terça-feira, 26 de abril de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Capítulos 6 ao 10

CAPITULO VI

Mr. Hindley regressou a casa para o funeral. E, para
espanto de todos, vizinhança incluída, trouxe com ele uma
esposa.
Ninguém sabia ao certo quem ela era, nem de onde vinha.
Rica não era decerto, nem devia vir de família distinta, caso
contrário Mr. Hindley não teria ocultado do pai o seu
casamento.
Não era pessoa que perturbasse a tranquilidade da casa com
o seu feitio. Assim que lá entrou pela primeira vez, ficou
imediatamente apaixonada por todo e qualquer objecto que viu.
O mesmo se passava com tudo o que a rodeava, excepto, claro,
os preparativos para o funeral e a presença dos amigos do
defunto.
Cheguei até a pensar que fosse um pouco pateta, tendo em
conta o seu comportamento naquela ocasião. Correu para o
quarto, e obrigou-me a ir com ela, embora eu tivesse de estar
a vestir as crianças. E, depois, ficou sentada a tremer e a
contorcer as mãos, fazendo sempre a mesma pergunta:
-- Já se foram embora?
Pôs-se em seguida a descrever de forma histérica o estado
em que ficava quando via gente de luto; tremia e estremecia e
acabou por cair num pranto. Quando lhe perguntei o que se
passava, respondeu que não sabia, mas que tinha muito medo de
morrer! Cá para mim, ela tinha tão poucas probabilidades de
morrer como eu própria. Era bastante magra, mas muito nova e
de aspecto saudável, com uns olhos que reluziam como dois
diamantes. Porém, recordo-me de que, quando subia as escadas a
correr, ficava com a respiração muito alterada, e que bastava
um ruído mais repentino para se descontrolar, outras vezes,
tinha uma tosse esquisita; desconhecia, no entanto, qual a
origem destes sintomas, e não me sentia muito inclinada a ter
pena dela. Sabe, Mr. Lockwood, normalmente :, não nos
costumamos interessar muito por forasteiros, a não ser que
sejam eles os primeiros a mostrar interesse por nós.
O jovem Earnshaw tinha mudado consideravelmente durante os
seus três anos de ausência. Emagrecera, estava pálido e falava
e vestia-se de forma diferente. Assim, no preciso dia em que
chegou, chamou-nos, a mim e ao Joseph, e disse que a partir
daquele momento devíamos remeter-nos à cozinha e deixar os
cuidados da casa à sua responsabilidade. Preocupado com o
conforto da mulher, chegou mesmo a querer mandar atapetar e
forrar a papel um dos quartos desocupados, para o transformar
numa saleta. Mas ela tinha gostado tanto daquele chão todo
branco, da enorme e acolhedora lareira, dos pratos de
estanho, do lonceiro e da casota do cão, e do desafogo desta
sala onde costumavam passar o tempo, que ele acabou por mudar
de ideias e achar desnecessária a tal saleta.
Ela ficou também tão radiante por encontrar uma irmã na sua
nova família que, no início, andava sempre à volta de
Catherine com conversas tolas, paparicando-a, dando-lhe
beijinhos e oferecendo-lhe imensos presentes. Estes exageros
afectivos depressa desapareceram e começou a tornar-se
rabugenta, ao mesmo tempo que Hindley se tornava cada vez mais
tirânico. Bastava que ela deixasse fugir alguma crítica
relativa a Heathcliff para fazer despertar em Hindley todo o
seu velho ódio contra o rapaz. Começou por retirá-lo da sua
companhia e alojou-o com os criados. Depois, privou-o das
aulas com o cura, argumentando que ele devia trabalhar era no
campo e obrigando-o a tarefas tão árduas como qualquer outro
trabalhador da quinta.
A princípio, Heathcliff aguentou relativamente bem esta
despromoção, uma vez que Cathy continuava a ensinar-lhe as
lições, trabalhando e brincando com ele na quinta.
As duas crianças tinham prometido crescer como selvagens e,
como o jovem patrão descurava totalmente a sua educação,
viviam livres da sua tutela. Nem sequer se preocupava em saber
se iam à missa aos domingos, se não fossem as chamadas de
atenção do Joseph e do cura para a sua negligência, sempre que
as crianças faltavam às suas obrigações. Só então se lembrava
de açoitar Heathcliff e mandar Catherine para a cama sem
jantar e sem ceia.
Uma das brincadeiras preferidas dos garotos era escaparem-se
para a charneca de manhãzinha, onde permaneciam durante todo o
dia. E, no final, o castigo passou também a ser encarado como
mais :, uma brincadeira; o cura bem podia obrigar Catherine a
decorar todos os capítulos da Bíblia; Joseph bem podia bater
em Heathcliff até lhe doer o braço; no fim, bastava
juntarem-se de novo para voltarem a esquecer tudo, enquanto
engendravam novo plano de vingança. Quantas vezes chorei de
desgosto ao ver como aquelas pobres almas cresciam de dia para
dia cada vez mais irresponsáveis! Contudo, não me atrevia a
fazer qualquer comentário, não fosse perder o pouco poder que
ainda detinha sobre aqueles meninos tão mal amados.
Certo domingo, ao entardecer, foram proibidos de entrar na
sala, devido ao barulho que faziam, ou outra qualquer diabrura
do género. Quando chegou a hora da ceia, fui à procura deles,
mas não os consegui encontrar.
Procurámos por toda a casa, bem como no pátio e nos
estábulos. Nada. Por fim, Hindley, num acesso de cólera,
ordenou-nos que trancássemos as portas e não os deixássemos
entrar em casa naquela noite.
Entretanto, os criados recolheram-se. Eu, no entanto,
estava demasiado preocupada para me ir deitar e, por isso, sem
me importar com a chuva, abri a janela e fiquei à escuta,
decidida a desobedecer à proibição e deixá-los entrar.
De repente, ouvi passos na estrada e vi uma luz ténue a
atravessar a cancela.
Embrulhei-me no xaile e corri para evitar que batessem à
porta e acordassem Mr. Earnshaw. Era Heathcliff. Fiquei
assustada ao vê-lo sozinho.
-- Onde está Miss Catherine? -- perguntei de chofre. -- Não
lhe aconteceu nada, pois não?
-- Está na Granja dos Tordos -- respondeu. -- E eu também
lá podia estar, se me tivessem convidado.
-- Estás bem arranjado! -- disse-lhe eu -- Parece que
gostas de apanhar pancada. Que vos passou pela cabeça para
irem para a Granja dos Tordos?
Deixa-me só tirar estas roupas molhadas e já te conto tudo,
Nelly -- respondeu.
Pedi-lhe que tivesse cuidado para não acordar o patrão e,
enquanto ele trocava de roupa e eu esperava para apagar a
vela, prosseguiu:
-- Eu e a Cathy fugimos pelo lavadouro e decidimos dar um
passeio em liberdade. Como vimos luz lá para os lados da
Granja, :, apeteceu-nos ir ver com os nossos próprios olhos se
os Linton também passavam o domingo à noite vagueando pelos
cantos da casa, enquanto os pais comem e bebem à farta,
cantando e rindo junto à lareira. Achas que sim, Nelly? Ou
então a lerem sermões ou a serem catequizados por um criado
doido; ou ainda a serem obrigados a decorar uma lista de nomes
bíblicos, caso não respondam correctamente?
-- Acho que não. -- respondi. -- São crianças bem
comportadas que não merecem o mesmo tipo de tratamento que os
meninos recebem pelos seus maus modos.
-- Não me venhas com histórias, Nelly disse. -- Que
disparate! Continuando, fizemos uma corrida desde o cimo do
Alto dos Vendavais até ao parque da Granja sem parar. A
Catherine perdeu porque estava descalça. A propósito, amanhã
tens de procurar os sapatos dela no lodaçal. Trepámos por uma
abertura da sebe, subimos pelo carreiro às apalpadelas e
sentamo-nos num pote, por baixo da janela da sala. Era daí que
vinha a luz. Não tinham fechado as persianas e os reposteiros
estavam entreabertos; como estávamos ao nível do rés-do-chão,
conseguíamos ver lá para dentro. Depois, quando nos agarramos
ao peitoril, tivemos uma visão extraordinária: uma sala
lindíssima, com carpetes vermelhas no chão, cadeiras e mesas
da mesma cor e um tecto branco como a neve, com um friso
dourado e um lustre ao meio, de onde pendiam gotas de chuva,
presas a correntes de prata, que brilhavam como estrelas. Mr.
e Mrs. Linton não se encontravam na sala. O Edgar e a irmã
estavam completamente sozinhos. Como eles deviam estar
felizes! Para mim, era como se estivesse no paraíso! Agora,
adivinha o que aqueles dois estavam a fazer? A Isabella, que
deve ter onze anos, ou seja, um ano a menos que a Cathy,
estava a um canto a berrar desalmadamente, como se lhe
estivessem a espetar agulhas em brasa; o Edgar estava ao pé da
lareira, a chorar baixinho e, no meio da mesa, havia um
cachorrinho que abanava a pata e gania. Pelas acusações
mútuas, vimos logo que cada um queria ficar com o cão para si.
Que idiotas! Era assim que se divertiam! Primeiro, discutem
por causa de uma bola de pêlo e depois põem-se a chorar só
porque já não querem o animal. Claro que nos desatámos a rir
perante miúdos tão mimados. Como os desprezávamos! Imagina se
eu ia alguma vez querer aquilo que a Catherine deseja! Já
alguma vez nos encontraste a fazer perrices pelos cantos da
casa? Nem que me pagassem, trocaria a minha vida pela do Edgar
Linton da Granja :, dos Tordos. Nem mesmo se me deixassem
atirar o Joseph do alto de uma torre ou pintar a fachada desta
casa com o sangue do Hindley!
-- Fala mais baixo! -- interrompi. -- Ainda não me disseste
onde pára Miss Cathy.
-- Já te disse que nos fartámos de rir -- respondeu. --
Pois é, os Linton ouviram-nos e correram como setas em
direcção à porta. Houve um momento de silêncio e depois um
grito, «_Mamã, mamã!! Papá! Depressa, venham cá. Olhe, papa,
olhe!» Era mais ou menos assim que eles guinchavam. Fizemos
uns ruídos terríveis para os assustarmos ainda mais, mas como
alguém abrisse a porta, largámos imediatamente o peitoril e
preparámo-nos para fugir. Foi então que, ao agarrar a mão da
Cathy, para a ajudar, ela se estatelou.
-- Foge Heathcliff, foge! -- sussurrou-me. -- Soltaram o
cão e ele agarrou-me!
-- O raio do bicho tinha-lhe abocanhado o tornozelo, Nelly.
Ouvi-o rosnar, mas ela não gritou, não senhora! Preferia
manter-se calada, nem que fosse trespassada pelos chifres de
um touro. Eu, no entanto, pus-me a rogar tantas pragas que
bastariam para aniquilar todas as almas do Inferno. Peguei
numa pedra e meti-lha entre os queixos, tentando, com toda a
força que tinha, enfiar-lha pelas goelas abaixo. Finalmente,
apareceu a besta do criado com uma candeia a gritar:
-- «_Agarra Skulker, agarra!»
-- Porém, quando viu o que o cão estava a agarrar, mudou
logo de tom. O cão foi afastado violentamente pela trela,
quase ficando esganado: a sua grande língua rosada pendia-lhe
da boca e, dos beiços, pingava uma mistura de baba e sangue.
-- O homem pegou na Cathy, que, entretanto, perdera os
sentidos, não do medo, mas da dor. Levou-a para dentro de
casa. Eu fui atrás dele, gritando tudo o que me vinha à cabeça
de insultos e ameaças.
-- «_Então, Robert, qual é a pressa?», perguntou o Linton
da entrada.
-- «_O Skulker apanhou uma menina» respondeu. «_E está
também aqui um rapaz« acrescentou, agarrando-me, «que parece
um ladrãozeco! Com certeza, os ladrões que por aí andam
tencionavam metê-los dentro de casa para depois lhes abrirem a
porta e nos matarem a todos durante o sono. Cala-te, meu
safado, ou vais parar à forca. Não largue a espingarda, Mr.
Linton!»
-- «_Está descansado, Robert» disse o tonto do velho.
«_Estes :, patifes sabiam que ontem era o dia de receber as
rendas e pensavam que me podiam roubar. Entrem, vão ter uma
óptima recepção. John, tranca a porta. E tu, Jenny, dá de
beber ao Skulker. Assaltar um magistrado na sua própria
residência, e ainda por cima no Dia do Senhor! Onde é que isto
irá parar? Mary, querida, olha-me só para isto! Não tenhas
medo, é apenas um garoto. Porém, o rapaz tem cá uma cara que
seria um favor para todos enforcá-lo imediatamente, antes que
passe das palavras aos actos.»
-- Levou-me para debaixo do lustre. Mrs. Linton pôs os
óculos e elevou as mãos aos céus horrorizada. Os filhos
aproximaram-se cobardemente. Isabella ciciou:
«_Meu Deus, que coisa mais horrível! Feche-o na cave, papá.
É igualzinho ao filho daquela cigana que roubou o meu faisão
de estimação, não é, Edgar?
-- Enquanto me examinavam, a Cathy recuperou os sentidos,
Tinha ouvido esta última frase e riu-se. O Edgar Linton,
depois de a mirar apatetado, lá arranjou coragem para
finalmente a reconhecer. Encontramo-nos sempre aos domingos
na igreja. Tirando isso, é raro vermo-nos.
