham sido as palavras do Coronel Fitzwilliam. E estas fortes objeções eram provavelmente as seguintes: o fato de ela ter um tio que era advogado no campo e outro que era comerciante em Lon­dres. Contra Jane em pessoa, pensou ela, não poderia haver possibilidade de objeção. "Ela é toda doçura e bondade. É inte­ligente, educada e suas maneiras são cativantes. Nada pode ser objetado tampouco contra meu pai, que, embora um pouco excêntrico, tem qualidades que nem Mr. Darcy pode desdenhar. E uma respeitabilidade que ele provavelmente nunca alcançará." Quando pensava na mãe, com efeito a sua confiança declinava um pouco. Mas não era crível que quaisquer objeções desse gênero pesassem aos olhos de Mr. Darcy, cujo orgulho, pensou Elizabeth, seria mais facilmente ferido pela falta de importância das relações do amigo do que pela falta de senso dessas mesmas pessoas. E finalmente Elizabeth chegou à conclusão de que Mr. Darcy se deixara levar em parte pelo seu desmedido orgulho e em parte pelo desejo de reter Mr. Bingley para sua irmã. As agitações e as lágrimas que o assunto causara trouxeram a Eli­zabeth uma dor de cabeça que à noite se agravou. Esta circuns­tância e a sua repugnância em ver Mr. Darcy determinaram-na a não acompanhar as primas a Rosings, onde deviam tomar chá. Mrs. Collins, vendo que ela realmente não estava bem, não insistiu, impedindo o mais que pôde o seu marido de insistir. Mr. Collins não pôde esconder a apreensão de que Lady Cathe­rine se mostrasse aborrecida por Elizabeth ter ficado em casa.

Capítulo XXXIV


Depois que os amigos partiram, Elizabeth, como se tencionasse exasperar-se o mais que podia contra Mr. Darcy, esco­lheu como ocupação a leitura de todas as cartas que Jane lhe enviara, desde que ela, Elizabeth, estava no Kent. Essas cartas não continham nenhuma queixa expressa. Não relembravam acontecimentos passados nem comunicavam sofrimentos pre­sentes. Mas em todas elas, em quase cada linha, sentia-se a falta daquela animação que sempre caracterizara o estilo de Jane, e que procedia da serenidade de um espírito tranqüilo e bem disposto consigo mesmo e com todos. Elizabeth observou, com uma atenção que não tivera durante a primeira leitura, cada frase que traía alguma inquietude. A vergonhosa jactância de Mr. Darcy a respeito dos sofrimentos que ele pudera causar fazia com que ela sentisse mais agudamente os sofrimentos da irmã. Era um consolo pensar que a sua visita a Rosings termina­ria daí a dois dias. É outro ainda maior a idéia de que em menos de quinze dias estaria novamente junto de Jane, prepa­rada para contribuir, com toda a afeição de que era capaz, para o restabelecimento da sua tranqüilidade.
Não podia pensar na partida de Darcy sem se lembrar de que o primo também iria com ele. Mas o Coronel Fitzwilliam dera a entender claramente que não tinha nenhuma intenção e, embora fosse um homem agradável, Elizabeth não estava dis­posta a ficar triste por sua causa.
Decidira ela este ponto, quando teve a sua atenção des­pertada pelo som da campainha da porta. A princípio ficou um pouco emocionada com a idéia de que pudesse ser o Coronel Fitzwilliam, que já uma vez aparecera tarde da noite, e que viesse agora para se informar da sua saúde. Mas esta idéia foi logo banida e a sua emoção foi inteiramente diversa quando viu com imensa surpresa Mr. Darcy entrar na sala. Começou apres­sadamente a fazer perguntas sobre a saúde dela, atribuindo a visita ao desejo de se tranqüilizar. Ela respondeu com fria amabilidade. Darcy ficou sentado durante alguns instantes e depois, levantando-se, pôs-se a caminhar pela sala. Elizabeth ficou espantada, mas não disse nada. Depois de um silêncio de alguns minutos, aproximou-se agitado e disse:
Em vão tenho lutado comigo mesmo; nada consegui. Meus sentimentos não podem ser reprimidos e preciso que me permita dizer-lhe que eu a admiro e amo ardentemente.
O espanto de Elizabeth não teve limites. Olhou fixamente para ele, enrubesceu, duvidou e ficou calada. Mr. Darcy consi­derou a atitude como um encorajamento e imediatamente fez-lhe a confissão de tudo o que sentia e já desde há muito vinha sentindo. Falou bem, mas através das suas palavras outros sen­timentos, além dos do coração, podiam ser percebidos. E ele não falava com mais eloqüência da sua ternura do que do seu orgulho. O sentimento da inferioridade de Elizabeth, do rebai­xamento que aquele amor constituía, os obstáculos de família que a razão sempre opusera à inclinação, foram descritos com um ardor que parecia devido ao seu amor-próprio ferido, mas que recomendava muito pouco as suas pretensões.
Apesar da sua profunda antipatia, Elizabeth não podia deixar de ficar desvanecida pela afeição de tal homem. E embo­ra as suas intenções nem por um só instante mudassem, a prin­cípio ela teve pena de ser obrigada a lhe infligir uma tal decep­ção. Mas as palavras seguintes de Mr. Darcy tornaram a provar o seu ressentimento. Encolerizada, perdeu toda a compaixão. Procurou no entanto dominar-se, para responder cora paciência, assim que ele acabasse de falar. Ele concluiu descrevendo-lhe a força daquela afeição que, apesar dos seus esforços, não con­seguira dominar. E exprimiu a esperança de que essa afeição fosse agora recompensada pela aceitação de Elizabeth. Enquan­to Mr. Darcy falava, era evidente para Elizabeth que ele não duvidava de que a resposta fosse favorável. Falava em apreen­são e ansiedade, mas o seu rosto exprimia realmente a certeza. Isto ainda a exasperou mais e, quando ele terminou, o sangue subiu ao rosto de Elizabeth, que disse:
Em casos como este creio que é costume estabelecido exprimir a nossa gratidão pelos sentimentos que nos são con­fessados, embora esses sentimentos não possam ser retribuídos. É natural que essa gratidão seja sentida. E se a experimentasse agora eu lhe agradeceria. Mas não posso desejar e nunca desejei a sua boa opinião, e aliás o senhor a confere a mim contra a vontade. Sinto muito ter de causar decepção a qualquer pessoa, não o faço de propósito, entretanto espero que ela seja de curta duração. Os sentimentos que, segundo o senhor me disse, o impediram durante muito tempo de reconhecer a sua afeição hão de socorrê-lo facilmente depois da presente explicação.
Mr. Darcy, que estava apoiado contra a lareira, com os olhos fixos no rosto de Elizabeth, pareceu receber as suas pa­lavras com tanta surpresa quanto ressentimento. O rosto se tornou pálido de cólera e a perturbação era visível em cada um dos seus traços. Lutava para dar aos seus gestos uma aparência de calma e não queria falar antes de ter conseguido o que dese­java. A pausa era insuportável para Elizabeth. Afinal, numa voz em que transparecia o esforço para torná-la calma, res­pondeu:
E esta é a única resposta a que eu tinha direito e com a qual tenho de me contentar! Desejaria talvez que me infor­masse por que sou assim rejeitado, sem a menor tentativa de cortesia da sua parte. Mas isto tem pouca importância.
Por minha vez, eu poderia perguntar — replicou ela — por que, com o intuito tão evidente de me ofender e de insultar, o senhor resolveu dizer que gostava de mim contra a sua vontade, contra a sua razão e mesmo contra o seu caráter. Não é escusa suficiente para a minha falta de cortesia? Se é que realmente cometi essa falta... Mas tenho outros motivos para me sentir ferida. E o senhor bem o sabe. Mesmo que os meus sentimentos não lhe fossem contrários, se lhe fossem indiferen­tes ou mesmo favoráveis, o senhor acha que qualquer conside­ração me inclinaria a aceitar um homem que arruinou talvez para sempre a felicidade de uma irmã querida?
Enquanto ela pronunciava estas palavras, Mr. Darcy mu­dou de cor. Mas a emoção foi curta e ele continuou a ouvir sem tentar interromper.
Tenho todas as razões do mundo para pensar mal do senhor — prosseguiu Elizabeth. — Nenhum motivo poderá escusar o ato injusto e mesquinho que praticou. O senhor não ousará negar que foi o meio principal, se não o único, de separar aquelas duas pessoas e de expô-las à censura e ao ridículo do mundo, uma delas por capricho e instabilidade, outra pela de­cepção das suas esperanças, causando-lhes um grande mal.
Fez uma pausa e viu, com grande indignação, que ele a ouvia com ar de quem não sentia o menor remorso. Olhou-a mesmo com um sorriso de incredulidade afetada.
O senhor pode negar o que fez? — repetiu ela.
Ele então respondeu com fingida tranqüilidade:
Não desejo negar que fiz tudo o que pude para separar meu amigo da sua irmã. Tampouco negarei que me alegro desse êxito. Fui mais previdente para com ele do que para comigo próprio.
Elizabeth não quis mostrar que compreendeu a observação, mas o sentido não lhe escapou. Como tampouco foi de natu­reza a aplacá-la.
Mas não é apenas nessa história que se funda a minha antipatia — continuou ela. — Muito antes de ela acontecer eu já tinha opinião formada a seu respeito. A narrativa que já há muitos meses me fez Mr. Wickham me revelou o seu caráter. Que tem o senhor a dizer sobre este assunto? Que ato imagi­nário de amizade poderá o senhor alegar para se justificar? Que falsos motivos poderá inventar para iludir os outros?
A senhora parece se interessar extraordinariamente pe­las mágoas daquele cavalheiro.
Nenhuma pessoa que conheça o seu infortúnio pode deixar de se interessar por ele.
Seu infortúnio! — repetiu Darcy, num tom de des­prezo. — Sim, o seu infortúnio foi realmente grande.
E foi o senhor quem o infligiu — exclamou Elizabeth, com energia. — Foi o senhor quem o reduziu ao seu estado atual de pobreza, de comparativa pobreza. O senhor lhe recusou os direitos que lhe cabiam, as vantagens que lhe tinham sido destinadas. Privou-o, durante os melhores anos da sua vida, da independência a que ele tinha direito e que aliás merecia. Tudo isso o senhor fez! E agora ouve o relato do seu infortúnio com desprezo e ironia.
Então é esta a opinião que tem de mim! — exclamou Darcy, caminhando apressado pela sala. — É este o valor que me dá! Agradeço-lhe por se ter explicado tão claramente. Mi­nhas faltas, tais como as descreve, são realmente pesadas. Mas talvez — acrescentou ele, detendo-se e voltando-se para Eliza­beth —, talvez essas ofensas pudessem ter sido relevadas, se eu não tivesse ferido o seu orgulho, confessando-lhe com toda a franqueza os escrúpulos que me impediram durante tanto tempo de tomar uma resolução. Eu poderia ter evitado as suas amargas acusações, se me tivesse mostrado mais hábil, escondendo-lhe as minhas lutas e fazendo crer que era movido por uma inclinação a que nada se opunha, nem a razão, nem a re­flexão, nem qualquer outro motivo. Mas odeio toda espécie de fingimento. Tampouco me envergonham os sentimentos que lhe exprimi. São naturais e justos. Pode exigir de mim que me feli­cite pela inferioridade social dos seus parentes? Ou que me alegre com a esperança de me relacionar com pessoas de condi­ção inferior à minha?
Elizabeth sentia a sua cólera crescer de momento a momen­to; apesar disso procurou falar com toda a calma:
O senhor está enganado, Mr. Darcy. A sua atitude pou­co cavalheiresca apenas me poupou o desgosto de recusar o seu pedido, se ele tivesse sido feito de outra forma.
Elizabeth percebeu que ele se sobressaltava ao ouvir estas palavras. Mas Mr. Darcy nada disse e ela prosseguiu:
Eu o teria recusado de qualquer forma. Nada me po­deria ter persuadido a aceitar a sua mão.
Novamente seu espanto foi evidente. Mr. Darcy olhou para Elizabeth com incredulidade e mortificação. Ela continuou:
Posso dizer que desde o princípio, desde o primeiro instante quase em que o conheci, as suas maneiras me conven­ceram de que era um homem arrogante, pretensioso, e de que tinha a maior indiferença pelos sentimentos dos outros. Esta impressão foi tão profunda que constituiu, por assim dizer, o alicerce sobre o qual os acontecimentos subseqüentes elevaram uma indestrutível antipatia; e talvez menos de um mês depois de conhecê-lo estava convencida de que o senhor seria o último homem no mundo com o qual eu me casaria.
Não precisa acrescentar mais nada — disse Darcy. — Compreendo perfeitamente os seus sentimentos, e nada me resta senão me envergonhar dos meus. Perdoe-me ter tomado o seu precioso tempo, e aceite os meus mais sinceros votos de felicidade.
E dizendo estas palavras saiu apressadamente da sala e, depois de alguns instantes, Elizabeth o ouviu abrir a porta da frente e sair. O tumulto das idéias lhe era tão doloroso, que, incapaz de recuperar o equilíbrio, ela se deixou cair sobre uma cadeira e chorou durante meia hora sem cessar. A sua surpresa aumentava cada vez que recordava o que se tinha passado. Re­cebera uma proposta de casamento de Mr. Darcy! Há vários meses ele estava apaixonado por ela! Amava-a tanto que deseja­va desposá-la, apesar de todas as objeções que tinham feito com que ele impedisse o casamento do amigo. Era agradável saber que ela tinha inspirado uma afeição tão forte. Mas a pieda­de que por um momento a idéia de tal paixão tinha inspirado a Elizabeth foi logo sufocada pela do orgulho de Mr. Darcy, o seu abominável orgulho, pela cínica confissão de sua atitude para com Jane, a sua imperdoável tranqüilidade ao reconhecer o que tinha feito, embora não o pudesse justificar, e pela ma­neira desapiedada com que se referira a Mr. Wickham, sem que tentasse negar a crueldade com que o tinha tratado.
Essas reflexões agitadas prosseguiram até que Elizabeth ouviu o ruído da carruagem de Lady Catherine. Sentindo que não estava em condições de enfrentar a perspicaz atenção de Charlotte, correu para o quarto.

Capítulo XXXV


Na manhã seguinte, ao despertar, Elizabeth encontrou no espírito os mesmos problemas que debatera na véspera até ador­mecer. Ainda não voltara a si da surpresa. Era impossível pen­sar em outro assunto; incapaz de encontrar uma ocupação que a distraísse, resolveu, logo depois da primeira refeição, fazer um pouco de exercício ao ar livre. Estava se encaminhando para o seu lugar favorito, quando a lembrança de que Mr. Darcy costumava aparecer lá a deteve. E, em vez de entrar no parque, tomou a vereda que a bordejava. A cerca do parque limitava a estrada de um lado e pouco depois ela passou por um dos portões. Depois de andar duas ou três vezes naquela parte do caminho, sentiu-se tentada pela beleza da manhã a parar nos portões e contemplar o parque. Durante as cinco semanas que tinha passado no Kent, uma grande transformação se operara, e cada dia as árvores ficavam mais verdes. Elizabeth estava a ponto de continuar o passeio, quando avistou de relance, no pe­queno bosque que bordejava o parque, um homem que vinha na sua direção. Temerosa de que fosse Mr. Darcy, recuou. Mas a pessoa se encontrava agora tão próxima que podia vê-la. Apres­sando o passo, esta pessoa se aproximou e pronunciou o nome de Elizabeth. Ela estava de costas, mas ao ouvir o seu nome, embora reconhecesse a voz de Mr. Darcy, voltou a se acercar do portão. Mr. Darcy, do outro lado, fizera o mesmo. Estendeu-lhe uma carta, que ela aceitou instintivamente. Em seguida disse, com um olhar altivo:
— Estive passeando no bosque na esperança de encontrá-la. Quer me dar a honra de ler esta carta?
Em seguida, depois de inclinar-se levemente, voltou-se e partiu.
Sem esperança de prazer mas com a maior curiosidade, Elizabeth abriu a carta; com espanto sempre crescente viu que o envelope continha duas folhas de papel, inteiramente reco­bertas por uma letra apertada. Continuando o caminho pela alameda, Elizabeth começou a ler. A carta estava datada de Rosings, das oito horas da manhã, e dizia o seguinte:

"Não fique alarmada, Miss Eliza, ao receber esta carta, pela apreensão de que ela contenha a repetição daqueles senti­mentos ou a renovação daquelas propostas que ontem à noite tanto lhe repugnaram. Escrevo-lhe sem nenhuma intenção de aborrecê-la ou de me humilhar insistindo em exprimir esperan­ças que para a felicidade de ambos não podem ser esquecidas cedo demais. E o esforço da minha parte ao escrever esta carta e o seu em percorrê-la teria sido poupado se o meu caráter não exigisse que ela fosse escrita e lida. É preciso pois que me perdoe a liberdade com que exijo a sua atenção; sei que os seus sentimentos a concederão com relutância. Mas eu o exijo da sua justiça. Duas foram as acusações que me fez ontem à noite, de natureza muito diferente e de importância igualmente desi­gual. A primeira foi: que eu tinha separado Mr. Bingley da sua irmã, indiferente aos sentimentos de ambos. E a outra de ter arruinado a possibilidade imediata e as probabilidades futu­ras de Mr. Wickham, ferindo vários direitos, desafiando a honra e a humanidade. Ter repudiado voluntária e gratuitamente o companheiro da minha infância, o favorito declarado de meu pai, um rapaz que dependia exclusivamente da nossa proteção e a quem esta fora prometida seria uma perversidade incompa­ravelmente mais grave do que a separação de duas pessoas cuja afeição, embora real, não poderia ter crescido excessivamente no espaço das poucas semanas que estiveram juntas. Espero estar a salvo, para o futuro, da severidade das censuras que me foram feitas com tanta veemência a respeito destes dois casos, depois de ter lido a seguinte explicação dos meus atos e dos seus motivos. Se durante esta explanação eu me encontrar na necessidade de exprimir sentimentos que possam ser ofensivos aos seus, posso dizer apenas que isto me entristece sinceramente. A necessidade de expô-los deve ser obedecida. E quaisquer outras desculpas serão supérfluas. Pouco depois da minha chega­da ao Hertfordshire, percebi, juntamente com outras pessoas, que Bingley preferia a sua irmã mais velha a qualquer outra moça da região. Mas foi só por ocasião do baile de Netherfield que fiquei pela primeira vez apreensivo de que ele se apaixonas­se seriamente. Muitas vezes antes eu já o tinha visto apaixona­do. Naquele baile, enquanto eu tinha a honra de dançar com a senhora, soube através da informação acidental de Sir William que as atenções de Bingley para com a sua irmã tinham dado lugar a um rumor geral acerca do seu casamento. Sir William falou naquilo como num acontecimento positivo, acerca do qual só a data era incerta. A partir desse momento observei a atitude do meu amigo com muita atenção. E vi que a inclinação por Miss Bennet era mais forte do que qualquer uma das que lhe tinha visto antes. Observei também a sua irmã; seu olhar, suas maneiras, eram francas, alegres e atraentes como sempre, mas sem qualquer sintoma especial de afeição. E a partir desta noite fiquei convencido de que, embora ela aceitasse as aten­ções de Bingley com prazer, não as provocava porque participas­se do mesmo sentimento. Quanto a este ponto, se a senhora não se enganou, enganei-me eu. Como conhece melhor a sua irmã, a última hipótese parece ser mais provável. Se este é o caso, se este erro me levou a infligir um desgosto à sua irmã, o seu ressentimento é compreensível. Mas não tenho receio de afirmar que a serenidade do rosto da sua irmã e a tran­qüilidade da sua expressão são tais, que o observador mais agudo concluiria que, por mais amável que seja o seu gênio, seu coração não é dos mais fáceis de atingir; é certo que eu desejava acreditar na indiferença dela, mas arrisco-me a afirmar que as minhas investigações e as minhas decisões não são geral­mente influenciadas pelas minhas esperanças ou pelos meus re­ceios. Não foi porque o desejasse que acreditei na indiferença da sua irmã, foi porque cheguei a esta convicção imparcial e ela é tão sincera quanto o meu desejo. Minhas objeções contra aquele casamento não foram apenas as que lhe descrevi ontem à noite e que no meu próprio caso exigiram toda a força da paixão para serem vencidas; a desigualdade social não seria um mal tão grande para o meu amigo quanto para mim. Mas existiam outras causas para a minha resistência; causas que, embora ainda existentes, e existentes do mesmo modo, eu tentara esquecer porque não as via de maneira imediata diante de mim. Essas causas precisam ser ditas, embora sumariamente. A situação da família da sua mãe, embora pouco recomendável, não era nada em comparação com aquela falta total de delicadeza tão fre­qüente e quase permanentemente demonstrada por sua mãe, por suas três irmãs mais moças e às vezes até por seu pai. Perdoe-me, dói-me ter de ofendê-la. Mas no meio dos aborreci­mentos que os defeitos dos seus parentes mais próximos lhe causam e o desprazer que a presente descrição não pode deixar de lhe dar, a seguinte reflexão lhe sirva de consolo: saiba que o fato universalmente reconhecido de que tanto a senhora como a sua irmã mais velha sempre se comportaram de modo a evitar uma censura semelhante é o melhor elogio que se poderia fazer à sensatez e ao caráter de ambas. Acrescentarei apenas que os fatos que se passaram naquela noite confirmaram a minha opi­nião sobre todas as pessoas em questão e fortaleceram a minha resolução de proteger o meu amigo de uma aliança que eu con­siderava a mais desastrada. Ele deixou Netherfield no dia se­guinte, como decerto está lembrada, com a intenção de regressar breve. Agora devo explicar a parte que tomei no caso. A inquie­tude da irmã de Bingley fora igualmente despertada e logo descobrimos que os nossos sentimentos, coincidiam a esse res­peito; convencidos ambos de que devíamos agir rapidamente, resolvemos acompanhá-lo a Londres. Foi o que fizemos. E lá tomei a meu cargo a incumbência de revelar ao meu amigo as conseqüências desastrosas da escolha que fizera. No entanto, por mais que esta advertência possa ter-lhe abalado a resolução, não creio que teria sido suficiente para impedir o casamento, se não tivesse sido apoiada pela afirmação, que não hesitei em fazer, de que a sua irmã lhe era indiferente. Ele acreditava até aquele momento que Miss Jane correspondia à sua afeição sinceramente, se não com igual intensidade. Mas Bingley é por natureza muito modesto, e além disso tem mais confiança no meu julgamento do que no seu próprio. Convencê-lo, portanto, de que se tinha enganado não foi muito difícil. Persuadi-lo, em seguida, de que não devia voltar para o Hertfordshire, depois de firmado o primeiro ponto, foi coisa de um instante. Não me arrependo de tê-lo feito. Existe apenas uma parte da minha conduta que não me satisfaz. É que condescendi em usar de certos artifícios para esconder de Bingley o fato de sua irmã se encontrar em Londres. Sabia dessa presença, bem como Miss Bingley, mas o seu irmão até agora ainda não sabe. É possível que eles pudessem ter-se encontrado sem outras conseqüências; mas o seu afeto não me pareceu suficientemente extinto para que ele pudesse ver a sua irmã sem correr algum perigo. Talvez esse artifício seja indigno de mim. Mas o que está feito, está feito. E a minha intenção foi a melhor possível. Sobre este assunto nada mais tenho a dizer, nem outra explicação a dar. Se feri os sentimentos da sua irmã, foi sem a intenção de fazê-lo, e, embora os motivos que inspiraram a minha conduta lhe pa­reçam naturalmente insuficientes, não vejo ainda razões para condená-los. Com relação à outra acusação, a mais grave, a que diz respeito a Mr. Wickham, só poderei refutá-la, expondo-lhe toda a história das suas relações com a minha família. Ignoro se ele formulou alguma acusação particular à minha pessoa; mas acerca da verdade do que vou relatar posso dar mais de uma testemunha insuspeita. Mr. Wickham é o filho de um homem muito respeitável, que durante muitos anos geriu todos os bens da propriedade de Pemberley; a fidelidade com que sempre se desincumbiu das suas funções mereceu naturalmente a gratidão do meu pai. E para com George Wickham, que era o seu afilhado, meu pai se mostrou sempre generoso, dedicando-lhe uma grande afeição. Pagou os seus estudos num colégio e mais tarde em Cambridge. Auxílio importante, pois o pai de Mr. Wickham, que as extravagâncias da esposa privavam quase sempre do necessário, não estava em condições de dar ao filho uma educação liberal. Meu pai não só gostava muito da com­panhia de George Wickham, cujas maneiras, aliás, eram sempre muito atraentes, mas tinha por ele a maior admiração e, alimen­tando a esperança de que o rapaz abraçasse a carreira eclesiás­tica, tencionava reservar-lhe um lugar na mesma. Quanto a mim, há já muitos anos que comecei a pensar de maneira dife­rente a respeito dele. As suas inclinações viciosas, a falta de escrúpulos, que ele tinha o cuidado de esconder do seu melhor amigo, não poderiam passar despercebidas a um rapaz da sua idade, que o observava e tinha a oportunidade de vê-lo em momentos de descuido, coisa que Mr. Darcy não tinha. Aqui novamente, terei de magoá-la. Até que ponto não sei. Só a senhora mesma poderá dizê-lo. Mas, quaisquer que sejam os sentimentos que Mr. Wickham lhe tenha inspirado, a suspeita que alimento acerca da natureza desses sentimentos não me impedirá de lhe revelar o verdadeiro caráter daquela pessoa. Acrescento mesmo um outro motivo. Meu excelente pai morreu há cerca de cinco anos e a sua afeição por Mr. Wickham foi até o fim tão firme que me recomendou particularmente no tes­tamento que me encarregasse de promover o seu adiantamento na carreira que tinha escolhido, e manifestou o desejo de que um posto importante, à disposição da família, lhe fosse dado, assim que vagasse, caso Mr. Wickham se ordenasse. Deixou-lhe também um legado de mil libras. O pai dele não sobreviveu muito tempo ao meu, e meio ano depois desses acontecimentos Mr. Wickham me escreveu, informando-me que resolvera não tomar ordens. Dizia-me também que esperava que eu não achas­se despropositado o desejo de uma compensação pecuniária mais imediata, em lugar do posto do qual não poderia agora se beneficiar. Acrescentou que tinha intenção de estudar direito, e que eu devia compreender que os juros de mil libras não eram suficientes para o seu sustento e os seus estudos. Apesar do meu desejo de acreditar na sinceridade dele, não o conseguia. Mas de qualquer modo mostrei-me perfeitamente disposto a aceder à sua proposta. Eu sabia que Mr. Wickham não devia ser pastor. O negócio foi portanto logo arranjado. Ele desistiu de toda proteção relativa à sua entrada na Igreja, mesmo se estivesse algum dia em situação de recebê-la, e aceitou em troca a quantia de três mil libras. Todas as nossas relações a partir dessa época ficaram interrompidas. O que eu sabia a respeito dele era suficiente para não o desejar como amigo. E portanto eu não o convidava para vir a Pemberley, nem andava em com­panhia dele na cidade. Creio que durante esse tempo ele ficou em Londres, mas o seu estudo de direito foi um mero pretexto. Livre agora de toda obrigação, ele levava uma vida de dissipação. Durante três anos pouco ouvi falar nele. Mas, ao falecer a pessoa que ocupava o posto que outrora lhe fora destinado, ele tornou a escrever, solicitando a sua apresentação para o dito lugar. Sua atual situação, dizia ele, e eu não tive dificuldade em acreditá-lo, era extremamente precária. Descobrira que o estudo de direito era pouco proveitoso e estava agora absoluta­mente resolvido a tomar ordens, se eu o apresentasse para o posto em questão, coisa de que ele não duvidava, pois estava informado de que não havia outro pretendente e eu não poderia ter esquecido as intenções do meu venerando pai; creio que não há de me censurar por lhe ter recusado aquela pretensão e re­jeitado todas as novas tentativas no mesmo sentido. O ressenti­mento que ele manifestou foi muito violento, dada a situação precária em que se encontrava. E, sem dúvida, os insultos de que me cobriu ao falar a meu respeito com outras pessoas foram tão violentos quanto as recriminações que me dirigiu. Depois desse período, todas as relações de mera formalidade foram cortadas. Como ele viveu, não sei. Mas no último verão tornou a aparecer no meu caminho da forma mais desagradável possí­vel. Devo agora mencionar certas circunstâncias que eu mesmo desejaria esquecer e que só uma obrigação tão forte quanto a atual me poderia induzir a relatar para qualquer outra pessoa. Depois de ter dito isto, confio inteiramente na sua discrição. Minha irmã, que é dez anos mais moça do que eu, foi deixada em tutela ao sobrinho de minha mãe, Coronel Fitzwilliam, e a mim próprio. Há um ano atrás saiu do colégio e foi morar em Londres em companhia de uma senhora encarregada de superintender a sua educação; e no verão passado foi com aque­la senhora para Ramsgate. Mr. Wickham, sem dúvida proposi­tadamente, partiu para o mesmo lugar; depois se descobriu que havia um entendimento prévio entre ele e Mrs. Younge, pessoa a respeito de cujo caráter infelizmente nos enganamos. Graças ao auxílio e conivência desta pessoa, ele se aproximou de Georgiana, em cujo coração por natureza afetivo ainda era muito vivida a impressão da bondade com que ele a tratara em criança. Ela se deixou persuadir de que estava apaixonada e consentiu em ser raptada. Como a moça tinha apenas quinze anos, essa loucura é até certo ponto escusável. Tenho o consolo de poder acrescentar que soube disto por ela própria. Cheguei a Rams­gate, inesperadamente, um ou dois dias antes da projetada fuga. E Georgiana, incapaz de suportar a idéia de desgostar e ofender um irmão que ela considerava quase como um pai, confessou-me tudo. A senhora pode bem imaginar como me senti e como agi. Para não prejudicar a reputação da minha irmã e não ofender os seus sentimentos, eu me abstive de qualquer ato de represália em público. Mas escrevi para Mr. Wickham, que partiu imedia­tamente. Mrs. Younge foi naturalmente despedida. Sem dúvida, o fito principal de Mr. Wickham era de se apoderar da fortuna da minha irmã, que é de trinta mil libras. Mas não posso deixar de pensar que o desejo de se vingar de mim tenha também influído fortemente nele.
Esta é uma narrativa fiel dos acontecimentos que nos con­cernem a ambos; e se não a rejeitar como absolutamente falsa, espero que me absolva daqui por diante da falta de ter agido com crueldade para com Mr. Wickham. Não sei de que maneira ele se impôs à sua atenção, nem as falsidades que usou para isto. Mas o êxito que alcançou não é de espantar, dada a sua ignorância de tudo o que acontecera antes. Não estava em seu poder desmascarar estas falsidades e o seu temperamento não é inclinado à desconfiança. Talvez a senhora se surpreenda de eu não lhe ter dito isto ontem, mas naquele momento não tinha suficiente domínio sobre mim mesmo para decidir o que devia e o que não devia revelar. Quanto à verdade de tudo o que ficou aqui relatado, posso apelar particularmente para o testemu­nho do Coronel Fitzwilliam, que, dado o nosso parentesco e constante intimidade e sobretudo a sua qualidade de exe­cutor testamentário de meu pai, conhece necessariamente todos os detalhes desses acontecimentos. Se a antipatia que tem por mim privar de valor as minhas asserções, a mesma causa não a poderia impedir de confiar no meu primo, e para que haja a possibilidade de consultá-lo procurarei entregar-lhe a presente carta de manhã. Acrescentarei apenas: Deus a abençoe!

