sábado, 2 de abril de 2011

A Divina Comédia | Inferno - Cantos VII ao XII

Canto VII
— Pape Satàn pape Satàn aleppe! — começava Pluto com sua voz
rouca. Virgílio virou-se para mim e disse, com segurança:
— Não tenhas medo dele. Lembre-se que, por mais que ele
tenha poder, ele não pode impedir nossa descida. — Depois, dirigiu-
se a Pluto e gritou:
— Cala a boca lobo maldito! Consome em ti mesmo tua raiva.
Nossa descida não é sem propósito, pois é algo que se quer nas alturas!
Diante daquela voz revestida de autoridade, Pluto mal pôde
reagir. Logo fraquejou e diante de nós, tombou.
Aproveitamos, então, para descer pela beira que contorna o
quarto círculo. Lá vi mais almas que em todos os círculos precedentes.
Estavam organizadas em dois grupos que se enfrentavam, com
os peitos nus, rolando grandes pesos em sentidos contrários até colidirem
uns com os outros. Após o choque um grupo gritava “por
que poupas?”. O outro gritava “por que gastas?”. Depois do choque
seguiam em sentido contrário até se encontrarem novamente,
do outro lado do círculo. E assim continuavam por toda a eternidade.
Com o coração pungido de desgosto, perguntei:
— Mestre, quem são essas pessoas? Eram padres essas almas
que vejo aqui do lado, com corte de cabelos em cercilha?
— Todos — respondeu o mestre —, em sua vida terrena, não
foram judiciosos com seus gastos. Isto declaram, quando se

Notas 20 (Continuação da "Notas 19 - 7.4)
tica (se for pessoa rica), prejudica o equilíbrio das riquezas na sociedade (a roda
da fortuna). Por exemplo, optar por pagar mais caro por um produto pode fazer
pouca diferença para uma pessoa de posses, dará maior lucro ao vendedor
e, numa escala maior, influenciará o mercado a praticar preços mais altos, prejudicando
os que não podem pagar mais. A prodigalidade geralmente está associada
à ostentação, à necessidade de esbanjar riqueza, de impressionar, etc.
7.5 A roda da Fortuna: Comentário de Salvatore Viglio (Frei Cassiano): “O tema
da Fortuna não era novo. Os pagãos chegaram a endeusá-la e a dedicar-lhe
templos. Ela distribui os bens da terra rotativamente por não poderem pertencer
todos a todos ao mesmo tempo. Dela dependem o alternar-se de miséria e
riqueza, de bem-estar e de penúria por que passam os indivíduos e as nações. É,
em outros termos, a Divina Providência que os pagãos chamam de Fortuna. A
sua existência explicaria assim o estado de miséria em que vivem freqüentemente
os sábios e os bons, destituídos de bens materiais, mas ricos, em compensação,
dos tesouros da sabedoria e da virtude.” [Viglio 70]
7.6 “Cada esfera que brilha reflete sobre as outras”: refere-se às esferas do Paraíso
(os planetas, o sol, a lua e as estrelas). A Fortuna é comparada aos anjos
(que cuidam do movimento dos planetas).

Inferno 20

encontram nas suas culpas opostas. Esses de coroa pelada são clérigos,
papas e cardeais, nos quais a avareza se manifesta mais facilmente.
— Mestre — falei — em um grupo como este certamente serei
capaz de reconhecer alguém.
— É inútil a tua esperança. — respondeu o mestre — Sua
vida sem conhecimento os tornou imundos e agora é mais difícil
reconhecê-los. Eternamente se enfrentarão, aqueles de punho cerrado
e aqueles outros sem cabelos. Mal dar e mal guardar os tirou
do mundo, colocando-os nessa rinha. Mas não vale a pena mais falar
deles. Vês, filho, como de nada adianta os homens brigarem pela
fortuna? Pois todo o ouro que está ou já esteve sob a Lua não
comprará um minuto sequer de descanso para essas almas cansadas.
— Mestre meu — disse eu — me dize o que é a Fortuna de
que agora falas? Como é que ela é, essa que guarda todas as riquezas
do mundo em suas mãos?
— Aquele cujo saber tudo transcende — explicou-me o mestre
— fez os céus e lhes deu quem os conduz, e cada esfera que brilha
reflete sobre as outras, distribuindo igualmente a luz. Do mesmo
modo, para as riquezas mundanas designou uma ministra para
que ela cuidasse de permutar, de tempos em tempos, os bens profanos
entre as nações e famílias, livres do alcance da cobiça humana.
Então, enquanto uma nação impera, outra enfraquece, de acordo
com o arbítrio dela, que é oculto como uma serpente na relva.
Vosso saber não tem poder sobre sua lei, pois ela prevê, julga e rege
sobre seu reino. E ela nunca pára. É amaldiçoada até por quem deveria
louvá-la, mas como é beata, ela não os ouve, e continua a girar
a sua roda eternamente.

Notas 21
7.7 O Rio Estige (Styx) é um dos rios do inferno clássico. Os outros são o Aqueronte,
o Flegetonte, o Letes e o Cócito. O Estige é um rio pantanoso que cerca
a cidade de Dite (nota 8.2). É também o quinto círculo onde ficam submersos
os iracundos.
7.8 Os vencidos pela ira são amontoados no rio Estige juntos com seus semelhantes
que não conseguiram controlar a raiva. São submetidos assim aos efeitos
da ira causados por seus semelhantes, e então se mordem, se batem e se torturam.
No fundo do Estige estão os rancorosos que, por nunca terem externado
sua ira, não podem subir à superfície e ficam a gorgolar a lama no fundo do
rio.

