quarta-feira, 6 de abril de 2011

A Divina Comédia | Inferno - Cantos XXXI ao XXXIV (Últimos Cantos)

Canto XXXI
Dando as costas àquele vale miserável, escalamos o rochedo
e chegamos à última beira, que atravessamos em
silêncio. A escuridão era imensa e meus olhos podiam
ver muito pouco, quando ouvi uma trombeta soar tão forte que parecia
o som de um trovão. O estrondo me fez voltar o olhar para o
horizonte onde percebi o que pareciam ser torres de uma cidade.
— Mestre — perguntei a Virgílio —, que cidade é aquela?
— A escuridão o impede de ver o que realmente são essas torres.
— respondeu — Não é uma cidade. O que vês são as silhuetas
de gigantes que estão dentro do poço e, por serem tão altos, parte
do seu corpo desponta além do nível deste círculo.
Dito isto, continuamos a caminhar na direção das “torres”. À
medida em que nos aproximávamos da beira do poço, a neblina se
tornava menos densa e os gigantes começavam a tomar forma, aparecendo
à minha vista ao mesmo tempo em que o meu medo crescia.
Finalmente pude distinguir um dos rostos, os ombros, os braços,
o peito e boa parte do ventre de um deles. O rosto, acredito,
era tão largo quando a cúpula de São Pedro em Roma, e em igual
proporção era todo o resto de seu corpo.
— Raphael may amech zabi almi — gritou o gigante.
— Ó alma tola — respondeu Virgílio — fica com essa tua
trompa, que está presa a teu peito, e faze uso dela para descarregar
tua raiva! — e depois voltou-se para mim — Ele mesmo se acusa.
Ele é Nemrod, o construtor da torre de Babel. Para ele, língua

Inferno 92

Notas 93
31.2 Nemrod (Nimrod, Ninrode) é personagem de várias lendas mesopotâmicas
onde é associado ao herói Gilgamesh. É sempre retratado como um grande caçador.
Também aparece no Gênese (10: 8, 9) como filho de Ham e neto de Noé,
considerado “grande caçador aos olhos de Jeová”. Dante o retrata como o responsável
pela construção da Torre de Babel, por isso a fala de Nemrod não faz
sentido algum.
31.3 Efialte: Filho de Netuno. Foi um gigante que, junto com o gigante Otus, ameaçou
os deuses tentando empilhar as montanhas Olimpo, Ossa e Pelion para que
pudesse alcançar o céu. (Odisséia, XI)
31.4 Briareu: Filho da Terra. Foi outro gigante que desafiou os deuses do Olimpo.
Homero o descreve como tendo cem braços e cinqüenta cabeças.
31.5 Anteu: Filho de Netuno e da Terra, era invencível enquanto estivesse em contato
com a sua mãe Terra. Hércules o venceu levantando-o do chão e o esmagando
em pleno ar. Ele não participou da revolta contra Júpiter e por isso não
está acorrentado.
31.6 Tifeu e Tício: Dois outros titãs, filhos da Terra, que se revoltaram contra Júpiter.
31.7 Cócito (Cocythus): O lago das lamentações fica no centro da terra e é formado
pelas lágrimas de Lúcifer e pelos rios do inferno que nele deságuam seu sangue.
No Cócito estão imersos os traidores, que se distribuem por quatro giros
diferentes, dependendo da gravidade da traição cometida. Os giros chamam-se
Caína, Antenora, Ptoloméia e Judeca. Este último está reservado à punição dos traidores
dos seus benfeitores e é lá que se encontra Lúcifer.


Inferno 93

alguma faz sentido, portanto vamos deixá-lo pois é perda de tempo
tentar falar com ele.
Deixamos Nemrod e viramos à esquerda, prosseguindo pela
beirada, até encontrarmos mais adiante outro gigante acorrentado.
Sua mão esquerda estava atada na frente, sua mão direita estava
presa atrás e uma enorme corrente o apertava, dando cinco voltas
do pescoço até a cintura, até onde eu pude ver.
— Ele quis provar que era melhor que Jove — disse-me o
mestre — e aqui tem a sua recompensa. É Efialte, cujos braços que
antes moveu contra os deuses agora permanecem imóveis.
— Se for possível — disse eu —, gostaria de conhecer o descomunal
Briareu.
— Não muito longe daqui — disse o mestre —, tu verás Anteu,
que está solto e falante. Será ele que irá nos levar até o fundo.
Aquele que queres ver está muito longe. Ele também está amarrado
e se parece muito com este aqui, embora tenha uma aparência mais
assustadora.
De repente Efialte se sacudiu de uma forma como nunca vi
torre alguma tremer, nem nos piores terremotos. Eu teria morrido
do susto se eu não tivesse antes visto a corrente que o prendia, e
que me dava confiança.
Continuamos pelo nosso caminho até pararmos diante do gigante
Anteu. Meu mestre elogiou seus feitos e depois pediu com
cortesia:
— Anteu, este que está comigo pode espalhar tua fama pelo
mundo, pois ainda vive. Para que ele não precise recorrer a Tifeu ou
a Tício, te peço que nos leve lá para baixo, onde o frio do Cócito
congela.