Fitzwilliam Darcy"

Capítulo XXXVI


Ao receber a carta de Mr. Darcy, Elizabeth não esperava que ela contivesse uma repetição das suas propostas; por outro lado, não tinha a menor idéia a respeito do conteúdo da carta. É fácil imaginar com quanta avidez ela se inteirou dos termos e quantas emoções contraditórias eles lhe produziram no espírito. Durante a leitura os seus sentimentos não podiam ser defini­dos. Primeiro constatou com assombro que ele acreditava poder se desculpar; estava persuadida de que um justo pudor o impe­diria de dar qualquer explicação; fortemente prevenida contra tudo o que ele pudesse dizer, começou a ler o seu relato do que tinha acontecido em Netherfield. Leu com uma ansiedade que quase a impedia de compreender; a impaciência de saber o que a próxima frase deveria trazer a incapacitava de aprofun­dar o sentido daquela que tinha diante dos olhos. Elizabeth imediatamente resolveu que era falsa a alegação de Mr. Darcy de que ele acreditara na insensibilidade da sua irmã. As outras objeções contra o casamento, as piores, a enfureciam de tal forma que aboliam todo o seu desejo de ser justa. As palavras de Darcy não exprimiam nenhum arrependimento; seu estilo não era de quem se quisesse desculpar. Era arrogante, orgulhoso e insolente.
Mas, quando passou para o outro assunto, depois de ter lido, com mais atenção, o relato de acontecimentos que, se ver­dadeiros, jogariam por terra toda a sua boa opinião sobre Mr. Wickham, e que aliás tinham uma semelhança alarmante com a história que Mr. Wickham contara a seu próprio respeito, os seus sentimentos cresceram em intensidade e se tornaram ainda mais difíceis de definir. O assombro, a apreensão e até o horror a oprimiam. Ela se recusava a acreditar naquilo, exclamando repetidamente: "Deve ser falso, não pode ser! É a maior das mentiras!" E, depois de ter percorrido toda a carta, embora não se lembrasse de quase nada que tinha lido nas duas últimas páginas, Elizabeth colocou-a de lado, dizendo a si mesma que nunca mais a leria. Nesse confuso estado de espírito, cheio de pensamentos que não repousavam em coisa alguma, continuou a andar, até que meio minuto depois, incapaz de resistir a um impulso que se formara nela, tornou a desdobrar a carta e, con­centrando o mais que podia a atenção, exigiu de si mesma o esforço mortificante de reler toda a parte que se referia a Wickham, pesando o sentido de cada frase. A história das suas relações com a família de Pemberley era exatamente a que Wickham lhe tinha contado, e a bondade do falecido Mr. Darcy, embora até então não lhe conhecesse toda a extensão, concor­dava igualmente com as suas palavras. Até este ponto as duas narrativas coincidiam; mas quando ela chegou ao testamento, a diferença era grande. Ainda tinha frescas na memória as palavras de Wickham; era impossível, portanto, não sentir que havia uma grosseira duplicidade de um dos lados. E durante algum tempo teve a esperança de que a verdade coincidisse com os seus desejos. Mas depois de ler e reler com a maior atenção os detalhes que se seguiam imediatamente à desistência que Wickham fizera de todos os direitos ao posto, recebendo em troca a soma considerável de três mil libras, novamente foi forçada a hesitar. Pesou cada circunstância com a maior impar­cialidade de que era capaz, calculou a probabilidade de cada afirmação, tudo sem chegar a um resultado. De ambos os lados havia apenas afirmações. Tornou a ler. Mas cada linha provava mais claramente que a história, que a princípio achara impossí­vel interpretar de maneira a tornar a conduta de Mr. Darcy menos infame, podia ser vista sob um aspecto que o inocentava inteiramente. A extravagância e a dissolução que Mr. Darcy não hesitava em atribuir ao caráter de Mr. Wickham a feriam extre­mamente. E tanto mais que ela não podia apresentar uma prova de que essas acusações eram injustas. Elizabeth nunca ouvira falar em Wickham antes da sua entrada na milícia do condado de..., na qual ele se engajara, obedecendo à sugestão de um rapaz que encontrara acidentalmente em Londres. Nada se sabia no Hertfordshire a respeito da sua vida anterior, a não ser o que ele próprio tinha contado. Quanto ao seu caráter real, mesmo que tivesse meios para isto, Elizabeth nunca sentira o desejo de fazer investigações a respeito. A sua figura, a sua voz, os seus modos haviam sido suficientes para que ela lhe atribuísse todas as virtudes. Procurou se lembrar de algum exemplo de bondade, de algum traço marcante de integridade ou de benevolência que o pudesse salvar dos ataques de Mr. Darcy. Ou pelo menos de uma virtude que prevalecesse sobre aquilo que o seu desafeto tinha descrito como sendo ociosidade e vício e em que ela procurava ver apenas uma série de erros casuais. Mas não lhe foi possível encontrar nenhuma lembrança dessa natureza. Podia vê-lo instantaneamente diante de si, com todo o encanto das suas boas maneiras, mas não podia se lembrar de nenhum ato concreto de virtude, que merecesse a aprovação geral da sociedade e a consideração que ele desfruta­va entre os oficiais. Depois de refletir consideravelmente sobre este ponto, mais uma vez recomeçou a ler. Mas infelizmente a história que se seguia, relativa aos seus desígnios de raptar Miss Darcy, era confirmada pela conversa havida entre ela própria e o Coronel Fitzwilliam, na manhã anterior; e finalmente Mr. Darcy havia apresentado o testemunho do Coronel Fitzwilliam, a fim de que ela pudesse obter a confirmação de cada detalhe da sua versão. Sabia por informação prévia do coronel que ele estava intimamente ligado a todas as circunstâncias da vida do primo, e não tinha nenhum motivo para duvidar do seu caráter. Por um momento esteve quase resolvida a apelar para o coronel, mas esta idéia foi afastada, porque exigiria uma explicação embaraçosa, e porque sabia que Mr. Darcy jamais a teria suge­rido se não se tivesse previamente assegurado da colaboração do primo.
Ela se lembrava perfeitamente de toda a conversa que tivera com Mr. Wickham, na primeira noite, em casa de Mr. Philips. Muitas das expressões que ele usara ainda estavam frescas na sua memória. Compreendia agora, de súbito, toda a impropriedade que havia naquelas confidencias a uma pessoa estranha, e espantou-se de nunca haver pensado nisto antes. Viu a indelicadeza daquela exibição e a incompatibilidade entre as suas afirmações e a sua conduta. Lembrava-se de que ele se gabara de não temer um encontro com Mr. Darcy — que Mr. Darcy poderia se mudar, caso se sentisse mal, mas ele não o faria. No entanto tinha se furtado de comparecer ao baile de Netherfield, na semana seguinte. Recordou-se também de que até o momento da partida da família de Netherfield ele se abstivera de contar a sua história para outra pessoa, mas em seguida ela fora discutida em todos os lugares; que ele não tivera então nenhum escrúpulo em denegrir o caráter de Mr. Darcy, apesar de lhe ter declarado que o respeito pela memória do pai sempre o impediria de acusar o filho.
Como tudo lhe parecia agora diferente! Suas atenções para com Miss King eram a conseqüência de odiosas intenções pura­mente mercenárias. Mas o fato de essa moça possuir apenas uma pequena fortuna não provava a moderação dos desejos do pretendente, mas a avidez de se lançar sobre a primeira oportunidade que lhe aparecesse. Quanto à sua atitude para com ela, Elizabeth, ou ele se enganara a respeito da sua fortuna ou agira por pura vaidade, encorajando uma preferência que ela tivera a imprudência de revelar. Todos os esforços de Elizabeth para justificá-lo se tornavam cada vez mais fracos. E como uma justificação adicional ao que dissera Mr. Darcy, ela não podia se esquecer do que dissera Mr. Bingley, que, quando questio­nado por Jane, afirmara a inocência do amigo na questão. As maneiras de Mr. Darcy eram orgulhosas e desagradáveis, mas durante todo o curso das suas relações com ele e do contato freqüente que ultimamente haviam tido, concedendo-lhe uma espécie de intimidade, nunca presenciara nenhum fato que pro­vasse que ele era inescrupuloso e injusto ou que possuía hábitos irreligiosos ou imorais. Todos os seus amigos o prezavam, e até Wickham lhe havia reconhecido qualidades como irmão. Ouvira-o vários vezes falar afetuosamente da sua irmã, o que provava que ele era capaz de sentimentos ternos. Se os seus atos fossem tais como Wickham os havia descrito, se houvesse violado tão brutalmente todos os direitos, dificilmente ele os poderia ter ocultado do mundo. E se ele fosse capaz de tamanha injustiça, não se explicaria a sua amizade com um homem tão estimável quanto Mr. Bingley. Elizabeth sentiu uma grande vergonha de si mesma. Não podia pensar em Darcy nem em Wickham sem sentir que tinha sido cega, parcial, injusta e absurda. "Como foi mesquinha a minha conduta!", exclamou ela, "eu que me orgulhava tanto do meu discernimento, da minha habilidade! Eu, que tantas vezes desdenhei a generosa candura da minha irmã, e gratifiquei a minha vaidade com inú­teis e censuráveis desconfianças. Como é humilhante esta des­coberta! Mas como é justa esta humilhação! Eu não poderia ter agido mais cegamente se estivesse apaixonada! Mas a vaidade, não o amor, foi a minha loucura! Lisonjeada com a preferência de uma pessoa e ofendida com a negligência da outra, logo no início das nossas relações cortejei a parcialidade e a ignorância e expulsei a razão. Até este momento eu não conhecia a minha verdadeira natureza."
Enquanto o seu pensamento ia de si mesma para Jane e de Jane para Bingley, logo lhe ocorreu a idéia de que a explicação de Mr. Darcy quanto àquele ponto lhe parecera muito insufi­ciente. E leu novamente. Muito diferente foi o efeito desta segunda leitura. Como dar valor às afirmações de Mr. Darcy em um ponto e lhe negar no outro? Ele declarava que nem de longe suspeitava da afeição de sua irmã. E Elizabeth não podia deixar de se lembrar da opinião constante de Charlotte. Nem tampouco podia negar que fosse justa a sua descrição de Jane. Ela sabia que Jane, embora capaz de fervor nos seus sentimen­tos, pouco os exteriorizava. E que havia sempre nas suas ma­neiras uma placidez que raramente se encontra unida a uma grande sensibilidade.
Quando chegou ao trecho da carta em que a sua família era mencionada, em termos mortificantes porém merecidos, ficou profundamente envergonhada. No entanto, a justiça daquela afirmação era inegável e as circunstâncias que ele mencionava, particularmente as que se referiam ao baile de Netherfield, con­firmando as suas primeiras impressões desfavoráveis, não ha­viam causado uma impressão mais forte na mente dele do que na sua. Elizabeth não ficou insensível ao elogio com que Darcy a gratificara, bem como à sua irmã. E esse elogio suavizava a sua mortificação, mas não compensava o desprezo que o resto da família atraíra pela sua conduta. E, ao refletir que o desa­pontamento de Jane tinha sido de fato causado pelos parentes mais próximos, cuja extravagância prejudicava a reputação de ambas, sentiu-se deprimida como nunca anteriormente se sentira.
Depois de passear pela alameda durante duas horas, entre­gando-se a toda espécie de pensamentos, relembrando aconte­cimentos, determinando probabilidades e reconciliando-se da melhor forma que podia a uma mudança tão súbita e tão impor­tante, o cansaço e a lembrança de que ficara muito tempo ausente fizeram com que voltasse para casa; e ao entrar fez um esforço a fim de parecer alegre como de costume, reprimindo todas as reflexões que a poderiam tornar inapta para a con­versação.
Disseram-lhe imediatamente que os dois cavalheiros de Rosings tinham aparecido durante a sua ausência, Mr. Darcy apenas durante alguns minutos para se despedir, mas o Coronel Fitzwilliam ficara pelo menos uma hora, esperando pelo seu regresso, e quase resolvera sair a pé para ir procurá-la. Elizabeth fingiu que isto lhe produzia uma grande decepção; mas na verdade se alegrou. O Coronel Fitzwilliam tinha perdido todo o interesse; ela só podia pensar na carta.

Capítulo XXXVII


Os dois primos partiram de Rosings na manhã seguinte, e Mr. Collins, que tinha ido esperá-los perto da casa do vigia para apresentar as suas despedidas, voltou pouco depois, tra­zendo a boa notícia de que eles pareciam estar de muito boa saúde e relativamente de bom humor, apesar da cena melancó­lica que se tinha passado em Rosings.
Mr. Collins então se dirigiu apressadamente para Rosings, a fim de consolar Lady Catherine e a filha e, de volta, trouxe, com grande satisfação, um recado de Lady Catherine dizendo que ela se sentia tão entediada que desejava vê-los todos em sua casa para jantar.
Elizabeth não pôde deixar de se lembrar, ao ver Lady Catherine, de que, se o tivesse desejado, poderia agora ser-lhe apresentada como a sua futura sobrinha, e sorriu ao imaginar a indignação com que Sua Senhoria receberia a notícia.
O primeiro assunto abordado foi a diminuição que sofrera o grupo de Rosings.
Asseguro-lhes que sinto muito — disse Lady Catherine —, creio mesmo que ninguém sente tanto a ausência dos amigos quanto eu. Sou muito ligada àqueles rapazes e sei que eles também gostam muito de mim. Ficaram tristíssimos de partir, e todos os anos acontece o mesmo. O coronel conseguiu domi­nar os sentimentos até o fim, mas Darcy parecia estar conster­nado. Mais do que no ano passado. Vê-se que ele gosta cada vez mais de Rosings.
Mr. Collins aproveitou a ocasião para fazer um elogio, que foi recebido com um sorriso pela mãe e pela filha.
Lady Catherine observou depois do jantar que Miss Bennet parecia melancólica. E, atribuindo imediatamente esta tristeza à proximidade da sua partida, acrescentou:
Mas se este é o caso, escreva à sua mãe pedindo-lhe que a deixe ficar mais um pouco. Estou certa de que Mrs. Collins terá grande prazer em ter por mais tempo a sua companhia.
Eu lhe fico muito agradecida pelo amável convite — replicou Elizabeth —, mas infelizmente não posso aceitar. Pre­ciso estar em Londres no sábado vindouro.
Mas neste caso só terá ficado aqui seis semanas. Con­tava que permanecesse pelo menos dois meses. Foi o que eu dis­se a Mrs. Collins antes da sua vinda. Não pode haver motivo para uma partida tão prematura. Mrs. Bennet lhe concederia outros quinze dias.
Mas meu pai não o faria. Ele me escreveu na semana passada, dizendo que apressasse a minha volta.
Oh, se sua mãe deixa, seu pai também deixará. Uma filha nunca é muito necessária para um pai. E, se quiser ficar mais um mês, eu poderei levá-la comigo até Londres. Preciso ir lá em começo de junho. Demorar-me-ei uma semana e na minha carruagem haverá espaço para uma de vocês. E até, se o tempo estiver frio, poderiam ir as duas, pois ambas são magrinhas.
Muito me desvanece a sua bondade, Lady Catherine, mas creio que serei obrigada a seguir o meu plano anterior.
Lady Catherine pareceu resignar-se.
Mr. Collins — disse ela —, é preciso que mande uma criada com elas. Sabe que eu sempre falo o que penso. Não posso tolerar a idéia de duas moças viajarem sozinhas na diligên­cia. É muito impróprio. É preciso que mande uma pessoa. São coisas que não suporto. As moças devem sempre ser acompa­nhadas e protegidas, de acordo com a sua situação na vida. Quando minha sobrinha Georgiana foi para Ramsgate no verão passado, fiz questão de que dois criados homens a acompanhas­sem. Miss Darcy, a filha de Mr. Darcy de Pemberley e de Lady Anne, não poderia viajar de maneira diferente. Dou muita aten­ção a estas coisas. Mr. Collins, mande John acompanhar as moças. Estou satisfeita de me ter lembrado disto, pois seria pouco recomendável para o senhor mandá-las sozinhas.
Meu tio vai mandar um criado para nos acompanhar.
Oh, o seu tio... Ele tem um criado? Ainda bem que tem alguém na sua família que pense nestas coisas. Onde tro­carão os cavalos? Oh, Bromley, naturalmente. Se falarem lá no meu nome, serão muito bem servidas.
Lady Catherine fez muitas outras perguntas a respeito da viagem. E, como ela própria não respondia a todas, era necessá­rio prestar atenção, coisa que Elizabeth apreciou, pois de outra maneira, com as preocupações que a absorviam, ela poderia até se esquecer do lugar onde estava. Era necessário deixar suas re­flexões para as horas solitárias. Sempre que se encontrava so­zinha, entregava-se a elas com alívio. E todos os dias saía a passeio sozinha, para poder se dar ao consolo de recordar as coisas desagradáveis.
Dentro de pouco tempo já sabia a carta de Mr. Darcy quase de cor. Estudava cada frase, e os seus sentimentos para com o missivista variavam freqüentemente. Quando se lem­brava do seu estilo, ficava cheia de indignação, mas quando considerava a injustiça com que o tinha condenado e tratado, a sua cólera se voltava contra si mesma. Enquanto o desaponta­mento que ele tinha sofrido o tornava objeto de compaixão, o afeto de Mr. Darcy despertava-lhe a gratidão, e o caráter dele, respeito. Mas Elizabeth não podia concordar com o que ele tinha feito. Nem podia arrepender-se da sua recusa. Tampouco sentia a menor vontade de vê-lo. A sua conduta passada era uma fonte constante de amarguras e de ressentimentos. E os infeli­zes defeitos da sua própria família eram um motivo ainda mais forte de aborrecimento. Eram falhas irremediáveis. Seu pai se limitava a rir e nunca faria nenhum esforço para corrigir as le­viandades das filhas mais moças, e sua mãe, cujas maneiras não eram muito melhores, continuava naturalmente insensível a esse mal. Elizabeth freqüentemente reunia os seus esforços ao de Jane, numa tentativa de reprimir as imprudências de Katherine e de Lydia. Mas, fortalecidas pela indulgência da mãe, elas resis­tiam e não havia esperança de melhorarem. Katherine, espírito impressionável e fraco, completamente sob o domínio de Lydia, sempre levava a mal os conselhos das irmãs mais velhas, e Ly­dia, voluntariosa e descuidada, nem sequer lhes dava ouvidos. Ambas eram ignorantes, indolentes e vaidosas. Enquanto exis­tisse um oficial em Meryton, continuariam a namorar. E en­quanto Meryton ficasse a uma milha de distância de Longbourn, viveriam em caminhadas para lá. Outra das suas maiores preocupações era o futuro de Jane. A explicação de Mr. Darcy, inocentando Bingley, realçava o valor daquilo que Jane tinha perdido e demonstrava a sinceridade da sua afeição. E sua conduta ficava livre de toda censura, a não ser, talvez, a de uma demasiada confiança em seu amigo. Como era triste, pois, pen­sar que Jane fora privada de uma situação tão desejável, tão cheia de vantagens e de promessas de felicidade, pela extrava­gância e loucura da sua própria família! Quando a essas recor­dações se acrescentava a decepção que sofrera com Wickham, era fácil acreditar que a coragem e o bom humor de Elizabeth, tão difícil de reprimir, estavam agora tão afetados que lhe era quase impossível manter com as outras pessoas o mesmo tom de antigamente.
Os convites para Rosings foram tão freqüentes durante a última semana como durante a primeira. A última noite foi passada lá. E Lady Catherine tornou a se informar minuciosa­mente de todos os detalhes da viagem. Deu conselhos sobre a melhor maneira de fazer as malas e insistiu tanto na necessida­de de empacotar direito os vestidos que de volta Maria se sentiu obrigada a desfazer todo o trabalho da manhã e fazer novamente a mala.
Quando se despediram, Lady Catherine, com grande ama­bilidade, desejou uma boa viagem. Convidou-as a voltarem a Hunsford no ano seguinte. E Miss de Bourgh levou a sua benevolência ao ponto de fazer uma reverência e estender a mão a ambas.

Capítulo XXXVIII


Sábado de manhã, Elizabeth e Mr. Collins se encontraram para a primeira refeição, alguns minutos antes de os outros apa­recerem. E ele aproveitou a oportunidade para apresentar as suas despedidas com todas as formalidades que julgava indis­pensáveis.
Não sei, Miss Elizabeth — disse ele —, se Mrs. Collins já lhe exprimiu os seus sentimentos de gratidão pela visita que nos fez. Mas estou certo de que não deixará esta casa sem re­ceber todos os seus agradecimentos. Asseguro-lhe que o privi­légio da sua companhia foi muito apreciado. Sei que a nossa humilde casa possui poucos atrativos; a nossa maneira simples de viver, a exigüidade dos nossos cômodos, o pequeno número dos nossos criados e o pouco que vemos do mundo devem tornar Hunsford uma residência extremamente aborrecida para uma moça. Mas espero que acredite que fizemos tudo em nosso poder para que não passasse o seu tempo de uma maneira pouco agradável e que a nossa gratidão é sincera.
Elizabeth respondeu, exprimindo-lhe calorosos agradeci­mentos e assegurando-lhe que tinha sido muito feliz. Tinha pas­sado seis semanas agradáveis. O prazer de estar com Charlotte e as grandes atenções que tinha recebido faziam com que fosse ela que estivesse na obrigação de apresentar agradecimentos. Mr. Collins ficou satisfeito e replicou com solenidade, sorri­dente.
Dá-me a maior alegria saber que não passou o seu tempo de uma maneira desagradável. Fizemos tudo o que esta­va ao nosso alcance. E tivemos a felicidade de ter podido apre­sentá-la à mais alta sociedade. E, graças às nossas relações com Rosings, tivemos meios de variar freqüentemente a humilde cena doméstica. Penso portanto que podemos nos gabar de que a sua visita a Hunsford não lhe foi cansativa. Nossa situação relativamente à família de Lady Catherine é realmente uma dessas extraordinárias vantagens de que poucos se podem gabar.
Viu a intimidade que temos e os convites freqüentes que rece­bemos. Na verdade é preciso reconhecer que, apesar de todos os inconvenientes desta humilde reitoria, não penso que os seus hóspedes possam ser um objeto de compaixão, enquanto com­partilham da nossa intimidade com Rosings.
As palavras eram insuficientes para traduzir a elevação dos seus sentimentos. E na sua agitação ele se pôs a caminhar de um lado para outro na sala, enquanto Elizabeth procurava umas frases curtas que pudessem servir ao mesmo tempo à verdade e à cortesia.
— Creio que poderá levar um relato muito favorável a nosso respeito para o Hertfordshire, minha cara prima — con­tinuou ele. — Presenciou as grandes atenções com que Lady Catherine cumula Mrs. Collins quase todos os dias; e espero que se tenha tornado evidente que a sua amiga não fez ma... Mas sobre este ponto é melhor silenciar. Deixe apenas que eu lhe assegure, minha cara Miss Elizabeth, que eu lhe desejo do fundo do coração uma felicidade igual no casamento. Minha cara Charlotte e eu só temos um espírito e um pensamento. Existe sob todos os aspectos, entre nós, uma notável seme­lhança de caráter e de idéias. Parece que nascemos um para o outro.
Elizabeth afirmou, aliás com razão, que isto era uma gran­de felicidade e com igual sinceridade acrescentou que acredita­va firmemente na sua felicidade doméstica, coisa que muito a alegrava. Não se aborreceu contudo por ter de interromper a frase devido à entrada da pessoa cuja felicidade comentavam. Pobre Charlotte! Era triste deixá-la em tal companhia. No en­tanto, não se podia deixar de reconhecer que ela escolhera de olhos abertos. E, embora triste porque os hóspedes iam embora, ela não parecia agora querer solicitar a sua compaixão. A casa, os trabalhos domésticos, a paróquia, a criação de aves domésti­cas e todos os demais trabalhos ainda não tinham perdido o encanto. Finalmente a carruagem chegou, as malas foram amar­radas, os embrulhos levados para o interior e foi-lhes anunciado que tudo estava pronto. Depois de uma despedida afetuosa, Elizabeth foi levada até a carruagem por Mr. Collins e, enquan­to caminhavam pelo jardim, ele a encarregava de levar os seus mais respeitosos cumprimentos para a família, sem se esquecer dos agradecimentos pelas atenções que recebera em Longbourn quando lá estivera e das saudações para Mr. e Mrs. Gardiner, embora não os conhecesse. Depois a ajudou a subir para a car­ruagem. Maria acompanhou-a e a porta estava a ponto de ser fechada quando de súbito ele lembrou que elas se tinham esque­cido de deixar qualquer mensagem para as senhoras de Rosings. "Naturalmente", acrescentou ele, "desejarão que eu transmita os seus humildes respeitos com os seus mais cordiais agradecimen­tos pelas bondades de que foram objeto enquanto aqui mora­ram." Elizabeth não fez objeção a isto. A porta pôde ser fechada e finalmente a carruagem se afastou.
Arre! — exclamou Maria, depois de alguns minutos de silêncio. — Parece que chegamos ontem. E no entanto quanta coisa aconteceu!
Muita coisa de fato — concordou Elizabeth, com um suspiro.
Jantamos nove vezes em Rosings e tomamos chá duas vezes lá. Quanta coisa terei para contar!
Elizabeth acrescentou consigo: e quanta coisa eu terei que esconder! A viagem decorreu sem muita conversação e sem nenhum incidente. Quatro horas depois de terem saído de Hunsford, chegaram à casa de Mr. Gardiner, onde deviam pas­sar alguns dias.
Jane tinha boa aparência e, entre os vários divertimentos que a tia tivera a bondade de organizar para as meninas, Eliza­beth teve pouca oportunidade de observar as disposições da irmã. Mas Jane devia regressar com ela, e em Longbourn teria oportunidade de observá-la detidamente. Não foi sem esforço, entretanto, que esperou até Longbourn para contar à irmã as propostas de Mr. Darcy. Sabia que estava em seu poder fazer uma revelação que assombraria Jane e viria agradar ao mesmo tempo o que lhe restava de vaidade. Era uma tentação a que nada se poderia opor senão o estado de indecisão em que se encontrava sob a quantidade exata de fatos que deveria revelar e o medo de ter que repetir certas coisas a respeito de Bingley que poderiam ferir Jane ainda mais.