Inferno 21

Não demoramos mais naquele lugar pois o dia já chegava ao
fim, e nosso tempo era curto. Descemos então para o quinto círculo
por uma vereda escura onde nascia uma fonte de água preta e
fervente. Atravessamos o riacho e acompanhamos suas encostas
através de um caminho estreito, até que chegamos finalmente às
margens de um vasto pântano chamado Estige, onde o riacho desaguava.
Apesar da escuridão, pude ver naquela água escura, vultos nus
cobertos de lama remexendo-se, com feições iradas. Eles esmurravam-
se com as mãos, batiam cabeças, se chutavam e arrancavam as
peles uns dos outros com os dentes.
— Filho — disse o bom mestre —, aqui tu vês as almas dos
vencidos pela ira, e vou dizer-te ainda, se me crês, que embaixo
d'água há gente que suspira, fazendo-a borbulhar. São aqueles vencidos
pelo rancor, a ira contida e passiva, porém igualmente destrutiva.
Eles gorgolam o lodo e formam as bolhas que pipocam sobre
esta lama fétida.
Depois demos uma grande volta, seguindo entre o rio e a orla
seca, sempre observando aqueles que engoliam a lama, até chegarmos
ao pé de uma alta torre, no final.

Notas 22
Dante e Virgílio no Inferno. Pintura de Eugène Delacroix (século XIX) mostrando
Flégias, o barqueiro, que faz a travessia do rio Estige levando Dante
e Virgílio. O rio está repleto de almas iradas. Avista-se, no horizonte, a
cidade de Dite e o fogo eterno. (Museu do Louvre, Paris)

Canto VIII

Eu devo explicar que, bem antes de chegarmos ao pé daquela
torre, já observávamos as duas chamas que havia
no seu cume. Na escuridão do rio, outra luz tão distante
que quase não se via, respondia com um sinal. Voltei-me ao mar de
toda sabedoria, e perguntei:
— Que sinais são estes? E aquela outra chama, o que ela responde?
Quem é que as provoca?
— Sobre esta lama imunda em breve poderás perceber o que
se espera — respondeu Virgílio.
Mal ele terminara de falar, da escuridão surgiu um barquinho pilotado
por um barqueiro solitário, cortando a água em nossa direção.
— Chegaste, alma culposa! — gritou ele ao ancorar.
— Flégias, Flégias, desta vez tu gritas em vão — respondeu o
meu senhor —, pois só vais nos levar à outra margem e nada mais.
Contendo a sua ira, o barqueiro concordou. Meu guia calmamente
embarcou e depois eu entrei, e só então o barco pareceu carregado.
No meio do caminho, um ser lamacento surgiu das águas e me
chamou, perguntando:
— Quem és tu que vens antes do tempo?
— Venho — respondi —, mas não demoro, mas quem és tu
tão revoltoso?
— Eu sou um dos que chora, como podes ver.
— Com choro e com luto, espírito maldito, que assim
permaneças, pois eu te conheço, mesmo tão sujo!
Inferno 22

Notas 23
8 Personagens e símbolos do Canto VIII
8.1 Flégias (Phlegyas) era o rei dos Lapitas. Teve sua filha Coronis violada pelo
deus Apolo e, por isso, incendiou o templo de Apolo em Delfos como vingança.
Por não conter a sua ira, foi condenado, no inferno clássico, a permanecer
logo abaixo de uma pedra enorme, pendente, sempre prestes a cair sobre ele.
[Longfellow 67]
8.2 A cidade de Dite (Dis) é a cidade dolente, habitada pelos hereges que duvidavam
da sua existência. Serve de divisão entre os pecados cometidos sem intenção
(culpa) e os pecados cometidos conscientemente (dolo).
8.3 Filippo Argenti é conhecido apenas das obras de Dante e do Decamerão, de
Boccaccio. Teria sido um guelfo muito rico, forte e orgulhoso, mas de pavio
curto. A menor provocação era respondida de forma explosiva e irada. Provavelmente
era um guelfo da facção dos Neri e que teve algum desentendimento
sério com Dante.

Inferno 23

Depois que eu lhe respondi, ele irritou-se e saltou sobre o barco,
tentando me agarrar. Virgílio, porém, foi mais rápido e conseguiu
lançá-lo de volta ao rio.
— No mundo este homem foi pessoa orgulhosa — disse o
mestre — e nada de bom resta em sua memória. Por isto é que sua
alma está aqui tão furiosa. Quantos lá em cima se julgam grandes
reis e aqui estarão como porcos na lama?
— Mestre — falei —, muito me agradaria também vê-lo aqui
afundado na lama antes que saíssemos deste lago.
— Antes que apareça a outra costa — respondeu o mestre —
teu desejo será satisfeito.
Pouco depois, ouvi seus companheiros o massacrarem. Eles
gritavam: “Vamos pegar Filippo Argenti!”. Deleitei-me ao ver aquele
florentino arrogante morder a si mesmo com os dentes de raiva.
E lá o deixei, e disso não falo mais. Comecei, então, a ouvir
vozes dolorosas, que me impeliram a olhar adiante.
— E agora meu filho — chamou-me o mestre — nos aproximamos
da cidade que se chama Dite, com seus tristes cidadãos e
grande companhia.
— Mestre, — observei — já posso ver as suas mesquitas logo
acima do vale infernal! Elas brilham, vermelhas como ferro em brasa.
— É o fogo eterno que arde no seu interior que faz esse brilho
rubro se espalhar pelo baixo Inferno. — completou Virgílio.
Entramos no fosso que cerca a cidade e Flégias deu uma grande
volta em torno dela, onde pude observar seus muros que pareciam
ser de ferro. Quando chegamos diante da entrada da cidade, Flégias
gritou alto com toda a força:
— Saiam! Saiam logo! É aqui a entrada.

Notas 24
Flégias (o barqueiro) realiza a travessia do Rio Estige levando Dante e
Virgílio. Dentro do rio estão condenados pelo pecado da ira. Ilustração
de Gustave Doré (século XIX).