-- «_Mas... É Miss Earnshaw!» segredou ele à mãe. «_Olha
como o Skulker a mordeu. O pé dela está a sangrar!»
-- «_Miss Earnshaw? Que disparate!» exclamou a senhora.
aMiss Earnshaw, vagueando pelos campos com um cigano! E
depois, filho, a menina está de luto. Mas... É mesmo ela! E a
pobre menina pode ficar aleijadinha para toda a vida!»
-- «_Mas que enorme descuido do irmão!» exclamou Mr.
Linton, voltando-se para a Catherine. «_O Shielders
(Schielders era o cura) já me tinha contado que ele a educa
como uma perfeita pagã. Mas quem é este? Onde é que ela foi
desencantar este companheiro? Ah, já sei! Aposto que é aquela
estranha «aquisição» que o meu falecido vizinho fez na sua
célebre viagem a Liverpool... Um degredado das Índias, de
Espanha ou das Américas.».
-- «Em qualquer dos casos, um patifório.» comentou a velha
senhora. E impróprio para permanecer numa casa respeitável
como a nossa! Já reparaste na linguagem dele, Linton? Lamento
profundamente que os nossos filhos a tenham ouvido.».
-- Foi então que recomecei a lançar pragas... não, Nelly,
não te zangues... e o Robert teve de me pôr na rua. Afirmei
que não me vinha embora sem a Cathy, mas ele arrastou-me para
o jardim, colocou-me a candeia na mão e garantiu-me que Mr.
Earnshaw iria :, ser informado do meu comportamento. Depois,
mandou-me sair dali imediatamente e fechou a porta.
-- Os reposteiros estavam ainda entreabertos num dos
cantos, e, por isso, voltei para o meu posto de vigia, para
ver se a Catherine queria vir comigo. Se fosse esse o caso,
juro que partia o vidro aos bocados e não descansava enquanto
não a tirasse dali para fora.
-- Mas ela estava toda repimpada no sofá, muito sossegada.
Mrs. Linton tinha-lhe tirado a capa cinzenta, que tínhamos
roubado à moça da vacaria para trazer no nosso passeio, e
abanava a cabeça, repreendendo-a, penso eu. Afinal de contas,
ela era uma menina de família e por isso merecia um tratamento
diferente do meu. Mr. Linton foi buscar-lhe uma bebida quente
e a Isabella despejou-lhe um prato de bolos no colo, enquanto
o Edgar a observava de longe, como um perfeito tontinho. Em
seguida, secaram e escovaram o seu lindo cabelo, deram-lhe uns
chinelos enormes e sentaram-na em frente à lareira. Quando a
deixei, parecia muito feliz, partilhando os bolos com o
cachorrinho e com o Skulker, cujo focinho ia apertando,
divertida e ateando uma centelha de alegria nos olhos azuis e
vagos do Linton, um pálido reflexo, afinal, do seu rosto
encantador; via-se que estavam os dois embasbacados... Mas
ela é incomensuravelmente superior a todos eles ... ou a
qualquer outra pessoa deste mundo. Não achas, Nelly?
-- Esta história ainda vai dar que falar -- disse eu,
tapando-o e apagando a vela. -- Parece que nunca mais
aprendes; e Mr. Hindley vai ter de tomar uma atitude drástica,
ai não, se não vai!
De facto, as minha previsões saíram mais certas do que eu
imaginava. Esta infeliz aventura enfureceu Earnshaw e, para
culminar, Mr. Linton veio pcssoalmente visitar-nos logo na
manhã seguinte, para remediar a situação, e pregou-lhe um tal
sermão sobre o modo como educava a sua família, que o obrigou
a reflectir seriamente no assunto.
Heathcliff não recebeu qualquer castigo, mas ordenaram-lhe
que nunca mais dirigisse a palavra a Miss Catherine, sob pena
de ser expulso. E foi a própria Mrs. Earnshaw que ficou
responsável pelo isolamento monástico da cunhada assim que
esta regressasse. Empregando, é claro, a astúcia e a
diplomacia, e nunca a força, ciente de que pela força nada
conseguiria.

CAPÍTULO VII

Cathy ficou cinco semanas na Granja dos Tordos, mais ou
menos até ao Natal. O seu tornozelo já estava completamente
curado e o seu temperamento melhorara substancialmente. A
patroa visitava-a regularmente dando cumprimento a um plano de
reforma em que tentava conquistar a amizade da menina à custa
de roupas caras e muitos mimos, que esta aceitava de bom
grado. De tal forma que, certo dia, em vez daquela criança
selvagem e livre em constante correria pela casa, sempre
pronta a abraçar-nos, surgiu digníssima e elegante, montada
num belo potro negro, com os seus lindos caracóis castanhos
pendendo soltos sob um chapéu de caça, e um trajo de montar,
tão comprido que tinha de o erguer com as mãos para não o
pisar.
Hindley ajudou-a a descer do cavalo, exclamando deliciado:
-- Sim senhora, Cathy, mas que beleza! Até tive dificuldade
em te reconhecer. Pareces mesmo uma senhora. A Isabella Linton
nem se lhe compara, pois não Frances?
-- A Isabella não tem os atributos naturais da Cathy --
respondeu a esposa. -- Mas é importante que ela se porte bem
e não volte a ser uma menina rebelde. Ellen, ajuda Miss
Catherine com as malas. Espera, querida, deixa-me tirar-te o
chapéu, senso ainda estragas o penteado.
Ajudei-a a despir o fato de amazona e vi que trazia calças
brancas e sapatos de verniz por baixo de um vestido de seda
de ampla saia pregueada. E, apesar de os seus olhos brilharem
de alegria ao ver os cães correrem para ela, para lhe darem as
boas-vindas, evitou tocar-lhes, com medo de que lhe sujassem
a sua linda indumentária.
Beijou-me com cuidado. Como eu estava toda suja de farinha
:, devido aos preparativos para o bolo de Natal, não iria
certamente dar-me um abraço. Depois, foi à procura do
Heathcliff. Mr. e Mrs. Earnshaw esperavam ansiosamente por
este reencontro, dado que, assim, poderiam avaliar em que
medida era possível terem esperanças na sua
separação.
Foi-lhe difícil descobrir Heathcliff. Se já antes da
ausência de Catherine ele era descuidado e rebelde, então
agora portava-se dez vezes pior.
Só eu é que lhe chamava a atenção para o facto de estar
sujo, mandando-o tomar banho uma vez por semana. E o senhor
bem sabe como as crianças daquela idade gostam de água e
sabão... Por isso, e já não falando da roupa com que andava há
mais de três meses por cima da lama e do pó, nem da sua farta
cabeleira desgrenhada, a cara e as mãos andavam sempre
encardidas. Motivos não lhe faltavam para se esconder atrás de
um banco, ao ver a menina elegante e airosa com que se
deparou, em vez da compincha suja e traquina com quem se
identificava.
-- Onde está o Heathcliff? -- perguntou Catherine,
descalçando as luvas e mostrando umas mãos imaculadas, de
quem não trabalha em casa e leva uma vida de lazer.
-- Heathcliff, podes aparecer -- gritou Mr. Hindley,
exultante com o constrangimento do rapaz e radiante por o
obrigar a aparecer naquele estado humilhante diante da amiga.
-- Aparece e vem dar as boas-vindas a Miss Catherine, com os
outros criados.
Mas Cathy descobriu logo o amigo e correu para o abraçar.
Cobriu-o de beijos, mas logo se deteve e, desatando a rir,
exclamou:
-- Céus, Heathcliff, como tu estás sujo e maltrapilho! Mas
que engraçado e estranho que tu estás! Se calhar é por estar
habituada ao Edgar e à Isabella Linton. Então, Heathcliff, já
te esqueceste de mim?
Esta pergunta era propositada, dado que Heathcliff
ostentava uma expressso de orgulho e vergonha que o mantinha
petrificado.
-- Cumprimenta-a, rapaz! -- disse Mr. Earnshaw,
condescendente. -- Acho que isso, pelo menos, é permitido.
-- Não! -- replicou o rapaz, como se tivesse finalmente
encontrado a língua. -- Não estou para ser gozado, nem o
admitirei!
E teria mesmo fugido, se não fosse Miss Cathy
segurá-lo.
-- Não pretendia rir-me de ti -- disse ela. -- Mas foi mais
forte do que eu. Vá lá, Heathcliff, ao menos dá-me um aperto
de mão! Para que estás amuado? Foi só porque te estranhei. Se
lavares a cara :,
e penteares o cabelo, tudo mudará. Mas sempre estás muito
porco! E ficou a olhar, preocupada, para aquela mão toda suja
que estava a apertar e para o vestido, com medo que se tivesse
sujado.
-- Não precisavas de me ter tocado! -- retorquiu ele,
libertando bruscamente a mão, como se tivesse adivinhado o seu
pensamento. -- Sou porco, gosto de ser porco e serei sempre
porco!
E, dizendo isto, saiu precipitadamente da sala, perante a
satisfação dos patrões e a incredulidade de Catherine, que
não compreendia por que razão os seus comentários tinham dado
lugar a tamanha manifestação de mau humor.
Depois de ter feito de aia da menina, depois de ter metido
os bolos no forno e depois de ter enfeitado a casa para a ceia
de Natal, ia poder enfim sentar-me e distrair-me a entoar
algumas canções adequadas à quadra natalícia, apesar de, para
Joseph, as minhas modas não passarem de arremedos de canções.
Joseph tinha-se retirado para as suas habituais orações.
Mr. e Mrs. Earnshaw tentavam conquistar a atenção de Miss
Cathy, mostrando-lhe os imensos presentes que tinham comprado
para oferecerem aos meninos Linton, como forma de
agradecimento pela sua amabilidade.
Estes haviam sido convidados para passarem o dia seguinte
no Alto dos Vendavais, convite que fora aceite com uma
condição: Mrs. Linton pedira por tudo que evitassem o contacto
entre os seus queridos filhos e aquele «rapaz rude e
malcriado».
Nestas circunstâncias, fiquei sozinha. Entretive-me a
aspirar o aroma dos petiscos bem condimentados e a admirar
orgulhosa o brilho dos utensílios de cozinha, o relógio
reluzente, decorado com azevinho, e as canecas de prata
alinhadas no tabuleiro, prontas para receberem a cerveja
quente com açúcar que seria servida à ceia. Agradava-me
sobretudo aquele chão resplandecente, impecavelmente limpo e
esfregado.
Cada objecto recebia o meu elogio velado, lembrando-me a
forma como o velho Mr. Earnshaw gostava de entrar na cozinha,
limpa e asseada, e me chamava «rapariga eficiente», dando-me
um xelim como bónus pelo Natal. Depois, comecei a pensar no
seu afecto por Heathcliff e no seu receio de que o ignorassem
após a sua morte. Claro que estes pensamentos me levaram a
pensar na actual situação do pobre rapaz e, depois, passei das
canções ao pranto. Mas depressa concluí que era bem mais
sensato tentar :, corrigir alguns dos seus erros do que
verter lágrimas por eles, tendo-me por isso levantado e ido
para o pátio à sua procura.
Não estava longe. Fui dar com ele nos estábulos, a escovar
o pêlo luzidio do novo potro e a dar de comer aos outros
animais, como costumava fazer.
-- Despacha-te! -- disse eu. -- Está tão quentinho na
cozinha, e o Joseph foi para o quarto. Vá, deixa-me pôr-te
bonito antes que Miss Catherine apareça. Depois, podem
sentar-se os dois à lareira e ficar a conversar até à hora de
ir para a cama.
Heathcliff continuou com os seus afazeres e nem sequer
olhou para mim.
-- Então? Vens ou não vens? -- continuei. -- Fiz um bolo
para os dois... deve estar quase pronto. Além disso, precisas
bem de meia hora para te arranjares.
Esperei cinco minutos, mas não obtive resposta.
Catherine ceou com o irmão e a cunhada. Joseph e eu tivemos
uma refeição deveras atribulada, temperada por críticas e
insultos. Os pedaços de bolo e queijo destinados a Heathcliff
ficaram em cima da mesa durante toda a noite, pois ele,
inventando as desculpas mais descabidas, ficou a trabalhar
até às nove da noite, indo directamente para o quarto, mudo e
triste.
Cathy ficou a pé até tarde. Tendo um monte de coisas para
organizar com vista à recepção dos seus novos amigos, apenas
veio uma vez à cozinha à procura do velho amigo, mas como ele
não estava, apenas perguntou o que se passava com ele e saiu
logo em seguida.
Na manhã seguinte, Heathcliff levantou-se cedo. Como era
dia santo, foi descarregar a má disposição para o brejo,
reaparecendo apenas quando a família já tinha ido para a
igreja. O jejum e a reflexão pareciam ter-lhe feito bem:
abraçou-me longamente e, depois de ganhar a coragem
necessária, exclamou abruptamente:
-- Nelly, faz de mim uma pessoa decente. Prometo que me vou
portar bem.
-- Já não era sem tempo, Heathcliff -- disse eu. --
Ofendeste a Catherine, e ela até é capaz de estar arrependida
de ter voltado para casa! Até parece que tens inveja de ela
ser o centro das atenções.
A noção de *ter inveja* de Catherine era incompreensível
para ele. Porém, a noção de a magoar deixou-o deveras
preocupado.
-- Ela disse-te que estava ofendida? -- quis saber, muito
sério.