Capítulo XXXIX


Foi na segunda semana de maio que as três moças parti­ram juntas de Gracechurch Street para a cidade de... , no Hert­fordshire. E, ao se aproximarem do lugar em que a carruagem de Mr. Bennet as devia encontrar, avistaram, como garantia da pontualidade do cocheiro, Kitty e Lydia numa das janelas de cima de uma hospedaria. Havia uma hora as duas meninas espe­ravam naquele lugar, fazendo visitas freqüentes a uma modista em frente, para passar o tempo, observando a sentinela de plan­tão e preparando um molho para a salada.
Depois de dar as boas-vindas às irmãs, exibiram uma mesa posta com as várias espécies de carnes frias que tinham conse­guido encontrar no guarda-comida da hospedaria.
Então, que tal, não está bem, não é uma surpresa agradável?
E nós convidamos vocês todas — acrescentou Lydia. — Mas é preciso que nos emprestem dinheiro, pois gastamos tudo naquela loja ali defronte.
Em seguida, mostrando as compras que tinha feito, disse:
Olhe, comprei este chapéu. Não acho que seja muito bonito, mas achei que era melhor comprar do que não comprar. Vou desmanchá-lo assim que chegar em casa e ver se posso fazer uma coisa melhor.
E quando as irmãs disseram que era muito feio, acrescen­tou, com perfeita indiferença:
Oh, mas havia dois ou três ainda mais feios na loja. E depois que eu comprar um bonito cetim para enfeitá-lo, vai ficar tolerável. Além disso, não tem muita importância a roupa que a gente usar este verão, pois o regimento vai sair de Mery­ton daqui a quinze dias.
Ah, vai? — exclamou Elizabeth, com a maior des­preocupação.
Eles vão acampar perto de Brighton. Eu queria tanto que papai nos levasse até lá para passar o verão... Seria um ótimo plano. Creio que não custaria nada e mamãe, principal­mente, ficaria encantada de ir. Pense só que verão miserável nós teríamos se ficássemos aqui.
"Sim", pensou Elizabeth, "isto seria realmente um projeto estupendo. Imagine estas meninas lá em Brighton, com o acam­pamento cheio de soldados. Elas que já ficaram de cabeça virada com um pobre regimento de milícia e um baile mensal em Meryton."
Agora tenho outras novidades para você — disse Lydia ao se sentar à mesa. Imagine só: é uma notícia excelente. E é sobre uma pessoa de que todos gostamos muito.
Jane e Elizabeth olharam uma para a outra. O garçom foi informado de que podia ir embora. Lydia pôs-se a rir e disse:
É engraçada esta sua formalidade e discrição. Você achou que o garçom não devia ouvir, como se ele se importasse com isto. Ele deve ter ouvido coisas muito piores do que o que eu vou dizer; mas é um sujeito tão feio, foi bom mesmo ter ido embora. Nunca vi um queixo tão comprido na minha vida. Bem, agora passemos às novidades. São acerca do nosso caro Wickham. Bom demais para o garçom, não é? Não há perigo de Wickham se casar com Mary King. Ela foi morar com um tio em Liverpool, definitivamente. Wickham está salvo.
Mary King está salva — acrescentou Elizabeth. — Salva de um casamento imprudente pelo lado pecuniário.
Ela é uma grande tola de partir, se gosta dele.
Mas espero que não haja uma paixão muito forte de ambos os lados — disse Jane.
Estou certa de que não há do lado dele. Garanto que ele nunca se importou com ela. Quem pode se interessar por uma bobinha daquelas? Além disso tem o rosto cheio de sardas.
Elizabeth pensou, com uma certa amargura, que embora fosse incapaz de se exprimir com tanta brutalidade, aqueles sentimentos não eram menos grosseiros do que os que ela mes­ma tinha abrigado anteriormente no coração e que ainda por cima pensara fossem generosos.
Depois que todas tinham comido, as mais velhas pagaram a despesa e as meninas mandaram chamar a carruagem; insta­ladas todas as malas, caixas e embrulhos, além dos objetos que Kitty e Lydia tinham comprado, todas tomaram os respectivos assentos.
Como vamos apertadas! — gritou Lydia. — Estou contente de ter comprado o meu chapéu. Só pelo prazer de ter ainda mais uma caixa. Bem, agora vamos ficar à vontade, con­versar e rir até chegar em casa. Em primeiro lugar, contem tudo o que aconteceu a vocês desde que saíram de casa. Conhe­ceram rapazes agradáveis? Arranjaram algum namorado? Eu tinha esperanças de que uma de vocês arranjasse um marido. Jane daqui a pouco vai ficar solteirona. Ela tem quase vinte e três anos! Eu ficaria envergonhadíssima se não me casasse antes disto! Minha tia Philips quer que você arranje um marido, você nem imagina! Ela disse que Lizzy devia ter aceito Mr. Collins. Mas acho que isto não teria graça nenhuma. Bem que eu gosta­ria de me casar antes de vocês. Eu serviria de pau de cabeleira para vocês em todos os bailes. Nós nos divertimos tanto, no outro dia, em casa do Coronel Forster... Kitty e eu fomos passar o dia lá. Entre parênteses, Mrs. Forster e eu somos amicíssimas. Então ela convidou as duas Harrington, mas Harriet estava doente, e portanto Pen foi obrigada a vir sozinha. Sabem o que nós fizemos? Vestimos o Chamberlayne com roupas de mulher. Foi engraçadíssimo. Ninguém sabia, só o coronel, Mrs. Forster, eu e também minha tia, pois fomos obrigadas a pedir emprestado um vestido dela. E você não imagina como ele ficou bem! Quando Denny, Wickham, Prett e dois ou três mais chegaram, nenhum deles o reconheceu. Eu morria de tanto rir. Mr. Forster também. Rimos tanto que eles ficaram des­confiados e descobriram então do que é que se tratava.
Com histórias deste gênero e diversas anedotas, Lydia pro­curou, auxiliada pelas sugestões de Kitty, distrair as companhei­ras durante todo o caminho até Longbourn. Elizabeth ouviu o menos que pôde. Mas a sua atenção era despertada pelas fre­qüentes alusões ao nome de Wickham.
A recepção em casa foi das mais afetuosas. Mrs. Bennet fi­cou satisfeita de ver Jane bonita como sempre. E mais de uma vez durante o jantar, Mr. Bennet disse espontaneamente para Elizabeth:
— Estou contente com que você tenha voltado, Lizzy.
O grupo que se sentou para jantar era grande, pois quase todos os Lucas tinham vindo para rever Maria e ouvir as novi­dades. Vários foram os assuntos que os ocuparam. Lady Lucas atirava perguntas a Maria, que estava do outro lado da mesa, acerca da prosperidade e das aves domésticas da filha mais velha. Mrs. Bennet estava duplamente ocupada. De um lado indagava quais eram as novidades da moda e de outro repetia essas informações para as filhas mais moças dos Lucas; e Lydia, numa voz mais alta do que a de qualquer outra pessoa, enumerava os vários acontecimentos da manhã para todos os que os dese­jassem ouvir.
Oh, Mary — disse ela —, eu queria que você tivesse vindo conosco, pois nos divertimos imensamente. Durante o caminho Kitty e eu fechamos todas as cortinas do carro e fingi­mos que não ia ninguém lá dentro. Teríamos continuado assim até chegar, mas Kitty ficou enjoada. E quando chegamos à hospedaria, acho que nos comportamos muito bem, pois regala­mos as outras três com o melhor almoço frio do mundo, e se você tivesse ido também teríamos convidado você. E depois, na volta, também foi muito divertido. Eu pensei que nunca iríamos caber naquele carro. Quase morri de tanto rir. Falamos e rimos tão alto que qualquer pessoa nos ouviria a dez milhas de distância.
Mary replicou, gravemente:
Longe de mim depreciar tais prazeres, minha cara irmã; são os que melhor se enquadram geralmente aos tempe­ramentos femininos. Mas confesso que não têm encantos para mim. Prefiro infinitamente um bom livro.
Lydia não ouviu nem uma só palavra desta resposta. Não dava atenção a ninguém durante mais de meio minuto. E nunca ouvia o que Mary dizia.
De tarde Lydia insistiu com o resto das meninas que fos­sem todas a Meryton saber das novidades; mas Elizabeth se opôs firmemente a esse plano. Não se deveria dizer que as senhoritas Bennet não podiam ficar um dia em casa sem ir correndo atrás dos oficiais. Havia também outro motivo para esta oposição. Ser-lhe-ia extremamente penoso encontrar-se com Wickham, e estava resolvida a evitá-lo o mais que pudesse. A próxima partida do regimento era um imenso consolo para ela. Daí a quinze dias partiriam os oficiais e ela esperava ficar livre deles para sempre.
Poucas horas depois de chegar em casa, Elizabeth desco­briu que o plano de Brighton a que Lydia aludira na hospedaria estava freqüentemente em discussão entre os seus pais. Viu imediatamente que o pai não tinha a menor intenção de ceder. Mas as suas respostas eram ao mesmo tempo tão vagas e equí­vocas que a mãe, embora muitas vezes desanimada, ainda não tinha desesperado de triunfar afinal.

Capítulo XL


Elizabeth não conseguiu refrear por mais tempo a impa­ciência em que estava para contar a Jane o que tinha acontecido. E afinal, resolvendo omitir todos os detalhes que dissessem respeito à irmã, e prevenindo-a de que ia ficar surpresa, contou-lhe na manhã seguinte a maior parte da cena que se tinha pas­sado entre Mr. Darcy e ela.
A surpresa de Miss Bennet a princípio foi grande, mas aos poucos começou a achar natural o que tinha acontecido, pois julgava que todos deviam compartilhar a admiração que sentia por Elizabeth. Era realmente lamentável que Mr. Darcy tivesse manifestado os seus sentimentos de uma forma que os recomen­dava tão pouco. Mas o que mais a entristeceu foi o desgosto que a recusa de sua irmã devia lhe ter causado.
A certeza que ele tinha do êxito era falsa — disse Jane. — E sobretudo não devia ter transparecido. Mas não se esqueça de que isto torna ainda mais cruel o seu desapon­tamento.
Realmente — disse Elizabeth —, eu sinto muito por ele. Mas Mr. Darcy tem outros sentimentos que provavelmente expulsarão dentro de muito pouco tempo a admiração que tem por mim. Mas você não me censura por tê-lo recusado?
Censurar você? Oh, não...
Mas me censura por ter tomado tão a peito o partido de Wickham?
Não, não sei o que haveria de errado no que você disse.
Mas você saberá, depois que lhe contar o que aconteceu no dia seguinte.
Elizabeth falou então na carta, repetindo tudo o que ela continha, na parte que se referia a George Wickham. Foi um grande choque para a pobre Jane, que de bom grado passaria pelo mundo sem saber que existia nele todo tanta maldade como a que se concentrava aqui num só indivíduo. Nem mesmo a justificação de Darcy, grata aos seus sentimentos, era suficien­te para a consolar de uma tal descoberta. Com a maior serie­dade, Jane procurou provar que havia uma possibilidade de erro, tentando inocentar um deles sem acusar o outro.
Isto não pode ser, cara Jane; você nunca conseguirá fazer com que ambos tenham razão. Faça a sua escolha, mas é preciso que se contente com um deles. As qualidades dos dois reunidas chegam apenas para fazer um homem bom. Ultima­mente as situações se têm invertido várias vezes. Quanto a mim estou inclinada a acreditar em Mr. Darcy, mas você pode esco­lher o que quiser.
Passou-se algum tempo, entretanto, antes que um sorriso aparecesse no rosto de Jane.
Não me lembro jamais de ter sofrido um desaponta­mento tão grande — disse ela. — Wickham é tão ruim assim! É quase inacreditável! E coitado de Mr. Darcy... Pense, Lizzy, em tudo o que ele deve ter sofrido. Que decepção! E ele ficou sabendo o que você pensa dele... E ter de contar uma coisa daquelas da própria irmã! É realmente muito triste. Creio que você deve sentir a mesma coisa.
Oh, não, minha compaixão e meu arrependimento se dissipam quando vejo você toda cheia dos mesmos sentimentos! Tenho tanta certeza de que você lhe fará toda a justiça, que cada vez me sinto mais despreocupada e indiferente. A sua ge­nerosidade dispensa a minha. E se você continuar a lamentá-lo muito mais tempo, meu coração ficará tão leve como uma pena.
Pobre Wickham! O rosto dele exprime tanta bon­dade... Suas maneiras são tão francas e amáveis...
—- Houve certamente um grande erro na educação desses dois rapazes. Um tem todas as qualidades e outro todas as boas aparências.
Eu nunca achei que as aparências de Mr. Darcy eram tão más assim.
E no entanto, ao tomar partido tão violentamente con­tra ele, sem nenhuma razão, eu me vangloriava da minha agudeza. Uma antipatia tão forte como a que eu tinha por ele é um grande incentivo para a inteligência e para a ironia. A gente pode falar mal de um homem continuamente, sem nada expri­mir de justo, mas não se pode rir a vida inteira de alguém, sem de vez em quando se esbarrar numa coisa espirituosa.
Lizzy, estou certa de que quando leu a carta pela pri­meira vez não encarava as coisas do mesmo modo.
Realmente, eu não podia. Estava muito perturbada. Posso dizer até infeliz. E depois eu não tinha ninguém com quem falar, não tinha Jane para me consolar, assegurando-me que eu não tinha sido tão fraca e leviana quanto eu sabia que realmente fora. Oh, como eu desejava que você estivesse junto de mim.
Foi pena que você tenha usado de expressões tão fortes falando de Wickham para Mr. Darcy. Pois agora vê-se clara­mente que foram imerecidas.
Certamente. Mas a infelicidade de falar amarguradamente é uma conseqüência natural da parcialidade de que me tinha tornado culpada. Há um ponto sobre o qual eu quero o seu conselho. Quero saber se devo ou não revelar aos nossos conhecidos qual é o caráter real de Wickham.
Miss Bennet fez uma pequena pausa e depois respondeu:
Acho que não há motivo para uma tão terrível denún­cia. Que pensa você?
Acho que isto não deve ser feito. Mr. Darcy não me autorizou a tornar públicas as suas declarações; pelo contrário, recomendou-me que guardasse exclusivamente para mim todos os detalhes relativos à sua irmã. E se eu não mencionar este fato central, quem me acreditará? A má vontade geral contra Mr. Darcy é tão violenta que metade dos habitantes de Mery­ton morreria se eu tentasse colocá-lo sob uma luz mais favorá­vel. Não tenho forças para isto. Wickham dentro em pouco partirá. E, portanto, pouco importa que ninguém aqui saiba o que ele é realmente. Algum dia será descoberto, e então pode­remos rir da estupidez dos outros por não terem adivinhado há mais tempo. No momento não direi nada.
Tem toda a razão. Se denunciarmos publicamente os seus erros, podemos arruinar a sua vida para sempre. Talvez ele esteja arrependido do que fez e ansioso por refazer a repu­tação. Não devemos fazê-lo desesperar.
Esta conversação ajudou Elizabeth a pôr em ordem os seus tumultuosos pensamentos. Ela se tinha libertado de dois segre­dos que lhe haviam pesado durante quinze dias. Tinha a certeza de que Jane tornaria a ouvi-la com a mesma boa vontade, quan­do desejasse falar novamente. Mas ainda havia outra coisa que se escondia na sombra e que a prudência de Elizabeth impedia de desvendar. Não ousava relatar a Jane a outra metade da carta de Mr. Darcy, nem lhe revelar que Bingley correspondera sinceramente ao seu afeto. Aí estava um segredo que ninguém podia compartilhar. E ela compreendia que só o restabelecimen­to da mais perfeita compreensão entre eles poderia desobrigá-la desse silêncio. E refletiu que, se este acontecimento tão pouco provável tivesse lugar, tudo o que poderia fazer era repetir o que o próprio Bingley diria de uma forma muito mais agradável. "Só ficarei livre desse segredo", pensou Elizabeth, "quando ele tiver perdido todo o valor."
Agora, instalada em casa, tinha toda a oportunidade de observar o estado real dos sentimentos de sua irmã. Jane não estava feliz. Conservava muito viva a afeição por Bingley. Como nunca anteriormente ela se imaginara apaixonada, esses senti­mentos tinham todo o calor e toda a frescura do primeiro amor, e, devido ao seu caráter e idade, maior firmeza do que essas primeiras paixões em geral possuem. Cultuava com tanto fervor a lembrança de Bingley e de tal modo o preferia a qualquer outro homem, que precisava lançar mão de todo o seu bom senso e de toda a sua consideração pelos sentimentos alheios para dominar aquelas tristezas que poderiam se tornar preju­diciais para a sua própria saúde e para a tranqüilidade dos seus amigos.
Bem — disse Mrs. Bennet um dia para Elizabeth —, que é que você pensa agora desse insucesso de Jane? Quanto a mim, estou decidida a não falar mais nisto com ninguém. Foi o que disse à minha irmã Philips no outro dia. Mas não consigo saber se Jane se avistou com ele em Londres. Bem, ele é um rapaz muito pouco merecedor. E não creio que haja a menor probabilidade para Jane de reavê-lo. Nada se fala a respeito da sua volta a Netherfield no verão. Eu já indaguei de todas as pessoas que poderiam saber.
Eu creio mesmo que ele nunca mais virá a Netherfield.
Ah, bem, ele fará o que quiser. Ninguém deseja que ele volte. Mas eu continuaria a dizer que ele foi muito desleal para com a minha filha. E se eu fosse ela não teria suportado isto; mas o meu consolo é que Jane morrerá de desgosto. E ele então se arrependerá do que fez.
Mas, como Elizabeth não via nenhum consolo neste prog­nóstico, nada respondeu.
Bem, Lizzy — continuou a mãe, pouco depois. — Os Collins vivem lá muito confortavelmente, não é? Bem, bem, só desejo que isto dure. E como é a mesa deles? Charlotte é uma excelente dona-de-casa. Se é tão econômica quanto a mãe, deve estar pondo dinheiro de lado. Não há extravagância nenhuma na casa dos pais dela.
Não, nenhuma.
A boa administração de uma casa depende principal­mente disto. Sim, sim, aqueles não correm o risco de gastar mais do que têm. Nunca terão atrapalhações de dinheiro. Bem, que sejam felizes. E naturalmente eles fazem muitos planos a respeito de Longbourn depois que o seu pai morrer, não? Já consideram isto naturalmente como uma propriedade sua.
Foi um assunto que nunca mencionaram na minha frente.
Mas também era só o que faltava. Mas não tenho a menor dúvida de que falam nisto constantemente entre si. Bem, se a consciência não lhes rói, tanto melhor para eles. Eu teria vergonha de herdar uma propriedade que não fosse minha, le­galmente.

Capítulo XLI


Tinha passado a primeira semana depois do regresso das meninas. A segunda começou. Chegara o dia da partida do re­gimento de Meryton. E todas as moças da redondeza definha­vam de desgosto. A tristeza era geral. Apenas as duas mais ve­lhas da família Bennet conseguiam ainda comer, beber, dormir e passar o tempo como de costume. Freqüentemente recebiam admoestações de Kitty e Lydia por causa daquela insensibili­dade. O desgosto daquelas duas era extremo. Elas não podiam compreender tamanha dureza de coração.
Que é que nós vamos fazer? — exclamavam elas fre­qüentemente, impelidas pela sua amargura. — Como é que você pode se mostrar tão sorridente, Lizzy?
Mrs. Bennet, que era uma mãe afetuosa, compartilhava a tristeza das filhas. Recordava-se do que tinha sofrido há vinte e cinco anos passados.
Eu me lembro — disse ela; — chorei durante dois dias seguidos quando o regimento do Coronel Miller foi embo­ra. Pensei que ia morrer de desgosto.
Estou certa de que isto acontecerá comigo — disse Lydia.
Se a gente pudesse ir a Brighton! — observou Mrs. Bennet.
Oh, sim, se a gente pudesse ir a Brighton... Mas pa­pai é tão desagradável!
Alguns banhos de mar me restabeleceriam para sempre.
E minha tia Philips disse que isto haveria de me fazer muito bem — acrescentou Kitty.
Tais eram as lamentações que se ouviam perpetuamente em Longbourn. Elizabeth procurava se distrair com aquilo. Mas a sua vergonha lhe roubava todo o prazer. Tornava a sentir o bem fundado das objeções de Mr. Darcy. E nunca antes estivera tão disposta a perdoar-lhe a interferência, no caso do amigo.
Mas as sombrias perspectivas de Lydia foram logo dissi­padas, pois Mrs. Forster, a mulher do coronel do regimento, a convidou para ir a Brighton em sua companhia. Essa inestimá­vel amiga era muito moça e estava casada há muito pouco tem­po. Era alegre e animada como Lydia. E essa semelhança as tor­nara muito íntimas depois de três meses de relações.
O êxtase de Lydia, a sua adoração por Mrs. Forster, a alegria de Mrs. Bennet e a mortificação de Kitty, são impossí­veis de descrever. Inteiramente indiferente aos sentimentos da irmã, Lydia corria pela casa, numa felicidade inextinguível, exi­gindo que todos lhe dessem parabéns, rindo e falando com mais violência do que nunca; enquanto isto, a infeliz Kitty perma­necia na sala, lamentando o seu destino em termos despropo­sitados, numa voz ressentida:
Não compreendo por que Mrs. Forster não me convi­dou também — disse ela. — Embora eu não seja a sua amiga particular, tenho tanto direito a ser convidada quanto Lydia. Mais até, pois sou dois anos mais velha.
Elizabeth procurou em vão lhe incutir sentimentos mais sensatos e Jane maior resignação. Quanto a Elizabeth, esse con­vite estava longe de lhe produzir os mesmos sentimentos que em sua mãe e em Lydia, pois ela o considerava como uma es­pécie de sentença de morte para todas as possibilidades de sua irmã vir um dia a ter bom senso. E não pôde deixar de acon­selhar secretamente ao pai que não deixasse Lydia ir, apesar da repugnância que lhe inspirava tal empreendimento. Descreveu-lhe todas as impropriedades da conduta de Lydia e as poucas vantagens que lhe poderiam advir da intimidade com uma mu­lher como Mrs. Forster, e a probabilidade de que Lydia se tor­nasse ainda mais imprudente em companhia de tal pessoa e num lugar onde as tentações seriam maiores do que em casa. Ele a ouviu atentamente, e respondeu:
Lydia nunca ficará tranqüila enquanto não lhe aconte­cer alguma. E nunca encontrará melhor ocasião de fazer uma tolice do que a atual, sem dar despesas e trabalho à família.
Se o senhor soubesse — disse Elizabeth — dos gran­des inconvenientes que esta conduta leviana de Lydia, em pú­blico, pode nos trazer, ou melhor, as que já nos trouxe, encara­ria esta questão de maneira diferente.
Já trouxe? — repetiu Mr. Bennet. — Será que ela já afugentou um dos seus namorados? Minha pobre Lizzy... Mas não fique desanimada. Estes rapazes difíceis que não su­portam o contato de pequenos ridículos não são dignos de saudade. Vamos, de-me a lista dos pobres coitados que foram pos­tos em fuga pelas loucuras de Lydia.
Realmente, o senhor está enganado. Não tenho des­gostos destes a lamentar. Não é de dissabores particulares mas de inconvenientes que eu me queixo. A nossa reputação deve sofrer necessariamente com a leviandade de Lydia, a impru­dência e o desdém de toda restrição que marcam o seu caráter. Desculpe, mas preciso falar claramente. Se o senhor não se der ao trabalho de reprimir essas loucuras e não lhe ensinar que as suas atuais ocupações não são a finalidade da sua vida, em bre­ve não haverá mais possibilidade de corrigi-la. Seu caráter es­tará fixado e com dezesseis anos ela será uma terrível namoradeira, cobrindo a si mesma e a sua família de ridículo. E uma namoradeira no pior sentido, sem outros atrativos a não ser a mocidade e a boa aparência. A sua ignorância e futilidade a tor­narão incapaz de vencer o desprezo geral que o seu apetite imoderado de admiração há de provocar. E Kitty também corre o mesmo perigo. Ela acompanhará de olhos fechados os passos de Lydia. Vaidosa, ignorante, ociosa, e absolutamente descontro­lada! Oh, meu caro pai, acha possível que elas não sejam cen­suradas e desprezadas em qualquer lugar em que se tornem co­nhecidas? E que as suas irmãs não sejam freqüentemente en­volvidas nesse mesmo desprezo?
Mr. Bennet viu que todo o coração da filha estava compro­metido no assunto. E, tomando-lhe afetuosamente a mão, res­pondeu:
Não se preocupe, meu bem. Onde quer que você e Ja­ne sejam conhecidas, serão respeitadas e apreciadas. E vocês não serão menos admiradas porque têm duas, ou melhor, três irmãs bastante tolas. Não teremos um instante de sossego em Longbourn se Lydia não for a Brighton. Portanto, deixe-a ir. O Coronel Forster é um homem sensato e tomará precauções para que nada de mal lhe aconteça. E felizmente ela é pobre demais para ser objeto de grandes cobiças. Em Brighton ela terá menos importância, mesmo como namoradeira vulgar, do que aqui. Os oficiais encontrarão moças mais dignas de aten­ção. Esperemos portanto que a sua estada lá lhe mostre a sua insignificância. E de qualquer forma ela não pode piorar muito de conduta, sem nos autorizar a trancá-la em casa para o resto da vida.
Elizabeth foi obrigada a se contentar com esta resposta. Mas a sua opinião continuou inalterada, e ela deixou o pai de­sapontada e triste. Não estava na sua natureza, no entanto, remoer os desgostos, tornando-os assim ainda maiores. Bastava-lhe o consolo de ter feito o seu dever. E inquietar-se com males inevitáveis, ou aumentá-los pela ansiedade, eram coisas que não combinavam com o seu feitio.
Se Lydia e a mãe tivessem sabido o assunto da conversa que Elizabeth tivera com Mr. Bennet, toda a sua volubilidade somada não teria sido suficiente para exprimir a indignação que as possuiria. Na imaginação de Lydia, uma visita a Brighton compreendia todas as possibilidades de felicidade terrena. Ela via, com o olhar criador da ficção, as ruas daquela alegre cida­de balneária, repletas de oficiais. Imaginava-se o centro de aten­ção de dezenas e centenas deles. Via todos os esplendores do campo militar, as barracas estendendo-se em belas filas regulares, povoadas de jovens alegres, resplandecentes nas suas túni­cas vermelhas; para completar a cena via-se a si mesma sentada sob uma dessas barracas, namorando pelo menos seis oficiais ao mesmo tempo.
Se ela tivesse sabido que a irmã procurava arrancá-la de tais possibilidades e de tais realidades, qual não teria sido a sua indignação? Ela só poderia ter sido compreendida pela mãe, cujos sentimentos seriam aproximadamente os mesmos. A ida de Lydia para Brighton era a única coisa que a consolava da cer­teza melancólica de que seu marido não tencionava também ir.
Mas elas ignoravam tudo o que se tinha passado. E seus êxtases continuaram com pequenos intervalos, até o dia da par­tida de Lydia.
Elizabeth veria então Mr. Wickham pela última vez. Ten­do-o encontrado freqüentemente em sociedade desde a sua volta, a sua agitação já se tinha acalmado. As emoções da sua antiga preferência, estas se tinham desvanecido de todo. Ela conseguira mesmo distinguir uma certa afetação e monotonia nas próprias gentilezas que a princípio a tinham deliciado. Além disso, na conduta atual de Wickham para com ela, Elizabeth encontrava uma nova fonte de desprazer, pois a inclinação que ele manifestou para renovar aquelas atenções, que tinham ca­racterizado os primeiros tempos das suas relações, agora ser­viam apenas para irritá-la ainda mais. Perdeu todo o respeito por ele, vendo-se assim escolhida como objeto de tão fúteis galanteios. E, enquanto os repelia com firmeza, não podia deixar de sentir a censura implícita na convicção de Wickham de que quaisquer que tivessem sido as causas que tinham feito cessar as suas atenções, e por maior que tivesse sido o período de tempo em que o fizera, a vaidade de Elizabeth seria gratificada e a sua preferência reconquistada no momento em que quisesse renovar as suas gentilezas.
No último dia em que o regimento passou em Meryton. Wickham veio jantar em Longbourn com outros oficiais. Eliza­beth estava tão pouco disposta a se despedir dele de bom hu­mor que, quando Wickham lhe fez algumas perguntas sobre a maneira como passara o tempo em Hunsford, ela respondeu que o Coronel Fitzwilliam e Mr. Darcy tinham passado três sema­nas em Rosings e perguntou-lhe se ele conhecia o primeiro.
Ele pareceu surpreendido, aborrecido, alarmado. Mas, de­pois de se concentrar um instante, respondeu sorrindo que outrora estivera freqüentemente com ele. E depois de observar que ele era um cavalheiro muito fino, perguntou se Elizabeth tinha gostado dele. A resposta de Elizabeth foi calorosamente afirmativa. Com ar de indiferença, pouco depois ele acrescentou:
Quanto tempo disse que eles tinham passado em Ro­sings?
Quase três semanas.
Esteve com ele freqüentemente?
Sim, quase todos os dias!
As maneiras dele são bem diferentes das do primo.
Sim, muito diferentes. Mas acho que Mr. Darcy ganha muito quando o conhecemos melhor.
Realmente — exclamou Wickham, com um olhar que não escapou a Elizabeth. — E posso perguntar...
Porém, mudando de idéia, acrescentou, num tom mais alegre:
Será na sua maneira de falar que ele melhora? Ter-se-ia dignado a acrescentar um pouco de cortesia ao seu estilo habi­tual? Pois não ouso esperar que ele tenha realmente melhorado nas coisas essenciais — continuou Wickham, num tom mais grave.
— Oh, não — disse Elizabeth —, quanto às coisas essen­ciais, creio que ele continua exatamente o que era.
Enquanto ela falava, a expressão de Wickham indicava que ele não sabia se se devia alegrar com as suas palavras ou desconfiar do sentido das mesmas. Havia qualquer coisa no rosto de Elizabeth que o obrigava a seguir com atenção ansiosa as suas palavras. Ela acrescentou:
Quando eu disse que ele melhorava, à medida que se conhecia melhor o seu temperamento, não queria dizer que seu espírito, nem tampouco as suas maneiras, estavam em vias de aperfeiçoamento, mas que conhecendo-o melhor o seu caráter se tornava mais compreensível.
A inquietude de Wickham transparecia agora no rubor que lhe subira ao rosto e no olhar desassossegado. Durante alguns minutos ficou em silêncio e finalmente, vencendo o embaraço, tornou a se virar para Elizabeth e disse, num tom muito grave:
A senhora, que conhece tão bem os meus sentimentos para com Mr. Darcy, há de compreender quanto me alegro sin­ceramente de que ele assuma, pelo menos, a aparência de jus­tiça. Nisso o orgulho dele pode ser útil, se não para ele próprio, pelo menos para os outros, pois o impedirá de cometer injusti­ças tão flagrantes como as que tive de sofrer. Temo apenas que essas precauções, às quais, imagino, a senhora acaba de aludir, sejam apenas adotadas durante as visitas em casa da tia, cuja opinião e julgamento ele respeita muito. O medo que a tia lhe causa sempre atuou sobre ele, quando estão juntos; e uma grande parte disto deve ser atribuída ao desejo que tem de favorecer o seu projetado casamento com Miss de Bourgh, pois sei com certeza que ele leva isto muito a sério.
Elizabeth não pôde deixar de sorrir, mas respondeu ape­nas com um ligeiro aceno de cabeça. Compreendeu que ele de­sejava arrastá-la para o assunto das suas mágoas e não estava disposta a tolerá-lo. Durante o resto da noite, Wickham pro­curou se mostrar alegre e despreocupado como sempre, porém cessou as suas atenções para com Elizabeth. Separaram-se com mútua cortesia e possivelmente um desejo igual de nunca mais se encontrarem.
Quando chegou a hora de as visitas se retirarem, Lydia regressou com Mrs. Forster para Meryton, de onde deveriam partir no dia seguinte de manhã cedo. A separação entre ela e o resto da família foi mais ruidosa do que patética. Kitty foi a única que chorou, mas as lágrimas eram de humilhação e inveja. Mrs. Bennet foi eloqüente nos desejos de felicidade para a filha, e nas injunções para que ela não perdesse nenhuma oportunidade de se divertir, conselho que tudo levava a crer seria seguido à risca. E, no meio dos clamores com que Lydia exprimia a sua felicidade, os adeuses menos ruidosos das irmãs quase não foram ouvidos.