Inferno 24

Descendo do barco, fomos recepcionados por um grupo de
demônios. Eles chegaram e perguntaram:
— Quem é esse que, sem morte, anda pelo reino da morta
gente?
O sábio mestre veio em meu auxílio. Dirigindo-se aos demônios,
fez sinais indicando que gostaria de falar com eles secretamente.
Responderam os diabos, disfarçando sua arrogância:
— Tudo bem, mas vem tu sozinho. E esse outro aí, que achava
que podia andar como rei nesta terra, que prove que pode voltar
sozinho se souber, pois tu que o guiaste até aqui vais ficar conosco!
Apavorei-me diante dessas palavras e temi não mais poder
voltar a ver o mundo outra vez.
— Caro meu guia — chorei, em desespero —, que tantas vezes
me deste segurança, não me deixes, por favor! Se não pudermos
prosseguir nesta jornada, que voltemos já sem demora!
Mas ele, confiante, me respondeu:
— Não temas, porque o nosso passo, ninguém pode impedir.
Mas espera aqui e descansa. Não deixes de ter esperança, pois podes
ter certeza que não te deixarei sozinho neste mundo baixo.
Ele falou e foi encontrar-se com os diabos, e eu fiquei só a observar
de longe. Não ouvi a conversa. Só vi a briga de longe e a porta
da cidade se fechar diante de Virgílio, que voltou para mim cabisbaixo,
em um passo lento.
— Olha só quem me nega a cidade da dor! — disse, triste —
Mas não temas, pois ainda vencerei esta prova. A esta hora já deve
estar no portal deste Inferno alguém por quem esta entrada será
aberta.

Notas 25
9 Personagens e símbolos do Canto IX
9.1 Proserpina (Perséfone): Filha de Zeus e de Demeter (deusa da agricultura) na
mitologia grega. Foi raptada por Pluto (Hades) e se tornou rainha do mundo
subterrâneo.
9.2 Medusa: é uma das três górgonas – horrendos monstros da mitologia grega
que se assemelhavam a dragões, cobertos de escamas douradas e tendo serpentes
no lugar dos cabelos. Tinham asas enormes e rostos arredondados e feios,
com a língua sempre de fora mostrando os dentes afiados. Olhar para uma górgona
transformaria a pessoa em pedra. Medusa era a única das três górgonas
que não era imortal. [Encarta 97]
9.3 Erínias (Fúrias): são divindades do inferno segundo a mitologia grega e romana.
Obedecem a Hades (Pluto) e a Perséfone (Proserpina).

Canto IX
medo me tomou quando vi o semblante do mestre,
que se aproximava, e dizia quase para si:
ajuda nos fora pro O — Precisamos triunfar, se não... Mas não, ora! A
metida! Como demora!
Eu vi muito bem como ele mudou de tom ao tentar encobrir o
que falara, ou a palavra que não havia pronunciado, por isso mais
medo tive ainda, pois a frase que ele deixara incompleta, eu completei
com sentido pior.
— Alguma vez já desceu, a estes círculos profundos do Inferno,
alguém do Limbo? — perguntei-lhe.
— Isto é raro — respondeu-me o mestre —, mas é verdade
que eu mesmo já fiz esta viagem e desci até o círculo mais profundo,
quando uma vez fui convocado. Não se preocupe, pois conheço
bem o caminho.
Virgílio continuou a falar, mas, de repente, minha atenção se
voltou para o céu onde vi três Fúrias infernais. Eram figuras femininas,
ungidas de sangue e com serpentes ferozes no lugar dos cabelos.
O mestre, que já conhecia as escravas de Proserpina, me
apontou:
— Veja! São as Erínias ferozes! Aquela é Megera, à esquerda, e
aquela que chora à direita é Aleto. Tesífone é a do meio.
Elas gritavam alto e com as unhas rasgavam o peito. Eu fui
para junto do poeta, tomado pelo medo.

Inferno 25

Notas 26
9.4 Teseu: foi um grande herói de Atenas, conhecido por várias façanhas, entre
elas, aquela em que matou o Minotauro (12.1) de Creta e escapou do labirinto
com a ajuda de Ariadne, filha de Minós (5.2). Teseu também fez uma viagem ao
inferno (Hades) com Piritous – rei de Lapitas, para ajudá-lo a raptar Proserpina.
Pluto (7.1) matou Piritous e manteve Teseu como prisioneiro, mantendo-o sentado
no trono do esquecimento. Hércules (25.3) desceu ao inferno para salvar
Teseu e arrastou Cérbero para fora do mundo subterrâneo, arrancando toda a
pele em volta de seu pescoço.

Inferno 26

— Vem Medusa, vem! — gritavam — vamos transformá-lo
em pedra! Que pena que deixamos Teseu escapar!
— Fecha os olhos e volta-te! — gritou Virgílio — pois se a
górgona vier e tu olhares para ela, não haverá mais volta ao mundo!
— e com estas palavras ele me virou de costas e, não confiando nas
minhas mãos que já estavam sobre os olhos, colocou as dele sobre
as minhas e lá as manteve.
De repente, ouvi um grande estrondo e uma ventania tomou
conta do ar levantando poeira e fazendo um barulho assustador.
Depois, o Inferno começou a tremer. Ele então tirou as mãos dos
meus olhos e disse:
— Agora vira-te e olha na direção do pântano, onde a bruma é
mais espessa.
Olhei e vi mais de mil almas apavoradas no ar, fugindo, saindo
do caminho de um ser que vinha, caminhando sobre o Estige, sem
molhar os pés. Ele afastava o ar sujo com as mãos, e essa aparentava
ser a única coisa que o incomodava. Eu tinha certeza, agora, que
ele vinha do céu. Voltei-me para o guia mas ele fez um sinal para
que eu permanecesse em silêncio.
O anjo chegou e tocou as portas de Dite com uma pequena
vara, fazendo com que elas abrissem sem esforço.
— Ó almas mesquinhas — ele começou, sobre as portas da
cidade sombria — por que resistis contra aquela vontade que nunca
pode ser negada e que, mais de uma vez, só fez aumentar vosso sofrimento?
Depois de falar, voltou pelo mesmo caminho por onde tinha
chegado. Nós depois prosseguimos, seguros por suas palavras sagradas,
e entramos sem dificuldades pela porta principal.

Notas 27
9.5 Cidade dos hereges: Dite, como cidade dos mortos, contém um cemitério que
abriga vários grupos hereges, entre eles, aqueles que não acreditaram na sua
existência, como os seguidores das doutrinas de Epicuro, que negava a sobrevivência
da alma após a morte corporal.