Notas 94
Anteu ajuda Dante e Virgílio na descida ao nono círculo
(Lago Cócito). Ilustração de Gustave Doré (século XIX).


Inferno 94

Assim falou o mestre e o gigante estendeu as mãos para que
nelas subíssemos. Virgílio subiu primeiro. Quando já estava seguramente
apoiado na mão de Anteu ele me chamou e me suspendeu.
Assim que o gigante se inclinou eu me senti como se estivesse em
uma torre que estava prestes a desabar. Mas o medo durou pouco.
Cuidadoso, Anteu nos deixou no fundo daquele poço gelado. Depois
que estávamos seguros sobre o chão, ele se levantou e se foi.

Notas 95
32 Personagens e símbolos do Canto XXXII
32.1 Os filhos do conde Alberto degli Alberti são os irmãos Napoleone e Alessandro.
Após a morte do pai, se desentenderam por causa da herança e acabaram
matando um ao outro. [Longfellow 67]


Canto XXXII
Chegamos ao fundo do Universo depois de descer um
pouco mais, abaixo do ponto onde o gigante havia nos
deixado. Eu ainda olhava admirado para o altíssimo
muro, quando ouvi meu mestre falar:
— Olha para baixo e tenhas cuidado para não pisar nas cabeças
dos pobres sofredores.
E então eu olhei em volta e vi sob os meus pés um lago gelado.
O chão era tão duro e liso que parecia vidro. As almas estavam
submersas no gelo com apenas o tronco e a cabeça de fora. Todos
mantinham seus rostos voltados para baixo e batiam os queixos de
frio.
Depois de muito olhar para aquela multidão, vi aos meus pés,
duas almas tão juntas que até seus cabelos tinham se entrelaçado.
— Dizei-me vós que assim juntam os peitos — pedi —. Dizei-
me, quem sois?
Quando me ouviram os dois olharam para mim e começaram
a chorar. Suas lágrimas logo congelaram, unindo mais firmemente
um ao outro. Irritaram-se por causa disso e, tomados pela raiva, se
agitaram e ficaram violentamente a bater cabeças.
Antes que eu voltasse a interrogá-los, um outro espírito que
perdera as duas orelhas congeladas pelo frio falou:
— Por que tanto nos olhas? Esses aí são dois irmãos, filhos de
Alberto, donos do vale onde flui o rio Bisenzo. Se procurares em
toda a Caína não encontrarás almas mais merecedoras deste tor-

Inferno 95

Notas 96
32.2 Focaccia era membro da família guelfa Cancellieri de Pistóia. Ele é acusado de
ter cortado a mão de um de seus primos e de ter assassinado o tio. Os seus crimes
provocaram a divisão da família Cancellieri em duas partes. Os descententes
de Bianca (primeira esposa de Cancellieri) se apelidaram de Bianchi (brancos).
Os descendentes da outra esposa se denominavam Neri (negros). A briga
de família acabou se espalhando e chegou a Florença onde os grupos se tornaram
partidos políticos [Sayers 49]. Veja nota 6.7.
32.3 Caína é a primeira das quatro divisões do nono círculo onde são punidos os
traidores de parentes. Na Caína, as almas permanecem submersas com apenas o
tórax e a cabeça fora do gelo. Seu nome tem origem no personagem bíblico Caim
que matou seu irmão Abel por causa de inveja (Gênese 4:8).
32.4 Antenora é o segundo giro do nono círculo onde são punidos os traidores de
sua pátria ou partido político. As almas ficam submersas no nível do pescoço,
com apenas suas cabeças fora do gelo. O nome foi tirado de Antenor, o príncipe
troiano que traiu o seu país ao manter uma correspondência secreta com os
gregos.
32.5 Mordred era sobrinho do rei Artur. Ele tentou matar o rei para tomar-lhe o
poder. O rei o matou com um só golpe de sua lança. O golpe foi tão violento
que quando a lança foi retirada, o sol penetrou pela ferida, furando sua sombra.[
Musa 95]
32.6 Sassol Mascheroni era membro da família Toschi de Florença. Segundo os
primeiros dantólogos, ele assassinou o seu sobrinho para se apossar de sua herança.[
Musa 95]
32.7 Camicione de' Pazzi de Valdarno matou seu parente Ubertino. O crime dele
é menos grave que o de outro parente, Carlino de' Pazzi, que traiu por dinheiro
seus correligionários, entregando ao inimigo o castelo de Piano em Valdarno,
de onde vários exilados florentinos foram seqüestrados e assassinados. Por ter
traído a sua pátria, Carlino deverá ser punido na Antenora. [Mauro 98] e [Longfellow
67]