-- Chorou quando eu lhe disse que tinhas saído novamente
esta manhã. :,
-- Bom, eu também chorei a noite passada -- retorquiu. -- E
tinha mais motivos para chorar do que ela.
-- Sim, imagino o que é ir para a cama com o coração cheio de
orgulho e o estômago vazio -- respondi. -- O orgulho só traz
tristezas. Mas, se estás assim tão arrependido da birra que
fizeste, pede-lhe perdão quando ela entrar. Vai ter com ela,
dá-lhe um beijo e diz-lhe... Ora, tu sabes melhor do que eu o
que lhe hás-de dizer. Basta que o faças com sinceridade e sem
pensares que ela se transformou numa grande senhora só porque
tem uns vestidos todos bonitos. E agora, embora eu ainda tenha
o jantar para fazer, vou tirar uns minutinhos para tratar de
ti, para que, comparado contigo, o Edgar Linton pareça um
mono. Aliás, nem é preciso, porque isso já ele é. Tu podes
ser mais novo, mas és muito mais alto e espadaúdo do que ele.
Aposto que bastaria um empurrão teu para o deitar logo ao
chão, não achas?
O rosto de Heathcliff iluminou-se por instantes. Depois,
ficou cabisbaixo e suspirou.
-- Mas, Nelly, ainda que o deitasse ao chão vinte vezes, eu
não ficaria mais bonito do que ele. O que eu queria era ter o
cabelo louro e a pele branca, vestir-me e comportar-me bem e
ter a oportunidade de ser tão rico como ele!
-- E andar sempre a chamar pela mamã -- acrescentei, -- e
tremer como varas verdes sempre que algum rapaz das
redondezas ameaça dar-lhe um murro, e ficar fechado em casa
sempre que está a chover... Então, Heathcliff, que
personalidade é a tua? Vem ver-te ao espelho, que eu
mostro-te aquilo que na realidade deves desejar: já reparaste
nestas duas linhas entre os olhos e nestas sobrancelhas
grossas que, em vez de arqueadas, se afundam ao centro, e
nestes dois diabinhos negros e profundos, que nunca abrem as
janelas afoitamente, mas que atrás delas se escondem, a
brilhar como dois espiões do Inferno? Aprende a disfarçar
essas rugas, a levantar essas sobrancelhas sem medo e a
transformar esses demónios em anjos inocentes e puros,
deixando de desconfiar e duvidar de tudo e todos e de ver
inimigos nos teus amigos. Deixa essa expressão de cão raivoso
que finge aceitar como merecidos maus tratos e pontapés, mas
que afinal odeia o mundo, pelos sofrimentos que passa, tanto
quanto aquele que lhe dá os pontapés.
-- Por outras palavras, devo desejar os grandes olhos azuis
e a testa lisa do Edgar Linton -- respondeu. -- Mas isso é o
que eu desejo, e não me adianta nada! :,
-- Fica sabendo que um bom coração é capaz de pôr uma cara
bonita -- continuei, -- nem que ela seja negra como um tição;
e que um mau coração transforma a cara mais linda em algo mais
feio que a própria fealdade. Pronto, agora que já estamos
lavados e penteados e menos carrancudos... diz lá se não te
achas um belo rapaz? Pois eu digo que sim! Quem não te
conhecesse diria que és um príncipe. Sabe-se lá se o teu pai
não era o Imperador da China e a tua mãe uma rainha indiana,
capazes de comprar, só com o rendimento de uma semana, o Alto
dos Vendavais e a Granja dos Tordos? Podes muito bem ter sido
raptado por piratas malvados e trazido para Inglaterra. Olha,
se eu estivesse no teu lugar, não parava de pensar na minha
nobre ascendência, para assim ganhar coragem e dignidade
suficientes para suportar a tirania de um simples fidalgote
rural!
Continuei neste tom, até que, por fim, Heathcliff
desanuviou a face carrancuda, mostrando-se bastante simpático.
A nossa conversa foi, entretanto, interrompida pelo barulho
de rodas a entrar no pátio. Ele correu para a janela e eu para
a porta, a tempo de apreciarmos os dois irmãos Linton, que se
apeavam da sua carruagem, abafados nas suas capas de pele, e o
casal Earnshaw, que desmontava dos seus cavalos (no Inverno
iam frequentemente à missa a cavalo). Catherine deu uma mão a
cada um dos seus amigos e levou-os para dentro, indo
sentar-se os três frente à lareira, o que depressa coloriu a
palidez das suas faces.
Disse ao meu companheiro para se despachar, fazendo-o
prometer que se iria portar bem, como um menino bem disposto
e bem comportado. Porém, não poderia ter tido mais azar, dado
que, quando abria a porta que dava para a cozinha, Hindley
entrava justamente pela porta do outro lado, tendo ficado os
dois frente a frente. O patrão, irritado por ver Heathcliff
tão limpo e alegre, ou talvez para cumprir a promessa que
fizera a Mrs. Linton, empurrou-o bruscamente e deu ordens a
Joseph para que não deixasse «o miúdo entrar na sala» e que o
«fechasse no sótão até ao fim do jantar», pois se ficasse com
eles na sala, ia começar a «meter os dedos nos bolos e a
roubar a fruta».
-- Não senhor! -- não pude deixar de intervir. --
Garanto-lhe que ele não tocará em nada. E não acha que ele
também merece, como todos nós, uma guloseima?
-- Se o apanho cá em baixo antes do anoitecer, quem lhe dá
a «guloseima» sou eu, e pessoalmente. -- bradou Hindley. --
Vai-te :, vagabundo! Com que então deu-te para andares todo
apinocado? Espera até eu deitar as mãos a essas lindas
madeixas! Talvez ainda fiquem maiores!
-- Já estão suficientemente grandes -- comentou Linton,
espreitando pela frincha da porta. Não sei como ele ainda
consegue ver com essa juba sobre os olhos!
Master Linton fizera este comentário sem qualquer intenção
insultuosa, mas o feitio violento de Heathcliff não estava
preparado para ouvir gracejos vindos de alguém que ele já
odiava como seu inimigo mortal. Pegou na primeira coisa que
viu (uma concha de calda de maçã a ferver) e atirou-a à cara
do outro, que logo desatou num berreiro, atraindo a atenção de
Isabella e de Catherine, que acorreram à cozinha para saberem
o que se passava.
Mr. Earnshaw agarrou imediatamente no culpado e levou-o
para o seu quarto, onde, sem dúvida, lhe deve ter aplicado um
violento correctivo, para lhe acalmar os ímpetos, pois, quando
desceu, vinha vermelho e ofegante. Peguei no pano da loiça e,
sem grande vontade, limpei o nariz e a boca de Edgar, dizendo
que era bem feito para aprender a não meter o nariz onde não
era chamado. A irmã começou a chorar e a dizer que queria ir
para casa, e Cathy ficou algo desorientada, corada de
vergonha.
-- Não lhe devias ter dito nada! -- disse a menina,
ralhando com Edgar. Ele estava mal disposto, e agora
estragaste a tua visita. E, ainda por cima, ele vai ser
castigado. Detesto que ele seja castigado! Já perdi a vontade
de jantar. Por que te meteste com ele, Edgar?
-- Mas eu não lhe disse nada -- soluçou o rapaz,
libertando-se das minhas mãos e acabando de se limpar com o
seu lenço de cambraia. -- Prometi à mamã que não lhe dirigia
a palavra e assim fiz.
-- Pronto, não chores! -- replicou Catherine, com desdém.
-- Ninguém te matou. Agora deixa-te de fitas. E fica quieto!
O meu irmão vem aí! E tu cala-te, Isabella! Alguém te fez mal?
-- Então, meninos, vamos para a mesa -- gritou Hindley,
irrompendo pela sala como um furacão. -- Aquele bruto pôs-me
fora de mim. Da próxima vez, Edgar, aprenda a fazer respeitar
a lei com os seus próprios punhos. Vai ver que lhe dá cá um
apetite!
Os convivas recuperaram a calma perante tão excelente
repasto. Depois do passeio a cavalo, era natural que
estivessem cheios de fome e, como não lhes acontecera nada de
grave, depressa se consolaram.
Mr. Earnshaw preparou-lhes apetitosos pratos repletos de :,
iguarias, e a patroa conseguiu anima-los com a sua conversa
alegre e viva. Eu mantinha-me atrás da cadeira dela e fiquei
indignada ao ver que Catherine, de olhos enxutos e olhar
indiferente, cortava calmamente uma asa do ganso que tinha na
sua frente.
«_Que criança mais insensível» pensei para comigo. «_Com
que indiferença ela se desliga dos problemas do seu amigo de
infância. Nunca a imaginara tão egoísta».
Preparava-se para levar uma garfada à boca quando, de
repente, pousou o garfo. Corou, e as lágrimas começaram a
rolar. Deixou cair o garfo ao chão e baixou-se para o apanhar
e poder, assim, esconder as lágrimas. Depressa concluí que
tinha formulado um juízo errado a seu respeito, pois
apercebi-me de que aquele dia fora para ela um verdadeiro
purgatório. Tentara, em vão, encontrar uma oportunidade para
ficar sozinha e poder ir ter com Heathcliff, que o patrão
entretanto trancara no sótão, como eu própria tive
oportunidade de constatar, quando à noite tentei levar-lhe à
socapa um prato de comida.
Ao serão houve baile. Cathy pediu para soltarem Heathcliff,
uma vez que Isabella não tinha par. Como os seus pedidos não
fossem atendidos, coube-me a mim a tarefa de servir de par a
Miss Linton.
Com o entusiasmo da dança, depressa esquecemos as
tristezas. A festa subiu de tom quando chegou a banda de
Gimmerton, com os seus quinze elementos: trompete, trombone,
clarinetes, fagotes, cornetins e um contrabaixo, para além dos
cantores. Era tradição percorrerem todas as residências
respeitáveis recolhendo donativos, pelo que todos achámos que
era um privilégio especial escutá-los.
Depois das habituais canções de Natal, pedimos-lhes que
cantassem outras canções a várias vozes, e, como Mrs.
Earnshaw estava encantada com a música e com toda aquela
animação, o espectáculo durou até altas horas.
Catherine também adorou. Mas disse que se devia ouvir
melhor no cimo das escadas e esgueirou-se no escuro. Fui atrás
dela e, como a sala estava cheia, não deram pela nossa saída e
fecharam a porta. Mas Catherine não se ficou pelo patamar,
continuando em direcção ao sótão, onde Heathcliff estava
preso. Aí chegada, chamou-o.
Durante algum tempo o prisioneiro recusou-se teimosamente a
responder. Mas ela insistiu e, por fim, lá conseguiu que ele
falasse com ela através da porta.
Coitadinhos! Deixei-os ficar a conversar em sossego, até que,
:, pressentindo que as canções estavam prestes a acabar e que
talvez fosse necessário dar de beber aos músicos, subi a
escada para a avisar.
Foi com surpresa que, em vez de a ver do lado de fora,
escutei vozes vindas de dentro do quarto. Aquela macaquinha
travessa tinha saído por uma clarabóia, atravessado o telhado
e entrado pela clarabóia do sótão. Vi-me aflita para a
convencer a sair de lá.
Quando finalmente se decidiu, Heathcliff veio com ela.
Teimou comigo para o levar para a cozinha, uma vez que o meu
colega tinha ido para casa de um vizinho, para fugir àquela
«chinfrineira do Inferno», como ele costumava dizer. Tentei
explicar-lhe que não pretendia de modo algum ser cúmplice das
suas maroteiras, mas, como o prisioneiro não comia desde o dia
anterior, estava disposta, por aquela vez, a deixá-lo enganar
Mr. Hindley.
Descemos os três. Pus-lhe um banco ao pé da lareira e
dei-lhe um monte de coisas boas para comer; mas ele sentia-se
enjoado e pouco comeu, revelando-se infrutíferas todas as
minhas tentativas para o animar: fincou os cotovelos nos
joelhos, apoiou o queixo entre as mãos assim se deixando
ficar, absorto e meditabundo.
Quando lhe perguntei em que pensava, respondeu muito sério:
-- Estou a ver se descubro qual a melhor maneira de me
vingar do Hindley. Pode levar o tempo que for preciso, mas só
descanso quando me vingar. Só espero que ele não morra antes!
-- Que vergonha, Heathcliff! -- ralhei eu. -- Só a Deus
cabe punir os maus. Devemos aprender a perdoar.
-- Não, Deus nunca terá a enorme satisfação que eu vou ter
quando concretizar a minha vingança -- respondeu. Quem me dera
descobrir a melhor maneira! Deixa-me ficar sozinho, para que
possa pensar à vontade. Ao menos. enquanto penso na minha
vingança, não sinto a dor.
Mas, Mr. Lockwood, o melhor é o senhor esquecer estas
histórias que não são nada divertidas. É imperdoável estar
aqui a falar há tanto tempo, e o seu caldo a arrefecer. Olhe,
o senhor até já está a cabecear com sono, mortinho por ir para
a cama! Quando eu penso que lhe podia ter contado a história
de Heathcliff em meia dúzia de palavras...
Então, interrompendo o seu discurso, Nelly levantou-se e
começou a arrumar a sua costura. Porém, eu sentia-me demasiado
mole para deixar a lareira, e totalmente desperto.