Inferno 27

Já dentro da cidade, encontramos um cemitério de tumbas
abertas, de onde se ouvia o lamentar de muitas vozes que queimavam
em brasa dentro das covas.
— Mestre — perguntei —, que sombras são estas que aqui jazem
e que só podemos perceber pelos seus lamentos?
— São os hereges e seus seguidores. — respondeu-me Virgílio
— Em cada tumba repousam os réus de uma mesma seita, que são
torturados pelo fogo eterno.
Dobramos, então, à direita, e continuamos a caminhar entre a
muralha da cidade e as sepulturas.

Notas 28
Mapa 1: INFERNO SUPERIOR (vestíbulo e círculos I a V)
Portal do Inferno: “... Abandonai todas as esperanças, vós que entrais!” (Canto III)
Ante-inferno (vestíbulo): Fúteis e indecisos – aqueles que não tomaram partido do
bem ou do mal (são rejeitados pelo céu e inferno). São torturados por vermes e
vespas por toda a eternidade (Canto III).
Rio Aqueronte: Rio que cerca o inferno. A travessia (sem volta) é realizada por
Caronte – o barqueiro (Canto III).
Círculo I (Limbo): Os que não pecaram, mas não foram batizados. Não sofrem
porém não têm esperanças (Canto IV).
Minós: Juiz dos mortos. Monstro que se enrosca no próprio rabo e despacha os
pecadores às suas penas (Canto V).
Círculo II: Luxuriosos. São agitados dentro de turbilhões de vento que nunca
cessam (Canto V).
Círculo III: Gulosos. Jazem submersos na lama onde são dilacerados por Cérbero
(Canto VI) e cortados pela chuva eterna.
Círculo IV: Avarentos e gastadores. Passam a eternidade empurrando pedras
uns contra os outros sem finalidade (Canto VII).
Círculo V e Rio Estige: Dominados pela ira e pelo rancor. Massacram uns aos outros
dentro do rio nojento (Canto VII) ou gorgolam a lama no seu fundo.
Cidade de Dite: a cidade da dor eterna, cercada pelo Estige, protegida por diabos
e fúrias. Flégias: barqueiro do Estige realiza a travessia (Canto VIII).
Inferno 28
Mapa 1: Inferno superior. Ilustração de Helder da Rocha.
Notas 29
Túmulos dos hereges dentro da cidade de Dite. Ilustração de
Gustave Doré (século XIX).

Canto X

Passávamos por um caminho secreto, entre a muralha e as
sepulturas, quando eu perguntei ao mestre:
vê-las? Pergu
— Mestre, estas pessoas aqui enterradas, podemos vê-las? Pergunto isto já que todas as tumbas estão descobertas e ninguém as guarda.
— Elas serão um dia fechadas — respondeu —, quando aqui
retornarem com os corpos que deixaram lá no mundo. Este cemitério
que aqui vês é para Epicuro e seus seguidores, que acreditavam
que a alma morreria junto com o corpo. E quanto à outra questão
que me fizeste, ela será em breve respondida, assim como o desejo
que escondes de mim será atendido.
— Ó meu bom guia — falei — eu não escondo meu coração,
e se pouco falo, é porque tu mesmo me pedisse isto outras vezes.
— Ó toscano que falais com tamanha honestidade. Por vosso
sotaque reconheço que sois de minha cidade natal. Daquela nobre
cidade que tratei, talvez, de forma muito dura.
Isto eu ouvi soar de uma das tumbas. Assustado, fui para mais
perto do mestre, que disse:
— Volta! O que estás fazendo? Vê Farinata que já se ergueu.
Tu o verás em pé, da cintura para cima.
Eu já lhe fixava o olhar, e lá estava ele, imponente, como se nutrisse
grande desprezo pelo Inferno. Virgílio guiou-me até ele, dizendo:
— Vai, e escolhe tuas palavras com cuidado.

Inferno 29

Notas 30
10 Personagens e símbolos do Canto X
10.1 Epicuro (341-270): filósofo grego que ensinou em Samos e Atenas. Sua filosofia
materialista defende que todas as coisas são formadas por átomos cujas
combinações dão ao mundo sua estrutura particular. A moral de Epicuro – diferentemente
da reputação que adquiriu junto à igreja – recomenda gozar os
bens materiais e espirituais com ponderação e medida, de forma que seja possível
perceber o que neles há de melhor. O Epicurismo na opinião da Igreja era
uma heresia, pois considerando todas as coisas materiais, negava a existência da
alma e da vida após a morte. [Larrousse 98]
10.2 Farinata degli Uberti foi um dos mais importantes líderes dos guibelinos em
Florença. Participou da sangrenta batalha de Montaperti (nota 10.6), onde os
guibelinos massacraram os guelfos (partido da família de Dante) e retomaram o
poder em Florença. Levantou-se, depois, contra a maioria dos seus aliados
quando eles propuseram destruir a cidade, pouco após a retomada da cidade. O
discurso de Farinata convenceu os guibelinos que desistiram do projeto. Apesar
de ter pontos de vista diferentes dos de Dante, este o respeita por suas atitudes
apartidárias em favor da população de Florença.
10.3 Guido Cavalcanti era poeta e amigo íntimo de Dante e, como seu pai, era incrédulo,
por isso é esperado por ele entre os hereges.
10.4 Cavalcante di Cavalcanti pai de Guido Cavalcanti, pertencente a influente
família guelfa. Dante menciona que seu filho não apreciava a poesia de seu guia,
Virgílio. Cavalcante entende o verbo no passado como indicação que seu filho
não mais vivia, o que era falso. Cavalcante é incapaz de saber o que ocorre no
presente.