Inferno 96

mento que esses dois, nem aquele que teve seu peito e sombra perfurados
por um só golpe da lança de Artur, nem Focaccia e nem
este, cuja cabeça me encobre a visão. Ele é Sassol Mascheroni e se
és toscano, deves saber quem ele foi. Eu fui Camicione dei Pazzi e
espero aqui pela chegada de Carlino, meu parente, cuja pena fará a
minha parecer bem menos grave.
Adiante vi mil faces, roxas de frio, que ainda hoje me fazem
tremer ao lembrar. Continuamos, seguindo adiante na direção do
centro. No caminho, não sei se por destino ou fortuna, ao passar
distraído pelas cabeças, acabei atingindo uma delas fortemente no
rosto com o meu pé.
— Por que me atropelas? — gritou a alma em pranto. — Se
não vens para acrescer a vingança de Montaperti, porque me molestas?
Voltei-me ao mestre e solicitei que parássemos pois eu suspeitava
que conhecia aquela alma desgraçada, que ainda gritava e nos
insultava. Virgílio parou e eu fui até ela.
— Quem és tu que assim insultas os outros? — perguntei.
— E tu? Quem és tu que vais pela Antenora chutando os outros
na cara como se fosse vivo? — perguntou-me a alma.
— Vivo eu sou! — respondi —, e poderei servi-lo na busca de
tua fama, se eu puder acrescentar teu nome às minhas notas.
— Essa é a última coisa que eu desejaria! — respondeu —
Vai-te embora daqui, vai! Não é assim que se consegue as coisas
nesta lama.
Com isto eu agarrei o desgraçado pelos cabelos e disse:
— É bom que digas logo o teu nome, ou não te sobrará um
fio de cabelo sequer!

Notas 97
32.8 Bocca degla Abati traiu os guelfos na batalha de Montaperti (nota 10.6) cortando
a mão do portador da bandeira da cavalaria de Florença, o que causou a
desorganização do exército guelfo e serviu de sinal para que seus aliados entrassem
em ação, entregando a vitória da batalha aos guibelinos.
32.9 Os traidores apontados por Bocca são Buoso da Duera – chefe do partido
guibelino de cremona e conhecido traidor; Tesauro de Beccheria – ábade de
Vallombrosa e legado papal de Alexandre IV na Toscana que mantinha uma
correspondência secreta com guibelinos exilados; Gianni de Soldanier – guibelino
ilustre de Florença que, ao perceber que o poder passaria para o lado dos
guelfos, abandonou seu partido e se juntou aos guelfos; Ganellone – o cavaleiro
que traiu Rolando, entregando-o aos sarracenos; e Tebaldello degli Zambrasi
– guibelino de Faena que facilitou a tomada de sua cidade pelos guelfos
de Bolonha em 1280. [Musa 95]

Inferno 97

— Não! — o espírito respondeu — Eu não digo de jeito nenhum!
Tu podes arrancar todos os meus cabelos, podes me pelar
mil vezes se quiseres mas nunca, nunca ouvirás de mim o meu
nome!
Eu já tinha arrancado um feixe dos seus cabelos quando um
outro gritou:
— O que é que tu tens Bocca? Já não basta agüentar o ruído
do teu queixo que bate sem parar? Por que não te calas?
— Ora, ora — disse eu — não é preciso mais que fales, maldito
traidor. Bem que eu desconfiei. Não te preocupes que eu levarei
ao mundo a verdade sobre ti.
— Vai embora — respondeu — e conta o que quiseres! Mas se
saíres daqui, não deixes de falar também desse traidor aí que me delatou.
Ele é Buoso de Duera que aqui paga pela prata dos franceses. Se
te perguntarem quem mais havia neste poço, este que vês aí do teu
lado é o Beccheria. E, se procurares um pouco, aqui também encontrarás
Gianni de' Soldanieri junto com Ganellone e Tebaldello.
Pouco depois que deixamos Bocca vi dois espíritos congelados
juntos num mesmo fosso. Um deles mordia a nuca do outro ferozmente
como se estivesse faminto.
— Ó tu que mostras com cada mordida o ódio que sentes por
essa cabeça que devoras, dize-me — pedi —, dize-me a razão pela
qual ages assim. Se a tua razão for justa, sabendo quem sois vós e o
pecado desse outro, prometo que no mundo acima retribuirei tua
confiança, ou que minha língua fique seca para sempre.