-- Sente-se, Mrs. Dean -- pedi-lhe. Sente-se, fique mais :,
meia-hora! Fez bem em ter contado a história devagar; é esse
o método que mais me agrada e peço-lhe que o mantenha até ao
fim. Estou interessado em cada uma das personagens a que faz
referência.
-- Mas já são onze horas.
-- Não importa, estou habituado a deitar-me tarde. Ficar a
pé mais uma ou duas horas não faz diferença a quem se levanta
às dez.
-- Não devia ficar na cama até essa hora. Assim, perde o
amanhecer, ou seja, a melhor parte da manhã. Quem não faz
metade do seu trabalho até às dez, arrisca-se a não conseguir
acabar a outra metade.
-- De qualquer modo, Mrs. Dean, sente-se mais um bocadinho.
Acho até que amanhã vou ficar na cama muito mais tempo, pois
parece-me que apanhei uma valente constipação.
-- Deus queira que não. Bom, deixe-me então dar um salto de
cerca de três anos na minha história. Durante esse tempo, Mr.
Earnshaw...
-- Não, não. De maneira nenhuma! A senhora sabe... quando
às vezes estamos sentados e à nossa frente está uma gata
entretida a lamber as crias, e nós estamos de tal forma
absortos a assistir à operação que, se ela se esquece de uma
orelha que seja, ficamos logo irritados?
-- Meu Deus, mas que actividade mais ociosa.
-- Pelo contrário, uma actividade deveras activa e
cansativa. Neste preciso momento estou a exercê-la e peço-lhe,
por isso, que continue. Já reparei que as pessoas desta região
exercem sobre as pessoas da cidade a mesma atracção que a
aranha de uma prisão exerce, em comparação com a aranha de uma
vivenda, sobre os seus ocupantes; e, no entanto, essa profunda
atracção não se deve exclusivamente à situação dos
observadores. As gentes desta terra vivem *de facto* de uma
forma mais autêntica, mais ensimesmada, e menos virada para as
mudanças superficiais, para as coisas externas. Sinto-me
capaz de acreditar que aqui seria possível acontecer um amor
eterno. E logo eu, que não acreditava que o amor pudesse durar
mais de um ano. No primeiro caso, é como se apresentássemos a
um homem esfomeado um único prato de comida, onde possa
satisfazer o seu apetite até ao fim. No segundo, é como se
puséssemos esse homem diante de uma mesa repleta de iguarias
preparadas por cozinheiros franceses: em comparação com o
primeiro caso, ele poderá retirar mais prazer no seu todo;
porém, :,
cada partícula corresponderá apenas a um átomo no seu olhar e
memória.
-- Oh, meu senhor, quando nos conhecer, verá que nós somos
iguais a quaisquer outros -- observou Mrs. Dean, nitidamente
confundida com o meu discurso.
-- As minhas desculpas -- disse eu. -- A senhora, minha boa
amiga, é a negação desta teoria. Exceptuando alguns traços de
provincianismo de somenos importância, a senhora não possui
qualquer das características que estou habituado a considerar
como típicas da sua classe. Tenho a certeza de que a senhora
reflecte muito mais sobre as coisas do que a maioria dos
criados. É daquelas pessoas que foi obrigada a cultivar a
capacidade de reflexão por falta de oportunidade para
desperdiçar o seu tempo com frivolidades.
Mrs. Dean riu-se.
-- É certo que me considero uma mulher sensata e
equilibrada -- disse ela -- mas não porque tenha passado a
vida inteira entre estes montes ou porque tenha visto sempre o
mesmo tipo de pessoas ou o mesmo tipo de acções ano após ano.
É que tive de me submeter a uma disciplina muito rígida e isso
ensinou-me a ser sábia; e, depois, li muito mais do que o
senhor possa imaginar, Mr. Lockwood. Não há um único livro
nesta casa que eu não tenha lido e de onde não tenha tirado
algum ensinamento; a menos, é claro, que seja em grego ou em
latim, ou mesmo em francês... Mas, mesmo assim, sou bem capaz
de os distinguir dos outros, e isso é mais do que se pode
pedir à filha de um homem pobre.
-- No entanto, se é para contar a minha história com todos
os pormenores, acho que o melhor é dar-lhe já seguimento; e
então, em vez de saltar esses três anos, passo logo para o
Verão seguinte, o Verão de 1778, isto é, há vinte e três anos
atrás.

CAPÍTULO VIII

Numa bela manhã de Junho, nasceu um lindo bebé, o primeiro
de quem fui ama e o último da velha estirpe dos Earnshaw.
Andávamos atarefados a segar feno num dos campos, quando a
rapariga que normalmente nos trazia a merenda apareceu uma
hora mais cedo que o habitual a correr pelo prado fora e pela
vereda acima, a chamar por mim
-- É um menino! -- gritava, ofegante. -- A criança mais
perfeita que Deus ao mundo deitou! Mas o médico diz que a
senhora não escapa, pois está tísica há muitos meses... foi o
que eu o ouvi dizer a Mr. Hindley... e que agora já não há
nada que a salve, e morrerá provavelmente antes do Inverno.
Vem, Nelly, vem depressa. Tu é que vais cuidar do menino,
dar-lhe leite com açúcar e olhar por ele dia e noite. Ah,
Nelly, quem me dera estar no teu lugar! Olha que ele vai ficar
à tua guarda assim que a senhora faltar.
-- Mas ela está assim tão mal? -- inquiri, largando o
ancinho e apertando melhor a touca.
-- Acho que sim. Coitadinha, tem uma coragem tão grande --
replicou a rapariga. -- Fala como se fosse viver o suficiente
para ver o filho crescer. Está tão alegre que até dá gosto
ver! Eu, no lugar dela, tenho a certeza de que não morria;
melhorava logo só de o ver, apesar do que diz o Dr. Kenneth.
Que raiva que me meteu aquele homem! Mrs. Archer trouxe o
anjinho à sala para o mostrar ao pai e, enquanto este o
contemplava cheio de satisfação, eis que surge aquele velho
rabugento a dizer: «_Earnshaw, é um milagre a sua mulher ter
sobrevivido tanto tempo para lhe dar este filho. Quando ela
aqui chegou, estava convencido de que não iria durar tanto.
Mas, agora, aviso-o de que ela não passa deste Inverno. E não
se consuma muito, pois é um caso perdido. Sabe que mais, devia
ter tido mais cuidado quando escolheu este vimezinho frágil.
:,
-- E o que foi que o patrão respondeu -- perguntei.
-- Acho que praguejou. Mas não prestei muita atenção,
porque estava mais interessada no rebento. -- E a rapariga
pôs-se de novo a descrevê-lo, delirante. Eu, que fiquei tão
preocupada quanto ela, corri para casa para ir ver o menino,
embora estivesse cheia de pena de Hindley. No seu coração só
havia espaço para dois ídolos (a mulher e ele próprio); amava
ambos, mas adorava um só, e eu não conseguia imaginar como é
que ele iria suportar a perda.
Quando chegámos ao Alto dos Vendavais, o patrão estava
especado à porta de casa. Ao passar por ele, perguntei-lhe
como estava o menino.
-- Não tarda já anda, Nelly! -- respondeu, com um sorriso
alegre.
-- E a senhora? -- aventurei-me a perguntar. -- O médico
diz que ela...
-- Raios partam o médico! -- atalhou, rubro de raiva. -- A
Frances está perfeitamente bem. Para a semana já está boa.
Vais lá acima vê-la? Diz-lhe por favor que irei para junto
dela, desde que prometa não falar. Tive de sair do quarto
porque não se calava. Diz-lhe que o Dr. Kenneth a mandou estar
muito sossegada.
Dei o recado a Mrs. EarnsEaw. Ela parecia eufórica e
respondeu alegremente:
-- Eu mal abri a boca, Nelly, e ele saiu do quarto das duas
vezes a chorar. Diz-lhe que eu prometo não falar, mas que não
posso deixar de me rir dele!
Pobrezinha! Até à semana que antecedeu a sua morte, a boa
disposição nunca a abandonou. Quanto ao marido, insistia
obstinadamente, furiosamente até, em que a saúde dela
melhorava de dia para dia. Quando o Dr. Kenneth o informou de
que os medicamentos já não faziam qualquer efeito naquela fase
da doença e de que não precisava de fazer mais despesas com os
seus serviços, ele retorquiu:
-- Eu sei que não preciso! Ela está bem e não precisa mais
de si! Nunca esteve tuberculosa. O que ela teve foi febres.
Mas já passou. A pulsação voltou ao normal e a febre já
baixou.
Contou a mesma história à mulher e ela pareceu acreditar
nele. Porém, certa noite em que estava recostada no ombro do
marido e se preparava para dizer que se sentia com forças para
se levantar no dia seguinte, deu-lhe um ataque de tosse muito
leve; ele pegou nela :, ao colo e levantou-a da cama: ela,
então, abraçou-o, a expressão alterou-se-lhe e
expirou.
Tal como a rapariga tinha previsto, o menino, o Hareton,
ficou inteiramente ao meu cuidado. O pai dava-se por
satisfeito desde que o visse com saúde e sem chorar. Ele é
que, de dia para dia, se mostrava mais dilacerado. O seu
desgosto era daqueles que não dava lugar a lamentos. Não
chorava, nem rezava. Pelo contrário, amaldiçoava tudo e todos,
rogava pragas a Deus e aos homens, e abandonou-se a uma vida
de dissipação.
Os criados não aguentavam a sua tirania nem a sua maldade.
Eu e Joseph éramos os únicos que o conseguíamos aturar. No meu
caso, não podia abandonar o menino que me tinha sido confiado.
Além disso, Hindley tinha sido meu irmão de leite, de modo que
lhe perdoava tudo com mais facilidade que a um estranho.
Joseph ficou para atormentar os rendeiros e os
trabalhadores e também porque era sua vocação estar onde
houvesse muita maldade para censurar.
Os maus hábitos e as más companhias do patrão constituíam
um péssimo exemplo para Heathcliff e Catherine, e sua conduta
para com o rapaz era de fazer perder a paciência a um santo.
Para dizer a verdade, durante algum tempo, parecia que
Heathcliff tinha sido possuído pelo demónio: deleitava-se em
contemplar a autodestruição de Hindley, rumo à suprema
redenção. De facto, parecia que a sua crueldade e selvajaria
aumentavam de dia para dia.
Não há palavras que descrevam o verdadeiro inferno em que a
casa se tornou. O cura deixou de aparecer e, por último,
nenhuma pessoa decente se atrevia a visitar-nos, se
exceptuarmos as visitas de Edgar Linton a Miss Cathy. Aos
quinze anos, ela já era a rainha da região. Não havia nenhuma
que se lhe igualasse, pelo que se tornou numa criatura
arrogante e caprichosa. Confesso que, com o andar do tempo,
até eu comecei a não gostar dela, e não raras vezes lhe chamei
a atenção para a necessidade de dominar a sua arrogância. No
entanto, nunca se mostrou melindrada comigo: mantinha uma
extraordinária constância nas velhas amizades, e o seu afecto
por Heathcliff nunca esmoreceu, a tal ponto que o jovem
Linton, com toda a sua superioridade, se via e desejava para o
igualar.
Linton foi o meu último patrão. Aquele é o seu retrato, por
cima do fogão. Anteriormente, estava pendurado ao lado do
retrato da esposa, mas o quadro dela foi retirado, de modo que
o senhor não pode apreciar como ela era. Consegue vê-lo daqui.
:,
Mrs. Dean ergueu a vela e iluminou um rosto de feições
suaves, extraordinariamente parecido com o da jovem que eu
vira no Alto dos Vendavais, embora com uma expressão mais
triste e mais doce. Dava um lindo quadro. O longo cabelo
loiro, aos caracóis, caía em cachos de cada lado da cabeça, os
olhos eram grandes e o olhar grave. Fisicamente tinha um
aspecto frágil e gracioso. É difícil imaginar como é que
Catherine Earnshaw conseguiu esquecer o seu amigo de infância
em prol desta personagem. Tentei dar voltas à cabeça para
descobrir como é que alguém com um temperamento semelhante ao
seu aspecto físico podia corresponder de alguma forma à minha
imagem de Catherine Earnshaw.
-- Um belo retrato, sem dúvida. -- comentei. -- Está
parecido?
-- Está. -- respondeu -- Mas ele tinha melhor aspecto
quando estava feliz. Esse era o seu ar normal do dia a dia.
Faltava-lhe a alegria.
Catherine tornara-se amiga dos Linton desde que fora sua
hóspede durante cinco semanas, e, como não pretendia mostrar
o seu lado mau na presença dos amigos, e tinha o bom senso de
ter vergonha de ser mal educada numa casa onde fora e era
tratada com a maior cortesia, começou a insinuar-se
melifluamente junto do velho casal através de uma estudada
cordialidade, conquistando a admiração de Isabella e o coração
do irmão (troféus que lhe agradaram sobremaneira desde o
início, pois era muito ambiciosa), adoptando uma duplicidade
de carácter, sem contudo o fazer para enganar alguém.
Quando ouvia chamar Heathcliff de «rufia ordinário» e «mau
como as cobras», fazia tudo para não se comportar como ele.
Porém, em casa, mostrava pouca inclinação para a delicadeza,
não fossem fazer troça dela, e evitava ser demasiado rebelde
quando isso não lhe trouxesse quaisquer vantagens.