Inferno 30

E quando eu estava diante de sua tumba, ele me olhou um
pouco, meio desdenhoso e perguntou:
— Quem foram os vossos ancestrais?
E eu, que só desejava contentá-lo, nada escondi e contei-lhe a
verdade. Com isto, ele levantou um pouco as sobrancelhas, mas depois
disse:
— Tão duros na oposição foram a mim, aos meus parentes e
ao meu partido, que por duas vezes eu os expulsei.
— Mas duas vezes eles retornaram — repliquei —, coisa que
os vossos partidários nunca conseguiram fazer.
Enquanto conversávamos, fomos repentinamente interrompidos
pelo surgimento de um outro vulto, residente naquela mesma
tumba, que pude ver apenas do queixo para cima. Creio que estivesse
de joelhos. Ele olhou em volta esperando ver alguém. Não encontrando
quem ele procurava, falou chorando:
— Se neste cárcere cego vais por grandeza de engenho, onde
está meu filho? Por que ele não está contigo?
— Eu não estou só — disse-lhe — aquele que ali espera me
guia por estas trevas; aquele por quem, talvez, teu Guido nutria um
certo desprezo.
Pelo seu modo de falar e pela sua pena, não foi difícil descobrir
de quem se tratava, por isso minha resposta foi tão direta. Mas
subitamente ele ficou em pé, e gritou:
— Como? Disseste que ele nutria? Então ele não mais vive?
Então a luz doce não mais brilha nos seus olhos?
E quando percebeu que a resposta demorava demais, ele subitamente
afundou e não apareceu mais. Farinata continuava no
mesmo lugar onde estávamos quando a conversa fora interrompida.

Notas 31
10.5 A profecia de Farinata refere-se ao exílio de Dante que acontecerá em menos
de 50 meses, ou 4 anos (1304).
10.6 A Batalha de Montaperti (monte da morte): Uma das mais sangrentas batalhas
de toda a história ocorreu quando o exército de Siena – cidade governada pelos
guibelinos, enfrentou o exército de Florença – governada pelos guelfos. Do
lado de Siena estava o guibelino florentino Farinata degli Uberti que estava exilado
e pretendia recuperar o poder em Florença. A batalha durou do amanhecer ao
por do sol do dia 4 de setembro de 1260. O exército guelfo era muito mais numeroso
que o dos guibelinos mas estes eram mais agressivos. Um momento decisivo
da luta ocorreu quando o guelfo florentino Bocca degli Abati traiu o seu próprio
exército e junto com seus aliados, que esperavam o momento certo para atacar,
voltaram-se contra os guelfos e deram uma vitória fácil aos guibelinos. Mas os
guibelinos não ficaram satisfeitos. Foram atrás dos guelfos em fuga e os mataram
cruelmente, mesmo aqueles que já haviam se rendido. O resultado foi um saldo
de mais de 10 mil mortos que banhou o rio Arbia de sangue. [HistoryNet]


Inferno 31

Não se incomodou e sequer olhou para ver o que acontecia. Ele
simplesmente continuou de onde tinha parado:
— Se eles não sabem como retornar, isto me dói mais que o
fogo deste leito. Retornar não é fácil. Em menos de 50 luas, vós
mesmo sabereis como é difícil retornar de um exílio. E como eu espero
que vós estareis de volta ao doce mundo, dizei-me, por que
vosso partido é tão duro com os meus, nas leis que cria contra eles?
— Certamente, tudo começou com o massacre que tingiu o
rio Árbia de vermelho. — respondi, e ele balançou a cabeça.
— Nisso não fui só eu — respondeu — mas certamente eu
também não teria ido se não fosse por uma boa causa, mas, quando
eles decidiram, unânimes, pela destruição de Florença, fui somente
eu que me levantei e ousei defendê-la de rosto aberto.
— Que agora encontre a paz, a vossa descendência — respondi-
lhe — mas gostaria que vós me esclarecesses uma coisa. A
mim pareceu, se bem entendi, que todos vós têm a capacidade de
ver o futuro, mas com o presente, o mesmo não ocorre.
— Os espíritos são capazes de prever o futuro, mas não podem
ver o presente. Um dia, quando a porta para o futuro for fechada
para sempre, todo o nosso conhecimento será findo.
— Então — pedi, arrependido — dizei àquele que desceu na
tumba que o filho dele ainda vive. Foi por não compreender que os
espíritos nada sabiam do presente, que eu fiquei em silêncio.
O mestre já me chamava, então, fiz uma última pergunta a Farinata.
Perguntei-lhe se havia outros conhecidos que com ele compartilhavam
aquela tumba.

Notas 32
10.7 Frederico II foi rei da Sicília e Imperador do Sagrado Império Romano (1215-
1250). Foi excomungado duas vezes: primeiro pelo papa Gregório IX, e depois
pelo seu sucessor, o papa Inocêncio IV. Grande incentivador da cultura. A sua
corte na Sicília foi chamada por Dante de berço da poesia Italiana.
10.8 Cardeal Ottaviano degli Ubaldini era conhecido por apreciar os valores
mundanos e ser amigo dos guibelinos (partido que rejeitava a autoridade da
Igreja em favor da monarquia imperial).


Inferno 32

— Com mais de mil jazo neste valo. — respondeu — O imperador
Frederico está comigo, e também o Cardeal Ottaviano. Sobre
os outros, eu me calo.
Depois disso, calou-se e desapareceu. Eu perguntei ao mestre
sobre o que esperar das previsões de Farinata e ele me respondeu:
— Guarda em memória tudo o que aqui ouviste contra ti, mas
espera até chegares a encontrar Beatriz, pois o olhar dela tudo
conhece.
Dobrando agora à esquerda, caminhamos do muro para o
meio, onde começava uma vereda que descia para um fosso profundo,
de um ar mais espesso e malcheiroso.