Notas 98
33 Personagens e símbolos do Canto XXXIII
33.1 Conde Ugolino della Gherardesca, originalmente de família gibelina era, junto
com o seu neto Nino dei Visconti, um dos líderes guelfos que exerciam a
sua autoridade sobre a cidade de Pisa. Ugolino estava insatisfeito em ter que dividir
o poder com Nino, então, traiu seu partido e aliou-se ao arcebispo guibelino
Ruggieri degli Ubaldini que era apoiado pelos Lanfranchi, Sismondi,
Gualandi e outras famílias gibelinas. Juntos, eles tramaram a expulsão ou prisão
de todos os seguidores de Visconti e Ugolino assumiu o poder. Mas o conde
sempre achava que poderia ser traído e por isso tratou de eliminar aqueles dos
quais suspeitava. Teria mandado envenenar o seu sobrinho, o conde Anselmo
da Capraia, temendo que a popularidade do sobrinho reduzisse sua autoridade.
Percebendo que os guelfos estavam enfraquecidos no governo de Ugolino, o
arcebispo Ruggieri aproveitou a ocasião para traí-lo, divulgando pela cidade a
notícia de que o conde Ugolino havia traído a população, e que havia entregue
seus castelos aos povos de Florença e Lucca. Conseguiu provocar uma revolta
popular que culminou com a invasão do castelo de Ugolino, que foi forçado a
se render. Ruggieri, vitorioso, mandou prender Ugolino numa torre posteriormente
chamada de “torre da fome”. Prendeu também, na mesma cela, Uguccione
e Gaddo, filhos de Ugolino, Anselmuccio e Brigata, netos do conde. Meses
depois os pisanos lacraram a torre e atiraram a chave no rio Arno. Em poucos
dias todos morreram de fome. (Baseado em relato de G. Villani) [Longfellow
67]
Canto XXXIII
O pecador virou-se, afastou a boca daquela terrível refeição,
limpou seus lábios nos cabelos do crânio que devorava,
e falou:
— Queres que eu me recorde de um terrível pesadelo. Mas, se o
que eu disser puder trazer uma infâmia maior a este traidor de quem
arranco as peles, tu ouvirás o meu relato e o meu pranto. — e prosseguiu
— Eu não sei o teu nome, nem de onde és, mas pareces florentino.
Tu deves saber que eu fui o conde Ugolino, e que este outro é o
arcebispo Ruggieri. Por causa de sua perversa astúcia, por confiar neste
desgraçado eu fui traído, detido e morto, como vês. Mas antes saibas
da forma cruel como fui morto para que possas julgar-me. Se o
pensamento do que agora vou dizer não te tocar o coração, como tu
és cruel! E, se não chorares, será que alguma vez choras? Eu fui preso
com meus quatro filhos em uma cela para morrer de fome. Todos os
dias meus filhos choramingavam e me pediam pão, e o pão nunca
chegava. Eu ouvi o portão da torre lá embaixo ser lacrado com pregos
e então olhei para as faces dos meus, e não lhes disse nada. Eu não
chorei. Me transformei em pedra por dentro. Eles choravam e meu
pequeno Anselminho falou “O que tens, meu pai, o que é que há?”
Não respondi e nem uma só lágrima caiu durante todo o dia, nem durante
toda a noite seguinte. Quando um raio de Sol clareou aquele cárcere
doloroso por um instante, me vi refletido nos quatro rostos, e
mordi minhas mãos de desespero. E eles, pensando que eu mordia
minhas mãos de fome, me disseram: “Pai, nós sofreremos menos se

Inferno 98

Notas 99
Almas traidoras submersas no Lago Cócito (Antenora). Ilustração de Gustave
Doré (século XIX).