Mr. Edgar raramente tinha coragem para visitar abertamente
o Alto dos Vendavais. Tinha pavor da reputação de Earnshaw e
tremia de medo sempre que pensava ir encontrá-lo, apesar de
receber sempre da nossa parte as melhores provas de
civilidade: até o próprio patrão, sabendo ao que ele vinha,
evitava ofendê-lo e, se não conseguia ser amável, então não
aparecia. Penso que as visitas do rapaz eram sobretudo uma
preocupação para Catherine. Não era hipócrita, nem dada a
namoricos, e via-se que detestava juntar os seus dois amigos:
quando Heathcliff fazia troça de Linton à frente dele, ela não
ousava aderir, como fazia na sua ausência; e quando :, Linton
expressava repulsa e antipatia por Heathcliff, ela não se
atrevia a mostrar indiferença, como se as críticas feitas ao
amigo de infância não tivessem para ela qualquer importância.
Muitas vezes me ri das suas mágoas ocultas e das suas
perplexidades, que ela a todo o custo tentava furtar à minha
chacota. Sei que pode parecer maldade da minha parte, mas era
tão orgulhosa que era quase impossível ter pena dos seus
desaires, até que caísse em si e aprendesse a ser mais
humilde.
Finalmente, decidiu abrir-se comigo e confessar-me tudo.
Não havia mais ninguém no mundo a quem pudesse recorrer para
sua conselheira.
Certa tarde, Mr. Hindley ausentou se e Heathcliff resolveu
aproveitar a oportunidade para ter uma folga. Tinha acabado de
fazer os dezasseis anos e, embora não fosse feio de todo, a
verdade é que, contrariamente ao seu aspecto actual, gerava
uma sensação de repulsa física e psíquica.
Em primeiro lugar, tinha perdido os benefícios da sua
anterior educação: o trabalho, pesado e contínuo, do raiar ao
pôr do sol, havia extinguido a sua curiosidade de outrora, bem
como o seu gosto pelos livros e pelo saber. Esmorecido estava
também aquele sentimento de superioridade nele instilado desde
criança pelo manifesto favoritismo do velho Earnshaw. Lutava
desesperadamente por acompanhar Catherine nos estudos, e foi
com recolhida mágoa que os abandonou, mas o certo é que os
abandonou por completo; e assim que compreendeu que jamais
conseguiria atingir a sua posição anterior, desistiu de
qualquer esforço para melhorar. Consequentemente, o aspecto
físico tornou-se no espelho da sua degradação mental: adoptou
um comportamento desleixado e uma aparência ignóbil; o seu mau
feitio natural deu origem a um excesso, quase demente, de
insociabilidade, sentindo, por isso, um prazer mórbido em
despertar a aversão (e não a simpatia) dos poucos que o
rodeavam.
Catherine e Heathcliff continuavam a ser companheiros
inseparáveis durante os intervalos do trabalho. Todavia,
deixou de expressar o seu afecto por ela através de palavras e
fugia assustado das suas carícias de menina, como se soubesse
de antemão que não correspondiam à verdade.
Naquela tarde, estava eu a ajudar Miss Cathy a vestir-se,
quando ele entrou por ali dentro e lhe comunicou a sua decisão
de não :, trabalhar mais naquele dia. Ora ela não contava que
Heathcliff fosse tirar uma folga e pensava que a casa ia ficar
toda por sua conta: a verdade é que tinha conseguido informar
Mr. Edgar da ausência do irmão e preparava-se para o receber.
-- Estás ocupada esta tarde, Cathy? -- perguntou. -- Vais a
algum lado?
-- Não. Está a chover. -- respondeu ela.
-- Então para que puseste esse vestido ridículo? -- quis
ele saber. -- Espero que não venha cá ninguém.
-- Que eu saiba, não -- titubeou a menina. -- Mas não
devias estar a trabalhar no campo, Heathcliff? Já acabámos de
jantar há uma hora e até pensei que já tinhas saído.
-- Não é todos os dias que o Hindley nos dá o prazer da sua
ausência -- comentou o rapaz. -- Hoje não trabalho mais.
Resolvi ficar contigo.
-- Olha que o Joseph vai fazer queixa -- adiantou ela. -- É
melhor ires-te embora!
-- O Joseph foi carregar cal para lá de Pennistow Crag. Tem
com que se entreter até à noite e nunca chegará a saber.
Terminada a frase, abeirou-se da lareira e sentou-se.
Catherine reflectiu por instantes, de sobrolho carregado, e
achou que era melhor preparar o caminho para a tal visita.
-- A Isabella e o Edgar Linton disseram que eram capazes de
passar por cá esta tarde -- disse, ao cabo de um minuto de
silêncio. Como está a chover, se calhar nem vêm. Mas pode ser
que ainda apareçam. E, se vierem, ouves das boas sem
necessidade.
-- Cathy, pede à Ellen para dizer que estás ocupada --
insistiu ele. -- Não me troques por esses idiotas dos teus
amiguinhos mimados! Às vezes apetece-me fazer queixa... mas
não faço.
-- Queixa de quê? -- exclamou Catherine, encarando-o, de
olhos esbugalhados e expressão preocupada. -- Ai, Nelly! --
acrescentou, petulante, afastando a cabeça das minhas mãos.
-- Já me despenteaste o suficiente! Chega, larga-me! O que é
que queres dizer com isso da queixa, Heathcliff?
-- Nada, nada. Olha apenas para aquele calendário --
apontou para uma folha pendurada ao lado da janela e
continuou:
-- As cruzes significam as tardes que passaste com os
Linton. Os pontos marcam as tardes que passaste comigo. Estás
a ver? Marquei os dias todos. :,
-- Sim, e depois? Que grande parvoíce. Como se eu reparasse
nessas coisas! -- replicou Catherine, irritada. -- E para que
serve isso, não me dirás?
-- Serve para te mostrar que eu me importo contigo --
respondeu Heathcliff.
-- E é preciso que eu ande sempre atrás de ti? -- perguntou
ela, furiosa. -- O que é que adianta? Tu não sabes falar de
nada! Sempre que falas ou fazes alguma coisa para me
distraires, pareces um burro mudo ou uma criança pateta.
-- Nunca me tinhas dito que eu falava pouco, nem que não
gostavas da minha companhia, Cathy -- exclamou Heathcliff,
visivelmente nervoso.
-- A tua companhia não serve para nada, se não souberes
nada e não disseres nada repontou a menina.
O seu companheiro levantou-se, mas não teve tempo de
expressar os seus sentimentos, dado que, de repente, ouvimos
no pátio o trotar de cavalos e, logo a seguir, depois de ter
batido à porta levemente, o jovem Linton entrou, esfuziante
de alegria pelo inesperado convite.
Era notório o contraste entre os dois amigos, naquele
momento em que se cruzaram, um a entrar e o outro a sair. Era
como comparar uma região montanhosa, triste e poluída, com um
vale fértil e belo. Por outro lado, o tom de voz e a saudação
de Edgar eram totalmente opostos ao seu aspecto. Tinha uma
maneira de falar suave e delicada e pronunciava as palavras
como o senhor, Mr. Lockwood, isto é, com menos rudeza e mais
brandura do que nós.
-- Não vim cedo demais, pois não? -- perguntou, olhando
para mim. (Eu tinha começado a limpar as pratas e a arrumar as
gavetas do armário).
-- Não respondeu Catherine. -- E tu, Nelly, o que estás
aqui a fazer?
-- Estou a trabalhar, menina -- respondi. (_Mr. Hindley
tinha-me dado ordens expressas para não deixar a menina
sozinha caso os Linton aparecessem).
Ela aproximou-se de mim e segredou-me sorrateiramente:
-- Desaparece daqui, tu e os teus espanadores! Os criados
não costumam andar a limpar a casa à frente das visitas.
-- Mas esta é a melhor altura, sobretudo agora que o patrão
está ausente -- retorqui em voz alta. -- A menina sabe como
ele detesta :, que eu faça as limpezas na sua presença. Estou
certa de que Master Edgar me perdoará.
-- Eu também não gosto que faças as limpezas à minha frente
_ exclamou a menina com altivez, não dando sequer tempo a que
o seu convidado respondesse. (_Estava com dificuldade em
recuperar a calma depois da pequena discussão com Heahcliff).
-- Sinto muito, Miss Catherine! -- respondi, continuando a
aplicar-me aos meus afazeres.
Ela, pensando que Edgar não estivesse a ver, arrancou-me o
pano da mão e deu-me um forte beliscão no braço.
Como já lhe disse, não morria de amores por ela e, de vez
em quando, dava-me um certo prazer pô-la em cheque, para mais
agora que me magoara imenso; por isso, levantei-me e dei um
grito.
-- Oh, Miss Cathy, que maldade! A menina não tinha o
direito de me dar um beliscão. Não lho admito!
-- Eu nem te toquei, minha grande mentirosa! -- gritou ela,
com as orelhas rubras de raiva, preparando-se para repetir a
façanha. (_Tinha uma enorme dificuldade em dissimular estes
acessos, durante os quais ficava quase sempre com a cara em
brasa).
-- Explique-me então o que é isto? -- ripostei, mostrando a
marca que tinha no braço.
Ela bateu com o pé no chão, hesitou uns segundos e,
impelida pelo seu violento mau-génio, deu-me uma bofetada com
tanta força que me vieram as lágrimas aos olhos.
-- Catherine, querida! Então? -- interveio Linton,
profundamente chocado com o duplo crime de perjúrio e
violência perpetrado pelo seu ídolo.
-- Sai já da sala, Ellen -- repetiu Catherine, a tremer,
completamente fora de si.
Mareton, que me seguia para todo o lado e, na altura,
estava sentado no chão perto de mim, desatou a chorar ao ver
as minhas lágrimas, queixando-se entre soluços que «a tia
Cathy é má», facto que canalizou a fúria dela para cima do
menino. Pegou nele pelos ombros e deu-lhe tantos abanões que a
pobre criança ficou lívida, apesar das tentativas infrutíferas
de Edgar para lha arrancar das mãos. Porém, no meio da
confusão, uma das mãos de Cathy levantou-se e aplicou em
Linton um valente tabefe na orelha, que não deixava dúvidas
quanto à intencionalidade do acto.
Ele recuou, consternado. Eu aproveitei para pegar no menino
e :, fui para a cozinha, deixando a porta aberta, pois tinha
curiosidade em ver de que forma iriam eles resolver aquele
desentendimento.
O visitante, ofendido, foi para o canto onde tinha pousado
o chapéu, pálido e com os lábios a tremer.
«_Bem feito!» pensei eu. «_Vai-te embora, que é para
aprenderes! Ainda bem que tiveste uma pequena amostra do seu
verdadeiro caracter».
-- Aonde vais? -- perguntou Catherine, correndo para a
porta.
Ele desviou-se e tentou passar.
-- Não vás! -- exclamou ela, autoritária.
-- Tenho de ir! -- respondeu Edgar, com a voz sufocada.
-- Não -- insistiu a rapariga, agarrando o fecho da porta.
-- Não vás ainda, Edgar Linton! Senta-te. Não vais certamente
deixar-me aqui sozinha neste estado? Sentir-me-ia
tremendamente infeliz e eu não quero ficar triste por tua
causa.
-- Achas que posso ficar, depois de me teres batido? --
perguntou Linton.
Catherine emudeceu.
-- Tive medo e vergonha de ti -- continuou Edgar. -- Nunca
mais cá volto!
Os olhos dela começaram a brilhar, pestanejantes.
-- E ainda por cima, disseste deliberadamente uma mentira!
-- acrescentou ele.
-- Não disse tal! -- contrapôs ela, recuperando a fala. --
Não fiz nada deliberadamente. Mas vai, vai-te embora, se assim
o queres. Desaparece! Vou chorar até adoecer.
Deixou-se cair de joelhos ao pé de uma cadeira e irrompeu num
pranto descontrolado.
Decidido, Edgar saiu para o pátio, mas de repente estacou.
Eu tentei incentivar a sua primeira decisão:
-- A menina é muito caprichosa, Master Linton -- comentei. --
Má como qualquer criança mimada. Vá-se embora ou ela fará de
propósito e fica doente só para nos arreliar.
O frouxo pareceu hesitar, e olhou para a janela. Tinha
tanta vontade de se ir embora como um gato tem de abandonar
um rato ou um pássaro meio mortos.
«_Ah!» pensei, «_Não tem salvação possível. Está condenado.
Escolheu o seu próprio destino!»
E assim foi. Voltou para trás subitamente e entrou outra
vez na sala, fechando a porta atrás de si. E? quando eu voltei
a entrar, :, instantes depois, para os informar de que
Earnshaw tinha regressado a cair de bêbado e pronto para
deitar a casa abaixo, como sempre acontecia nessas alturas,
verifiquei que a discussão tinha gerado uma maior intimidade
entre eles: derrubara as barreiras da timidez própria da
adolescência e permitira que abandonassem o disfarce da
amizade e se declarassem agora namorados.
A informação da chegada de Mr. Hindley fez Linton correr
apressadamente para o cavalo e Catherine escapulir-se para o
quarto. Eu tratei de ir esconder Hareton e descarregar a
espingarda do patrão, porque um dos seus passatempos favoritos
era pôr-se a brincar com a arma quando estava embriagado,
pondo em perigo a vida de quem o provocasse ou lhe chamasse a
atenção. Por isso que a tornei inofensiva, para que as
consequências fossem mínimas, caso ele chegasse ao ponto de
puxar o gatilho.