Capítulo XLII


Se as opiniões de Elizabeth se originassem do exemplo da­do pela sua própria família, a sua idéia de felicidade conjugai e de conforto doméstico não poderia ser das mais lisonjeiras. Seu pai, cativado pela mocidade, beleza e aparência de bom humor que a juventude em geral confere às mulheres, tinha se casado com uma pessoa de débil compreensão e de idéias estreitas; muito pouco tempo depois do casamento, esses defeitos haviam extinto toda a afeição sincera que tinha por ela. O respeito, a estima, a confiança se tinham desvanecido para sempre. E to­dos os seus anseios de felicidade doméstica foram destruídos. Mas Mr. Bennet não era desses homens que procuram se conso­lar das desilusões causadas pelas próprias imprevidências entre­gando-se a esses prazeres em que os infelizes procuram uma compensação para as suas loucuras e os seus vícios. Gostava do campo e dos livros; disso tirava as suas principais distrações; e, quanto à sua mulher, ele pouco mais lhe devia do que os divertimentos que o espetáculo da sua ignorância e a sua falta de senso lhe tinham proporcionado. Essa não é a espécie de felicidade que os homens em geral desejam encontrar no casa­mento. Mas, na falta de outros dons, o verdadeiro filósofo se contentará com os poucos que lhe são dados.
Elizabeth, no entanto, nunca fora cega aos defeitos do pai como marido. Aquilo sempre lhe doera, mas, admirando-lhe as qualidades e grata pela maneira afetuosa com que ele a tratava, ela se esforçava por esquecer o que não podia deixar de perceber e bania dos seus pensamentos essas contínuas irregu­laridades de conduta conjugai que, expondo a mãe ao desprezo das próprias filhas, era portanto altamente repreensível. Mas nunca sentira tão fortemente como agora as desvantagens que devem sofrer os filhos de um casal tão pouco unido, nem com­preendera antes tão claramente os males provenientes de uma defeituosa aplicação de talentos; talentos que, bem empregados, poderiam proteger a respeitabilidade das filhas, mesmo se não conseguissem alargar a mentalidade da esposa.
Após o alívio que lhe causara a partida de Wickham, Eli­zabeth encontrou menos prazer do que esperava na partida do regimento. As reuniões em que tomava parte eram menos va­riadas do que antes. E em casa tinha uma mãe e uma irmã cujas contínuas lamentações sobre o tédio da vida que levavam pro­jetavam uma tristeza real sobre o círculo da família. E, embora Kitty se mostrasse às vezes mais sensata, pois as causas que perturbavam o seu cérebro tinham sido removidas, em compen­sação, Lydia, cujas tendências eram mais perigosas, morando agora num lugar tão impróprio, a um tempo caserna e balneá­rio, acentuaria provavelmente os seus defeitos e a sua inconsciência. Em suma, portanto, ela descobriu, como anteriormente já muitas vezes acontecera, que os acontecimentos esperados com impaciência não produziam, ao se realizarem, toda a satis­fação que deles se esperava. Era portanto necessário marcar um outro período para o começo da sua verdadeira felicidade, ter outros pontos de apoio para os seus desejos e esperanças. E consolava-se atualmente com o prazer de antecipar futuras felicidades. A sua viagem para os lagos constituía agora o ob­jeto dos seus pensamentos mais felizes. Era o seu melhor con­solo para as horas desagradáveis que o descontentamento de Kitty e da mãe tornava inevitáveis. E para tornar o seu plano perfeito, só faltava incluir nele Jane.
"Felizmente eu tenho alguma coisa a desejar", pensou Eli­zabeth. "Se tudo no meu plano fosse perfeito, a minha decep­ção seria certa. Mas assim, levando comigo uma fonte contínua de tristeza, a saudade de minha irmã, posso razoavelmente es­perar que todas as minhas expectativas de prazer se realizem. Um plano perfeito nunca pode ser realizado."
Lydia, ao partir, prometeu que escreveria freqüente e mi­nuciosamente para a mãe e para Kitty. Mas as cartas, longa­mente esperadas, eram sempre muito curtas. As que eram diri­gidas a Mrs. Bennet continham pouco mais do que fatos como estes: tinham acabado de regressar da biblioteca, onde tais ou quais oficiais as haviam acompanhado e onde tinham visto toaletes de enlouquecer; tinham visto um vestido novo ou uma nova sombrinha que ela desejaria descrever com mais detalhes, mas não podia, devido à grande pressa que tinha, pois Mrs. Forster a estava chamando; deviam passear para os lados do acampamento. As cartas para Kitty não eram mais informativas, embora mais longas; a maior parte do sentido estava contido nas entrelinhas.
Depois das três primeiras semanas de ausência de Lydia, a saúde, o bom humor e a alegria recomeçaram a aparecer em Longbourn. Tudo tomou um aspecto mais agradável. As famí­lias que tinham ido passar o inverno em Londres começaram a regressar. Reiniciaram-se os divertimentos de verão. Mrs. Ben­net voltou à sua volubilidade habitual e, no meio de junho, Kitty havia melhorado tanto que já lhe era possível entrar em Meryton sem chorar, acontecimento tão promissor que deu a Elizabeth a esperança de que no próximo Natal ela tivesse juízo suficiente para não mencionar o nome de um oficial mais de uma vez por dia, a não ser que, por uma ordem maliciosa e cruel do Departamento de Guerra, outro regimento viesse acam­par em Meryton.
A data fixada para a sua viagem pelo norte estava se apro­ximando rapidamente. Faltavam apenas quinze dias quando che­gou uma carta de Mrs. Gardiner, que ao mesmo tempo adiava a partida e abreviava a duração do passeio. Os negócios impe­diam Mr. Gardiner de sair de Londres até quinze dias depois da data marcada. E ele era obrigado a regressar dentro de um mês. Esse período era curto demais para que fossem muito lon­ge e vissem tudo o que tinham planejado. Pelo menos impedia que visitassem tudo com o vagar e o conforto que haviam idea­do. Portanto eram obrigados a desistir de vez dos lagos. Era preciso fazer um circuito mais reduzido. De acordo com o novo plano, não iriam além do Derbyshire. Naquele condado havia muita coisa a ver e isto dava para encher as três semanas que tinham. E para Mrs. Gardiner esse plano possuía um encanto particular. Julgava a cidade onde passara alguns anos da sua vida tão digno de atenção quanto a célebre região dos lagos.
Elizabeth ficou extremamente desapontada. Tinha um grande desejo de ver os lagos e continuava a pensar que havia tempo suficiente. Mas era resignada e certamente tinha bom gênio. Em breve essa decepção tinha passado.
Muitas idéias estavam associadas a esse condado do Derby­shire. Era impossível ler a palavra sem pensar em Pemberley e no seu proprietário. "Mas certamente'', pensou ela, "eu pode­rei penetrar naquela região sem que ele me veja."
O período de expectativa fora agora duplicado. Ela teria de esperar quatro semanas até a chegada dos tios. Mas estas semanas passaram, e Mr. e Mrs. Gardiner apareceram finalmen­te em Longbourn, acompanhados dos quatro filhos. As crianças, duas meninas de seis e oito anos de idade e dois meninos me­nores, seriam entregues aos cuidados da prima Jane, que era a grande favorita. O seu bom senso, a doçura de seu gênio, pa­reciam destiná-la à missão de cuidar das crianças.
Os Gardiner ficaram apenas uma noite em Longbourn, e partiram na manhã seguinte com Elizabeth, em busca de aven­turas. Um prazer pelo menos era certo: o de ter bons compa­nheiros de viagem, com saúde, bom gênio para suportar peque­nos contratempos, bom humor para realçar todos os prazeres, afeição e inteligência capazes de sugerir novas distrações, caso lhes adviessem decepções no caminho.
Não temos a intenção de fazer a descrição do Derbyshire, nem dos vários lugares notáveis por que passaram no caminho. Oxford, Blenheim, Warwich, Kenilworth, Birmingham, etc. são suficientemente conhecidos. Uma pequena parte do Derbyshire é o que nos interessa. Eles se dirigiram para a pequena cidade de Lambton, onde Mrs. Gardiner residira. Recentemente desco­brira que ainda se encontravam lá alguns dos seus velhos conhe­cidos. E aí Elizabeth soube pela tia que Pemberley ficava situa­da a cinco milhas de Lambton. Pemberley não ficava na estrada direta que deviam tomar, mas a uma ou duas milhas dessa estra­da. Na véspera, ao conversarem sobre o itinerário, Mrs. Gardi­ner tornou a manifestar o desejo de rever a propriedade. Mr. Gardiner concordou e perguntaram a Elizabeth se ela aprovava a idéia.
Meu bem, você não gostaria de ver esse lugar de que tanto já ouviu falar? — perguntou a tia. — Um lugar onde muitos conhecidos seus já moraram? Wickham passou lá toda a mocidade, como você sabe.
Elizabeth ficou embaraçada. Não tinha nenhum interesse em ver Pemberley e foi obrigada a manifestar a pouca disposi­ção que sentia. Declarou que estava cansada de ver grandes casas. Depois de percorrer tantas, não encontrava mais nenhum prazer em belos tapetes ou cortinas de cetim.
Mrs. Gardiner zombou da sua ingenuidade.
Se Pemberley fosse apenas uma casa ricamente mobiliada — disse ela —, eu tampouco faria questão de ir. Mas o parque é lindíssimo, e os bosques são dos mais belos do país.
Elizabeth não respondeu, mas no seu espírito não podia concordar. Imediatamente lhe ocorreu a possibilidade de en­contrar Mr. Darcy enquanto visitava o lugar. Seria horrível. A simples idéia a fazia corar. Talvez fosse preferível contar tudo claramente à tia a correr tal risco. Mas contra isto havia obje­ções. E finalmente ela decidiu que lançaria mão dessa idéia co­mo um último recurso, caso as indagações particulares que fizesse lhe revelassem a presença da família em Pemberley.
Por isso, quando foi se deitar à noite, perguntou à criada se Pemberley não era um lugar muito bonito, qual era o nome do proprietário, e, com íntimo alarme, se a família não estava lá para passar o verão. Felizmente, a última pergunta foi res­pondida de modo negativo. E, cessada a causa das suas inquie­tações, ela sentia agora uma grande curiosidade em ver a casa. E quando o assunto tornou a ser ventilado no dia seguinte, e novamente lhe pediram a opinião, ela respondeu prontamente, com ar de indiferença, que não fazia nenhuma objeção ao plano.

Capítulo XLIII


No caminho, Elizabeth esperava emocionada a primeira aparição dos bosques de Pemberley. E quando afinal chegaram à casa do vigia e entraram no parque, a sua agitação cresceu ainda mais.
O parque era muito grande e tinha os mais variados as­pectos. Entraram nele pela parte mais baixa e durante algum tempo caminharam através de um belo e extenso bosque.
Apesar da conversa animada que mantinha com os tios, Elizabeth viu e admirou todas as vistas e lugares pitorescos. Durante meia milha o caminho subia suavemente e depois de algum tempo se encontraram no topo de um morro bastante alto, onde o bosque cessava.
No outro lado do parque se avistava imediatamente a casa de Pemberley, e a estrada, encurvando-se bruscamente, descia em direção a ela. Era um grande e belo edifício, situado na en­costa de uma colina, por detrás da qual se elevava uma outra série de belas colinas arborizadas. Defronte da casa, corria um riacho de tamanho regular que, represado, formava um peque­no lago. As suas margens não tinham sido adornadas pela mão do homem. Elizabeth ficou encantada. Nunca vira um lugar tão bem dotado pela natureza. Ali, essa beleza natural não fora ainda prejudicada por artifícios de gosto duvidoso. Todos mani­festaram admiração. Naquele momento Elizabeth sentiu que ser a proprietária de Pemberley significava alguma coisa.
Desceram a colina, atravessaram a ponte e se aproximaram da casa. Enquanto a examinavam de perto, voltaram a Elizabeth as apreensões quanto a um possível encontro com o dono da casa. Tinha medo de que a criada pudesse ter-se enganado. De­pois de pedirem para ver a casa, foram conduzidos ao hall. E, enquanto esperavam a caseira, Elizabeth teve tempo bastante para voltar a si, perguntando-se por que motivo se encontra­va naquele lugar. A caseira chegou afinal. Era uma senhora idosa, de aspecto respeitável, muito mais simples e amável do que esperavam. Acompanharam-na até a sala de jantar. Era uma sala grande, bem proporcionada e mobiliada com ele­gância. Elizabeth, depois de examiná-la sumariamente, foi até uma das janelas para apreciar a vista. A colina de onde tinham descido, com as suas grandes árvores, parecendo mais abrupta, era porém mais bela de longe. Tudo naquelas terras tinha sido bem aproveitado. Elizabeth contemplou a paisagem com encan­to, o rio, as árvores espalhadas pelas margens, o vale serpen­teando até onde a vista podia alcançar.
Dos outros quartos, a cena variava. Mas de todas as ja­nelas a vista era linda. Os quartos eram grandes e elegantes. E a mobília revelava a fortuna do proprietário; mas Elizabeth admirou o bom gosto dos móveis, que não eram nem vistosos demais, nem desnecessariamente complicados. Tinham menos esplendor e mais elegância do que os de Rosings.
"Eu poderia ter sido a dona deste lugar", pensou ela. "Es­tes quartos eu os conheceria intimamente. E, em vez de vê-los como uma estranha, eu poderia alegrar-me de possuí-los e re­ceber aqui, como visitantes, meu tio e minha tia." Mas voltan­do a si continuou: "Mas não, isto não poderia ser. Meu tio e minha tia estariam perdidos para mim. Jamais me permiti­riam convidá-los".
A lembrança foi oportuna. Evitava que Elizabeth se arre­pendesse do que tinha feito.
Estava ansiosa para perguntar à caseira se o seu patrão es­tava realmente ausente. Mas a coragem lhe faltava. Afinal, a pergunta foi feita pelo tio. Elizabeth desviou o rosto, assustada, enquanto Mrs. Reynolds respondia que ele estava ausente, acrescentando:
Mas nós o esperamos amanhã com um grande grupo de amigos.
Elizabeth deu graças a Deus de ter vindo naquele dia e não no seguinte.
A tia a chamou para olhar um quadro. Ela se aproximou e viu sobre a lareira um retrato de Mr. Wickham entre várias outras miniaturas. Mrs. Gardiner perguntou, sorrindo, se Eli­zabeth gostava do retrato. Mrs. Reynolds se aproximou e disse que era o retrato do filho do intendente do seu falecido patrão, que o tinha educado às suas expensas.
Ele agora entrou para o Exército — acrescentou ela. — Mas creio que não deu boa coisa.
Mrs. Gardiner olhou para a sobrinha com um sorriso que Elizabeth não pôde retribuir.
E este — disse Mrs. Reynolds, apontando para outra miniatura — é o meu patrão. O retrato é muito parecido. Foi feito ao mesmo tempo que o outro, há oito anos atrás.
Já ouvi dizer que o seu patrão é um belo rapaz — dis­se Mrs. Gardiner, olhando para o retrato. — O rosto é simpá­tico. Mas, Lizzy, você pode dizer se é parecido ou não.
O respeito de Mrs. Reynolds por Elizabeth pareceu aumen­tar depois desta alusão às suas relações com o patrão.
A senhora conhece Mr. Darcy? Elizabeth corou e respondeu:
Um pouco.
E não acha que é uma bela figura de homem?
Realmente.
Estou certa de que não conheço outro que lhe seja superior. Mas na galeria lá em cima hão de ver um outro re­trato melhor e maior do que este. Esta sala era o lugar favori­to do meu falecido patrão, e essas miniaturas estão exatamente no lugar onde estavam quando ele era vivo. Ele gostava mui­to delas.
Isto explicou a Elizabeth o fato de a miniatura de Mr. Wickham se encontrar entre as outras.
Mrs. Reynolds, então, chamou a atenção dos visitantes para um retrato de Miss Darcy pintado quando ela tinha ape­nas oito anos de idade.
E Miss Darcy também é bonita? — perguntou Mr. Gardiner.
Oh, sim, é a menina mais bonita que eu jamais vi. É tão instruída! Toca piano e canta o dia inteiro. Na sala ao lado, há um novo instrumento que acaba de chegar para ela. Um pre­sente do meu patrão. Ela virá amanhã também.
Mr. Gardiner, que tinha maneiras muito agradáveis e comunicativas, encorajava Mrs. Reynolds com perguntas e obser­vações; esta, fosse por orgulho ou afeição, tinha evidentemente muito prazer em falar do patrão e da irmã deste.
Seu patrão vem muitas vezes a Pemberley, durante o ano?
Não tanto quanto eu gostaria, mas creio que ele passa metade do ano aqui. E Miss Darcy vem sempre para os me­ses de verão.
"Exceto", pensou Elizabeth, "quando vai para Ramsgate."
Se o seu patrão se casasse, a senhora o veria mais do que agora.
Sim, senhora, mas não sei quando isto acontecerá. Não conheço ninguém que esteja à altura dele.
Mr. e Mrs. Gardiner sorriram. Elizabeth não pôde se im­pedir de dizer:
Sem dúvida, é um grande elogio que está lhe fazendo.
Não digo mais do que a verdade. E todos que o co­nhecerem dirão a mesma coisa — replicou Mrs. Reynolds.
Elizabeth achou que isto era ir demasiado longe. E ouviu com assombro a caseira acrescentar:
Nunca ouvi o meu patrão dizer uma palavra ríspida em toda a minha vida. E o conheço desde que tinha quatro anos de idade.
Este era o elogio mais extraordinário de todos, mais oposto às idéias de Elizabeth. Ela acreditava firmemente que Mr. Dar­cy era um homem de mau gênio. A sua curiosidade cresceu ex­traordinariamente. Queria outras informações. E ficou grata ao tio, porque este disse:
São poucas as pessoas de quem se pode dizer a mesma coisa. Tem muita sorte em ter um patrão destes.
Sim, senhor, sei disto muito bem. Se eu saísse por este mundo, não encontraria outro melhor. Mas já notei que as pes­soas de bom caráter em criança também o são quando adultos. E Mr. Darcy, em menino, tinha um gênio de anjo e um cora­ção de ouro.
Elizabeth ficou boquiaberta. "Será mesmo Mr. Darcy?", pensou ela.
O pai dele era um homem excelente — disse Mrs. Gardiner.
Era mesmo; e o filho será exatamente como ele. Igual­mente afável para com os pobres.
Elizabeth ouviu, espantou-se, duvidou, e ficou impaciente por ouvir mais. Mrs. Reynolds não a poderia interessar noutro ponto. Em vão ela falou sobre as personagens que os quadros representavam, as dimensões da sala e o preço dos móveis. Mr. Gardiner, que achava muito divertida aquela parcialidade pela família, a que ele atribuía os excessivos louvores de Mrs. Reynolds, tornou a introduzir o assunto. E Mrs. Reynolds dis­correu com energia sobre as qualidades do patrão, enquanto subiam todos a grande escadaria.
Ele é o melhor proprietário e o melhor patrão que ja­mais existiu — disse ela. — Não é como os rapazes loucos de hoje que só pensam em si próprios. Não existe um só dos seus rendeiros ou criados que não fale nele com admiração. Muitos dizem que é orgulhoso; mas eu nunca vi nada disto. Quanto a mim, penso que é porque ele não é tagarela como os outros rapazes.
"Sob que luz favorável ela o coloca", pensou Elizabeth.
Estas informações não combinam com o seu procedi­mento para com o nosso pobre amigo — sussurrou a tia, en­quanto caminhavam.
Talvez estejamos enganados.
Não é provável. O testemunho é dos melhores.
Depois de chegarem ao espaçoso hall em cima, foram con­duzidos a uma linda sala de jantar, decorada recentemente, com maior elegância e graça do que os apartamentos e salas de bai­xo. E foram informados de que tudo aquilo tinha sido feito para dar prazer a Miss Darcy, que tinha manifestado preferên­cia por aquela sala, da última vez que estivera em Pemberley.
Ele é certamente um bom irmão — disse Elizabeth, enquanto se dirigia para uma das janelas.
Mrs. Reynolds antecipava a surpresa de Miss Darcy, quan­do ela entrasse no aposento.
Tudo o que ele pode fazer para agradar à irmã manda executar imediatamente. E é sempre assim que age; não existe nada que não faça para lhe dar um prazer.
A galeria de retratos e os dois ou três quartos de dormir principais era tudo que lhes restava a ver. A galeria continha muitos quadros interessantes, mas Elizabeth não entendia de pintura. Já quando lhe tinham mostrado os outros, embaixo, ela desviara o rosto para examinar uns desenhos a crayon de Miss Darcy, cujos assuntos eram geralmente mais interessantes e também mais fáceis de entender.
Na galeria havia também muitos retratos de família. Estes quadros, porém, tinham pouco interesse para uma estranha. Elizabeth procurou neles apenas os traços que conhecia. Afinal, um desses retratos lhe despertou a atenção. Era de uma pes­soa cujo rosto se parecia notavelmente com o de Mr. Darcy e tinha um sorriso que ela já se lembrava de ter visto também no seu rosto, quando ele a contemplava. Ela se deteve durante vários minutos diante do retrato, olhando-o fixamente. E, antes de sair da galeria, voltou para examiná-lo; e Mrs. Reynolds in­formou-lhe de que fora pintado ainda em vida do falecido Mr. Darcy.
Havia naquele momento, no espírito de Elizabeth, um sen­timento de benevolência para com o atual proprietário de Pem­berley, como jamais tivera no período em que melhor o conhe­cera. Os elogios de que Mrs. Reynolds o tinha cumulado não eram de pouca monta. Nenhum louvor é mais valioso do que o de um criado inteligente. A felicidade de muitas pessoas de­pendia dele como irmão, como proprietário e como patrão. Ele tinha o poder de dispensar o prazer e a dor, e a faculdade de praticar em larga escala o bem e o mal. Tudo o que Mrs. Rey­nolds dissera a seu respeito tinha sido favorável. E, diante da tela em que o seu rosto fora retratado e cujos olhos pareciam fitá-la, Elizabeth pensou na admiração de Mr. Darcy por ela própria, com uma gratidão que jamais sentira. Recordou a for­ça daquela afeição e suavizou as expressões com que ele a exteriorizara.
Depois de terem visto a casa toda, tornaram a descer as escadas, e ao se despedirem da caseira foram entregues aos cui­dados do jardineiro, que os encontrou na porta do hall. En­quanto atravessavam o gramado em direção ao riacho, Elizabeth se voltou para tornar a ver a casa; sua tia também se detivera, e enquanto a primeira fazia conjeturas sobre a data em que fora construído o edifício o proprietário em pessoa surgiu de repen­te na estrada que conduzia às cocheiras, do outro lado da casa.
Estavam a cerca de vinte metros um do outro, e seu apa­recimento fora tão repentino que era impossível a Elizabeth se esconder. Seus olhos se encontraram imediatamente. E am­bos coraram de um modo intenso. Ele teve um sobressalto e por um momento a surpresa o paralisou; mas, voltando ime­diatamente a si, adiantou-se para o grupo e se dirigiu a Eliza­beth se não com absoluta calma, pelo menos com toda a ama­bilidade.
Elizabeth tinha se virado instintivamente, mas vendo-o aproximar-se deteve-se e recebeu os seus cumprimentos com um embaraço impossível de dominar. Se a sua aparência a princí­pio, ou a sua semelhança com o retrato que tinham acabado de examinar, já não tivessem demonstrado por si a Mr. e Mrs. Gardiner que avistavam agora Mr. Darcy em pessoa, a ex­pressão de surpresa do jardineiro ao ver o patrão teria sido su­ficiente para o revelar. Ficaram um pouco afastados, enquanto ele conversava com a sua sobrinha, e esta, atônita e embaraçada, mal ousava levantar os olhos, e respondia inconscientemente às perguntas de cortesia que ele lhe fazia sobre a sua família. E, extremamente surpresa com a mudança nas maneiras de Mr. Darcy, cada frase que ele pronunciava agora aumentava a sua confusão. Voltavam-lhe à mente todas as idéias a respeito da inconveniência de encontrá-lo ali e os poucos minutos em que estiveram juntos foram os mais penosos da sua vida. Ele não parecia também estar muito à vontade. Quando falava, a sua expressão não tinha a calma habitual. Perguntou várias vezes em que dia Elizabeth saíra de Longbourn e quanto tempo se demoraria no Derbyshire, de uma maneira tão apressada que se tornara evidente que os seus pensamentos estavam longe. Afinal todas as idéias pareceram faltar-lhe. E, depois de ficar parado e mudo durante alguns instantes, Mr. Darcy voltou a si de súbito e se despediu.
Os outros então se aproximaram dela e exprimiram a sua admiração pela figura do rapaz; mas Elizabeth, inteiramente absorta em seus pensamentos, não ouviu uma só palavra. Acom­panhou-os em silêncio; sentia-se esmagada de vergonha e de contrariedade. A sua vinda ali fora a idéia mais infeliz e mais irrefletida do mundo. Como aquele encontro deveria parecer es­tranho a Mr. Darcy! E sob que luz desfavorável não a colocaria aos olhos de um homem tão vaidoso! Poderia até parecer que ela se tinha atirado no seu caminho! Oh, por que tinha vindo? Ou por que tinha ele vindo na véspera do dia em que era es­perado? Se tivessem saído dez minutos mais cedo de Pember­ley, ele não a teria reconhecido de longe, pois era evidente que chegava naquele momento e que tinha acabado de saltar do cavalo ou da carruagem. Ela enrubesceu várias vezes ao recor­dar a perversidade daquele acaso. E que poderia significar aque­la alteração que vira nos seus modos? Era espantoso que ele lhe tivesse dirigido-a palavra. Mas falar com tanta amabilidade e perguntar pela sua família! Nunca, na sua vida, Elizabeth lhe vira maneiras tão cordiais e tão pouco cerimoniosas. Nunca ele lhe falara com tanta doçura quanto durante aquele encontro inesperado. Que diferença daquela ocasião em que se dirigira a ela em Rosings Park, a fim de lhe entregar a carta. Ela não sabia o que pensar, nem como explicar aquilo.
Tinham agora penetrado num belo caminho que acompa­nhava as margens do riacho e cada passo que davam aproxima­vam-se de uma das mais belas partes do bosque. Mas só algum tempo depois é que Elizabeth começou a notar o que a cercava, e, embora respondesse mecanicamente aos repetidos apelos dos tios para que contemplasse os aspectos que lhe apontavam, não distinguia perfeitamente nenhum detalhe da paisagem. Seus pensamentos se voltavam para a casa de Pemberley e procura­vam adivinhar o lugar em que Mr. Darcy agora se encontrava. Ansiava por saber o que lhe passava pela mente naquele mo­mento, de que maneira pensava nela, e se apesar de tudo ainda lhe era cara. Talvez ele tivesse se mostrado tão amável porque se sentisse indiferente. No entanto, na sua voz, não havia trans­parecido aquela tranqüilidade. Elizabeth não sabia se ele senti­ra aborrecimento ou prazer ao vê-la. Mas, certamente, não per­manecera indiferente. Afinal, as observações dos companheiros sobre a sua distração fizeram-na voltar a si e com isto lhe ocor­reu a idéia de que era necessário se mostrar mais natural.
Penetraram no bosque e, dizendo adeus ao riacho por al­gum tempo, subiram para uma região mais elevada; e aí, através de clareiras ocasionais, descobriram encantadoras vistas do vale, das colinas do outro lado, recobertas de extensos bosques e ocasionalmente do riacho. Mr. Gardiner exprimiu o desejo de fazer a volta do parque, caso fosse possível percorrê-lo a pé. Mas o jardineiro informou-os com um sorriso triunfante de que o parque tinha mais de dez milhas de circunferência. Teriam portanto de se contentar com o circuito habitual. Tornaram a descer a colina por entre os bosques que lhes revestiam a en­costa, até voltar ao riacho num dos pontos em que as margens eram mais estreitas. Atravessaram-no por uma ponte rústica; era uma região mais selvagem do que as que tinham visitado até agora. E o vale, estreitando-se, tornava-se uma várzea diminu­ta, ocupada pelo curso d'água e por um caminho estreito, cer­cado de moitas de arbustos selvagens. Elizabeth desejava ex­plorar os meandros do riacho, mas, depois de atravessarem a ponte e perceberem a distância em que se encontravam da ca­sa, Mrs. Gardiner, que não gostava muito de caminhar, decla­rou que não podia ir mais adiante e que desejava voltar para a carruagem o mais depressa possível. Elizabeth foi portanto obrigada a se submeter, e o grupo voltou em direção à casa, do outro lado do rio, tomando o caminho mais curto. Mas a caminhada foi lenta, pois Mr. Gardiner, que gostava muito de pescar, mas raramente tinha oportunidade de fazê-lo, se deti­nha a todo instante para observar as trutas, e fazer perguntas ao homem que os acompanhava. Enquanto caminhavam assim lentamente, tiveram novamente a surpresa de avistar Mr. Dar­cy, que se aproximava deles a pequena distância. O espanto de Elizabeth foi igual ao que sentira durante o primeiro encontro. O caminho, que era menos protegido do que do outro lado, permitiu que o visse antes de encontrá-lo. Elizabeth, embora espantada, estava pelo menos mais preparada para a entrevista. Resolveu que falaria com calma, se Mr. Darcy tencionasse real­mente abordá-los. Durante alguns instantes, pensou que ele ia dobrar por outro caminho, e a idéia durou enquanto uma volta da estrada o ocultava das suas vistas. Mas, feita a volta, ele surgiu diretamente diante deles. Com um rápido olhar, Eli­zabeth viu que Mr. Darcy nada tinha perdido da recente ama­bilidade; e, para imitar a sua polidez, logo que se encontraram ela começou a louvar as belezas do lugar. Mas apenas as pala­vras "lindo" e "encantador" lhe tinham saído dos lábios, uma infeliz recordação a assaltou e ela imaginou que aqueles elogios a Pemberley podiam ser mal interpretados. Empalideceu e não disse mais nada.
Mrs. Gardiner estava parada um pouco atrás. E quando Elizabeth cessou de falar, Mr. Darcy lhe perguntou se ela que­ria lhe fazer a honra de apresentá-lo aos seus amigos. Elizabeth não esperava esta demonstração de cortesia e não pôde deixar de sorrir, ao vê-lo agora procurar o conhecimento daquelas mes­mas pessoas contra as quais o seu orgulho se tinha revoltado quando lhe propusera casamento. "Como vai ficar espantado", pensou ela, "quando souber quem são eles. Imagina natural­mente que são pessoas de importância..."
A apresentação, no entanto, foi feita imediatamente. E, ao mencionar o parentesco que os unia, Elizabeth não pôde deixar de olhar de soslaio para Mr. Darcy, esperando vê-lo fu­gir o mais depressa que pudesse da companhia de gente tão mo­desta. Era evidente que o parentesco o surpreendia. No entan­to nada deixou perceber e, longe de se voltar para partir, re­gressou com eles e entrou em conversação com Mr. Gardiner. Elizabeth não pôde deixar de se sentir lisonjeada. Mas não ex­perimentava nenhum sentimento de triunfo; em todo caso era consolador ter a certeza de que ele sabia agora que ela não pre­cisava se envergonhar dos parentes. Ouvia com a maior atenção tudo o que se passava entre eles e ficava radiante cada vez que uma expressão ou uma frase do seu tio revelava a sua inteli­gência, o seu bom gosto e as suas belas maneiras.
Dentro em pouco conversavam sobre a pesca. Ela ouviu Mr. Darcy convidar o seu tio, com a maior cortesia, para pescar no parque todas as vezes que quisesse, oferecendo-lhe ao mes­mo tempo os necessários acessórios, e indicando-lhe as partes do riacho onde a pesca em geral era mais proveitosa. Mrs. Gar­diner, que caminhava de braço com Elizabeth, lançou para a companheira um expressivo olhar de surpresa. Elizabeth nada disse, mas ficou extremamente satisfeita. Aquele ato de galanteria lhe era provavelmente dirigido; o seu espanto, entretanto, era extremo, e ela repetia continuamente: "Por que é que ele está tão alterado? Qual será o motivo disto? Não pode ser por minha causa; pois minhas admoestações em Hunsford não po­deriam efetuar nele uma tão grande alteração; é impossível que ele ainda me ame".
Depois de caminhar algum tempo desse modo, as duas senhoras na frente, os dois cavalheiros atrás, ao chegarem à mar­gem do rio onde iam examinar uma curiosa planta aquática houve uma pequena alteração: Mrs. Gardiner, fatigada pelo exercício daquela manhã, achou o braço de Elizabeth inadequa­do para nele se apoiar e preferiu o do seu marido. Mr. Darcy tomou o seu lugar ao lado de Elizabeth e continuaram a cami­nhar. Depois de um curto silêncio, Elizabeth foi quem primei­ro falou. Desejava que Mr. Darcy soubesse que antes de vir ti­nha feito indagações e lhe tinham afirmado que ele estaria ausente, e por isso ela se decidira a vir visitar o lugar. Come­çou, portanto, observando que a sua chegada tinha sido ines­perada
A sua caseira — acrescentou ela — nos informou que o senhor não chegaria antes de amanhã. E, aliás, antes de sair­mos de Bakewell, disseram-nos que o senhor não era esperado imediatamente.
Mr. Darcy reconheceu a verdade do que ela dizia e res­pondeu que, por causa dos negócios que tinha a tratar com o seu intendente, adiantara-se algumas horas aos companheiros de viagem.
Eles chegarão amanhã cedo — continuou ele. — Aliás, virão algumas pessoas que a conhecem: Mr. Bingley e suas irmãs.
Elizabeth respondeu com um leve aceno da cabeça. Seus pensamentos a levaram imediatamente para a ocasião em que o nome de Mr. Bingley fora pronunciado entre eles pela última vez. E, se lhe era dado julgar pela expressão do rosto de Mr. Darcy, seus pensamentos tinham tomado um rumo semelhante.
Existe também outra pessoa no grupo — continuou ele depois de uma pausa — que deseja particularmente conhe­cê-la. Se me permite, eu lhe apresentarei a minha irmã, duran­te a sua estada em Lambton. Ou será que lhe peço demais?
A surpresa que causava a Elizabeth um tal pedido era realmente grande. Na sua perturbação ela concordou, mas sem saber de que maneira o fazia. Compreendeu imediatamente que esse desejo de Miss Darcy só poderia ter sido inspirado pelo irmão. E não era preciso fazer muitas indagações para desco­brir que isto era bastante satisfatório. Era agradável saber que o ressentimento de Mr. Darcy não o levara a pensar mal a seu respeito. Continuaram a caminhar em silêncio, ambos mergu­lhados nas suas reflexões. Elizabeth não se sentia muito à von­tade. Isto era impossível. Mas se sentia lisonjeada e contente. O seu desejo de lhe apresentar a irmã era uma homenagem de grande delicadeza. Em pouco eles haviam se distanciado bastan­te dos outros. E quando chegaram à carruagem, Mr. e Mrs. Gardiner estavam uns duzentos metros atrás. Mr. Darcy en­tão convidou-a a entrar. Mas Elizabeth declarou que não esta­va cansada. Permaneceram de pé no gramado. Numa ocasião como aquela, muitas coisas podiam ser ditas e o silêncio era embaraçoso. Elizabeth queria conversar, mas parecia haver um obstáculo em quase todos os assuntos. Afinal se lembrou de que estivera viajando e eles falaram de Matlock e de Dove Dale com grande perseverança. No entanto, o tempo e a tia cami­nhavam lentamente. E a sua paciência e as suas idéias estavam completamente esgotadas antes do tête-à-tête terminar. Quando Mr. e Mrs. Gardiner se aproximaram, foram convidados a en­trar, mas isto foi recusado e todos se separaram com a maior polidez. Mr. Darcy ajudou as senhoras a entrarem na carruagem e, quando esta se afastou, Elizabeth o viu caminhando lenta­mente em direção à casa.
As observações dos tios tiveram então início. Ambos decla­raram que o tinham achado infinitamente superior ao que espe­ravam.
Ele é perfeitamente cortês e modesto — disse Mr. Gardiner.
Existe certamente um pouco de dureza nas suas ma­neiras — replicou Mrs. Gardiner —, mas ela se limita à sua atitude e não lhe vai mal. Agora posso dizer, como Mrs. Rey­nolds, que, embora muitas pessoas o chamem de orgulhoso, não vi nada disto.
O que me surpreendeu mais foram as suas maneiras para conosco. Eram mais do que polidas, eram realmente aten­ciosas. Suas relações com Elizabeth são muito recentes.
Naturalmente, Lizzy — disse Mrs. Gardiner —, ele não é tão bonito quanto Wickham, embora os traços sejam per­feitamente regulares. Mas não entendo por que você nos disse que ele era tão desagradável.
Elizabeth se desculpou da melhor forma possível; disse que o achara mais simpático da última vez que estivera com ele no Kent, e que nunca o vira tão amável quanto naquela manhã.
Mas talvez ele seja um pouco excêntrico nas amabilidades — replicou Mr. Gardiner. — Os homens importantes em geral o são. E portanto não tomarei ao pé da letra o convite que ele me fez para pescar, pois é possível que mude de idéia ama­nhã e me expulse do seu parque.
Elizabeth sentiu que eles se tinham enganado redonda­mente sobre o caráter de Mr. Darcy, mas não disse nada.
— Pelo que vimos dele — continuou Mrs. Gardiner —, eu jamais poderia pensar que fosse capaz de agir tão cruelmen­te com qualquer pessoa como fez com o pobre Wickham. A sua expressão não revela mal caráter, pelo contrário, ele tem um modo de mover os lábios, quando fala, que muito me agra­da. E há uma dignidade no seu rosto que dificilmente daria a alguém uma idéia desfavorável do seu coração. Aliás, a boa mulher que nos mostrou a casa lhe atribuiu o mais brilhante dos caracteres. Às vezes eu não podia me impedir de rir alto. Creio que ele deve ser um patrão condescendente e, aos olhos de um criado, isto resume todas as virtudes.
Elizabeth sentiu então que deveria dizer alguma coisa pa­ra justificar o procedimento de Darcy em relação a Wickham. E portanto deu a entender aos tios, da forma mais reservada que podia, que, pelo que ouvira dos seus parentes no Kent, os seus atos eram suscetíveis de uma interpretação inteiramente diferente. E que o seu caráter nem de longe era tão defeituoso quanto o tinham suposto no Hertfordshire; por outro lado o de Wickham estava longe de ser tão perfeito. E para confirmar o que lhe dizia relatou os detalhes de todas as transações pecuniá­rias em que se tinha envolvido, sem dar o nome da pessoa que a informara, porém acrescentando que era digna de todo o cré­dito. Mrs. Gardiner ficou surpreendida e preocupada. Mas, co­mo se aproximavam agora do lugar onde residira na mocidade, ela se entregou toda ao encanto das recordações, e estava tão preocupada em mostrar ao marido as maravilhas das redonde­zas, que se esqueceu do resto. Apesar de todas as fadigas da manhã, logo depois do jantar tornaram a sair à procura dos an­tigos conhecidos de Mrs. Gardiner, e esta passou a noite entre­gue ao prazer de reatar antigos laços de amizade.
As ocorrências daquele dia eram demasiado interessantes para que Elizabeth pudesse dar muita atenção a esses novos amigos. E não pôde fazer outra coisa senão pensar e refletir com assombro nas amabilidades de Mr. Darcy e sobretudo no seu desejo de lhe apresentar a irmã.