Inferno 99

comeres de nós. Tu nos vestisse com estas míseras carnes e tu podes
tomá-las de volta!” Fiquei quieto para não me tornar mais triste. Durante
esse dia, e o outro, ninguém falou nada. No quarto dia, Gaddo
lamentou aos meus pés “Pai meu, por que não me ajudas?” e depois
morreu. Depois eu os vi morrendo um a um, do quinto ao sexto dia,
os outros três. Por mais dois dias, já cego, chorei sobre seus corpos
mortos, até que no oitavo dia a morte me levou.
Quando terminou de falar, virou seu rosto para a sua vítima e
voltou a atacar aquele crânio com os dentes, como um cão que não
solta o seu osso. Ai Pisa, que vergonha és para a nossa Itália! Se o
conde Ugolino era culpado de ter traído um dos castelos teus, nada
justificava que seus filhos fossem torturados.
Seguimos adiante até o lugar onde o gelo maltrata de forma
mais dura os pecadores. Com os rostos virados para cima, nem nos
olhos a sua angustia encontra alívio, pois lá se forma uma barreira
de gelo no primeiro choro, quando as lágrimas congelam e preenchem
toda a cava do olho.
Embora o frio tivesse afastado toda a sensação do meu rosto,
comecei a sentir uma leve brisa e perguntei ao mestre:
— Mestre, que vento é este? Pensei que vento algum poderia
chegar a estas profundidades.
— Logo saberás — respondeu Virgílio — pois teus próprios
olhos te darão a resposta.
Enquanto conversávamos, um dos desgraçados submersos no
gelo nos ouviu e gritou:
— Ó réus tão cruéis que para vós foi imposta a pior das penas,
tirai este gelo de meus olhos, e me livrai da dor que impregna
meu coração, até que novas lágrimas selem meus olhos outra vez.

Notas 100
33.2 Ptolomeia é o penúltimo giro do lago Cócito onde são punidos os traidores de
seus hóspedes. As almas estão presas no gelo do lago apenas com o rosto para
fora de forma que, quando choram, suas lágrimas congelam e cobrem seus olhos.
O nome origina-se do personagem bíblico Ptolomeu (I Macabeus 16, 11)
onde o capitão de Jericó convida Simão e seus dois filhos ao seu castelo e lá,
traiçoeiramente, os mata a sangue-frio: “pois quando Simão e seus filhos haviam
bebido bastante, Ptolomeu e seus homens se levantaram, e sacaram de suas
armas, e chegaram até Simão na sala de ceia, e o mataram, e seus dois filhos, e
parte dos seus servos.” [Longfellow 67]
33.3 Frei Alberigo de Manfredi era um dos frades gaudentes (frades alegres) mencionados
no Canto XXIII (23.2). Tendo feito as pazes com seus inimigos, ele os
convidou para um jantar em sua casa. No dia do jantar, ele escondeu assassinos
de aluguel nos aposentos próximos à sala de jantar e deu ordens aos seus servos
que, depois que servissem as carnes, deveriam servir as frutas, e que este seria o
sinal para que os homens armados saíssem de seus esconderijos e matassem todos
os hóspedes. E assim foi feito. [Longfellow 67]. Na tradução de Italo Mauro,
Frei Alberigo se apresenta da seguinte forma: “Eu sou frei Alberigo; aquele
eu sou das frutas do mau horto, que aqui recebo tâmara por figo.” (Inferno
XXXIII: 118-120) referindo-se à pena que agora recebe, bem pior que o crime
praticado. [Mauro 98]. Em 1300, data do poema, Alberigo ainda vivia.
33.4 Ser Branca d'Oria era um respeitado e poderoso cidadão de Gênova. Apesar
disso, teria sido o mandante ou assassino do seu sogro, o corrupto Michel Zanche
(22.2), mencionado no Canto XXII. [Longfellow 67]. Ele ainda estava vivo e
gozava de liberdade quando o poema Inferno foi publicado e Dante teria sido
ofendido pelos amigos de d'Oria numa de suas visitas a Gênova, pelo que foi
considerada “a mais atroz das invenções do poeta.” (Cesare Balbo, Vita di Dante)