Notas 33
11 Personagens e símbolos do Canto XI
11.1 O papa Anastácio II (496 d.C.) acolheu em Roma o diácono Fotino e foi
com ele acusado de heresia [Mauro 98]. Fotino era diácono de Tessalônica e foi
culpado de heresia por dizer que o Espírito Santo não procedia do Pai e que o
Pai era maior que o Filho.
11.2 Círculo da violência: Enquanto nos círculos da incontinência são punidos os
pecados da culpa causada pela falta de auto-controle, nos círculos da violência
são punidos os pecados dolosos, ou seja, que foram cometidos de forma consciente
e por vontade do pecador, que teve que agir de alguma forma para escolher
o mal. A violência é uma característica bestial do ser humano. Os seres mitológicos
que habitam este círculo são seres meio humanos e meio animais
como os centauros, o Minotauro e as Hárpias.
11.3 Círculo da fraude (fraude simples): A fraude é uma característica humana, pois
exige o uso do intelecto. O pecador, portanto, não só procurou o mal por vontade
própria como o planejou, premeditou o seu ato na sua mente antes de executá-
lo. Os seres mitológicos que habitam o oitavo círculo mentem, enganam e
trapaceiam. São demônios.


Canto XI
Chegamos à beira de um precipício, onde havia um barranco
derrubado, cujas pedras formavam uma grande rampa
que permitiria nossa descida. Porém, o ar denso e fedorento
que emanava do abismo, nos afastou de sua borda, de forma
que tivemos que nos proteger sob a cobertura de uma tumba onde
estava escrito: “Aqui jaz o papa Anastácio que Fotino desviou do
bom caminho”.
— Nós teremos que atrasar um pouco a nossa descida para
que possamos nos acostumar com este ar poluído — disse Virgílio.
— Devemos então encontrar uma forma de aproveitar esse
tempo utilmente — sugeri.
Ele concordou. Iniciou, então, uma detalhada explicação sobre
a geografia dos três círculos restantes do Inferno.
— Meu filho, depois deste barranco há mais três círculos,
concêntricos, organizados em degraus, como os anteriores. — disse
ele. — Toda a maldade é alcançada ora através da violência ora através
da fraude. Embora ambas sejam odiadas pelo céu, a fraude, por
ser uma perversão exclusiva do homem, desagrada mais a Deus. Os
fraudulentos, portanto, são colocados nas valas mais profundas do
Inferno, onde sofrem muito mais.
O próximo círculo (sétimo) que nós encontraremos é o dos
violentos, que se divide em três giros, classificados de acordo com a
vítima da violência praticada. No primeiro giro estão aqueles que
praticaram violência contra o próximo ou contra os bens do próxi-

Inferno 33

Notas 34
11.4 Círculo da traição (fraude complexa): A traição é o pior dos crimes. É o mal
planejado e executado contra uma pessoa desarmada e indefesa que assim se encontra
por se sentir segura diante do agressor, no qual confia. Este pecado é representado
por Lúcifer, que traiu a Deus. O próprio Lúcifer se encontra no centro
da terra, no nono círculo onde tortura eternamente os traidores humanos.
11.5 A justiça infernal: respeita a filosofia de Aristóteles que afirma, no início do
livro VII da obra Ética a Nicômaco: “deve ser observado que há três aspectos das
coisas que devem ser evitados nos modos: a malícia, a incontinência e a bestialidade.”
A alma incontinente tem culpa, mas a culpa é menos grave que o dolo, a
vontade de pecar. Esta vontade, quando surge de ocasião, como manifestação da
natureza animal é ainda menos grave que aquele pecado que é cometido de
forma arquitetada, premeditada, usando a inteligência própria do ser humano a
serviço do mal. Ainda assim, é menos grave um indivíduo arquitetar e executar
um crime contra um desconhecido, que pode se defender de um estranho que o
ameaça, que ele fazer o mesmo com alguém que confia nele, e por isto está indefeso
e desarmado. A traição, portanto, recebe a justa punição máxima, nas profundezas
mais profundas do inferno. Mark Musa observa que a justiça do inferno
é um sistema dual, que pode ser ilustrada da seguinte forma [Musa 95]:
11.6 Ética a Nicômaco: obra de Aristóteles. Virgílio a chama de “sua Ética” porque
sabe que Dante a conhece bem. A Ética foi comentada por Tomás de
Aquino e tem influência na organização dos círculos do inferno. Veja nota 11.5.
11.7 Física: obra de Aristóteles. No livro II, capítulo 8, escreve “em geral a arte
humana ou completa o que a natureza é incapaz de fazer ou imita a natureza.”
11.8 O Gênese instrui o homem a tirar da natureza e de sua arte (trabalho) a sua sobrevivência:
“em fadiga comerás dela todos os dias da tua vida. Ela produzirá
também espinhos e comerás as ervas do campo. Do suor do teu rosto comerás
o teu pão, até que tornes à terra, porque dela foste tomado; pois és pó, e ao pó
tornarás.” (Genesis 3:17-19)
11.9 Cronologia: já é madrugada do sábado de aleluia, segundo Virgílio.
Pecados de incontinência (círculos 2 a 5)
malícia através da violência (círculo 7)
através da fraude (círculos 8 e 9)

Inferno 34

mo. Lá sofrem os assassinos, assaltantes e tiranos em grupos diferentes,
de acordo com a gravidade de seus crimes. No segundo giro
estão aqueles que praticaram a violência contra si próprios ou contra
seus próprios bens. Os suicidas e gastadores que arruinaram suas
próprias vidas (no jogo, por exemplo) se encaixam neste grupo.
No último giro do sétimo círculo estão aqueles que praticaram violência
contra Deus. São os que, orgulhosos, não acreditaram nele ou
que o atacaram com blasfêmias, através da destruição e desprezo
pela sua criação ou pela exploração da criação dos seus filhos através
da usura.
Nos dois últimos círculos estão os que praticaram a fraude.
Eles premeditaram seus atos e têm plena consciência do mal que
causaram. Um homem pode praticar dois tipos de fraude: contra
pessoas que confiam nele ou contra estranhos que podem suspeitar
dele. Este último tipo só destrói o vínculo do homem com a natureza
e é punido no oitavo círculo onde encontraremos hipócritas,
aduladores, ladrões, falsários, simoníacos, sedutores e trapaceiros.
O primeiro tipo de fraude desfaz não só o vínculo do homem com
a natureza, mas também aquele vínculo de confiança estabelecido
com outros homens. É, portanto, no menor dos círculos, no nono
e último, junto com Dite (Lúcifer), onde são punidos os que traíram
aqueles que neles confiaram.
Quando o mestre concluiu seu discurso, perguntei-lhe:
— Por que alguns pecadores cumprem suas penas (mais leves)
fora da cidade de Dite e outros cumprem penas mais pesadas dentro
da cidade? Por que todos não estão aqui?
— Será que tu já esqueceste o que diz a tua Ética — respondeu
—, quando ela explica em detalhes, as três coisas que ao Céu

Notas 35
Vista da cidade de Dite, sexto e sétimo círculos. Ilustração de Helder da
Rocha.