Capítulo XLIV


Elizabeth tinha combinado com Mr. Darcy que ele traria a irmã para visitá-la logo no dia seguinte ao da sua chegada em Pemberley. E decidiu portanto não se afastar da hospedaria durante toda aquela manhã. Mas a sua conclusão foi falsa, pois logo na manhã seguinte à sua chegada em Lambton surgiram esses visitantes. Elizabeth e seus tios tinham estado passeando pela cidade com alguns dos seus novos amigos e acabavam de regressar à hospedaria, a fim de se vestirem para jantar com a mesma família, quando o ruído de uma carruagem os atraiu para a janela. Elizabeth imediatamente reconheceu a libré, com­preendeu do que se tratava e relatou com grande surpresa para os parentes a honra que estava esperando. O tio e a tia ficaram extraordinariamente surpresos, e o embaraço de Elizabeth ao lhes comunicar aquilo, somado à circunstância em si, e à lem­brança de muitas outras do dia precedente, lhes deu uma nova visão do que se passava. Nada o havia sugerido anteriormente, mas sentiam que agora não havia outra maneira de explicar as atenções de Mr. Darcy, sem supor um interesse dele pela so­brinha. Enquanto essas novas idéias lhes atravessavam o pen­samento, a perturbação de Elizabeth crescia a cada momento. Ela mesma ficou espantada com o seu nervosismo. Além de outras inquietações, temia que Mr. Darcy, com a sua parciali­dade, houvesse exagerado as suas qualidades. E, ansiosa como nunca por agradar, desconfiava naturalmente de que todos os seus recursos seriam escassos.
Elizabeth recuou da janela com medo de ser percebida. E enquanto caminhava de um lado para outro, procurando se acal­mar, percebeu os olhares curiosos dos tios, o que tornou tudo ainda pior.
Mr. Darcy e a irmã apareceram. E aquela temível apre­sentação teve lugar afinal. Com espanto Elizabeth percebeu que a sua nova conhecida estava tanto ou mais embaraçada do que ela. Desde que estava em Lambton, Elizabeth ouvira dizer vá­rias vezes que Miss Darcy era extremamente orgulhosa. Mas agora a observação de poucos minutos lhe bastou para consta­tar que ela era apenas extremamente tímida. Foi muito difícil obter dela outras palavras a não ser simples monossílabos. Miss Darcy era alta e mais corpulenta do que Elizabeth, e, embora tivesse pouco mais de dezesseis anos, suas formas eram bem desenvolvidas e sua aparência graciosa. Seus traços eram me­nos regulares do que os do irmão, mas havia bom senso e cor­dialidade na sua expressão. E as suas maneiras eram perfeita­mente modestas e polidas. Elizabeth, que esperava encontrar nela uma observadora tão aguda e impassível quanto Mr. Darcy, sentiu-se extremamente aliviada ao discernir tamanha diferença de feitio.
Poucos momentos depois de chegar, Darcy avisou que Bingley também viria lhe apresentar os seus cumprimentos, e Elizabeth mal tivera tempo de exprimir a sua satisfação quando ouviu na escada os passos rápidos de Bingley, e no mesmo ins­tante ele apareceu na sala. Há muito já se tinha acalmado todo o ressentimento de Elizabeth contra ele. Porém, mesmo que conservasse ainda um resto daqueles sentimentos, teria sido impossível resistir à singela cordialidade com que ele se expri­miu ao tornar a vê-la. Bingley perguntou pela sua família de maneira cordial, embora vaga, falando com a mesma tranqüi­lidade bem-humorada de sempre.
Mr. e Mrs. Gardiner o olharam também com muito inte­resse. Há muito que desejavam conhecê-lo. O grupo todo, aliás, despertava neles a mais viva curiosidade. As suspeitas que a atitude da sobrinha acabara de provocar fizeram que observas­sem cada um dos presentes com curiosidade, embora reservadamente. E chegaram imediatamente à conclusão de que uma da­quelas pessoas presentes, pelo menos, sabia o que era o amor. Quanto aos sentimentos de Elizabeth, permaneceram um pouco em dúvida. Mas era evidente que o rapaz tinha por ela uma fervorosa admiração.
Elizabeth, por sua vez, tinha muito o que fazer. Queria se certificar dos sentimentos de cada um dos visitantes. Queria dominar os seus e tornar-se agradável para todos. E neste últi­mo ponto, acerca do qual eram maiores as suas apreensões, po­dia estar mais certa do seu êxito, pois aqueles a quem desejava agradar estavam dispostos a seu favor. Em Bingley encontrou a melhor das disposições, Georgiana ansiava por satisfazê-la e Darcy estava sequioso das suas atenções.
Ao ver Bingley, Elizabeth se lembrou naturalmente da irmã. E ela teria dado muita coisa para saber se os pensamentos dele tinham tomado o mesmo rumo que os seus. Às vezes lhe parecia que ele falava menos do que antigamente. E outras ve­zes parecia a Elizabeth que ao olhar para ela ele procurava en­contrar no seu rosto a semelhança de outra pessoa. Mas, em­bora esta impressão pudesse ser imaginária, Elizabeth não poderia se enganar quanto ao comportamento de Miss Darcy, em que certas pessoas tinham esperado encontrar uma rival para Jane. Nem de um lado nem de outro, um só olhar deixou transparecer qualquer interesse especial. Nada ocorreu entre eles que pudesse justificar as esperanças de Miss Bingley. Quan­to a este ponto, ela poderia ficar inteiramente tranqüila. E, an­tes de os visitantes irem embora, ocorreram dois ou três peque­nos fatos que, segundo a interpretação ansiosa de Elizabeth, denotavam uma recordação de Jane, não desacompanhada de ternura da parte de Bingley e de um desejo de dizer outras coi­sas que pudessem conduzir à menção do nome dela, sem que ele o ousasse. No momento em que os outros estavam conver­sando, Bingley observou para Elizabeth, num tom que deno­tava uma certa mágoa, que há longo tempo não tinha o prazer de vê-la. E, antes que ela pudesse responder, acrescentou:
— Faz mais de oito meses. Não nos vemos desde o dia 26 de novembro, quando estávamos todos dançando juntos em Netherfield.
Elizabeth ficou satisfeita ao ver que a memória de Bin­gley era exata. E depois, quando os outros estavam distraídos, ele encontrou ocasião de perguntar se todas as irmãs de Eliza­beth estavam em Longbourn. A pergunta nada tinha de excep­cional, como tampouco a observação precedente. Era o seu olhar e as suas maneiras que lhe emprestavam toda a signifi­cação.
Elizabeth não teve muitas ocasiões de voltar os olhos para Mr. Darcy, mas todas as vezes que o olhava de relance surpre­endia uma expressão de contentamento, e tudo o que ele dizia era num tom tão diferente da sua antiga altivez e desdém que Elizabeth ficou convencida de que a melhoria das suas manei­ras, que presenciara na véspera, por mais temporária que se mostrasse, durava pelo menos mais do que um só dia. Quando o via assim ocupado em procurar a companhia e a boa opinião de pessoas com as quais há poucos dias passados ele teria jul­gado desonroso manter relações, quando o ouvia tratar com a maior amabilidade não só a ela, Elizabeth, mas aos próprios parentes que tinha tão abertamente desdenhado durante aquela cena na reitoria de Hunsford, a mudança parecia tão grande e a impressionava de tal maneira, que só com o maior esforço ela conseguia esconder a surpresa. Nunca o vira tão desejoso de agradar, tão livre de orgulhosas e rígidas reservas como ago­ra, nem mesmo na companhia dos queridos amigos de Nether­field, ou de parentes importantes em Rosings. E agora, precisa­mente, nada poderia resultar dos seus esforços, e o simples co­nhecimento daquelas pessoas para as quais dirigia agora as suas atenções provocaria a censura e o sarcasmo das senhoras de Netherfield e de Rosings.
Os visitantes demoraram cerca de meia hora. E, quando se levantaram para partir, Mr. Darcy se dirigiu à irmã, pedindo que apoiasse o convite que fazia a Mr. e Mrs. Gardiner e a Miss Bennet para que fossem jantar em Pemberley antes de partirem. Miss Darcy prontamente acedeu, embora com uma timidez que revelava o pouco hábito que tinha de fazer convi­tes. Mrs. Gardiner olhou para a sobrinha, desejosa de saber se Elizabeth, a quem o convite principalmente se dirigia, estava disposta a aceitá-lo. Mas a sobrinha desviara a cabeça. Presu­mindo portanto que esta atitude estudada exprimia mais um momentâneo embaraço do que qualquer desagrado da proposta, e vendo que o marido, que apreciava a sociedade, estava dis­posto a aceitar, ela consentiu, e o jantar foi marcado para daí a dois dias.
Bingley disse então que o seu prazer em tornar a ver Eli­zabeth seria imenso, pois tinha ainda muito o que lhe dizer e muitas perguntas a lhe fazer sobre os amigos do Hertfordshire. Elizabeth, interpretando aquilo tudo como um desejo de ouvir falar em Jane, ficou satisfeita. Graças àquela e a outras coisas, depois que os visitantes partiram pôs-se a pensar naquela últi­ma meia hora com alguma satisfação, embora tivesse sido pequeno o seu prazer durante todo o decurso da visita. Desejosa de ficar a sós e temerosa das perguntas e alusões dos tios, per­maneceu em companhia destes apenas o tempo necessário para ouvir as suas opiniões favoráveis sobre Bingley. Em seguida os deixou apressadamente, sob o pretexto de se vestir.
Elizabeth não tinha razão de temer a curiosidade de Mr. e de Mrs. Gardiner. Eles não desejavam forçar-lhe as confiden­cias. Compreendiam que Elizabeth conhecia Mr. Darcy muito mais intimamente do que tinham suposto. Era evidente que ele estava muito apaixonado por ela. Viam naquilo um motivo de interesse, porém nada que justificasse indagações.
Quanto a Mr. Darcy, ansiavam por imaginar as melhores coisas a seu respeito. Até onde se estendiam as suas relações, não encontravam nele nenhum defeito. Não podiam deixar de se sentir tocados pela sua polidez. Se tivessem imaginado o ca­ráter de Darcy pelas suas próprias impressões e pelas informa­ções da criada, a sociedade do Hertfordshire, onde ele tinha residido, não o teria reconhecido. Havia agora, entretanto, in­teresse em acreditar nas palavras de Mrs. Reynolds. E em pouco chegaram à conclusão de que a opinião de uma criada que o co­nhecera desde os quatro anos de idade, e cujas maneiras eram as de uma pessoa respeitável, não poderia ser rejeitada sumaria­mente. Os seus amigos de Lambton, por outro lado, não sabiam de nenhum fato que pudesse diminuir o valor daquele testemu­nho. De nada o acusavam senão de orgulho. E orgulho ele tinha certamente. E, mesmo se não o tivesse, esse defeito lhe seria imputado pelos habitantes de uma pequena cidade provinciana, onde a família não possuía relações. Todos reconheciam no en­tanto que era um homem generoso, e fazia bem aos pobres.
Quanto a Wickham, os visitantes logo descobriram que não era muito estimado no lugar, pois, embora nada de preciso se soubesse sobre as suas relações com o filho do seu protetor, era sabido que ao sair do Derbyshire deixara muitas dívidas e que Mr. Darcy mais tarde as tinha saldado.
Elizabeth pensou mais em Pemberley naquela noite do que na precedente. E, embora as horas lhe parecessem difíceis de passar, não foram suficientes para que chegasse a uma conclu­são acerca dos seus sentimentos. E ficou duas horas acordada, tentando ler no próprio coração. Certamente não o odiava. Não, o ódio há muito se dissipara e há muito também que se en­vergonhava de ter antipatizado com ele. O respeito que as suas valiosas qualidades lhe inspiravam, embora a princípio admi­tido com relutância, já há longo tempo cessara de ser repugnan­te para os seus sentimentos. Agora se transformava num sen­timento mais cordial, graças aos testemunhos tão altamente a seu favor, e à impressão favorável que Darcy lhe produzira na véspera. Mas, acima de tudo, acima do respeito e da estima, encontrava em si mesma um motivo de boa vontade que seria impossível desprezar: era a gratidão. Gratidão não somente por­que ele a amara, mas porque ainda a amava bastante para es­quecer toda a acrimônia e petulância com que ela o rejeitara e todas as acusações injustas com que acompanhara essa rejeição. Estivera persuadida de que Darcy a evitaria como a maior ini­miga. E, no entanto, durante aquele encontro acidental mostra­ra-se ansioso por restabelecer as relações, sem qualquer exibi­ção indelicada de sentimentos ou qualquer excentricidade de ma­neiras, no seu modo de tratá-la a sós. Procurava também a boa opinião dos amigos de Elizabeth e insistira para apresentá-la à irmã. Tal mudança num homem tão orgulhoso produzia não so­mente espanto, mas gratidão. Pois só podia ser atribuída ao amor, e um amor ardente. E a impressão que sobre ela esse amor produzia não era de modo algum desagradável, embora não pudesse ser exatamente definível. Ela o respeitava e esti­mava; era-lhe grata, sentia um interesse real pelo seu bem-estar. E queria apenas saber até que ponto ela desejava que aquele bem-estar dependesse dela, e, para a felicidade de ambos, até que ponto deveria empregar o poder que imaginava ainda possuir de fazer com que ele renovasse as atenções.
Ficara decidido naquela noite, entre a tia e a sobrinha, que uma cortesia tão decisiva como a que manifestara Miss Darcy, vindo visitá-los no mesmo dia da sua chegada em Pemberley, deveria ser retribuída com um esforço de polidez da sua parte. Acharam, portanto, que seria altamente conveniente fazer uma visita a Pemberley na manhã seguinte. Elizabeth ficou conten­te. No entanto, quando perguntou a si mesma o motivo desse contentamento, não encontrou resposta.
Mr. Gardiner saiu logo depois da primeira refeição. O plano da pescaria fora renovado no dia anterior e um encontro marcado com alguns dos cavalheiros em Pemberley, ao meio-dia.