Inferno 100

— Eu prometo te ajudar, mas dize primeiro quem és. — falei.
— Se eu não cumprir o que prometi, que possa eu então chegar ao
fundo desta geleira.
— Sou frei Alberigo. — disse o espírito. — aquele das frutas
do mau horto, e aqui recebo tâmara por figo.
— Oh! — exclamei. — Então tu já estás morto?
— Pode até ser que meu corpo ainda esteja lá em cima, — respondeu
— mas nenhuma ligação tenho mais com ele. Quando uma
alma comete traição tão estúpida quanto a minha, o seu corpo lá na
Terra é imediatamente possuído por um demônio que o governa até
que chegue o seu dia. A alma que antes habitava o corpo cai aqui na
Ptoloméia. Mas tu que chegas agora deves também conhecer esse aí
do lado. Ele é ser Branca d'Oria e está aqui neste gelo há muito mais
tempo do que eu.
— Creio que me enganas — disse eu —, pois que eu saiba,
Branca d'Oria ainda vive. Ele come e bebe, dorme e veste roupas!
— É ele sim! — insistiu o frei Alberigo — Antes de Michel
Zanche, sua vítima, chegar ao fosso guardado pelos Malebranche,
ele já congelava neste lago. O seu corpo foi, na ocasião, recebido
por um diabo, que provavelmente ainda o possui. Mas já falei o suficiente.
Estende logo tua mão e livra-me os olhos!
Ele pediu, mas eu não obedeci. E foi cortesia minha ser-lhe vilão.
Ah genoveses! Vós que sois avessos a toda lei e adeptos da
corrupção; por que o mundo não se livra de uma vez de vossa gente?
Pois, fazendo companhia ao pior espírito da Romanha, vi um
dos vossos, cujas obras eram tais que sua alma já congela no Cócito,
mas seu corpo parece vivo e ainda caminha entre vós.

Notas 101
Mapa 4: CÓCITO (círculo IX)
Anteu: Gigante que auxilia Dante e Virgílio na descida para o Cócito (Canto
XXXI).
Caína: Parte do Cócito onde são punidos os traidores de parentes, submersos
no gelo com a cabeça e peito de fora (Canto XXXII).
Antenora: É o local onde são punidos os traidores da pátria, submersos no gelo
com parte da cabeça de fora (Canto XXXII).
Ptoloméia: É onde estão submersos no gelo os traidores de seus hóspedes, com
o rosto virado para cima (Canto XXXIII).
Judeca: É onde são punidos os traidores de seus benfeitores, completamente
submersos (Canto XXXIV).
Lúcifer: Gigante enorme com três caras e seis asas. Cada face mastiga um pecador:
Judas, Cássio e Brutus (Canto XXXIV).
Fosso do Cócito: É onde permanece Lúcifer. Liga-se à montanha do purgatório
do outro lado da terra (Canto XXXIV).
Mapa 4: Lago Cócito. Ilustração de Helder da Rocha.

Inferno 101

Notas 102
34 Personagens e símbolos do Canto XXXIV
34.1 Judeca é o nome do giro mais baixo do último círculo do inferno. É lá que reside
Lúcifer, fazendo companhia àqueles que, em vida, traíram seus benfeitores.
Eles sofrem intensamente devido à proximidade de Lúcifer, e por estarem
submersos totalmente no gelo do lago Cócito, conscientes, para a eternidade. O
nome vem de Judas Iscariotes (34.5), o traidor de Jesus Cristo.
34.2 Lúcifer é o portador da luz, o anjo que ocupava cargo da mais alta confiança e
que, rebelando-se, traiu a Deus e por isto foi expulso do céu, vindo a cair na
terra. Na sua queda, ele afundou pela superfície e só veio parar quando chegou
ao centro da terra, sobre a qual passou a reinar. Os comentadores Ottimo e
Benvenuto identificam as três faces de Lúcifer como símbolos opostos à Trindade:
o ódio, a ignorância e a impotência. Outros vêem Lúcifer como uma representação
da própria terra e suas faces como representações dos três continentes
conhecidos: Europa, Ásia e África. [Longfellow 67]. Uma interpretação
interessante sobre os três pecadores que são mastigados por Lúcifer é a seguinte
(na imaginação do dantólogo Gabrielle Rossetti): “Os três espíritos que pendem
da boca de Lúcifer são Judas, Brutus e Cássius. Não se sabe a razão precisa
pela qual o autor escolheu essas três personalidades, mas não hesitamos em supor
ter sido a seguinte: ele considerava o papa não só um traidor e vendedor de
Cristo: ‘... e isso logo terá que ora o pensa, onde Cristo, dia a dia, se mercadeja’ (Paraíso,
XVII, 50-51), mas também um traidor de César. Por isso colocou Judas (traidor
e vendedor de Cristo) na sua boca central e Brutus e Cassius (traidores de César)
nas suas bocas laterais, já que o papa, que originalmente nada mais era que
o vigário de César, tornou-se seu inimigo, e usurpou a capital do seu império e
a autoridade suprema. Sua traição a Cristo não foi descoberta por todo o mundo,
logo, o rosto de Judas está oculto: ‘Esse, que sofre aí pena dobrada, é Judas Iscariote
- disse o guia - com as pernas fora e a cabeça abocada.’ (Inferno XXXIV, 61-63). Sua
traição a César foi clara e evidente, portanto Brutus e Cassius mostram suas faces.”
[Longfellow 67] (Gabriele Rossetti, Spirito Antipapale, I. 75); trechos do Inferno
e Paraíso na tradução de [Mauro 98]