CAPÍTULO IX

Mr. Hindley entrou a vociferar, soltando as mais terríveis
pragas e apanhou-me a esconder o filho no armário da cozinha.
O Hareton mostrava-se salutarmente apavorado, quer perante os
brutais acessos de ternura do pai, quer perante os seus
coléricos ataques de loucura, pois, se no primeiro caso,
corria o risco de morrer sufocado por beijos e abraços, no
segundo, via-se atirado para a lareira ou esmagado de encontro
à parede. Assim sendo, o pobrezinho deixava-se ficar muito
quieto onde quer que eu o metesse.
-- Ah, finalmente descobri tudo! -- berrou Hindley,
agarrando-me pelo pescoço, como se fosse um cão, e puxando-me
para trás. -- Por Deus e pelo Diabo, vocês juraram todos matar
aquela criança! Agora percebo por que razão ela está sempre
fora do meu alcance. Mas com a ajuda de Satanás hei-de
fazer-te engolir a faca da cozinha, Nelly! E olha que não é
caso para rir; ainda agora enfiei o Kenneth de cabeça para
baixo no pântano de Blackhorse, e quem mata um mata dois.
Hei-de dar cabo de alguns de vocês e não descanso enquanto
não o fizer!
-- Mas com a faca da cozinha não, Mr. Hindley! --
repliquei, -- Estive a amanhar arenques com ela. Mate-me antes
com um tiro.
-- Estavas bem era no Inferno! -- bradou. E é para onde
vais direitinha. Não há lei em Inglaterra que possa impedir um
homem de manter a decência em sua casa, e a minha está um
descalabro! Toca a abrir a boca!
Empunhou a faca e meteu-me a ponta entre os dentes. Eu,
porém, não me deixei intimidar com as suas bravatas: Cuspi e
disse que a faca sabia mal que se fartava e que não a engolia
de maneira nenhuma.
-- Ah! exclamou, soltando-me por fim. Vejo que aquele
patifório não é o Hareton... Desculpa, Nell... se for, merece
ser :, esfolado vivo por não ter vindo a correr
cumprimentar-me e por se ter posto a gritar como se eu fosse o
Diabo. Anda cá, bicho desnaturado! Vou ensinar-te a domar um
pai desiludido da vida, mas de coração mole. Ora diz lá, Nell,
não achas que o miúdo ficava melhor com as orelhas cortadas?
Os cães ficam mais bravos, e eu gosto de coisas bravas... Dá
cá a tesoura... Vamos pô-lo bravo e bem aparado! Além disso,
isto de termos tanto orgulho nas nossas orelhas, não passa de
vaidade, de um sentimento diabólico. Já somos uns bons burros
mesmo sem elas. Caluda, miúdo! Caluda! Ora cá está o meu
menino! Vá, enxuga as lágrimas! Isso mesmo, lindo menino. Dá
cá um beijo. O quê? Ele não quer? Dá-me um beijo, Hareton!
Raios te partam, dá-me já um beijo! Meu Deus, e ter eu de
criar um monstro destes! Ainda dou cabo deste malvado. Tão
certo como eu estar aqui.
O pobre Hareton guinchava e esperneava nos braços do pai
com quanta força tinha, e os gritos redobraram de intensidade
quando o pai o levou para o cimo da escada e o ergueu por cima
do corrimão. Gritei-lhe que o menino até podia ter um ataque
e corri escada acima para o salvar.
Quando cheguei ao pé deles, um ruído vindo de baixo fez
Hindley debruçar-se sem se lembrar do que tinha nas mãos.
-- Quem vem lá? -- perguntou, ao ouvir alguém ao fundo das
escadas.
Debrucei-me também, com o intuito de fazer sinal a
Heathcliff (cujos passos reconhecera) para não avançar mais.
Nisto, porém, no preciso instante em que desviei os olhos,
Hareton deu um pinote e, libertando-se da mão que o segurava
sem firmeza, precipitou-se.
Mal tivemos tempo de sentir o arrepio do terror
percorrer-nos a espinha, pois vimos logo que o maroto estava
são e salvo: Heathcliff chegara no momento exacto e, num
reflexo rápido, aparara-lhe a queda; em seguida pousara-o no
chão e olhava agora para cima para ver quem teria sido o autor
da brincadeira.
Um avarento que se tivesse desfeito de um bilhete premiado
por cinco xelins, e descobrisse no dia seguinte que tinha
perdido cinco mil libras com o negócio, não daria mostras de
maior estupefacção do que a patenteada por ele ao olhar lá
para cima, e ver-se cara a cara com Mr. Earnshaw. O seu rosto
expressava, melhor do que quaisquer palavras, o desespero
profundo de ter sido ele próprio o instrumento que
neutralizara a sua própria vingança. Se já estivesse :,
escuro, não duvido que tivesse tentado remediar o erro
esmagando a cabeça de Hareton contra os degraus; mas
tínhamo-lo visto salvá-lo e, além disso, eu já me encontrava
lá em baixo com o meu menino bem apertado contra o peito.
Hindley desceu a seguir, mais devagar, já refeito e
envergonhado.
-- A culpa é toda tua Ellen! -- exclamou -- Devias tê-lo
mantido longe de mim! Devias tê-lo arrancado das minhas mãos!
Ele está ferido?
-- Ferido!? -- gritei eu, furiosa. -- Se não morreu, fica
pateta de certeza! Oh! Por que não se levanta a mãe dele da
sepultura e vem ver como o senhor o trata. O senhor é pior que
os bárbaros; tratar a carne da sua carne desta
maneira!
O pai estendeu a mão para a criança que, ao ver-se nos meus
braços, parara imediatamente de chorar. Porém, mal ele lhe
tocou, o menino desatou a gritar ainda mais e a estrebuchar
como se estivesse acometido de convulsões.
-- Não se meta com ele! -- prossegui -- Ele odeia-o...
todos o odeiam... Essa é a verdade! Que bela família... E a
que bonito estado o senhor chegou!
-- E ainda vou chegar a um mais bonito, Nelly! -- disse o
tresloucado a rir, recuperando toda a sua grosseria. -- Para
começar, gira daqui para fora com ele! E tu, Heathcliff, ala!
Põe-te a andar tu também para bem longe da minha vista e dos
meus ouvidos. Ainda não vai ser desta que te mato. A menos que
deite fogo à casa... E por que não? Mas isso é conforme me der
na gana.
Enquanto falava, tirou do aparador uma garrafa de
aguardente, das pequenas, e deitou uma porção num copo.
-- Não beba mais, Mr. Hindley! -- supliquei -- Tenha cuidado.
Pense neste pobre infeliz, já que não pensa em si!
-- Qualquer outro fará mais por ele do que eu -- foi a
resposta.
-- Tenha piedade da sua alma! -- disse eu, tentando
arrancar-lhe o copo da mão.
-- Não tenho, não! Bem pelo contrário. Tenho até muito
prazer em mandá-la para as profundezas, só para castigar o
criador -- exclamou o blasfemo Cá vai um à perdição da minha
alma!
Bebeu de um trago e mandou-nos embora, impaciente,
rematando as ordens com um chorrilho de imprecações
abomináveis, indignas demais para agora as repetir ou s quer
recordar. :,
-- É uma pena ele não morrer da bebedeira -- atalhou
Heathcliff devolvendo-lhe alguns dos palavrões quando a porta
se fechou. Ele bem se esforça, mas tem uma saúde de ferro. O
Dr. Kenneth até já disse que aposta a égua em como ele há-de
ir ao enterro de toda a gente que vive para cá de Gimmerton e
que a sua vez só vai chegar quando for um pecador já muito
velho. A menos que tenha a sorte de lhe acontecer algum
imprevisto.
Fui para a cozinha e sentei-me com o meu cordeirinho ao
colo até ele adormecer. Tal como eu previa, Heathcliff
dirigiu-se para o celeiro. Descobri mais tarde que afinal não
passara do banco corrido da cozinha, aí se deixando ficar
deitado, longe do lume e muito calado.
Estava eu a embalar o Hareton ao som duma canção que
começava...
*_Ia alta a noite, chorava o menino;
Debaixo do chão escutava o ratinho... (1)
quando Miss Cathy, que do seu quarto ouvira a discussão, veio
espreitar à cozinha e perguntou:
-- Estás sozinha, Nelly?
-- Estou sim, menina -- respondi.
Ela entrou e chegou-se para a lareira. Julgando que me ia
dizer alguma coisa, levantei os olhos e vi que estava
perturbada e ansiosa. Os lábios entreabriram-se-lhe, como se
fosse falar, tomou fôlego, mas, em vez de palavras,
escapou-se-lhe da boca apenas um suspiro.
Continuei a cantar, sem esquecer o seu procedimento de há
pouco.
-- Onde está o Heathcliff? -- perguntou, interrompendo-me.
-- Está no estábulo, a cumprir as suas obrigações -- foi a
minha resposta.
Ele não me desmentiu; talvez tivesse adormecido.
Seguiu-se uma longa pausa, durante a qual vi duas lágrimas
rolarem pela face de Catherine e caírem nas lajes.
Será que está arrependida da maneira vergonhosa como se
comportou ? -- pensei com os meus botões -- Seria para
admirar. Mas ela há-de vir às boas, e não sou eu quem a ajuda!
:,
(1) Primeiro verso da balada escocesa «_O Aviso do Fantasma».
Mas não, nada a perturbava a não ser as suas próprias
preocupações.
-- Ai, meu Deus! -- exclamou por fim. -- Como sou infeliz!
-- Essa agora -- atalhei eu -- a menina sempre é muito
difícil de contentar! Tantos amigos e tão poucos cuidados, e
mesmo assim não está contente!
-- Nelly, és capaz de guardar um segredo? -- continuou,
ajoelhando-se aos meus pés e levantando para mim os seus
lindos olhos, com aquele ar que nos obriga a perdoar, mesmo
quando temos razão de sobra para ficar zangados.
-- E é segredo que valha a pena? -- inquiri, já mais calma.
-- É, e estou a ficar muito preocupada. Tenho de desabafar!
Preciso de saber o que fazer... Hoje mesmo, o Edgar Linton
pediu-me em casamento e eu dei-lhe uma resposta... Mas agora,
e antes de te dizer se aceitei ou recusei, quero que me digas
qual das respostas devia ter dado.
-- Francamente, Miss Catherine, como quer que eu saiba?
-- respondi. Depois da cena que a menina fez diante dele esta
tarde, e se o pedido foi feito depois disso, o mais acertado
seria recusar, pois das duas uma, ou ele é completamente
estúpido, ou doido varrido.
-- Se começas com isso, não te conto mais nada -- ripostou
ela, toda serigaita, pondo-se de pé. -- Aceitei, Nelly. Vá,
diz lá. Achas que fiz mal?
-- A menina aceitou, não aceitou? Então de que serve
estarmos agora a discutir o assunto? Deu a sua palavra e já
não pode voltar atrás.
-- Mas diz lá se fiz bem... Vá, diz! -- exclamou ela
irritada, esfregando as mão com nervosismo e franzindo a
testa.
-- Há muitas coisas a ponderar antes de poder responder a
essa pergunta como deve ser -- sentenciei. -- Antes de mais
nada, a menina ama mesmo Mr. Edgar?
-- E quem não ama? Claro que sim -- respondeu ela.
Sujeitei-a então ao seguinte interrogatório, que não
deixava de vir a propósito para uma rapariga de vinte e dois
anos.
-- Por que é que o ama, Miss Cathy?
-- Que disparate de pergunta, amo-o, é tudo.
-- Isso não chega. Tem de me dizer porquê.
-- Ora, porque é bonito e gosto de estar com ele.
-- Isso é grave -- foi o meu comentário. :,
E porque é jovem e alegre.
Continua a ser grave.
E porque ele me ama.
Isso não conta. Continue.
E porque ele vai ficar rico e eu hei-de gostar de ser a
mulher mais importante das redondezas e terei muito orgulho no
marido que arranjei.
-- Isso é o pior de tudo! E agora diga lá como é que o ama.
Amo-o como toda a gente ama. Que parvoíce, Nelly.
Não é parvoíce nenhuma. Vá, responda!
-- Amo o chão que ele pisa e o ar que ele respira e tudo o
que ele toca e as palavras que ele diz. Amo o seu aspecto, e
os seus actos, amo-o inteiro, integralmente. Estás satisfeita?
-- E porquê?
-- Ora, estás a brincar comigo. Isso é maldade! Mas para
mim, isto não é brincadeira nenhuma! -- protestou a jovem,
zangada, virando a cabeça e pondo-se a olhar para o
lume.
-- Não estou a brincar, Miss Catherine -- repliquei. -- A
menina ama Mr. Edgar porque ele é bonito, alegre, jovem e
rico, e porque ele a ama a si. No entanto, a última razão não
vale nada... A menina, provavelmente, amá-lo-ia mesmo sem
isso, e não seria por isso que o amaria, se ele não possuísse
também as outras quatro qualidades.
-- Não, claro que não. Nesse caso, só podia ter pena dele,
ou até talvez o odiasse, se ele fosse feio e parvalhão.
-- Mas no mundo há mais homens ricos e bonitos; e até mais
ricos e mais bonitos do que ele. Por que não ama então esses?
-- Esses, se existem, não estão ao meu alcance. Como o
Edgar nunca encontrei nenhum.
-- Mas ainda pode encontrar. E ele não vai ser bonito toda
a vida, nem jovem, e até talvez nem rico.