Capítulo XLV


Convencida como estava agora de que a antipatia de Miss Bingley era devida ao ciúme, Elizabeth não podia deixar de sentir que a sua presença em Pemberley seria muito desagra­dável para aquela moça. E estava curiosa para saber em que grau de amabilidade da parte de Miss Bingley as suas relações seriam agora renovadas.
Ao alcançarem a casa, foram conduzidas, através do hall, para o salão, que, dando para o lado norte, era muito agradá­vel no verão. Das suas janelas, abrindo-se para o pátio, descor­tinava-se uma vista encantadora das altas colinas recobertas de árvores e dos belos carvalhos e castanheiros, espalhados sobre o gramado próximo.
Nesse aposento foram recebidas por Miss Darcy e pela senhora com quem ela morava em Londres; Mrs. Hurst e Miss Bingley também estavam presentes. Georgiana as recebeu com toda a amabilidade, embora na sua atitude transparecesse aque­le embaraço que provinha da timidez e do medo de errar e que poderia facilmente ser tomado por orgulho e reserva pelas pes­soas que se sentissem inferiores. Mrs. Gardiner e a sobrinha, no entanto, lhe faziam justiça e tinham pena dela.
Mrs. Hurst e Miss Bingley se limitaram a cumprimentá-la de longe com a cabeça. E, depois que se sentaram, seguiu-se uma pausa embaraçosa durante alguns segundos. A pausa foi quebrada por Mrs. Annesley, uma senhora muito gentil e agra­dável. A tentativa que fez para introduzir um assunto qualquer de conversação provava que era mais bem-educada do que as duas outras. Estabeleceu-se uma conversação entre essa senhora e Mrs. Gardiner, com o apoio ocasional de Elizabeth. Miss Dar­cy parecia desejar apenas um certo encorajamento para entrar na palestra. E às vezes arriscava uma frase curta, quando pare­cia não haver muito perigo de ser ouvida.
Elizabeth percebeu desde logo que estava sendo atenta­mente observada por Miss Bingley e que não podia dizer uma só palavra, especialmente para Miss Darcy, sem que a outra não se pusesse a escutar. Esta observação não teria impedido Eliza­beth de procurar estabelecer uma conversação com Miss Darcy, se não estivesse sentada a uma distância tão inconveniente des­ta. Esperava a cada momento a entrada dos cavalheiros. Dese­java e ao mesmo tempo temia que o dono da casa estivesse en­tre eles. E não sabia qual dos sentimentos era o mais forte, se o seu desejo ou o seu temor. Depois de permanecer desta manei­ra durante um quarto de hora, sem ouvir a voz de Miss Bingley, Elizabeth teve a atenção despertada por uma fria pergunta que aquela lhe dirigira sobre a sua família. Respondeu com igual indiferença e concisão e a outra nada mais disse.
O acontecimento seguinte foi a entrada de criados que tra­ziam travessas de carne fria, bolos e uma grande variedade das melhores frutas da estação. Mas isto não teve lugar senão depois de muitos olhares significativos e sorrisos de Mrs. Annesley, diri­gidos a Miss Darcy para lhe lembrar as suas obrigações como dona-de-casa. Havia agora ocupação suficiente para o grupo in­teiro, pois, embora nem todos pudessem conversar, todos po­diam comer. E as pessoas presentes se reuniram em volta da mesa, diante das belas pirâmides de uvas, ameixas e pêssegos.
Assim ocupada, Elizabeth teve uma boa oportunidade para refletir se realmente temia o aparecimento de Mr. Darcy ou se o desejava. E então, embora no momento anterior o seu desejo tivesse predominado, pôs-se agora a recear que ele viesse.
Mr. Darcy estivera durante algum tempo com Mr. Gardi­ner, que pescava em companhia de outros dois cavalheiros da casa. Mas, ao saber que Elizabeth e a tia tinham resolvido fazer uma visita a Georgiana naquela manhã, deixou-os para voltar à casa. Assim que apareceu, Elizabeth resolveu ajuizadamente se mostrar perfeitamente desembaraçada. Era uma resolução mais fácil de tomar do que cumprir, pois percebeu que as sus­peitas de todo o grupo se dirigiam contra eles. Todos os olhos se voltaram para observar a atitude de Mr. Darcy, desde o mo­mento em que entrou na sala. Mas em nenhuma fisionomia se espelhava uma curiosidade tão forte quanto na de Miss Bingley, apesar dos sorrisos derramados cada vez que se dirigia a Darcy, pois o ciúme ainda não a tornara desesperada, e de forma algu­ma desistira de cumular Mr. Darcy de atenções. Depois da che­gada do irmão, Miss Darcy começou a fazer esforços ainda maio­res para conversar. E Elizabeth percebeu que ele estava desejoso de que a irmã a conhecesse melhor, encorajando todas as tenta­tivas de conversação entre elas. Miss Bingley também observou aquilo e, na imprudência da sua cólera, aproveitou a primeira oportunidade para dizer, com um sarcasmo mal encoberto:
— É verdade, Miss Eliza, que o regimento da milícia foi removido de Meryton? Deve ter sido uma grande perda para a sua família.
Em presença de Darcy ela não ousava mencionar o nome de Wickham. Mas Elizabeth compreendeu imediatamente que era nisto que ela estava pensando. E por um instante as suas tristes recordações lhe produziram uma confusão. Mas, esfor­çando-se para repelir vigorosamente aquele malévolo ataque, respondeu à pergunta num tom bastante indiferente. Enquanto falava, lançando um olhar involuntário para Darcy, percebeu que este, com o rosto alterado, olhava fixamente para ela e que Miss Darcy, cheia de confusão, tinha os olhos baixos. Se Miss Bingley tivesse previsto que ia causar tamanho desconforto à amiga, não teria feito aquela alusão. Mas a sua intenção fora apenas perturbar Elizabeth, aludindo a um homem por quem acreditava que Elizabeth nutria afeição, fazendo com que ela mostrasse uma suscetibilidade que a poderia prejudicar aos olhos de Darcy, lembrando-lhe talvez as loucuras e os absurdos de cer­tas pessoas da família de Elizabeth. Miss Bingley nada sabia a respeito do planejado rapto de Miss Darcy. Nenhuma pessoa o sabia, além de Elizabeth. E Darcy desejava particularmente es­conder este fato da família de Bingley, devido à esperança que Elizabeth há muito lhe atribuía de que um dia aquela família se tornasse a da sua irmã. Ele certamente tinha formado aquele plano. E, embora não admitisse que tal intenção tivesse pesado na sua tentativa de separar o amigo de Miss Bennet, era prová­vel que aumentasse o seu interesse pelo bem-estar do amigo.
No entanto, a atitude digna de Elizabeth em breve acal­mou aquela emoção. E como Miss Bingley, contrariada e desa­pontada, não ousou fazer nenhuma alusão mais direta a Wick­ham, Georgiana também voltou a si aos poucos, mas não se atreveu a dizer uma só palavra mais. Darcy, cujos olhos Eliza­beth temia encontrar, já tinha esquecido quase completamente o interesse que esta tivera por Wickham e aquele ataque, cujo propósito fora afastar de Elizabeth os seus pensamentos, pare­ceu ter um efeito exatamente contrário.
Pouco depois terminou a visita. Enquanto Mr. Darcy acompanhava as senhoras à carruagem, Miss Bingley dava ex­pansão aos seus sentimentos, criticando a pessoa de Elizabeth, suas maneiras e seu vestido. Mas Georgiana não a encorajava. A recomendação do irmão lhe era suficiente. Aos seus olhos, o julgamento dele era infalível. E Darcy tinha falado em Elizabeth em termos tão elogiosos que Georgiana se dispusera a encon­trar nela todos os encantos e todas as qualidades imagináveis. Quando Darcy voltou ao salão, Miss Bingley não pôde se im­pedir de repetir uma parte das coisas que dissera à irmã dele.
Achei Eliza Bennet muito maldisposta esta manhã — exclamou ela. — Nunca vi uma pessoa mudar tanto em tão pou­co tempo. A sua pele está tão escura e tão áspera! Louise e eu estávamos dizendo que quase não a reconhecemos.
Por muito que estas palavras desagradassem a Mr. Darcy, ele se limitou a responder friamente que não percebera nela nenhuma alteração, a não ser que estava um pouco queimada, fato que nada tinha de milagroso, quando uma pessoa viajava no verão.
Aliás — continuou Miss Bingley —, devo confessar que nunca encontrei nenhuma beleza nela. O rosto é fino de­mais. A pele não tem brilho. E os traços não são nada bonitos. Ao nariz falta caráter, não há força nas suas linhas, os dentes são passáveis, mas nada têm de extraordinário. Quanto aos olhos, que ouvi dizer algumas vezes que são bonitos, não vejo neles nada de excepcional. O modo de olhar é duro e falso. E nas suas maneiras há uma vaidade sem elegância que acho intolerável.
Miss Bingley estava persuadida de que Darcy admirava Elizabeth; aquela não era portanto a melhor maneira de se re­comendar aos olhos dele. Mas o ciúme a fazia perder a cabeça. Todo êxito que obteve foi de vê-lo afinal um pouco irritado. No entanto ele permaneceu resolutamente calado. Decidida a fazê-lo falar, ela prosseguiu:
Lembro-me, quando a vi pela primeira vez no Hert­fordshire, como nos surpreendemos de que ela tivesse a fama de ser bonita. Lembro-me especialmente de ouvi-lo dizer, certa noite, depois de um jantar a que foram convidados em Nether­field: "Se ela é bonita, então a mãe dela é inteligente". Mas depois parece que mudou um pouco de opinião, pois já o ouvi dizer, uma vez, que a achava bastante bonita.
Sim — replicou Darcy, incapaz de se conter por mais tempo —, mas isto foi quando a vi pela primeira vez, pois há muito tempo já que a considero uma das mais belas mulheres que conheço.
E se afastou. Miss Bingley ficou com a satisfação de o ter forçado a dizer uma coisa que não magoava a ninguém, a não ser a ela própria.
Mrs. Gardiner e Elizabeth, ao regressarem, conversaram a respeito de tudo o que tinha acontecido durante a visita, exce­to sobre o que as interessava particularmente. Discutiram a ati­tude e a palavra de todos, menos da pessoa que lhes havia mais fortemente atraído a atenção. Falaram em sua irmã, seus ami­gos, sua casa, suas frutas, em tudo menos nele próprio. No en­tanto Elizabeth ansiava por saber o que Mrs. Gardiner pensa­va dele. E Mrs. Gardiner teria ficado muito satisfeita se Eli­zabeth tivesse introduzido o assunto.

Capítulo XLVI


Elizabeth ficara muito desapontada, ao chegar em Lamb­ton, por não encontrar uma carta de Jane. E este desaponta­mento se renovara cada manhã desde que aí se encontrava. Mas no terceiro dia, a sua expectativa foi recompensada, pois rece­beu duas cartas de Jane ao mesmo tempo, numa das quais es­tava escrito que fora enviada para outro lugar por engano. Eli­zabeth não se surpreendeu, pois Jane tinha escrito o endereço de maneira quase ilegível. Estavam se preparando para passear quando as cartas chegaram. O tio e a tia, querendo que ela ficasse à vontade para ler, partiram sozinhos. A carta extravia­da devia ser lida primeiro. Fora escrita cinco dias antes. O co­meço continha um relato de todas as pequenas reuniões e di­vertimentos da família com as últimas novidades da região. Mas a segunda metade, que estava datada do dia subseqüente e fora evidentemente escrita em grande agitação, trazia notícias mais importantes. Dizia assim:

"Cara Lizzy, desde que comecei esta carta, aconteceu um fato inesperado e muito sério. Tenho medo de assustá-la. Pode ficar certa de que todos estão bem. O que tenho a contar diz respeito a nossa pobre Lydia. Chegou um mensageiro ontem à noite, quando já estávamos todos deitados. Era do Coronel Forster e dizia que Lydia tinha partido para a Escócia com um dos seus oficiais. Para falar a verdade, foi com Wickham! Ima­gine a nossa surpresa. Para Kitty, entretanto, não parece uma coisa tão inesperada. Estou triste. Acho que é um casamento muito imprudente para ambos. Mas quero esperar o melhor e fazer o possível para acreditar que o caráter dele foi mal com­preendido. Considero-o leviano e indiscreto. Mas este ato não me parece revelar um mau coração. Sua escolha por Lydia é de­sinteressada; pois ele não deve ignorar que papai nada pode dar à filha. Nossa pobre mãe está muito desgostosa, meu pai suporta as coisas melhor. Que sorte não termos contado a Lydia nada do que sabíamos contra ele. Precisamos também esquecer estas coisas. Partiram sábado mais ou menos à meia-noite, ao que parece, mas a sua. ausência não foi notada senão ontem de ma­nhã às oito. O mensageiro foi mandado imediatamente. Minha cara Lizzy, eles devem ter passado a dez milhas de distância daqui. O Coronel Forster diz que tem motivos para esperar brevemente o regresso de Wickham. Lydia deixou algumas li­nhas para Mrs. Forster, informando-a acerca da sua resolução. É preciso concluir, pois não posso me afastar muito tempo da minha pobre mãe. Espero que você compreenda esta carta, pois eu nem sei bem o que escrevi".

Sem tomar tempo para refletir, sem saber quais eram exa­tamente os seus sentimentos, Elizabeth, ao acabar esta carta, abriu imediatamente a outra, com a maior impaciência, e leu o que se segue (a carta fora escrita um dia depois da conclusão da primeira):

"Ao receber esta, minha cara irmã, você já deve ter rece­bido a minha primeira carta. Faço votos para que a segunda seja mais inteligível, pois, embora não esteja premida pelo tempo, minha cabeça está tão confusa que não me responsabi­lizo pela coerência das minhas palavras. Minha cara Lizzy, nem sei o que vou escrever; tenho más notícias para você e não posso adiar esta comunicação. Por imprudente que seja o casa­mento de Mr. Wickham com a nossa pobre Lydia, estamos agora ansiosos para obter a confirmação de que ele tenha sido realmen­te realizado, pois existem bons motivos para acreditar que eles não foram para a Escócia. O Coronel Forster chegou aqui on­tem, tendo saído de Brighton no dia anterior, poucas horas de­pois de ter enviado o expresso. Embora o bilhete de Lydia para Mrs. Forster desse a entender que eles tinham ido para Gretna Green, correu a notícia em Brighton de que Denny dissera que na sua opinião Wickham não tencionava absolutamente ir para a Escócia nem se casar com Lydia. Chegando isto aos ouvidos do Coronel Forster, ele ficou alarmado e saiu imediatamente de Brighton, com o intuito de ir no encalço dos fugitivos. Conse­guiu descobrir facilmente o caminho que tinham tomado até Clapham, mas daí por diante não havia sinais da sua passagem, pois naquele lugar tinham tomado um coche de aluguel e dei­xado o carro que os trouxera de Epsom. Tudo o que se sabe deles depois disso é que foram vistos na estrada de Londres.
Não sei o que pensar. Depois de fazer todas as indagações pos­síveis daquele lado, o Coronel Forster voltou para o Hertford­shire, detendo-se em todas as encruzilhadas e hospedadas, em Barnet e Hatfield, mas sem nenhum resultado. Ninguém os ti­nha visto passar. Preocupado, por nossa causa, veio atenciosa­mente a Longbourn e nos revelou as suas apreensões de uma forma muito honrosa para o seu caráter. Estou sinceramente penalizada por ele e por Mrs. Forster, mas ninguém os poderá acusar de nada. A nossa aflição é grande, minha querida Lizzy; papai e mamãe acreditam no pior, mas não posso crer que ele seja assim tão perverso. É muito possível que Lydia e ele te­nham julgado mais conveniente realizar o casamento em segredo em Londres e desistido do projeto primitivo; e, mesmo que ele tenha desígnios tão perversos contra uma moça bem relacionada como Lydia, o que não é provável, não posso crer que Lydia tenha perdido todo o juízo. Impossível! Lamento no entanto dizer que o Coronel Forster não acredita no casamento. Meneou a cabeça quando lhe exprimi as minhas esperanças e disse temer que Wickham não fosse um homem de confiança. Nossa pobre mãe está realmente doente, e não pode sair do quarto. Seria melhor se ela fizesse um esforço, mas não é muito prová­vel; quanto a papai, nunca na minha vida o vi tão perturbado. Zangou-se muito com a pobre Kitty porque ela escondeu o na­moro, mas, como era segredo, acho essa atitude natural da parte dela. Estou contente, minha cara Lizzy, porque algumas dessas cenas penosas lhe foram poupadas, mas agora não posso me impedir de dizer que espero com ansiedade o seu regresso. Não terei entretanto o egoísmo de pedir muita pressa, se não lhe for conveniente. Até breve. Tomo novamente a minha pena para fazer o contrário do que acabo de lhe dizer, mas as coisas estão de tal modo que não posso deixar de lhe suplicar que vocês todos venham o mais cedo possível. Conheço o meu caro tio e a minha tia tão bem, que não tenho medo de fazer este pedido. Ao primeiro, tenho outro pedido a fazer. Meu pai vai partir para Londres com o Coronel Forster imediatamente, a fim de procurar os fugitivos. Numa circunstância como esta, os conselhos e o auxílio do meu tio seriam inestimáveis. Ele com­preenderá imediatamente o que eu sinto. Confio na sua bon­dade".

— Oh, onde está meu tio? — exclamou Elizabeth, dando um salto da cadeira, na sua ansiedade de ir ter com ele sem perda de um minuto; mas, ao chegar à porta, esta foi aberta por um criado e Mr. Darcy apareceu. A palidez do rosto de Eli­zabeth e os seus gestos agitados o assustaram. E, antes que ele pudesse voltar a si e falar, ela, que tinha em mente, acima de tudo, a situação de Lydia, exclamou apressadamente:
Sinto muito, mas tenho que deixá-lo. Preciso encon­trar Mr. Gardiner imediatamente. O assunto é urgente, não tenho um instante a perder.
Meu Deus, que terá acontecido? — exclamou ele, com mais inquietude do que polidez. Mas, voltando a si, acrescentou:
Não a deterei um só minuto. Mas deixe-me ir chamar Mr. e Mrs. Gardiner ou mandar o criado. No estado em que se encontra, não pode ir pessoalmente.
Elizabeth hesitou, mas os joelhos tremiam tanto que ela compreendeu que não poderia ir muito longe. Chamando o criado, encarregou-o de ir imediatamente chamar o patrão e a patroa, e dizer-lhes que voltassem para casa.
Depois que o criado saiu, Elizabeth sentou, incapaz de se suster nas pernas. O seu estado era tão lamentável que Darcy compreendeu que era impossível deixá-la. E não pôde evitar de dizer, num tom de doçura e piedade:
Deixe-me chamar a sua criada. Quer tomar alguma coi­sa? Posso lhe oferecer um copo de vinho? Parece que está se sentindo mal.
Não, obrigada — replicou ela, procurando dominar-se.
Não tenho nada. Estou me sentindo bem. Só estou muito aflita por causa de notícias más que acabo de receber de Long­bourn.
Ao aludir àquele fato, começou a chorar e durante alguns minutos não pôde falar. Mr. Darcy, penalizado e aflito, pôde apenas exprimir vagamente a sua preocupação e observá-la num silêncio piedoso. Afinal ela tornou a falar.
Acabo de receber uma carta de Jane, com terríveis no­tícias. Não é possível escondê-las de ninguém. Minha irmã mais moça abandonou todos os seus amigos, fugiu, entregou-se a... Mr. Wickham. Partiram juntos de Brighton. Conhece-o bem de­mais para ter dúvidas quanto ao resto da história. Ela não tem dinheiro, relações, nada que o possa tentar. Está perdida para sempre!
Darcy ficou imobilizado de espanto.
E quando penso — acrescentou ela, num tom mais agitado — que eu poderia ter evitado isto, eu, que sabia quem ele era, se tivesse apenas revelado à minha própria família uma parte do que vim a saber, se o caráter dele fosse conhecido, nada disto teria acontecido. Mas agora é tarde, demasiado tarde.
Estou imensamente penalizado — exclamou Darcy, afli­to. — Mas isto é certo, absolutamente certo?
Oh, sim. Eles saíram de Brighton juntos sábado à noi­te e foram seguidos quase até Londres. Certamente não foram para a Escócia.
E que é que se fez, que é que se tentou para recupe­rá-la?
Meu pai foi para Londres e Jane escreveu pedindo o auxílio imediato de meu tio. Partiremos, assim o espero, dentro de meia hora. No entanto, nada mais pode ser feito. Sei muito bem que não há nada a fazer. Como obrigar um homem como aquele a proceder corretamente? Como ao menos descobrir o seu paradeiro? Não tenho a menor esperança. É horrível.
Darcy sacudiu a cabeça, numa silenciosa aquiescência.
Quando descobri qual era o caráter real daquele ho­mem... Oh, se eu soubesse o que deveria fazer! Mas eu não sabia... Tinha medo de ir demasiado longe. Foi um desgraça­do engano.
Darcy não respondeu. Mal parecia ouvi-la e caminhava de um lado para outro na sala, em profunda meditação. Suas so­brancelhas estavam contraídas, a expressão sombria. Elizabeth compreendeu imediatamente que a sua ascendência sobre Darcy estava em declínio. Nada podia resistir a tal demonstração de fraqueza da parte de sua família, a tão grande escândalo. Não podia se surpreender nem condená-lo. Refletiu que ele exercia sobre si mesmo um grande domínio, mas isto não lhe trouxe nenhuma consolação. E nunca Elizabeth sentiu tão claramente como naquele momento, quando todo o amor era vão, que po­deria tê-lo amado.
Mas as considerações pessoais, embora ocorressem, não a absorviam. Lydia, a humilhação, a desgraça que ela estava cau­sando à família, dominaram logo todos os pensamentos de or­dem particular. E, cobrindo o rosto com um lenço, Elizabeth esqueceu tudo o mais. Depois de uma pausa de vários minutos, a voz do companheiro fê-la voltar à realidade. E no tom daquela voz, embora transparecesse piedade, havia também contenção.
Creio que há muito está desejando a minha ausência — disse Darcy. — E, a não ser a minha simpatia sincera, porém inútil, nada posso lhe oferecer que justifique a minha presença.
Oxalá pudesse dizer ou fazer alguma coisa que a consolasse. Mas não a atormentarei mais, exprimindo os meus vãos dese­jos, como se solicitasse propositadamente a sua gratidão. Creio que este infeliz acontecimento impedirá minha irmã de vê-la hoje à noite em Pemberley.
— Oh, sim, tenha a bondade de apresentar as nossas des­culpas a Miss Darcy. Diga que negócios urgentes nos obrigam a voltar imediatamente. Esconda a infeliz verdade o máximo de tempo que puder. Sei que não pode ser por muito tempo.
Ele lhe assegurou prontamente que poderia contar com a sua discrição. Tornou a exprimir os seus sentimentos pela afli­ção de Elizabeth. Desejou que o caso tivesse uma conclusão mais favorável do que no momento era possível esperar. Deixando os seus cumprimentos para Mr. e Mrs. Gardiner, com apenas um grave olhar de despedida foi-se embora.
Depois que ele saiu da sala, Elizabeth sentiu que era muito pouco provável que jamais tornassem a se encontrar em termos tão cordiais, como os que tinham marcado os seus vários en­contros no Derbyshire. E, ao lançar um olhar retrospectivo so­bre a história das suas relações com Darcy, história tão cheia de contradições e surpresas, não pôde deixar de suspirar, ao refletir sobre a inconstância dos próprios sentimentos e a per­versidade das circunstâncias que a levaram agora a desejar pro­longar aquelas mesmas relações, quando anteriormente se teria rejubilado com a sua cessação.
Se a gratidão e a estima são fundamentos suficientes para a afeição, a moderação dos sentimentos de Elizabeth seria bas­tante natural. Mas, ao contrário, se a afeição oriunda de tais motivos é insensata e pouco natural, em comparação com aquela que em geral dizem se originar no instante mesmo do encontro e antes de qualquer palavra ser trocada, nada pode ser dito em defesa de Elizabeth, a não ser que ela tinha experimentado este último método com Wickham e que o seu fracasso talvez a au­torizasse a procurar a outra espécie menos interessante de afei­ção. Seja como for, ela o viu partir com tristeza. E, ao refletir sobre aquele infeliz acontecimento, encontrou um motivo adi­cional de angústia no pensamento de que aquilo era apenas um exemplo dos males que a leviandade de Lydia poderia causar. Nem por um momento, desde que lera a segunda carta de Jane, Elizabeth tivera esperança de que Wickham tencionasse realmente se casar com a sua irmã. Ninguém, a não ser Jane, pensou ela, poderia alimentar tais esperanças. A surpresa fora o mínimo que sentira nessa ocasião. Ao ler a primeira carta, surpreendera-se enormemente de que Wickham quisesse se casar com aquela moça sem fortuna. Parecia-lhe também incom­preensível que Lydia estivesse apaixonada por ele. Mas agora achava tudo natural. Para uma aventura daquelas ela poderia ter encantos suficientes. E, embora Elizabeth não supusesse que Lydia consentisse deliberadamente numa fuga sem intenção de casamento, tinha razões para acreditar que nem a virtude nem o entendimento a preservariam de se tornar uma presa fácil.
Enquanto o regimento estava no Hertfordshire, nunca percebera que Lydia manifestasse qualquer preferência por Wickham. Mas Elizabeth estava convencida de que Lydia se apegaria a qualquer pessoa que a encorajasse. Entre os oficiais ela mudava constantemente de favorito, segundo as atenções que lhe concediam. Seus entusiasmos sofriam contínuas flutua­ções, mas nunca sem motivo. Agora é que Elizabeth compreen­dia o mal que havia em confiar excessivamente numa menina como aquela.
Elizabeth estava cada vez mais ansiosa por regressar a casa, para ver, ouvir, compartilhar com Jane os cuidados que agora deviam recair inteiramente sobre ela, numa família tão desorganizada, com o pai ausente, a mãe incapaz de um esforço e exigindo constantes cuidados. E, embora quase persuadida de que nada poderia ser feito por Lydia, a interferência do tio lhe parecia da maior importância e a sua impaciência foi grande enquanto não o viu entrar na sala. Mr. e Mrs. Gardiner tinham voltado apressadamente, alarmados, supondo pelo relato do cria­do que a sobrinha tivesse adoecido repentinamente. Depois de tranqüilizá-los sobre este ponto, Elizabeth se apressou em lhes revelar a causa do recado que enviara; leu as duas cartas em voz alta, e insistiu no post-scriptum da última carta com trê­mula veemência, embora Lydia nunca tivesse sido a favorita dos tios. Mr. e Mrs. Gardiner ficaram profundamente aflitos. Não era Lydia apenas, todos eles eram atingidos por aquilo. E, depois das primeiras exclamações de surpresa e de horror, Mr. Gardiner prontamente prometeu todo o auxílio de que fosse capaz. Elizabeth, embora não esperasse menos, agradeceu-lhe com lágrimas de gratidão. E como os três estavam imbuídos da mesma idéia, os detalhes relativos à viagem foram rapidamente combinados. Resolveram partir o mais depressa possível.
— Mas que faremos com relação a Pemberley? — excla­mou Mrs. Gardiner. — John nos contou que Mr. Darcy estava aqui quando você nos mandou chamar. É verdade?
— Sim, e eu disse a ele que não poderíamos cumprir os nossos compromissos. Ficou tudo combinado.
"Tudo o quê?", repetiu a outra para si mesma, enquanto corria para o quarto a fim de se preparar. "Será que eles já estão em termos tais que ela lhe possa revelar toda a verdade? É o que eu desejava saber."
Mas esses desejos eram todos vãos. No máximo poderiam servir para distraí-la durante a confusão dos preparativos apres­sados. Se Elizabeth tivesse tido tempo diante de si, na aflição em que se encontrava não poderia ter achado nenhuma distra­ção. Ela também tinha a sua parte a fazer nos preparativos. E entre outras coisas precisava escrever bilhetes para todos os seus amigos em Lambton, apresentando desculpas pela partida tão repentina. Dentro de uma hora tudo estava pronto; e como, entrementes, Mr. Gardiner tivesse pago a conta da hospedaria, nada lhes restava fazer senão partir. E Elizabeth, depois de todas as aflições da manhã, se encontrou, mais cedo do que esperava, instalada na carruagem e a caminho de Longbourn.