Inferno 35

mais desagradam: incontinência, malícia e bestialidade? A culpa por ter
pecado por causa de incontinência ofende menos a Deus. Se tu
lembrares com cuidado essa doutrina, entenderás por que aqueles lá
de cima foram separados destes maliciosos aqui em baixo.
A explicação foi bastante esclarecedora, mas uma dúvida ainda
me atormentava. Eu não entendia como a usura podia ser um pecado
de ofensa a Deus. Fiz, então, essa pergunta a Virgílio, que me
respondeu:
— Mostra a filosofia, àquele que a compreende, como a Natureza
se manifesta a partir do intelecto divino e da sua Arte. Se recorreres
a tua Física, encontrarás, bem no início, como a vossa Arte
também imita a Natureza. E, como o aprendiz que segue os ensinamentos
do seu mestre, a Arte, sendo filha do homem, torna-se
quase neta de Deus. Se lembras o que diz o Gênese, logo no início:
convém ao homem tirar da Natureza e de sua Arte os meios para a
sua sobrevivência. Mas o usurário, ao seguir outros caminhos, agride
à Natureza e a Arte, que dela deriva, pois em outra coisa (o dinheiro)
põe suas esperanças.
A aurora já se aproximava e o mestre me chamou para continuar
a jornada, pois ainda faltava muito antes que chegássemos à
descida para o rochedo.

Notas 36
12 Personagens e símbolos do Canto XII
12.1 O Minotauro: Monstro mitológico com corpo de homem e cabeça de touro.
Nasceu da recusa do rei Minós (5.2) em sacrificar um touro enviado por Netuno,
o que motivou o deus a fazer com que a esposa de Minós se apaixonasse
pelo touro e com ele tivesse um filho, que foi o Minotauro. Depois do seu nascimento,
o Minotauro foi aprisionado em um labirinto criado por Dédalo. O
labirinto era tão complexo que ninguém jamais conseguira escapar dele e, perdido,
sempre acabava devorado pelo Minotauro. O herói grego Teseu (9.4) entrou
no labirinto com um carretel de linha oferecido por Ariadne, filha de Minós,
conseguiu matar o Minotauro e escapar com vida.

Canto XII
Descemos por uma rampa formada por um enorme deslizamento
de pedras, causado provavelmente por um
terremoto ou pela contínua erosão. O barranco derrubado
esculpia vários caminhos íngremes e irregulares da beira do
precipício até embaixo, permitindo a descida com dificuldade.
Quando descíamos por esse caminho tortuoso, encontramos, na
beira do barranco destruído, o Minotauro de Creta. O touro ficou
tão enfurecido quando nos viu que mordeu suas próprias mãos de
raiva. Mas Virgílio logo o afastou, gritando:
— Pensas talvez que estás vendo o duque de Atenas, que no
mundo te trouxe a morte? Vai embora, besta, que este só vem aqui
para conhecer vossas penas!
Tentando escapar, assustado com aquela voz revestida de autoridade,
o Minotauro começou a bufar e espernear, escoiceando
como se tivesse sido ferido. O mestre, alerta, gritou:
— Vamos andando! Rápido! Vamos aproveitar para escapar
enquanto ele se consome em sua fúria.
Seguimos então pelas pedras, que eu freqüentemente sentia
balançarem sob os meus pés. Eu pensava sobre as ruínas quando o
mestre falou:
— Imagino que pensas sobre estas ruínas, guardadas por
aquela fera semi-humana. Quero que saibas que, quando aqui estive
da última vez, esta avalanche ainda não havia acontecido. Se eu bem
lembro, ela ocorreu pouco antes da descida Daquele que veio ao In-

Inferno 36

Notas 37
12.2 O rio Flegetonte (Phlegethon) é o rio de sangue fervente que tortura os pecadores
que foram violentos contra os seus semelhantes. Na mitologia grega é
um rio de fogo. Dante só revela o nome deste rio de sangue mais adiante.
12.3 Centauros: Monstros mitológicos que tinham o corpo de cavalo da cintura para
baixo e de homem da cintura para cima. Os centauros se destacavam por sua
natureza selvagem e violenta. A única exceção era o centauro Quirón.
12.4 Quirón foi o mais sábio dos centauros. Diferentemente dos outros da sua espécie,
Quirón não agia de forma selvagem e era conhecido por sua sabedoria e
bondade. Educou vários heróis gregos, entre eles Aquiles (5.8) e Jasão (18.4).
12.5 Os violentos contra o próximo: Como o Minotauro e os centauros que dividem
sua natureza animal com a sua natureza humana, os pecadores mergulhados
no rio Flegetonte mantém imersa sua parte animal – bestial e violenta, no
rio de sangue daqueles que oprimiram. Quanto mais grave o crime, maior a parte
imersa. Os assaltantes, dentro do rio, são indistinguíveis dos centauros, pois
têm apenas o peito de fora. São punidos por terem praticado violência contra
os bens de suas vítimas. Os homicidas só mantém fora a cabeça. Tiraram a vida
de suas vítimas. Os tiranos só mantém acima da superfície suas sobrancelhas.
Eles atentaram contra a vida e contra os bens de suas vítimas.