-- Mas é-o agora, e só o presente me interessa. Vê lá se
dizes coisa com coisa.
-- Bom, isso resolve a questão. Se só lhe interessa o
presente, case com Mr. Linton.
-- E não preciso da tua permissão... Vou casar com ele,
sim! Afinal, acabaste por não me dizer se faço bem.
-- Faz muito bem! Se for bom as pessoas casarem só a pensar
no presente. E agora, vamos lá a saber por que se sente
infeliz? O seu irmão vai aprovar; os pais dele não vão
levantar objecções, acho eu; vai trocar uma casa desorganizada
e sem conforto por uma :, casa rica e respeitável; além disso,
ama o Edgar e o Edgar ama-a a si. Parece correr tudo pelo
melhor. Onde está então o problema?
-- *_Aqui*! E *aqui*! -- respondeu Catherine, batendo com
uma mão na testa e a outra no peito -- Nos lugares onde vive a
alma. Sinto na alma e no coração que faço mal!
-- Isso é muito estranho! Não estou a perceber.
-- É esse o meu segredo. Se não te rires de mim, eu
conto-to. Não sou capaz de me explicar muito bem, mas vou
dar-te uma ideia do que sinto.
Voltou a sentar-se ao meu lado. A sua expressão tornou-se
mais triste e mais grave e vi-lhe tremer as mãos entrelaçadas.
-- Nelly, nunca tens sonhos esquisitos? -- disparou ela
subitamente, depois de reflectir durante alguns minutos.
-- De vez em quando -- respondi.
-- Eu também. Já tive sonhos que nunca mais me abandonaram
e que me mudaram as ideias; espalharam-se dentro de mim, como
o vinho se espalha na água, e alteraram a cor dos meus
pensamentos. E este é um deles. Vou contar-to, mas procura
não te rires em nenhum momento.
-- Por favor, não conte, Miss Catherine! -- exclamei -- Já
temos tristezas que cheguem sem ser preciso conjurar espíritos
e visões para nos assombrarem. Vá, vá, seja alegre e natural!
Veja o Hareton... esse não sonha com coisas estranhas. Veja
com que doçura sorri enquanto dorme!
-- Sim, e com que doçura o pai amaldiçoa a solidão em que
vive! Deves lembrar-te dele, quando ele era assim, do tamanho
deste pequerrucho... tão pequenino e inocente como ele. No
entanto, Nelly, vais ter de me ouvir; não demora muito. Esta
noite não consigo estar alegre.
-- Não quero ouvir. Não quero! -- repeti eu,
precipitadamente.
Nessa altura eu era muito supersticiosa quanto a sonhos, e
ainda sou, e Catherine tinha um brilho especial no olhar, algo
que me fazia recear que eu pudesse extrair das suas palavras
alguma profecia e prever alguma terrível catástrofe.
Mostrou-se ofendida, mas não continuou. Daí a pouco,
fingindo abordar outro assunto, voltou ao mesmo.
Se eu estivesse no Céu, Nelly, ia sentir-me muito infeliz.
-- Porque não é lá o seu lugar -- retorqui. Todos os
pecadores se sentiriam infelizes no Céu.
-- Não é por isso. É que sonhei que estava lá. :,
-- Já lhe disse que não quero saber dos seus sonhos, Miss
Catherine! Vou-me deitar atalhei eu novamente.
Ela riu-se e agarrou-me quando fiz menção de me levantar da
cadeira. :,
-- Não é nada disso -- exclamou. Só ia dizer que o Céu não
parecia ser a minha casa e eu desatei a chorar para voltar
para a terra e os anjos ficaram tão zangados que me expulsaram
e me lançaram no meio do urzal, e eu fui cair mesmo no topo do
Alto dos Venda vais, e depois acordei a chorar de alegria.
Este sonho explica o meu segredo tão bem como o outro: sou tão
feita para ir para o Céu, como para casar com o Edgar Linton;
e se esse monstro que está lá dentro não tivesse feito o
Heathcliff descer tão baixo, eu nem teria pensado nisto: seria
degradante para mim casar-me agora com Heathcliff; por isso,
ele nunca saberá como eu o amo; e não é por ele ser bonito,
Nelly, mas por ser mais parecido comigo do que eu própria.
Seja qual for a matéria de que as nossas almas são feitas, a
minha e a dele são iguais, e a do Linton é tão diferente delas
como um raio de lua de um relâmpago, ou a geada do fogo.
Antes de o discurso terminar, apercebi-me da presença de
Heathcliff. Pressentindo um ligeiro movimento, olhei para trás
e vi-o levantar-se do banco e esgueirar-se sorrateiro.
Estivera a escutar toda a nossa conversa até ao momento em que
Catherine disse que seria degradante para ela casar com ele,
e, depois, não quisera ouvir mais nada.
Do lugar onde se encontrava, sentada no chão e com o
espaldar do banco de permeio, a minha companheira não deu nem
pela presença de Heathcliff, nem pela sua partida. Mas eu
estremeci e fiz-lhe sinal para que se calasse.
-- Porquê? perguntou ela, olhando nervosamente para todos
os lados.
-- Vem aí o Joseph -- expliquei, ouvindo o ruído oportuno
do rodado da carroça pela estrada acima. -- E o Heathcliff
há-de vir com ele. Até é capaz de já estar à porta.
Ora, ele da porta não pode ouvir nada! -- disse ela -- Dá cá o
Hareton e vai tratar da ceia e, quando estiver pronta,
convida-me para cear contigo. Quero enganar a minha
consciência desassossegada e convencer-me de que o Heathcliff
não entende nada destas coisas. Ele não entende, pois não? Não
sabe o que é estar apaixonado, pois não?
-- Não sei por que não há-de saber, e tão bem como a menina
:, -- retorqui. -- E se a menina é a sua eleita, ele será o
ser mais infeliz do mundo! Assim que a menina se tornar Mrs.
Linton, ele vai perder a amiga, a amada, tudo! A menina já
pensou como irá suportar a separação, e como irá ele suportar
ficar completamente sozinho no mundo? Porque, Miss
Catherine...
-- Ele... completamente sozinho! Nós dois... separados! --
exclamou ela, indignada. -- E quem nos vai separar, não me
dirás? Quem tentar terá o destino de Milo! ~ Não enquanto eu
for viva, Ellen... nenhum mortal o conseguirá. Mais depressa
se evaporariam da face da terra todos os Linton do que eu
permitiria separar-me do Heathcliff! Oh, não era essa a minha
intenção... não era isso que eu queria dizer! Nunca seria Mrs.
Linton por um tal preço! Ele continuará a ser para mim o que
tem sido toda a vida. E o Edgar terá de pôr de lado a
antipatia que sente por ele e, pelo menos, tolerá-lo. E assim
será quando conhecer os meus sentimentos por Heathcliff.
Nelly, sei que me vais achar uma tremenda egoísta, mas nunca
pensaste que, se eu me casasse com o Heathcliff, acabaríamos
os dois a pedir esmola? Ao passo que, se casar com o Linton,
posso ajudar o Heathcliff a erguer a cabeça e a sair do jugo
do meu irmão?
-- Com o dinheiro do seu marido, Miss Catherine? --
perguntei. Verá que ele não é tão fácil de convencer como
pensa; além disso, e sem me querer arvorar em juiz, parece-me
que essa é de todas a pior razão para se tornar esposa do
jovem Linton.
-- Não é nada -- ripostou. -- É mas é a melhor de todas! As
outras eram só para satisfazer os meus caprichos, e também os
do Edgar... para ele ficar contente. E esta é por uma pessoa
que congrega em si tanto os meus sentimentos pelo Edgar como
os que nutro por mim mesma. Não sei como explicá-lo, mas
certamente que tu e toda a gente têm a noção de que existe, ou
deveria existir, um outro eu para além de nós próprios. Para
que serviria eu ter sido criada, se apenas me resumisse a
isto? Os meus grandes desgostos neste mundo foram os desgostos
do Heathcliff, e eu acompanhei e senti cada um deles desde o
início; é ele que me mantém viva. Se tudo o mais perecesse e
*ele* ficasse, eu continuaria, mesmo assim, a existir; e, se
tudo o mais ficasse e ele fosse aniquilado, o universo
tornar-se-ia para mim numa vastidão desconhecida, a que eu não
teria a sensação de pertencer. O meu amor pelo Linton é :,
(1) Atleta grego que, ao tentar rachar uma árvore ao meio,
ficou nela entalado, tendo sido devorado pelos lobos.
como a folhagem dos bosques: transformar-se-á com o tempo,
sei-o bem, como as árvores se transformam com o Inverno. Mas
o meu amor por Heathcliff é como as penedias que nos
sustentam: podem não ser um deleite para os olhos, mas são
imprescindíveis. Nelly, eu *sou* o Heathcliff. Ele está
sempre, sempre, no meu pensamento. Não por prazer, tal como eu
não sou um prazer para mim própria, mas como parte de mim
mesma, como eu própria. Portanto, não voltes a falar na nossa
separação, pois é algo de impraticável,
e...
Deteve-se, escondendo o rosto nas pregas da minha saia, mas
eu empurrei-a. Tanta loucura fizera-me perder a paciência!
-- Se eu for capaz de dar senso a tanto contra-senso --
disse eu -- só servirá para me convencer ainda mais da sua
ignorância dos deveres que irá assumir com o casamento; ou
seja, que a menina é uma pessoa sem coração e sem princípios.
Mas não me importune mais com os seus segredos, pois não
prometo guardá-los.
-- E este, guardas? -- perguntou ela ansiosa.
-- Não. Não prometo nada -- repeti.
Ela ia insistir de novo, quando a entrada de Joseph pôs fim
à nossa conversa. Catherine puxou a cadeira para um canto e
pegou no Hareton enquanto eu fazia a ceia.
Quando a ceia ficou pronta, gerou-se uma altercação entre
mim e o meu colega sobre quem ia levar a comida a Mr. Hindley,
e, quando chegámos a acordo, já a ceia estava quase fria.
Resolvemos então que o melhor era esperar que ele a pedisse,
quando estivesse com vontade, pois tínhamos muito medo de
perturbar a sua solidão.
-- Com.é qu.esse mecatrefe .inda não voltou do campo a uma
hora destas? Qu.andará ele a fazer, o g.anda mandraço? --
perguntou o velho, pondo-se à procura de Heathcliff.
-- Vou chamá-lo -- disse eu. -- Tenho a certeza de que está
no celeiro.
Fui até lá, chamei-o, mas não obtive resposta. Quando voltei,
disse baixinho a Catherine que ele devia ter certamente ouvido
uma boa parte do que ela dissera, e contei-lhe como o vi
esgueirar-se da cozinha precisamente no momento em que ela se
queixava da conduta do irmão para com ele.
Catherine deu um salto, muito nervosa, largou Hareton em
cima do banco e foi a correr à procura do amigo, sem se dar
tempo sequer :, para pensar por que motivo estaria assim tão
agitada ou de que maneira a nossa conversa o poderia ter
afectado.
A demora foi tanta que Joseph propôs que não esperássemos
mais. Matreiro como era, achava que eles tardavam em aparecer
para escaparem às suas intermináveis rezas. Tinham «ruindade
de sobra p.ra isso e muito mais», disse ele. E, nessa noite,
acrescentou em sua intenção uma oração especial ao já habitual
quarto de hora de súplicas antes do repasto, e teria
acrescentado outra no final da acção de graças, se a nossa
jovem patroa não tivesse entrado na cozinha de rompante,
ordenando-lhe que se fizesse à estrada sem demora e fosse
buscar Heathcliff onde quer que ele estivesse e o trouxesse
imediatamente de volta!
-- Quero falar com ele. E *tem* de ser antes de eu ir para
o meu quarto -- disse ela. -- A cancela está aberta... ele
deve andar por aí e não me ouviu chamar, pois não respondeu,
apesar de eu ter gritado com toda a força de cima do
curral.
A princípio, Joseph fez-se rogado. Ela, porém, estava
empenhada demais no assunto para aceitar uma recusa, e ele
acabou por pôr o chapéu na cabeça e sair a resmungar.
Catherine, entretanto, pôs-se a andar de um lado para o outro
e a dizer:
-- Onde será que ele se meteu? Onde é que *poderá* estar? O
que foi que eu disse, Nelly? Já não me lembro. Terá ficado
amuado com o meu mau humor desta tarde? Oh, meu Deus, Nelly,
diz-me o que foi que eu disse que o possa ter ofendido! Queria
tanto que ele voltasse. Queria tanto!
-- Tanto barulho para nada! -- exclamei, embora também
bastante contrafeita. -- A menina assusta-se com bem pouco!
Não é razão para alarme, se o Heathcliff resolveu ir dar uma
volta pela charneca, ao luar, ou se se foi deitar amuado no
palheiro e não quer responder. Cheira-me que foi lá que ele se
escondeu. Vai ver como eu dou com ele!
Saí para continuar a busca; o resultado foi desanimador, e
as buscas de Joseph acabaram da mesma maneira.
-- O magano vai de mal a pior! observou o velho criado
quando voltou. Deixou a cancela a bater, e o cavalo da menina
espezinhou dois regos de trigo a caminho do pasto! Amanhã vai
ser o bom e o bonito quando o patrão souber É bem feito! Muita
paciência tem ele tido para aturar estes
doidivanas sem préstimo :, nenhum... Tem sido a paciência em
pessoa! Mas isso não vai durar sempre... vocês vão ver! Não o
façam perder a cabeça!