Capitulo XLVII


Estive refletindo novamente sobre o caso — disse Mr. Gardiner, enquanto a carruagem saía da cidade. — E realmente, pensando bem, estou muito mais inclinado do que estava a julgar as coisas como a sua irmã mais velha. Parece-me muito pouco provável que um rapaz qualquer intentasse um desígnio desses contra uma moça, que não é de forma alguma desprote­gida nem carece de relações, e que além disso residia com a fa­mília do coronel do regimento dele. Por isto estou fortemente inclinado a acreditar no melhor. Poderia ele supor que os ami­gos dela não interviriam a seu favor? Poderia esperar ser nova­mente aceito pelo regimento depois de tal afronta ao Coronel Forster? O risco seria maior do que a tentação.
Pensa realmente assim? — exclamou Elizabeth, subi­tamente esperançosa.
Dou-lhe a minha palavra de que eu também começo a ser da opinião do seu tio — disse Mrs. Gardiner. — Este ato é uma violação tão grande da decência, da honra e do bom senso, que não acho que Wickham fosse capaz de praticá-lo. E você, Lizzy, será que mudou tanto a respeito de Wickham que agora o julgue capaz disto?
Não o julgo capaz talvez de se descuidar dos seus pró­prios interesses. Mas de todos os demais descuidos eu o julgo capaz. Se ao menos eu pudesse acreditar no que vocês acabam de dizer! Mas não ouso esperar. Se isto é verdade, por que ele não foi para a Escócia?
Em primeiro lugar — replicou Mr. Gardiner — não há prova absoluta de que não tenham ido para a Escócia.
Oh, mas o fato de eles se terem mudado para um coche de aluguel é uma indicação muito clara da sua intenção. E além disso não se achou nenhum sinal da sua passagem na estrada de Barnett.
Bem, suponhamos então que estejam em Londres. Po­dem ter ido para lá apenas para se esconder. Não é provável que tenham muito dinheiro. E é justo que tenham achado mais econômico se casarem em Londres do que na Escócia.
Mas então por que todo este mistério? Por que se escondem? Por que é que desejam casar secretamente? Oh, não, isto não é provável. O mais íntimo amigo de Wickham, como leram na carta de Jane, está persuadido de que, ele nunca teve intenção de se casar com ela. Wickham nunca se casará com uma mulher que não tenha fortuna. Não poderá sustentá-la. E que grandes interesses tem Lydia, a não ser os encantos da mocidade, da saúde e um espírito alegre, para que ele renuncie por sua causa a um casamento rico? Quanto à ofensa aos brios do regimento que esse atentado contra a honra de uma moça possa produzir, não sei até que ponto isto poderá levá-lo a hesitar, pois não sei também os efeitos que um ato assim possa produzir. Mas, quanto à sua outra objeção, não creio que tenha muito peso. Lydia não tem irmãos que a possam defender. E Wickham, que conhece meu pai, julga que, com a sua indolência e com a pouca atenção que parece dar à família, ele pouco faria e pensaria o menos possível no assunto.
Mas você acha que Lydia está tão perdidamente apai­xonada por ele que consinta em viver com um homem sem serem casados?
É o que parece, e é bem triste — respondeu Elizabeth, com lágrimas nos olhos. — Ter de pôr em dúvida o senso de decência e virtude de uma irmã! Mas realmente não sei o que dizer. Talvez esteja sendo injusta. E Lydia é muito moça, nunca lhe ensinaram a pensar em coisas sérias. E durante os últimos seis meses, ou melhor, durante todo o último ano, ela nada fez senão se divertir e dar largas à vaidade. Deram-lhe a liberdade de dispor do seu tempo da maneira mais frívola e inútil e de adotar as opiniões de todos os que encontrava. Desde que o regimento da milícia ficou aquartelado em Meryton, ela não pensou em outra coisa senão em namoro, amor e oficiais. Fez tudo o que estava em seu poder para aumentar, como direi, a sua suscetibilidade aos próprios sentimentos, já por natureza facilmente inflamáveis. Pensou e conversou sobre isto continua­mente e todos sabemos que Wickham tem todas as qualidades pessoais para cativar uma mulher.
Mas você vê — disse a tia — que Jane não o julga capaz de tal atentado.
De quem é que Jane jamais pensou mal? E qual a pessoa que ela julgaria capaz de tal atentado, qualquer que fossem os seus antecedentes, até que o fato tivesse ficado pro­vado? Mas Jane sabe tanto quanto eu o que esse Wickham realmente é. Ambas sabemos que se trata de um dissoluto em todos os sentidos da palavra. Que não tem integridade e nem honra. Que é tão falso e perigoso como insinuante.
E você sabe realmente disto tudo? — exclamou Mrs. Gardiner, curiosa.
Sei realmente — replicou Elizabeth, corando. — Já lhes contei no outro dia a sua conduta infame para com Mr. Darcy. E a senhora mesma, quando esteve em Longbourn na última vez, ouviu em que termos ele falou de um homem que se mostrou tão generoso para com ele. Existem outras circuns­tâncias que não vale a pena mencionar. Mas as mentiras dele a respeito da família de Pemberley são inúmeras. Pelo que ele disse de Miss Darcy, eu julgava que ia encontrar uma moça orgulhosa, fechada, desagradável. No entanto, ele sabia a ver­dade. Ele deve saber que ela é amável e modesta.
Mas Lydia nada sabe de tudo isto? Será que ela ignora tudo o que você e Jane parecem compreender tão bem?
Oh, sim, isto é que é o pior de tudo. Até eu estar no Kent, e entrar mais intimamente em contato com Mr. Darcy e seu primo, o Coronel Fitzwilliam, eu mesma ignorava a ver­dade. E quando voltei para casa soube que o regimento ia dei­xar Meryton dentro de quinze dias. Por isto, nem eu nem Jane, a quem contei todo o caso, julgamos necessário tornar pública a nossa descoberta, pois pensamos que não valeria a pena des­truir a boa reputação que ele gozava em toda a redondeza. E, mesmo quando ficou decidido que Lydia ia com Mrs. Forster, nunca me ocorreu a necessidade de lhe abrir os olhos quanto ao caráter de Wickham. Nunca julguei que ela corresse o risco de ser iludida. E naturalmente nem de longe imaginava que pudesse sobrevir esta conseqüência.
Quando eles partiram para Brighton, você não tinha motivos para supor que gostassem um do outro?
Nem o mais leve motivo. Não me lembro do menor sintoma de afeição de nenhum dos lados. E, se alguma coisa fosse perceptível, a senhora bem sabe que a nossa família não deixaria o fato passar despercebido. Quando ele entrou no re­gimento, Lydia estava disposta a admirá-lo, mas todas as moças de Meryton e das redondezas perderam a cabeça por sua causa durante uns dois meses. Mas Wickham nunca distinguiu Lydia com qualquer atenção particular. E por conseguinte, depois de um curto período de extravagante entusiasmo, ela se esqueceu dele, e outros oficiais do regimento que a tratavam com mais atenção voltaram a ser os seus favoritos.

É fácil compreender que durante toda a viagem, conquanto nenhum fato novo os viesse esclarecer acerca dos seus temores, esperanças e conjeturas, nenhum outro tópico os poderia des­viar muito tempo daquele interessante assunto. Elizabeth pen­sava nele continuamente. A mais aguda de todas as angústias, o remorso, a impedia de encontrar um só minuto de descanso.
Viajaram o mais rapidamente possível. E dormindo uma noite na estrada alcançaram Longbourn no dia seguinte, à hora do jantar. Foi um consolo para Elizabeth saber que, pelo menos, Jane não tinha esperado muito tempo. Quando a carruagem entrou no jardim e se aproximou da porta de casa, todos os pequenos Gardiner, atraídos pelo rumor, vieram se colocar nos degraus da escada. E quando o carro parou manifestaram a sua alegria com muitos pulos e piruetas.
Elizabeth saltou. E, depois de dar a cada um, um rápido beijo, correu para o vestíbulo, onde se encontrou com Jane, que estava no quarto da mãe e que tinha descido apressadamente a escada. Abraçaram-se afetuosamente, com lágrimas nos olhos. Elizabeth, sem perder um só instante, perguntou se tinha sabido alguma coisa dos fugitivos.
Ainda não — replicou Jane. — Mas, agora que o nosso caro tio chegou, espero que tudo vá melhor.
Papai está em Londres?
Está, foi na terça-feira, conforme escrevi.
Já tiveram notícias dele?
Sim, escreveu uma vez. Escreveu-me umas linhas na quarta-feira, dizendo que tinha chegado bem e dando o seu endereço, coisa que eu tinha pedido a ele particularmente. Acres­centou também que não escreveria mais até que tivesse algo de importante a comunicar.
E mamãe, como está ela? Como vão todos?
Mamãe vai regularmente, embora esteja muito depri­mida. Está lá em cima e teria" muito prazer em vê-los todos. Não sai ainda do quarto. Mary e Kitty, graças a Deus, vão muito bem.
E você, como vai você? — exclamou Elizabeth. — Parece pálida! Por quanta aflição não deve ter passado!
Jane, entretanto, perseverou na afirmação de que estava perfeitamente bem. O colóquio foi interrompido pela entrada de Mr. e Mrs. Gardiner, que até aquele momento tinham estado com as crianças. Jane correu para os tios e os abraçou, agrade­cendo a ambos com sorrisos e lágrimas. Depois entraram todos na sala. As perguntas que Elizabeth já tinha feito foram natu­ralmente repetidas pelos outros. Mas logo ficaram sabendo que Jane não tinha nenhuma notícia a dar.
No entanto, devido ao seu caráter indulgente, Jane ainda não perdera todas as esperanças. Ainda acreditava que tudo acabasse bem, e que uma manhã daquelas chegaria uma carta, de Lydia ou de seu pai, explicando o procedimento dos fugiti­vos e anunciando talvez o seu casamento. Em seguida foram todos ao quarto de Mrs. Bennet, que os recebeu exatamente como era de esperar. Com lágrimas, lamentações, invectivas contra a conduta infame de Wickham, queixas pelos padecimentos que lhe infligiam, ela acusava a todo mundo, esquecen­do-se de que fora ela própria, com a sua insensata indulgência, a causadora principal do que acontecera à filha.
Se me tivessem feito a vontade — disse ela —, se eu tivesse ido também para Brighton, com toda a família, isto não teria acontecido. Mas a minha pobre Lydia não tinha ninguém para tomar conta dela. Por que é que os Forster a perderam de sua vista? Estou certa de que houve um grave descuido da parte deles, pois Lydia não seria capaz de fazer isto se alguém tivesse olhado por ela. Sempre achei que eles não serviam para tomar conta de minha filha. Mas, como sempre, ninguém ouviu a minha opinião. Minha pobre filhinha... E agora lá se foi Mr. Bennet. Eu sei que ele vai se bater em duelo com Wickham, quando o encontrar, e na certa será morto. Que é que vai ser de nós depois? Os Collins vão nos expulsar daqui antes de o corpo ficar frio. E, se você não for bom para nós, meu irmão, não sei o que será.
Todos protestaram contra idéias tão sinistras. E Mr. Gar­diner, depois de tranqüilizá-la quanto à afeição que sentia por ela e pela sua família, disse que tencionava partir para Londres no dia seguinte, a fim de auxiliar Mr. Bennet nas tentativas de encontrar Lydia.
Não se entregue a receios exagerados. É preciso estar preparada para o pior, mas não há motivo para acreditar que isto seja certo. Ainda não faz uma semana que saíram de Bright­on. Daqui a poucos dias devemos ter notícias deles. E, até que saibamos positivamente que não estão casados e que não têm intenção de casar, ainda não podemos considerar tudo per­dido. Assim que eu chegar em Londres, irei ver o seu marido e o levarei comigo para Gracechurch Street; e aí combinaremos o que deve ser feito.
— Oh, meu caro irmão — replicou Mrs. Bennet —, isto é exatamente o que mais desejo. E, quando chegar a Londres, faça tudo para encontrar minha filha, onde quer que esteja. E, se eles não estiverem casados, faça com que se casem. Quanto ao enxoval, diga que não precisam esperar. Diga a Lydia que ela terá todo o dinheiro que quiser para comprá-lo depois que se casar. E sobretudo não deixe Mr. Bennet brigar com Mr. Wickham. Conte a ele o estado em que me encontro. Fale que me acho horrivelmente assustada, e tenho tremores por todo o corpo, horríveis dores no lado, na cabeça, e tantas palpitações que não posso descansar nem de dia nem de noite. E diga à minha querida Lydia que não tome providências a respeito das roupas até que ela tenha me visto, pois ela não sabe quais são as melhores lojas. Oh, meu irmão, como você é bonzinho, bem sei que vai arranjar tudo!
Mr. Gardiner, embora lhe assegurasse que faria todos os esforços possíveis, não pôde deixar de lhe recomendar modera­ção, tanto para as suas esperanças como para os seus receios. E conversou com ela neste tom até a hora do jantar. Em seguida deixaram-na aos cuidados da criada, que tratava dela na ausência das filhas.
Embora Mr. e Mrs. Gardiner estivessem persuadidos de que não havia motivo para tal reclusão, acharam melhor não se opor, pois sabiam que ela não tinha prudência suficiente para calar a boca diante dos criados. Era preferível que apenas uma das criadas, aquela em quem mais confiavam, ficasse sabendo de todas as suas mágoas e temores.
Na sala de jantar, Mary e Kitty, que tinham estado ocupa­das nos seus respectivos quartos e não tinham aparecido mais cedo, se reuniram afinal aos outros. Uma vinha dos seus livros e a outra da sua toalete. O rosto de ambas, no entanto, estava bastante calmo. Apenas Kitty se mostrava mais irritada do que de costume, mas não se sabia se era por causa da perda da irmã ou da raiva que sentia por estar envolvida no acontecimento. Quanto a Mary, seu domínio sobre si mesma era perfeito. E com o rosto muito grave sussurrou para Elizabeth, pouco depois de se sentar à mesa:
— Isto é um acontecimento bem desagradável. E prova­velmente será muito comentado. Mas nós devemos nos opor à maré de maledicência, e derramar sobre os nossos corações feridos o bálsamo dos consolos fraternais.
Em seguida, vendo que Elizabeth não estava disposta a responder, acrescentou:
Por infeliz que tenha sido Lydia, podemos tirar disto uma lição útil. Que a perda da virtude numa mulher é irremissível. Que um só passo falso acarreta uma série de desgraças sem fim e que a reputação não é menos frágil do que a beleza. Que uma mulher nunca pode ser cautelosa demais para com as pessoas do outro sexo, especialmente as que não merecem a sua confiança.
Elizabeth levantou os olhos atônitos. Sentia-se oprimida demais para responder. Mary, porém, continuou a se consolar extraindo máximas morais da infelicidade da irmã.
De tarde, as duas mais velhas conseguiram ficar meia hora sozinhas; e Elizabeth imediatamente aproveitou a oportunidade para pedir que Jane lhe contasse outros detalhes do aconteci­mento. Jane estava igualmente ansiosa para conversar sobre o assunto. Primeiro lamentaram as terríveis conseqüências daquele fato. Conseqüências que Elizabeth considerava muito graves. Jane não podia afirmar que os prognósticos da irmã fossem de todo impossíveis. Em seguida Elizabeth prosseguiu no assunto, dizendo:
Conte-me tudo o que ainda não sei. Dê-me outros de­talhes. Que foi que o Coronel Forster disse? Eles desconfiavam de alguma coisa antes da fuga? Devem ter visto os dois fre­qüentemente juntos.
O Coronel Forster confessou que muitas vezes des­confiou que houvesse alguma coisa. Especialmente do lado de Lydia. Mas nunca se passou nada que inspirasse alarma. Eu sinto muito por ele. Mostrou-se extremamente atencioso e bom. Resolveu vir até aqui para nos comunicar as suas preocupações, mesmo antes de saber que eles não tinham ido para a Escócia. Os rumores que começaram a circular apressaram a sua partida.
E Denny estava convencido de que Wickham não ia se casar? Sabia que eles pretendiam fugir? O Coronel Forster falou com Denny pessoalmente?
Falou. Mas, questionado pelo coronel, Denny negou que soubesse alguma coisa a respeito do plano. E não quis dar a sua verdadeira opinião. Ele não repetiu que estava convencido de que não se casaria, E por isto tenho esperanças de que te­nham entendido mal as suas palavras anteriormente.
E até o Coronel Forster chegar nenhuma de vocês teve alguma suspeita de que eles não estivessem realmente casados?
Como é que tal idéia nos poderia passar pela cabeça? Eu me senti um pouco temerosa quanto à felicidade de minha irmã com esse casamento, pois sabia que a conduta dele não fora sempre das melhores. Papai e mamãe nada sabiam a res­peito dos antecedentes do rapaz, e sentiam apenas que o casa­mento era imprudente. Kitty então confessou, triunfante, que sabia mais do que nós. Que Lydia, na última carta, lhe deixara entrever as suas intenções. Parece que ela já sabia há muitas semanas que os dois estavam apaixonados.
Mas sabia disto antes de partirem para Brighton?
Não, creio que não.
E o Coronel Forster mostrou que desconfiava de Wickham? Ele conhece o seu verdadeiro caráter?
Devo confessar que ele não falou muito bem de Wick­ham. Disse que o achava imprudente e extravagante. E, depois desta triste história, soube-se que ele saiu de Meryton muito endividado. Mas espero que isto seja falso.
Oh, Jane, se não tivéssemos sido tão discretas, se ti­véssemos dito o que sabíamos a respeito dele, isto não teria acontecido.
Talvez tivesse sido melhor — replicou Jane. — Mas não parecia justo denunciar os erros passados de uma pessoa, sem saber quais eram os seus sentimentos naquele momento. Agimos com a melhor das intenções.
E o Coronel Forster sabia os termos da carta de Lydia para a mulher dele?
Ele a trouxe consigo.
Jane então tirou a carta da bolsa e deu-a a Elizabeth. A carta era a seguinte:

"Minha cara Harriet: você há de rir bastante quando sou­ber que eu fugi, e não posso deixar de rir também, com a sur­presa que você terá amanhã de manhã quando der pela minha falta. Vou para Gretna Green. E, se você não adivinhar com quem, é uma grande tola. Só existe um homem no mundo que eu amo e ele é um anjo. Nunca poderia ser feliz sem ele, por isso acho que não faço mal em partir. Não precisa escrever para Longbourn comunicando a minha partida se não quiser, pois isto tornará apenas maior a surpresa quando eu escrever para casa e assinar o meu nome: Lydia Wickham. Há de ser uma boa piada. Quase não posso escrever de tanto rir. Trans­mita as minhas escusas a Pratt por não poder cumprir a minha palavra e dançar com ele hoje à noite. Diga-lhe que espero que ele me perdoe quando souber o motivo e que terei o maior prazer em dançar com ele no próximo baile em que nos encon­trarmos. Mandarei buscar as minhas roupas quando chegar em Longbourn; mas queria que você dissesse a Sally para costurar um rasgão no meu vestido de musselina usado, antes de pôr as coisas na mala. Até breve. Minhas lembranças para o Coronel Forster. Espero que bebam à nossa saúde, desejando que tenha­mos uma boa viagem. Sua amiga afetuosa,
Lydia Bennet".

Oh, desmiolada Lydia! — exclamou Elizabeth, depois de ler a carta. Escrever uma carta destas num tal momento ... Pelo menos mostra que tinha intenções sérias. Não sei se depois ele a persuadiu a fazer outra coisa, mas pelo menos da parte dela a infâmia não foi premeditada. Pobre papai, como deve ter sofrido!
Nunca vi ninguém ficar tão abalado. Durante bem uns dez minutos não pôde dizer nenhuma palavra. Mamãe caiu doente imediatamente e a casa toda ficou na maior confusão.
Oh, Jane — exclamou Elizabeth —, você acha que um só criado nesta casa não tenha ficado sabendo da história, naquele mesmo dia?
Não sei, espero que não. Mas é muito difícil ser dis­creta numa ocasião destas. Mamãe ficou histérica. E, embora eu procurasse auxiliá-la da melhor maneira, julgo que não fiz tanto quanto devia ter feito. Mas o horror do que poderia acontecer quase me privou do uso das minhas faculdades.
Os seus cuidados foram demasiados. Você não me parece estar muito bem de saúde. Antes eu tivesse ficado a seu lado. Você teve de suportar tudo sozinha...
Mary e Kitty foram muito prestativas. E estou certa de que teriam compartilhado das minhas fadigas de boa vontade, mas achei que não convinha a nenhuma das duas. Kitty é muito sensível e Mary estuda tanto que as suas horas de repouso não devem ser interrompidas. Minha tia Philips veio na terça-feira, depois que papai foi embora. E teve a bondade de ficar até quinta comigo. O seu auxílio nos foi precioso. E Lady Lucas também tem sido muito delicada. Ela veio até aqui, a pé, na quarta-feira de manhã, para exprimir os seus sentimentos e oferecer os seus serviços e os de qualquer uma das suas filhas, caso tivéssemos necessidade.
Seria melhor que ela tivesse ficado em casa — excla­mou Elizabeth; — talvez a intenção tenha sido boa, mas numa situação como esta deve-se ver os vizinhos o menos possível. Qualquer auxílio é impossível. As condolências são insuportá­veis. Que elas triunfem a distância e se dêem por satisfeitas.
Elizabeth perguntou então quais eram os planos do pai para a descoberta de Lydia.
Creio que ele tencionava ir a Epsom, lugar onde os fugitivos trocaram os cavalos, falar com os postilhões e ver se poderia obter deles alguma informação. O objetivo principal era descobrir o número do coche de aluguel que os trouxe de Clapham. Ele tinha trazido um freguês de Londres. É possível que ao trocarem de carro alguém os tivesse visto, por isso papai tencionava fazer indagações em Clapham. Se conseguisse desco­brir a casa aonde o cocheiro foi levar o freguês, faria indagações lá e talvez não fosse impossível descobrir o posto e o número do coche. Não sei se papai tem outros projetos em mente. Esta­va com tanta pressa de partir, tão inquieto e deprimido, que eu tive grande dificuldade em tirar dele o que estou lhe dizendo agora.

Capitulo XLVIII


A família tinha esperança de receber uma carta de Mr. Bennet no dia seguinte. Mas o correio chegou sem trazer nem sequer uma simples linha da sua parte. A família sabia que normalmente ele era um péssimo correspondente. Mas num momento daqueles, tinham tido esperanças de que fizesse um esforço. Foram obrigados portanto a concluir que ele nada tinha de favorável a comunicar, mas mesmo quanto a isto eles dese­javam ter certeza. Mr. Gardiner tinha esperado pela carta. Como não viesse nenhuma, partiu imediatamente.
Daí por diante, com a chegada de Mr. Gardiner a Lon­dres, tinham pelo menos certeza de receber informações cons­tantes do que se estava passando. E ao despedir-se Mr. Gardiner prometeu que insistiria com Mr. Bennet para que voltasse a Longbourn o mais cedo possível, coisa que muito consolou Mrs. Bennet. Ela via neste regresso a única possibilidade de seu marido escapar de ser morto em duelo. Mrs. Gardiner e as crianças deveriam permanecer no Hertfordshire mais alguns dias, pois Mrs. Gardiner achou que a sua presença poderia ser de alguma utilidade para as sobrinhas. Ajudou-as a tomar conta de Mrs. Bennet e foi um grande consolo para as moças nas suas horas de liberdade. A outra tia também veio freqüente­mente, e sempre, como dizia, com o propósito de lhes infundir coragem e confiança, embora nunca chegasse sem trazer um novo exemplo da extravagância e da leviandade de Wickham. E raramente partia sem as deixar mais desanimadas do que quando chegara.
Meryton inteira parecia se esforçar por denegrir o homem que três meses antes fora quase como um anjo de bondade. Diziam que ele devia dinheiro a todos os comerciantes do lugar e que as suas aventuras, que receberam todas o título de "sedu­ções", se tinham estendido às famílias de vários comerciantes. Todo mundo declarou que ele era o rapaz mais perverso do mundo e todos começaram a descobrir que sempre haviam desconfiado dele, apesar da sua aparência de distinção. Elizabeth, embora só acreditasse em metade do que diziam, achava aquilo suficiente para tornar ainda mais certos os seus antigos prog­nósticos quanto à desgraça da irmã. E até Jane, que acreditava ainda menos do que Elizabeth nas coisas de que falavam, perdeu quase todas as esperanças, sobretudo porque chegara agora o momento de receber notícias ou cartas deles, caso tivessem ido para a Escócia, coisa de que nunca perdera inteiramente a esperança.
Mr. Gardiner saiu de Longbourn no domingo. Na terça-feira, a mulher recebeu uma carta dele. Dizia que tinha encon­trado imediatamente Mr. Bennet e o tinha convencido a ir para Gracechurch Street. Mr. Bennet já estivera em Epsom e Cla­pham, mas não tinha conseguido nenhuma informação satisfa­tória. Estava decidido agora a fazer indagações em todos os principais hotéis da cidade, pois achava possível que eles se houvessem instalado num daqueles lugares logo depois da sua chegada a Londres, antes de procurar novas acomodações. Mr. Gardiner, pessoalmente, não esperava que este plano obtivesse êxito. Mas como Mr. Bennet insistia naquilo, estava resolvido a ajudá-lo. Acrescentava que Mr. Bennet não se encontrava nada disposto a sair de Londres agora, e prometia escrever de novo muito breve. Havia também um post-scriptum que dizia o seguinte:

"Escrevi igualmente para o Coronel Forster pedindo que ele indagasse, se possível, entre os amigos mais íntimos de Wickham, no regimento, se este tinha quaisquer parentes ou relações que pudessem saber em que parte da cidade ele se escondera. E, se entre essas pessoas houvesse alguma de quem se pudesse, com alguma sorte, obter tal informação, seria de uma importância talvez essencial. Até o momento nada temos para nos guiar. Estou certo de que o Coronel Forster fará tudo o que estiver em seu poder para nos ajudar, mas, em última aná­lise, talvez Lizzy, melhor do que qualquer outra pessoa, saiba se ele tem parentes vivos".

Elizabeth compreendeu imediatamente de onde provinha aquela deferência pela sua autoridade. Infelizmente não possuía informações que a justificassem.
Nunca ouvira dizer que ele tivesse parentes, exceto o pai e a mãe, e ambos já haviam falecido há muitos anos. Era possível, entretanto, que alguns dos seus companheiros do regimento pu­dessem dar informações mais substanciais. E, embora não tivesse grandes esperanças a esse respeito, aquela providência não era para se desdenhar.
Cada dia em Longbourn era agora um dia de ansiedade. Mas o mais angustiante dos momentos era o da chegada do cor­reio. As cartas eram esperadas todas as manhãs com a maior impaciência. E cada dia aguardavam notícias de importância.
Antes de receberem nova carta de Mr. Gardiner, chegou uma para Mr. Bennet da parte de Mr. Collins. E, como Jane tinha recebido instruções de abrir toda a correspondência diri­gida ao pai na ausência dele, leu a carta. E Elizabeth, que sabia como as cartas de Mr. Collins eram curiosas, se debruçou sobre a irmã e leu também. Dizia o seguinte:

"Meu caro senhor: sinto-me obrigado pelo nosso paren­tesco e pela minha situação na vida a apresentar-lhe as minhas condolências pela grande aflição que agora está sofrendo e da qual fomos informados ontem por uma carta do Hertfordshire. Fique certo, meu caro senhor, de que Mrs. Collins e eu próprio nos solidarizamos sinceramente com o senhor e toda a sua res­peitável família no seu atual sofrimento, que deve ser dos mais agudos, porque provém de uma causa que, o tempo não pode remover. Para lhe aliviar tão grande infelicidade, não faltarão argumentos da minha parte. Desejo consolá-lo nesse transe, que deve ser, de todos, o mais duro para o coração de um pai. A morte da sua filha seria uma bênção em comparação com o que sucede agora. E isto ainda é de se lamentar quando sabemos que existem razões de supor, como a minha cara Charlotte me informou, que essa licenciosidade de conduta da parte de sua filha foi devida a uma excessiva e culposa indulgência; ao mes­mo tempo, para o seu próprio consolo e o de Mrs. Bennet, estou inclinado a acreditar que as tendências da sua filha devem ser naturalmente perversas. Sem o que, ela jamais seria capaz de cometer tão grande crime com tão pouca idade. Seja como for, o senhor nos merece a maior compaixão, e nisto sou acom­panhado não só por Mrs. Collins, como igualmente por Lady Catherine e sua filha, a quem contei a história e que são da mesma opinião. Elas concordam comigo quanto às apreensões que sinto, que este mau passo de uma das suas filhas será prejudicial para o futuro de todas as outras; na verdade, quem, como Lady Catherine pessoalmente condescende em dizer, quem quererá se relacionar com tal família? E esta consideração me conduz além disso a refletir com a maior satisfação num certo acontecimento do mês de novembro passado, pois de outro modo eu estaria envolvido em todas estas tristezas e desgraças. Permita que o aconselhe, pois, meu caro senhor, a se consolar a si próprio o mais que puder, a expulsar para sempre a sua filha indigna da sua afeição, e deixá-la colher os frutos do seu odioso crime. Seu, caro senhor, etc."