Inferno 102

Canto XXXIV
— Estamos diante das bandeiras do rei do Inferno — disse-me
Virgílio —, olha para a frente e vê se consegues discerni-lo.
Comecei a ver, na distância, o que parecia ser um grande moinho,
que provocava aquelas rajadas de vento gelado. Estávamos
chegando ao lugar onde eram punidos aqueles que traíram os seus
benfeitores. Neste lugar sombrio e gelado, as almas estavam completamente
submersas no gelo, transparecendo como palha em cristal.
Algumas estavam de pé, outras de ponta-cabeça, outras atravessadas,
outras em arco, outras curvadas e outras invertidas.
Quando já tínhamos caminhado o suficiente, o mestre decidiu
me mostrar aquele que um dia teve tão belo semblante:
— Esse é Dite — disse ele — e este é o lugar que exige toda a
coragem que tens em ti.
Não me perguntes, leitor, como eu fiquei fraco e gelado, pois
não há palavras que possam descrever aquela sensação. Eu não
morri, nem estava vivo. Tente imaginar, se puderes, como sem uma
coisa nem outra eu fiquei. Vi aquele gigante submerso no gelo, despontando
seu corpo do peito para cima. Só o seu braço tinha o tamanho
de um daqueles gigantes que encontramos na entrada do
lago. Fiquei mais assombrado ainda quando vi que três caras ele tinha
na sua cabeça. Toda vermelha era a da frente. A da direita era
amarela e a da esquerda negra. Acompanhava cada uma, um par de
asas como as de morcego (eu nunca vi um navio com velas tão
grandes). E ele as abanava, produzindo três ventos delas resultantes.

Notas 103
34.3 Bruto (Marcus Junius Brutus, 85-42 a.C.): Político romano que teve grande
poder durante o império de Júlio César (4.16). Entrou para a história ao tramar,
na primavera de 44 a.C., a morte de César juntamente com Cássio. Tendo conseguido
seu intento, formou um grande exército na Macedônia com a intenção
de tomar o poder no império romano, mas foi derrotado pelo exército de Marco
Antônio e Otaviano que depois tornou-se imperador. Bruto suicidou-se.
[Encarta 97]
34.4 Cássio (Gaius Cassius Longinus): General romano do exército de Júlio César
e um dos líderes da conspiração que levou César à morte. Junto com Bruto,
Cássio foi um dos assassinos de César. Foi derrotado em batalha quando tentava
tomar o poder em Roma junto com Bruto e suicidou-se para que não fosse
capturado. [Encarta 97]
34.5 Judas Iscariotes: foi um dos discípulos de Jesus Cristo, conhecido por tê-lo
traído ao vendê-lo aos fariseus por 30 moedas de prata. Depois de sua traição,
caiu em desespero e suicidou-se. (Evangelho de Mateus 26-27)
34.6 Cronologia: “o dia já amanhece” diz Virgílio (no original, “il sole a mezza terza
riede”). Uma terça corresponde às primeiras três horas depois do nascer do sol
[Mauro 98]. Meia-terça, portanto, corresponde a 7:30 da manhã de sábado. Há
pouco tempo eram 7:30 da noite de sábado. Dante não entende como o tempo
pode ter mudado tão rapidamente do dia para a noite. Virgílio explica que passaram
pelo centro da terra, e agora o sol brilha do outro lado.