Inferno 37

ferno para levar os justos para o céu. Na ocasião, todo este abismo
tremeu. Não só aqui houve destruição, mas também em outras partes.
Mas olha lá para baixo que em breve avistarás o rio de sangue
fervendo as almas dos violentos contra seus semelhantes.
De lá do alto vi uma larga fossa, curva como um arco, assim
como o mestre me descrevera, que se estendia por todo o plano
abaixo. Na base do penhasco apareceu uma ala de centauros, armados
com flechas. Quando nos viram, três deles se afastaram do grupo
e vieram na nossa direção, armados, com as flechas esticadas,
prontas para atirar. Um deles então gritou:
— Vocês aí! O que querem? Que tortura procuram? Falem
logo ou eu atiro!
— Nossa resposta daremos somente a Quirón, teu chefe! —
gritou o mestre de volta. — Só com ele falaremos pois tu estás demasiado
nervoso. — Depois ele voltou-se para mim e disse —
Aquele ali é Nesso, que morreu pela bela Dejanira, e fez do seu
sangue sua própria vingança. O do meio, que contempla seu peito,
é o grande Quirón, que educou Aquiles; o último é Fólo, aquele que
nos ameaçou cheio de ira.
Quando estávamos diante dos centauros, ouvimos Quirón falar
aos outros dois:
— Vocês perceberam que aquele que está atrás move tudo o
que toca? Isto não é o que fazem normalmente os pés de um morto!
O mestre, que já estava diante do centauro e ouvira o final da
conversa logo lhe esclareceu:
— Ele está, de fato, vivo, e eu fui designado para guiá-lo por este
caminho. Ele faz esta viagem por necessidade e não por prazer. Ele
não é ladrão nem eu alma criminosa. — e pediu — Dá-me para nos

Notas 38
12.6 Nesso: Centauro que, ao morrer ferido por Hércules (25.3), disse à sua esposa
Dejanira que seu sangue era um poderoso afrodisíaco. Dejanira então banhou
uma túnica no sangue de Nesso e a deu para Hércules vestir. O sangue revelouse
um veneno e levou Hércules a morte.
12.7 Alexandre é provavelmente o tirano de Pherae (368-359 a.C), contemporâneo
de Dionísio, cuja crueldade extrema fora relatada nas obras de Cícero.
12.8 Dionísio (430-360 a.C.): foi tirano de Siracusa, Sicilia. Venceu várias guerras
contra Cartago e tornou Siracusa a cidade mais poderosa da Itália grega. Dionísio
era conhecido por patrocinar o teatro. Era também ator e freqüentemente
atuava nos festivais dramáticos de Atenas. [Encarta 97]
12.9 Azzolino: foi tirano da cidade de Pádua.
12.10 Obizzo d'Este: foi tirano da cidade de Ferrara.
12.11 Guy de Montfort: Em 1272, durante a missa numa igreja de Viterbo, Guy de
Montfort apunhalou e matou o príncipe Henrique, filho de Ricardo da Cornualha,
como forma de vingar a morte de seu pai, vítima do rei Eduardo I. De acordo
com Giovanni Villani, o coração de Henrique foi colocado numa taça de
ouro sobre uma coluna central da torre de Londres, onde até hoje o sangue
pinga sobre o Tâmisa. [Musa 95]
12.12 Átila, o Huno (406-453): chamado de flagelo de Deus, era rei dos Hunos. Invadiu
a Europa deixando um rastro de destruição e morte. Devastou o norte da Itália
mas morreu antes que pudesse invadir Roma.
12.13 Pirro: Segundo alguns comentaristas é o rei de Epiro, que venceu os romanos
três vezes entre 280 e 276 a.C.[Musa 95] Para outros é o filho de Aquiles. [Mauro
98]
12.14 Sexto: o filho mais novo de Pompeu, segundo a maioria dos comentaristas.
Outros acreditam que seja Sexto Tarquinio Superbo que estuprou e causou a
morte de Lucrécia, a esposa de seu primo. [Musa 95]
12.15 Rinier da Corneto e Rinier Pazzo: foram famosos salteadores nas estradas da
Toscana. [Mauro 98]

Inferno 38
guiar um do teu povo, para que nos leve à passagem onde o rio fica
raso e possa levar este nas costas, pois ele não é espírito que voa.
Quirón, então, voltou-se para Nesso e ordenou-lhe que nos
mostrasse o caminho. Partimos com a fiel escolta, margeando o rio
de sangue, onde almas ferviam e gritavam de dor. Lá eu vi almas
submersas até os olhos.
— Esses que tu vês mergulhados até os olhos — explicou o
centauro —, são os tiranos que tiraram o sangue e os bens de suas
vítimas. Aqui choram por seus feitos desumanos Alexandre e Dionísio,
que fez a Sicília sofrer durante anos. Aquele de cabelos negros
é Azzolino e o outro, louro, é Obizzo d'Este.
Pouco adiante, parou outra vez o centauro, e mostrou-nos alguns
que ficavam submersos no sangue até a garganta.
— Eis aquele que assassinou, durante a missa, aquele outro
cujo coração ainda sangra sobre o Tâmisa — indicou Nesso.
Mais adiante, eu mesmo pude reconhecer alguns dos réus cujo
peito já emergia. À medida em que caminhávamos o nível do sangue
ia baixando até que enfim só ardia a sola dos pés. Lá finalmente encontramos
um trecho raso por onde podíamos atravessar.
— Assim como vês o rio fervente aqui, deste lado, ficando
cada vez mais raso — disse o centauro —, do outro lado ele se torna
cada vez mais fundo, até chegar ao ponto de maior profundidade
que é onde sofrem os tiranos. É lá que a divina justiça atinge Átila,
que foi um flagelo na terra, e Pirro e Sexto; e para sempre espreme as
lágrimas que o sangue escaldante produz de Rinier da Cornetto e
Rinier Pazzo, que transformaram as estradas em campo de guerra.
Chegando a outra margem, descemos da garupa de Nesso. Ele
então, atravessou o rio novamente e se foi.

Notas 39
13
Centauros aguardam Dante e Virgílio diante do rio de sangue fervente
onde sofrem os culpados de violência contra o próximo (assaltantes,
assassinos e tiranos). Ilustração de Gustave Doré (século XIX).

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