Mr. Gardiner não tornou a escrever senão depois que re­cebeu uma resposta do Coronel Forster; e, quando o fez, nada tinha de agradável a comunicar. Não se sabia de um só parente com quem ele mantivesse relações e era certo que Wickham não tinha nenhum parente próximo que estivesse vivo. Seus conhecimentos antigos eram numerosos, mas desde que entrara na milícia parecia que já não mantinha relações com nenhum deles. Não havia ninguém portanto a quem se pudesse procurar e obter notícias a seu respeito. No estado precário das suas finanças, o casal tinha um motivo poderoso para a reclusão, além do medo que Wickham tinha de ser descoberto pelos parentes de Lydia. Haviam sabido que ele tinha deixado grandes dívidas no jogo; o Coronel Forster acreditava que seria preciso mais de mil libras para cobrir todas as despesas que o oficial deixara em Brighton. Ele devia muito na cidade, mas as dívidas de honra ainda eram muito maiores. Mr. Gardiner não procurou esconder esses detalhes da família de Longbourn. Jane os ouviu com horror.
Um jogador! — exclamou ela. — Isto eu não es­perava...
Mr. Gardiner acrescentava na carta que eles podiam contar com o regresso do pai no dia seguinte, que era um sábado. Abatido pelos insucessos dos seus esforços, ele se rendera às persuasões do cunhado para que voltasse para junto da família e deixasse a seu cargo tudo o que parecesse aconselhável para a continuação das pesquisas. Ao ser informada do fato, Mrs. Bennet não exprimiu toda a satisfação que as filhas esperavam, dada a ansiedade que manifestara pela vida do marido.
O quê? — exclamou ela. — Então ele vai voltar sem trazer a nossa Lydia? Decerto Mr. Bennet não vai sair de Londres antes de ter encontrado os fugitivos... Quem vai bri­gar com Wickham e forçá-lo a se casar com ela?
Mrs. Gardiner começou a ter saudades de casa. Ficou com­binado que ela e as crianças voltariam para Londres quando Mr. Bennet viesse para Longbourn. A carruagem levou-os por­tanto até metade da jornada, e trouxe de volta Mr. Bennet a Longbourn. Mrs. Gardiner partiu, tão perplexa a respeito do caso de Elizabeth e de Mr. Darcy como viera desde o Derbyshi­re. O nome dele não fora mencionado voluntariamente nem uma vez pela sobrinha. E a vaga esperança que tinha Mrs. Gar­diner de que Elizabeth recebesse logo uma carta de Darcy não fora correspondida. Desde o seu regresso, Elizabeth não tinha recebido nenhuma carta que parecesse vir, de Pemberley. Os atuais dissabores da família tornavam desnecessária outra escusa para a depressão de Elizabeth. Ninguém podia portanto descon­fiar de coisa alguma. Mas Elizabeth, que conhecia regularmente os próprios sentimentos, sabia bem que se não tivesse renovado as relações com Darcy teria suportado a mágoa pela infâmia de Lydia com muito maior facilidade. E não perderia uma noite de sono em cada dois dias.
Mr. Bennet chegou e todos repararam que aparentemente ele conservava toda a serenidade filosófica. Falou muito pouco, como era o seu hábito. Não mencionou o assunto que o levara a Londres e só muito tempo depois as filhas tiveram coragem de se referir a isto.
Foi só à tarde, à hora do chá, que Elizabeth se aventurou a falar sobre o assunto. Começou exprimindo os seus sentimen­tos pelas aflições que o pai deveria ter passado. Ele respondeu:
Não fale mais nisto. Quem deveria sofrer senão eu mesmo? Foi tudo por minha culpa, sou obrigado a reconhecê-lo.
Não deve ser severo demais para consigo próprio — replicou Elizabeth.
É bom que você me previna contra este erro. A natu­reza humana tem a tendência a cair nele. Não, Lizzy, deixe que por uma vez na vida eu sinta o peso da minha responsabilidade. Não tenho medo de ser esmagado pela impressão. Tudo isto não tardará a passar.
Acha que eles estão em Londres?
Sim, em que outro lugar poderiam se esconder?
E Lydia sempre desejou ir para Londres — acrescentou Kitty.
Então ela deve estar contente — acrescentou o pai, secamente. — Provavelmente residirá lá muito tempo.
Em seguida depois de curto silêncio, continuou:
Lizzy, não lhe guardo rancor pelo conselho que você me deu no mês de maio passado; considerando o que aconteceu, isto mostra a largueza da sua visão.
Foram interrompidos por Jane, que vinha buscar o chá da mãe.
Isto é uma demonstração que conforta a gente — ex­clamou ele. — Dá um ar elegante ao infortúnio. Um dia desses farei o mesmo. Ficarei sentado na minha biblioteca, de camisola e touca de dormir, e darei aos outros o maior trabalho possível. Ou melhor, vou deixar isto para quando Kitty também se re­solva a fugir.
Eu não vou fugir, papai — disse Kitty, inquieta. — Se me deixassem ir a Brighton, eu me comportaria melhor do que Lydia.
Você ir a Brighton? Não a deixarei ir nem a Eastborn aqui ao lado. Nem por cinqüenta libras. Não, Kitty, pelo menos aprendi a ser prudente e você há de sentir os efeitos disso. Ne­nhum oficial tornará jamais a entrar na minha casa, nem que esteja só de passagem pela aldeia. Os bailes serão absoluta­mente proibidos a não ser que você fique o tempo todo com uma das suas irmãs. E nunca sairá por esta porta sem provar que passou dez minutos de maneira sensata.
Kitty, que levava todas aquelas ameaças a sério, começou a chorar.
Deixe disso — falou ele —, não fique triste. Se for uma boa menina nesses próximos dez anos, levarei você para ver uma parada.

Capítulo XLIX


Dois dias depois da chegada de Mr. Bennet, Jane e Eli­zabeth estavam passeando juntas no pequeno bosque atrás da casa quando viram que a criada se aproximava em direção a elas. E, concluindo que vinha a mandado de Mrs. Bennet a fim de chamá-las, foram-lhe ao encontro.
Desculpe interrompê-las, mas creio que chegaram boas notícias da cidade e por isto tomei a liberdade de vir chamá-las.
Que é que você quer dizer, Hill? Não recebemos ne­nhuma carta da cidade...
Minha querida senhora — exclamou Mrs. Hill, espan­tada —, então não sabe que chegou um expresso da parte de Mr. Gardiner para o patrão? Ele está aqui há meia hora e trouxe uma carta para Mr. Bennet.
As meninas não perderam tempo em responder e saíram correndo. Atravessaram o vestíbulo, a sala de almoço e foram desse modo até a biblioteca. Mas não encontraram o pai. Esta­vam a ponto de subir para procurá-lo no quarto de Mrs. Bennet, quando o mordomo se dirigiu a elas e disse:
Se estão procurando o patrão, ele está caminhando em direção ao pequeno bosque.
Tendo recebido esta informação, as meninas tornaram a passar pelo hall e atravessaram o gramado em busca do pai, que se dirigia para um dos pequenos bosques que havia de um dos lados do jardim.
Jane, que não era tão leve nem tinha tanta prática de cor­rer, ficou para trás, enquanto a irmã alcançava Mr. Bennet e exclamava, quase sem fôlego:
Oh, papai, que foi que aconteceu, recebeu uma carta do tio?
Sim, recebi uma carta dele pelo expresso.
E que notícias traz, boas ou más?
Que é que se pode esperar de bom? — disse ele, tiran­do a carta do bolso. — Mas talvez você queira ler.
Elizabeth tomou a carta, impaciente, enquanto Jane se aproximava.
Leia em voz alta — disse Mr. Bennet. — Pois eu mesmo não sei de que se trata.

"Gracechurch Street, segunda-feira, 2 de agosto. Meu caro irmão:
Afinal posso lhe enviar notícias da minha sobrinha. Notí­cias que, em suma, acho que lhe agradarão. Pouco depois da sua partida no sábado, tive a boa sorte de descobrir em que parte de Londres o casal estava. Quanto aos detalhes deixo para quando nos encontrarmos. Basta que saiba agora que eles estão descobertos. Já estive com ambos."

Então tudo se passou como eu esperava — exclamou Jane: — eles estão casados!
Elizabeth continuou:

"Estive com ambos. Eles não estão casados e não encontrei neles a menor intenção de fazê-lo. Mas, se estiver disposto a cumprir o compromisso que tomei a liberdade de aceitar por você, espero que se casem muito breve. Tudo o que é exigido da sua parte é assegurar à sua filha, por acordo, parte das cinco mil libras destinadas a serem repartidas entre as suas filhas depois da sua morte e a da sua mulher. E além disso comprome­ter-se a dar à sua filha, enquanto viver, a quantia de cem libras por ano. Estas são as condições que, pensando bem, não hesitei em aceitar, sentindo-me autorizado a fazê-lo. Enviarei esta carta por expresso para que a sua resposta me chegue sem perda de tempo. Você compreenderá facilmente, por estes detalhes, que a situação de Mr. Wickham não é tão má quanto se supunha. Quanto a isto, os rumores que corriam eram falsos. E alegra-me dizer que sobrará ainda um pouco de dinheiro, mesmo depois de pagas todas as dívidas do marido para instalação do casal, sem falar no dinheiro de Lydia. Se você me delegar plenos poderes para agir em seu nome, coisa da qual não tenho a menor dúvida, darei instruções imediatamente a Haggerston para pre­parar um contrato. Não há a menor necessidade de você voltar a Londres. Portanto, fique sossegado em Longbourn e conte com os meus cuidados e diligências. Mande a sua resposta o mais breve possível e tenha o cuidado de escrever claramente. Nós achamos melhor que a minha sobrinha se casasse em minha casa coisa que, espero, você aprovará. Ela virá hoje. Tornarei a lhe escrever assim que houver novas decisões. Seu, etc.
Edw. Gardiner".

_ Será possível? — exclamou Elizabeth, assim que ter­minou a carta. — Será possível que ele se case com ela?
Wickham não é tão mau então como nós pensávamos _disse Jane. — Meu pai, eu lhe dou os parabéns.
E o senhor já respondeu à carta? — perguntou Eli­zabeth.
Não, mas é coisa que precisa ser feita imediatamente. Elizabeth suplicou então que não perdesse mais tempo.
Oh, papai — exclamou ela —, volte e escreva sem demora! Pense na importância que cada momento tem num caso desses...
Deixe-me escrevê-la para o senhor — disse Jane —, este trabalho lhe desagrada.
Desagrada-me muito — replicou ele —, mas precisa ser feito.
E dizendo isto ele se virou e voltou com as moças em direção à casa.
E posso saber qual é a resposta? — perguntou Eliza­beth. — Suponho que os termos devem ser aceitos.
Aceitos? Só tenho vergonha de que ele peça tão pouco.
E é preciso que eles se casem. No entanto, Wickham é um homem tão ordinário...
Sim, sim, é preciso que eles se casem. Não há alternati­va. Mas há duas coisas que eu desejaria muito saber: uma delas é quanto dinheiro o seu tio deve pagar para arranjar isto. E a segunda é como eu poderei reembolsá-lo.
Dinheiro? Meu tio? — exclamou Jane. — Que é que quer dizer com isto?
Quero dizer que nenhum homem, no seu juízo perfei­to, se casaria com Lydia recebendo em troca uma compensação tão pequena. Cem libras por ano durante a minha vida e cin­qüenta depois que eu morrer!
É verdade — disse Elizabeth. — Não me tinha ocorri­do antes. Havia as dívidas dele a serem pagas e devia ainda so­brar dinheiro. Deve ter sido meu tio quem arranjou isto. É um homem generoso. Mas tenho medo de que ele se tenha posto em situação difícil. O dinheiro que gastou não deve ter sido pouco.
Não — disse Mr. Bennet —, Wickham seria um idiota se a aceitasse com menos de dez mil libras. De outro modo, sentiria ter de pensar mal dele logo no começo das nossas relações.
Dez mil libras? Deus não permita tal. Como podería­mos pagar tal soma?
Mr. Bennet não respondeu. E todos, mergulhados nas suas reflexões, continuaram em silêncio até chegarem em casa. Mr. Bennet foi então até a biblioteca para escrever e as moças en­traram na sala de almoço.
Então eles vão se casar? — exclamou Elizabeth, assim que se viu sozinha com Jane. — Como é estranho! Ainda por cima, temos de nos considerar muito felizes! Temos de dar graças a Deus que isso aconteça, embora sejam tão diminutas as possibilidades de Lydia ser feliz e Wickham tenha um caráter tão ruim... Oh, Lydia!
Eu me consolo pensando que decerto ele não se casaria com Lydia se não tivesse afeição por ela — replicou Jane. — Embora acredite que nosso tio tenha feito alguma coisa por ele, não posso crer que tenha gasto dez mil libras nem coisa pare­cida. Ele tem os seus próprios filhos e ainda pode ter outras preocupações. Como poderia gastar dez mil libras?
Se pudéssemos saber quais eram as dívidas de Wick­ham ... E com quanto ele dotou nossa irmã... Saberíamos exa­tamente o que Mr. Gardiner fez, pois Wickham não tem um tostão de seu. A bondade dos nossos tios é uma coisa que nunca poderá ser paga. Eles a levaram para casa e lhe deram toda a sua proteção e apoio moral. Isto é um sacrifício que anos de gratidão não podem compensar. Nesse momento, ela está em casa deles. Se uma tão grande bondade não lhe der a consciên­cia da falta que praticou, é que não merece nunca ser feliz. Imagine a cara quando chegar diante da minha tia.
Devemos nos esforçar para esquecer tudo o que se passou — disse Jane. — Confio e espero que eles sejam felizes. Creio que o fato de ele consentir em se casar com ela é uma prova de que tomou juízo. A afeição que têm um pelo outro lhes dará estabilidade. E tenho a esperança de que eles se estabele­çam tranqüilamente na sua nova vida, e vivam de uma maneira tão ajuizada que com o tempo a imprudência que fizeram seja esquecida.
A conduta deles foi de tal ordem — replicou Elizabeth —, que nem você, nem eu e nem ninguém poderá jamais esquecê-la. É inútil falar nisto.
As meninas então se lembraram de que a mãe provavel­mente ainda ignorava tudo o que se passava. Dirigiram-se pois à biblioteca e perguntaram ao pai se ele não desejava que lhe fossem transmitir a notícia. Ele estava escrevendo. E sem levan­tar a cabeça respondeu, friamente:
Como quiserem.
Podemos levar a carta do meu tio e ler para ela?
Levem o que vocês quiserem e vão embora.
Elizabeth tomou a carta de cima da mesa e as irmãs subi­ram juntas. Mary e Kitty estavam ambas com Mrs. Bennet. A mesma comunicação serviria portanto para todas. Depois de uma ligeira preparação para as notícias que traziam, a carta foi lida em voz alta. Mrs. Bennet não pôde conter os seus senti­mentos. Assim que Jane leu o trecho em que Mr. Gardiner exprimia a esperança de que Lydia em breve se casasse, Mrs. Bennet começou a manifestar a sua alegria, e cada frase subse­qüente a tornava ainda mais expansiva. A alegria era tão rui­dosa e violenta como anteriormente os receios e o desespero. Bastava saber que a filha se casaria. Nenhum receio quanto à felicidade de Lydia, nenhuma lembrança da sua falta a per­turbava.
Oh, minha querida Lydia — exclamou ela. — Isto é realmente estupendo! Ela se casará! Eu tornarei a vê-la! Ela se casa com dezesseis anos! Que bom irmão eu tenho! Bem sabia que ele ia arranjar tudo! Que vontade de vê-la! E o meu que­rido Wickham também! Mas as roupas, o enxoval! Vou escre­ver para minha irmã Gardiner imediatamente! Lizzy, meu bem, corra lá embaixo e pergunte a seu pai quanto ele dará a Lydia para o enxoval. Não, fique, fique, irei eu mesma! Toque a cam­painha, Kitty, chame Hill, eu me vestirei num instante. Oh, minha querida Lydia! Como nos sentiremos felizes quando esti­vermos todos juntos!
Jane procurou abrandar a violência das suas expansões, lembrando-lhe quantas obrigações deviam a Mr. Gardiner pelo que ele tinha feito.
Devemos atribuir a feliz conclusão desta história em grande parte à bondade do nosso tio — acrescentou Jane. — Estamos convencidos de que ele se empenhou para auxiliar Mr. Wickham com dinheiro.
Bem — exclamou Mrs. Bennet —, está certo, quem o faria se não fosse o seu tio? Se ele não tivesse família, nós é que seríamos os seus herdeiros. E é a primeira vez que rece­bemos qualquer coisa dele, a não ser alguns presentes. Sinto-me tão feliz, em breve terei uma filha casada! Mrs. Wickham! Como soa bem... E ela fez apenas dezesseis anos em junho! Jane, estou tão nervosa que não posso escrever. Vou ditar e você escreve por mim. Mais tarde combinaremos com seu pai a respeito do dinheiro. Mas é preciso encomendar as coisas ime­diatamente.
Mrs. Bennet começou então a fazer uma lista de todas as peças de tecidos estampados, musselinas, e cambraias, e teria feito dentro em pouco uma grande encomenda, se Jane não a tivesse persuadido, com alguma dificuldade, que esperasse até poder consultar o pai. Um dia de atraso, observou ela, seria de pouca importância. E Mrs. Bennet se sentia feliz demais para ser obstinada como de costume. Outros planos vieram ocupar os seus pensamentos.
— Assim que estiver vestida, irei a Meryton e darei as boas novas a minha irmã Philips. E na volta irei à casa de Lady Lucas e de Mrs. Long. Kitty, corra lá embaixo e peça a carrua­gem. Um pouco de ar me faria muito bem. Meninas, querem que eu traga alguma coisa para vocês de Meryton? Oh, aí vem Hill. Minha cara Hill, você já ouviu as boas novidades? Miss Lydia vai se casar. Você terá que preparar um jarro de punch para o casamento.
Miss Hill começou imediatamente a exprimir a sua alegria. Elizabeth, entre outras, recebeu os seus parabéns. Em seguida, cansada de tanta loucura, foi se refugiar no seu quarto para poder refletir à vontade.
Coitada de Lydia; a sua situação, mesmo assim, era bas­tante ruim. Mas ainda tinha de dar graças a Deus por não ser pior. E, embora pensando no futuro, não via para a irmã gran­des possibilidades de felicidade nem de prosperidade; e, ao se lembrar do passado, dos seus temores há duas horas apenas, Eli­zabeth sentiu, entretanto, todas as vantagens que tinham ganho.

Capítulo L


Mr. Bennet muitas vezes se arrependera de nunca ter pos­to de lado uma soma anual para garantia do futuro das filhas e da mulher, em vez de gastar toda a sua renda. Agora se arre­pendia mais do que nunca. Se tivesse cumprido o dever nesse ponto, Lydia não estaria agora devendo tanto ao tio, uma soma tão grande em dinheiro, honra e bom nome. E a satisfação de obrigar um dos piores rapazes da Grã-Bretanha a se casar com ela lhe teria cabido, como de direito.
Ele estava seriamente preocupado com que uma coisa de tão poucas vantagens para qualquer pessoa tivesse sido conse­guida unicamente às expensas do seu cunhado e resolvera, caso fosse possível, averiguar a importância exata do auxílio dele e lhe pagar o mais depressa possível.
Quando Mr. Bennet se casou, julgara que era perfeitamen­te inútil fazer economia, pois naturalmente haveria de ter um filho. Este filho entraria no direito de herdar a propriedade e desse modo a viúva e as crianças menores ficariam garantidas. Cinco filhas sucessivamente vieram ao mundo, mas o filho ainda estava para vir. Muitos anos depois do nascimento de Lydia, Mrs. Bennet acreditara que o filho viesse a nascer. Mas afinal tivera que renunciar a essa esperança. Mrs. Bennet não tinha jeito para economia e os gostos morigerados do marido foram a única coisa que os impediu de gastarem além da renda que possuíam.
Pelo contrato de casamento, cinco mil libras deviam ser deixadas para Mrs. Bennet e seus filhos. Mas a partilha devia ser feita de acordo com a vontade dos pais. Em relação a Lydia, este era um ponto que agora devia ser decidido. E Mr. Bennet não podia hesitar em aceitar os termos da proposta que lhe tinha sido feita. Em termos precisos, porém cordiais, exprimiu a sua gratidão pela bondade do cunhado. Em seguida declarou a sua plena aprovação a tudo o que tinha sido feito, e a sua aceitação aos compromissos que Mrs. Gardiner tomara em seu nome. Nunca tinha suposto que fosse possível convencer Wick­ham a se casar com a sua filha em termos tão convenientes. As cem libras que deveria pagar anualmente não representavam um déficit real de mais de dez libras; pois as despesas com o sustento de Lydia, o dinheiro que lhe dava para as suas despe­sas e os presentes que lhe chegavam continuamente às mãos por intermédio de Mrs. Bennet não somavam ao todo muito me­nos do que aquelas cem libras.
Outra surpresa agradável fora a facilidade com que tudo se arranjara sem lhe dar quase trabalho. Seu desejo agora era preocupar-se com aquilo o menos possível. O afã com que se lançara à procura da filha tinha sido apenas um efeito da cólera. Cessada esta, Mr. Bennet recaiu na habitual indolência. A carta foi logo despachada, pois, embora lento na elaboração dos seus projetos, ele era rápido na sua execução. Pedia a Mr. Gardiner que detalhasse as despesas que tinha feito, porém não enviou nenhum recado para Lydia, porque ainda estava ressentido com ela.
As boas notícias espalharam-se rapidamente pela casa e pelas redondezas. A vizinhança as acolheu filosoficamente. De­certo teria sido mais interessante se Miss Lydia tivesse regres­sado. Ou então se ela se encontrasse em reclusão em alguma fazenda distante. Mas o casamento era um tópico suficiente pa­ra a conversação.
As velhas invejosas de Meryton continuaram a enviar os seus votos de felicidade com o mesmo secreto contentamento com que anteriormente exprimiam as suas condolências, pois, com um marido assim, a desgraça de Lydia era considerada certa.
Mrs. Bennet passara quinze dias sem sair do quarto. Naque­la grande data, tornou a assumir o seu lugar à cabeceira da me­sa. Sua satisfação era extrema. Nenhum sentimento de vergonha atenuava o seu triunfo. Desde que Jane completara quinze anos, o seu maior desejo fora ver uma das filhas casada. E agora este desejo estava a ponto de se realizar. Todos os seus pensamen­tos giravam em torno dos acessórios de um casamento elegante, tais como musselinas finas, novas carruagens e criados. Procura­va lembrar-se de uma casa das redondezas que servisse para a filha e, sem saber qual seria a renda do casal, recusava muitas das que lhe sugeriam porque seriam demasiado modestas e aca­nhadas.
Haye Park talvez sirva, se os Goulding consentirem em sair. Aquela casa espaçosa em Stoke também não é má. Mas a sala de estar é muito pequena. Ashworth é muito distan­te. Não quero que ela more a mais de dez milhas de distância daqui, no máximo. Quanto a Pulvis Lodge, as mansardas são horríveis.
Mr. Bennet deixou que ela falasse sem interrupção, en­quanto havia criados na sala. Mas, depois que eles saíram, disse:
Mrs. Bennet, antes que tome uma destas casas ou to­das elas para a sua filha, é bom chegar já a um acordo quanto a este ponto. Numa determinada casa desta redondeza eles nun­ca serão admitidos. Não encorajarei a imprudência daqueles dois, recebendo-os em Longbourn.
A esta declaração se seguiu uma longa disputa. Mas Mr. Bennet se mostrou firme. E o assunto logo os conduziu a ou­tro. Mrs. Bennet descobriu com espanto e horror que o marido não adiantaria uma só libra para as despesas do enxoval. Ele declarou que ela não receberia o menor sinal da sua estima por ocasião do casamento. Mrs. Bennet não podia compreender aquela atitude. Parecia-lhe impossível que ele levasse o ressen­timento ao ponto de recusar à filha um dos privilégios sem o qual o casamento não pareceria válido. Mrs. Bennet era muito mais sensível à vergonha de ter casado a filha sem roupas novas do que à desonra causada pela sua fuga e pelo fato de ela ter vivido quinze dias com Wickham sem ser casada.
Elizabeth se arrependeu mais do que nunca por se ter dei­xado levar pela aflição do momento e revelado a Mr. Darcy os seus temores quanto ao futuro da irmã; pois, como o casamen­to se realizaria em breve, talvez pudessem esconder o fato ver­gonhoso a todos aqueles que não estavam diretamente relacio­nados com a família.
Ela não tinha receio de que o caso se espalhasse por inter­médio de Mr. Darcy; havia poucas pessoas atualmente em cuja discrição tivesse mais confiança. Por outro lado, não havia nin­guém cujo conhecimento da leviandade da sua irmã a mortificasse tanto. No entanto, não se sentia mortificada porque te­messe qualquer desvantagem para si própria, pois de qualquer modo parecia haver um abismo intransponível entre eles. Mes­mo que o casamento de Lydia tivesse sido concluído da forma mais respeitável, não era crível que Mr. Darcy quisesse se re­lacionar com uma família contra a qual tinha tantas objeções; agora, a estas objeções se acrescentava outra. Uma aliança que ele, com muita razão, considerava desprezível.
Não era pois de estranhar que hesitasse. O desejo de obter a consideração de Elizabeth, desejo que ele lhe havia manifes­tado no Derbyshire, não poderia sobreviver a tal golpe. Eliza­beth se sentiu humilhada e ferida. Tinha remorsos sem saber bem de quê. Desejava a estima dele quando não tinha mais es­perança de que essa estima a beneficiasse. Queria saber notí­cias suas e não tinha a menor esperança de que ele lhe escre­vesse. E agora, que não havia mais probabilidade de encontrá-lo, estava convencida de que poderia ter sido feliz com ele.
Que triunfo para Mr. Darcy se pudesse saber que as pro­postas que ela tinha rejeitado tão orgulhosamente há quatro meses atrás seriam recebidas agora com alegria e gratidão. Ele era generoso, disto Elizabeth não tinha a menor dúvida. Havia poucos homens mais generosos. Para não triunfar agora, entre­tanto, era preciso que não fosse humano.
Elizabeth começou a compreender então que Mr. Darcy era o homem que mais lhe convinha, tanto pelo temperamento como pelas qualidades. O gênio, embora diverso do seu, corres­pondia a todos os seus desejos. Essa união teria sido vantajosa para ambos. A espontaneidade e a naturalidade de Elizabeth contribuiriam para suavizar o espírito dele, e melhorar-lhe tam­bém as maneiras. Ela, por sua vez, receberia um benefício ainda maior com a segurança do seu julgamento e a sua experiência do mundo.
Porém esse modelo dos casamentos felizes não mais se rea­lizaria. Mas em breve uma união de caráter diferente e que excluía a possibilidade do outro seria formada na sua família.
Não sabia como Lydia e Wickham conseguiriam viver em relativo conforto. Aliás, um casal que tinha se unido por pai­xões mais fortes do que a sua virtude tinha diminutas possibi­lidades de felicidade duradoura.

Em breve Mr. Gardiner tornou a escrever para o cunhado. Aos pedidos de Mr. Bennet, respondeu apenas que estava sem­pre disposto a fazer o máximo esforço para o bem de qualquer pessoa da família, e concluiu pedindo que nunca mais se men­cionasse o assunto. A finalidade principal da carta era anun­ciar que Mr. Wickham tinha resolvido sair da milícia.
"Eu desejava muito que ele o fizesse assim que o casamen­to fosse marcado", acrescentava Mr. Gardiner. "E acho que você pensará, como eu, que esse passo é muito vantajoso, tanto para ele como para minha sobrinha. Mr. Wickham tenciona en­trar no Exército regular; e alguns dos seus antigos amigos es­tão dispostos a apoiá-lo. Prometeram-lhe um posto de tenente no regimento do General..., aquartelado agora no norte. Há vantagem em que ele fique longe daqui. Promete alguma coisa e espero que, entre pessoas estranhas, onde poderão fazer nova reputação, ambos se mostrarão mais prudentes. Escrevi para o Coronel Forster, a fim de informá-lo da nossa atual situação e pedindo que tranqüilize os vários credores de Mr. Wickham em Brighton e redondezas, com promessas de rápido pagamento, pois assumi o compromisso de pagá-las. Peço que faça o mes­mo com os seus credores em Meryton, dos quais lhe envio a lista, de acordo com as informações de Mr. Wickham. Ele con­fessou todas as suas dívidas. Espero ao menos que não nos te­nha enganado. Haggerston já recebeu as nossas instruções e tudo ficará pronto dentro de uma semana. Eles partirão em se­guida para a sede do regimento, a não ser que você os convide primeiro a ir a Longbourn. Mrs. Gardiner me disse que minha sobrinha está muito desejosa de vê-los a todos, antes de partir para o norte. Ela está bem e pede que eu lhe transmita os seus respeitos, bem como a Mrs. Bennet. Seu, etc.
E. Gardiner."

Mr. Bennet e as filhas compreenderam logo as vantagens da saída de Mr. Wickham do regimento da milícia, não menos claramente do que Mr. Gardiner. Mas Mrs. Bennet de modo algum ficou tão satisfeita. Lydia ia morar no norte, exatamente quando teria maior prazer e orgulho na sua companhia, pois ela não tinha absolutamente desistido do seu plano de instalar a filha no Hertfordshire. Seu desapontamento foi grande. Além disso era uma pena que Lydia fosse afastada de um lugar onde ela tinha tantas relações.
— Lydia gostava tanto de Mrs. Forster! — disse ela. — E uma pena mandá-la embora. E além disso há muitos rapazes lá que ela aprecia. Os oficiais do regimento do General... po­dem não ser tão amáveis.
A insinuação de Mr. Gardiner podia ser tomada como um pedido formal para Lydia tornar a ser admitida entre os seus antes da sua partida para o norte; a princípio Mr. Bennet re­cusou terminantemente este pedido. Mas Jane e Elizabeth, que eram da mesma opinião, desejavam ambas, para bem da irmã, que ela recebesse o apoio dos pais. Pediram-lhe de um modo tão insistente, e ao mesmo tempo com tanta doçura, que os rece­besse em Longbourn assim que estivessem casados, que conse­guiram demover o pai da intenção primitiva. E Mrs. Bennet teve a satisfação de saber que ela poderia exibir nas redonde­zas a filha casada, antes de ela ser banida para o norte. Quando Mr. Bennet tornou a escrever para o cunhado, transmitiu afinal a sua permissão. Elizabeth, entretanto, ficou surpreendida por Wickham ter concordado com este plano. E, se ela tivesse con­sultado apenas as suas preferências, um encontro com ele seria a última coisa no mundo que ela própria desejaria.

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