Inferno 103

Era esse vento que congelava as águas do Cócito. Ele chorava por
seis olhos e dos três queixos caía uma sangrenta baba que pingava
junto com as lágrimas. Em cada boca ele moía um pecador. O da
frente ele mordia mais rapidamente que os outros. Cada ceifada lhe
arrancava a pele inteira.
— Esse da frente é Judas Iscariote — disse-me o mestre —
que sofre pena dobrada, com a cabeça para dentro e as pernas para
fora. O que é mordido pela boca preta é Bruto e o outro é Cássio.
Mas em breve será noite. Está na hora de partirmos, pois já vimos
tudo o que há para se ver. Agora, agarre-se em mim firmemente.
Obedeci-o e ele me carregou, se dirigindo para as costas de
Lúcifer. Aguardou um pouco e quando as asas estavam altas, saltou
da beira de um fosso para a escuridão, mas logo agarrou-se às costas
peludas do Demônio. Descemos mais ainda. Estávamos entre as
costas de Lúcifer e às crostas congeladas do Cócito. Quando chegamos
à altura da junção da coxa ao tronco do gigante infernal,
meu guia, já mostrando sinais de fadiga, inverteu o corpo e, sem
soltar os pelos do monstro, seguiu, como se subisse, me fazendo
pensar que voltávamos para o Inferno.
— Segura firme — disse ele — pois não há outro caminho. Só
por estas escadas poderemos escapar de tanto mal.
E saímos por uma brecha na rocha. Virgílio, visivelmente
exausto por ter me carregado, me colocou numa beira para que eu
me sentasse. Olhei para cima procurando por Lúcifer mas não o
achei. Encontrei-o lá embaixo de pernas para o ar. Virgílio me confundiu
ainda mais, falando:
— Levanta-te pois o caminho é longo. O dia já amanhece!

Notas 104
34.7 O centro da terra é onde mora Lúcifer (Dite). É o centro de gravidade. Quando
Dante e Virgílio passam pelo centro da terra, que fica na virilha de Lúcifer, a
gravidade passa a puxá-los na direção oposta, de forma que, o que antes era
uma descida, passa então a ser uma subida. Na passagem pelo centro, Dante e
Virgílio ganham 12 horas, provocadas pela mudança de fuso horário. Volta a
ser sábado de manhã outra vez.
34.8 Montanha do Purgatório é uma enorme montanha que, na mitologia de Dante,
existe no Oceano Pacífico Sul em posição diametralmente oposta a Jerusalém.
Não há continentes em todo o hemisfério que cerca a montanha do purgatório.
Os três continentes: Europa, África e Ásia ocupam o hemisfério oposto.
Segundo Dante, a montanha do purgatório foi criada por ocasião da queda de
Lúcifer, quando a terra seca que antes formava continentes naquele hemisfério,
fugiu amedrontada para o hemisfério oposto e a terra que havia no centro do
planeta, fugiu para o sul, tentando galgar o céu. A terra acumulou-se em um único
ponto e acabou por formar uma altíssima montanha que alcança o céu: o
monte purgatório. Como resultado, não restou um só continente no hemisfério
da queda, somente um enorme oceano, e o caminho entre Lúcifer e o purgatório
ficou aberto por uma passagem estreita. A montanha do purgatório foi vista
por Ulisses, na sua última viagem (Canto XXVI e nota 26.5).
34.9 Cronologia: Dante e Virgílio passaram um dia inteiro atravessando a terra e
ressurgem na superfície no domingo de Páscoa, antes do amanhecer.

Inferno 104

— Como amanhece? — perguntei-lhe — O tempo passou tão
depressa assim? Como já pode ser dia se agora há pouco começava
a noite? E me esclareças mais: onde está a geleira? E por que Lúcifer
está de cabeça para baixo?
— Tu pensas que ainda estamos do outro lado. — disse-me o
guia — Nós passamos pelo centro da terra, que puxa todo peso.
Estamos agora embaixo do céu oposto, no hemisfério de água. Sob
teus pés está uma pequena esfera, cujo lado oposto é ocupada pela
Judeca. Se do outro lado anoitece, aqui o dia nasce. Este buraco por
onde passamos foi formado quando Dite caiu do céu, e ele até hoje
aí permanece. Depois da queda, por medo dele, a terra que formava
os continentes deste lado fugiu para o nosso céu deixando encoberto
pelo mar todo este hemisfério. A terra que estava aqui amontoou-
se na superfície onde formou uma montanha, deixando este caminho
vazio. Aí embaixo há um lugar, tão distante de Belzebú
quanto o limite de sua tumba, conhecido pelo som (e não pela vista)
de um pequeno riacho que para cá descende, pelo sulco que por ele
foi aberto.
Passamos então o resto do dia seguindo por aquele caminho
escondido debaixo do chão, sem descanso algum. Depois da longa
caminhada subimos, ele primeiro e eu atrás, passando por uma pequena
abertura na pedra, para enfim, rever as estrelas.

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