-- Encontraste o Heathcliff, meu cabeça de burro? --
interrompeu-o Catherine. -- Foste procurá-lo, como eu te
mandei?
-- Mais valera ir à procura do cavalo -- respingou o velho.
_ Sempre fazia mais sentido. Mas cavalo ou homem é tudo o
mesmo, está uma noite de breu e não dá p.ra procurar nada! E o
Heathcliff não é menino p.ra responder ao meu assobio; talvez
seja menos duro de ouvido co. a menina.
Estava uma noite escura demais para o Verão: as nuvens
ameaçavam trovoada e aconselhavam-nos a ficar em casa; a
chuva que se avizinhava ia decerto trazê-lo de volta sem mais
complicações.
Catherine, no entanto, não se deixava tranquilizar
facilmente. Continuava a andar de um lado para o outro, da
porta para a cancela e da cancela para a porta, num estado de
agitação que não lhe dava descanso. Daí a um bocado, foi
postar-se encostada ao muro, à beira da estrada, de onde não
arredou pé, apesar das minhas advertências, e do rugir dos
trovões e das pingas grossas que começaram a cair-lhe na
cabeça; chamava por ele a espaços, punha-se à escuta e
desatava a chorar. Levava a palma ao Hareton ou a qualquer
outra criança em matéria de choradeira.
Por volta da meia noite, ainda nós estávamos a pé, a
tempestade abateu-se com inusitada força sobre o Alto. As
rajadas de vento eram violentas, tal como os trovões, e, ou
uns ou outros, racharam uma árvore de alto a baixo numa das
esquinas da casa; um ramo de grande envergadura foi parar
acima do telhado e derrubou uma parte da chaminé do lado
oriental, atirando uma chuva de pedras e fuligem para a
lareira.
Pensámos que tinha caído um raio no meio da sala, e Joseph
caiu de joelhos, implorando ao Senhor que se lembrasse dos
patriarcas Noé e Lot, e que, como fizera anteriormente,
poupasse os justos, embora punisse os ímpios. Eu tinha a
sensação de que tudo aquilo era a ira divina a abater-se
também sobre nós. A meu ver, Jonas era Mr. Earnshaw, e fui a
correr bater à porta do seu quarto, para me certificar de que
ainda estava vivo. Ele respondeu-me de forma bem audível e com
tais modos, que levou o meu colega a bradar mais
espalhafatosamente do que antes que havia uma grande diferença
entre os santos como ele e os pecadores como o patrão. Mas a
trovoada não durou mais de dez minutos e foi-se embora sem
causar mossa, excepto em Catherine, que ficou :, encharcada
até aos ossos, na sua oLstinação em não se abrigar e em ficar
lá fora sem o xaile e sem a touca a apanhar a chuva na cabeça
e nas roupas que trazia.
Entrou e deixou-se cair em cima do banco, completamente
ensopada, encostando a cara ao espaldar e escondendo-a entre
as mãos.
-- Então, menina! -- exclamei, batendo-lhe no ombro. -- Não
está interessada em morrer já, pois não? Sabe que horas são?
Meia-noite e meia. Vamos, venha deitar-se. Não vale a pena
esperar mais por aquele louco; deve ter ido até Gimmerton e
passa lá a noite. Achou que não íamos esperar por ele até tão
tarde; julgou que só Mr. Hinley é que ia estar acordado, e não
quis que fosse ele a abrir-lhe a porta.
-- Não, não. Em Gimmerton, ele não está! -- assegurou
Joseph. -- E não me espantava nada s.ele estivesse no fundo
d.algum barranco. Esta punição não veio sem motivo, e eu, se
fosse a menina, tomava cuidado... a próxima pode ser p.ra si.
Deus seja louvado! Tudo o c.o Senhor faz é p.ro bem dos
escolhidos e castigo dos danados! Não é o que dizem as
Escrituras?
E, dizendo isto, pôs-se a recitar várias passagens,
apontando os livros e os versículos onde as podíamos
encontrar.
Eu, por meu lado, depois de ter pedido em vão àquela
teimosa que se levantasse do banco e tirasse a roupa molhada,
deixei-os, ele a pregar e ela a tiritar, e tratei de me ir
meter na cama com o Hareton, que tinha adormecido tão
depressa como se à volta dele já todos estivessem a dormir.
Durante algum tempo ainda ouvi Joseph entretido com a sua
lengalenga; depois, ouvi-lhe os passos arrastados pela escada
acima e, finalmente, adormeci.
Quando desci na manhã seguinte, um pouco mais tarde que o
habitual, vi, iluminada pelos raios de sol que entravam pelas
frestas das persianas, a silhueta de Miss Catherine, ainda
sentada em frente à lareira. A porta da rua estava
entreaberta, a luz do dia entrava pelo postigo, também aberto,
e Hinley, que acabara de se levantar, estava de pé junto à
lareira, lívido e ensonado.
-- Que tens, Cathy? perguntava ele quando entrei -- Estás
mais descoroçoada que um gato afogado... Tão pálida e tão
molhada porquê, rapariga?
-- Molhei-me toda -- respondeu ela a contra-gosto -- e
estou cheia de frio, é tudo.
-- É uma tonta! -- exclamei, ao perceber que o patrão
estava :, razoavelmente sóbrio. -- Apanhou aquela chuvada de
ontem, e depois ficou aí toda a noite e não houve quem a
tirasse daí.
Mr. Earnshaw olhava para nós boquiaberto. - Toda a noite?
-- repetiu. -- O que é que a fez passar a noite em claro? Não
foi certamente medo dos trovões. A trovoada acabou muito mais
cedo.
Nenhuma de nós tinha interesse em mencionar o desapareci
mento de Heathcliff enquanto pudéssemos mantê-lo em segredo.
Respondi, por isso, que não sabia o que é que lhe teria
passado pela cabeça para ficar ali sentada toda a noite. Ela
não disse nada.
A manhã estava fresca e agreste; abri a janela de par em
par e a casa encheu-se dos aromas vindos do jardim. Catherine,
porém, ordenou-me asperamente:
-- Ellen, fecha a janela. Estou a morrer de frio! E, a
bater o dente, encolheu-se ainda mais em frente às cinzas que
restavam.
-- Está doente -- disse Hinley, tomando-lhe o pulso -- Deve
ter sido por isso que não quis ir para a cama... C.os diabos!
Não quero mais doenças cá em casa. O que é que te fez ir lá
para fora?
-- Foi p.ra ir atrás dos rapazes, como sempre! -- atalhou
Joseph, aproveitando a oportunidade e a nossa hesitação para
dar largas à maledicência.
-- S.eu fosse a si, patrão, fechava-lhes a porta na cara, a
todos eles. Era limpinho! Não há um só dia c.o patrão não
esteja qu.esse matreiro do Linton não apareça por aí com
pezinhos de lã. E Miss Nelly também me saiu uma boa prenda!
Sempre d.atalaia na cozinha: é o patrão a entrar por uma
porta e ele a sair pela outra. E depois a nossa donzela vai
namorar p.ra outro lado! Belo comportamento, não haja dúvida!
Andar pelos campos à meia-noite com esse cigano dum raio do
Heathcliff! Eles julgam qu.eu sou cego, mas não sou, não. Nem
nada que se pareça! Bem vejo o Linton a entrar e a sair, e
depois *vossemecê* (e voltou-se para mim)... sua fingida, sua
bruxa alcoviteira... ir a correr avisá-los mal ouve o cavalo
do patrão pela ladeira acima.
-- Cala-te, bisbilhoteiro! -- gritou Catherine. -- Não
estou para-aturar as tuas insolências! O Edgar Linton veio cá
ontem por acaso, Hindley: e fui *eu* quem lhe disse para se ir
embora, porque sabia que tu não ias querer vê-lo no estado em
que te encontravas.
-- Está-se mesmo a ver que isso é mentira, Cathy --
replicou o irmão -- e tu és uma parva chapada! Mas esqueçamos
o Linton por agora. Ora diz lá, estiveste com o Heathcliff
ontem à noite? Diz-me a verdade. Não tenhas medo de o meter
em apuros. Apesar de :, o odiar cada vez mais, prestou-me há
pouco tempo um serviço que me impede em consciência de lhe
partir os ossos. E para que isso não venha a acontecer, esta
manhã mesmo vou mandá-lo tratar da vida dele e, depois de ele
se ir embora, aconselho-os a andarem na linha, pois terei
ainda menos paciência para vos aturar.
-- Eu nem vi o Heathcliff ontem à noite -- respondeu
Catherine, por entre soluços. -- E, se o mandares embora, eu
vou com ele. Mas talvez já nem precises de o fazer... Quem
sabe... Ele foi-se embora -- E, ao dizer isto, começou a
chorar convulsivamente, mal se entendendo o que disse a
seguir.
Hindley descarregou sobre ela uma torrente de impropérios e
mandou-a retirar-se imediatamente para o quarto, se não queria
que ele lhe desse melhores razões para chorar. Obriguei-a a
obedecer, mas nunca esquecerei a cena que fez quando chegámos
ao quarto. Foi assustador. Julguei que ela estava a ficar
louca e pedi a Joseph que fosse depressa chamar o médico.
Afinal, era o começo do delírio. O Dr. Kenneth chegou e mal
olhou para ela disse logo que estava gravemente doente; a
febre era muito alta.
Depois de lhe fazer uma sangria, recomendou-me que não lhe
desse mais nada a não ser soro de leite e caldos de aveia
muito ralos, e que tomasse cuidado, não fosse ela atirar-se
das escadas ou da janela abaixo. E depois foi-se embora, pois
ainda tinha muito que correr, numa região onde a distancia
entre cada casa rondava as três milhas.
Embora eu reconheça não ser propriamente uma enfermeira
dedicada, e Joseph ou o patrão serem ainda piores, e embora a
nossa doente fosse teimosa e exigente como todos os doentes, o
certo é que se curou.
A velha Mrs. Linton veio visitá-la várias vezes, para ver
como corriam as coisas e, naturalmente, dar as suas sentenças
e fazer-nos andar todos num virote. E, quando Catherine já
estava convalescente, levou-a à força para a Granja dos
Tordos, gesto que muito lhe agradecemos. A pobre senhora,
porém, bem se deve ter arrependido: ela e o marido apanharam
as febres e morreram com poucos dias de intervalo um do
outro.
A nossa menina voltou para casa, mais insolente, mais
irascível e mais altiva do que nunca. Não tínhamos voltado a
ouvir falar de Heathcliff desde a noite do temporal, e num dia
em que ela me fez perder a cabeça, tive a infeliz ideia de a
responsabilizar pelo seu :, desaparecimento, responsabilidade
que, como ela bem sabia, era inteiramente sua. Passou vários
meses sem me dirigir a palavra, salvo no que dizia respeito ao
meu serviço de criada. Joseph foi igualmente preterido:
*teimava* em dizer o que muito bem entendia e pregava-lhe
grandes sermões como se ela ainda fosse uma criança, ela que
já se julgava uma mulher e dona da casa, e achava que devia
ser alvo de atenções especiais por ter estado doente. Nessa
altura, o médico tinha dito que não era muito conveniente
irritá-la, que o melhor era fazermos-lhe as vontades. E agora,
se alguém se atrevia a contrariá-la, era como se a quisessem
matar.
Quase não falava com Earnshaw ou com os seus companheiros;
quanto ao irmão, industriado pelo médico e atemorizado pelos
ameaços de ataques de loucura que muitas vezes acompanhavam as
suas fúrias, satisfazia-lhe todos os caprichos e procurava de
uma maneira geral não lhe espicaçar o génio tempestuoso. Era
até *demasiado* indulgente para com ela, não por afecto, mas
por orgulho. Desejava sinceramente vê-la honrar a família
através de uma aliança com os Linton, e desde que não o
incomodasse, podia tratar-nos à vontade como escravos.
Edgar Linton, como tantos que o precederam e tantos que se
lhe hão-de seguir, estava pelo beicinho, e sentiu-se o homem
mais feliz do mundo no dia em que a levou ao altar da capela
de Gimmerton, três anos após a morte do seu
pai.
Bem contra minha vontade, acabaram por me convencer a
deixar o Alto dos Vendavais e a vir morar aqui com ela. O
Hareton tinha quase cinco anos, e eu tinha começado a
ensinar-lhe as primeiras letras. A despedida foi lancinante,
mas as lágrimas de Catherine puderam mais que as nossas:
quando me neguei a ir com ela, e quando descobriu que os seus
rogos não me demoviam, foi queixar-se ao marido e ao irmão. O
primeiro ofereceu-me um ordenado chorudo; o segundo mandou-me
ir fazer as malas: não queria mulheres lá em casa, vociferou,
agora que já não havia patroa; e, quanto ao Hareton, o cura se
encarregaria dele a seu tempo. De maneira que só me restava
uma alternativa: fazer o que me mandavam. Obedeci, mas não
sem ter dito ao patrão que só se queria ver livre das pessoas
decentes daquela casa para se poder degradar ainda mais
depressa. Dei um beijo ao Hareton, e, a partir daí, é como se
fôssemos dois estranhos; custa-me dizê-lo, mas não tenho
dúvidas de que se esqueceu completamente da Ellen Dean e de
que em tempos ele foi para ela tudo na vida, e ela para ele!
:,
Neste ponto da história, a governanta olhou para o relógio
que estava em cima da chaminé e ficou admirada ao ver o
ponteiro dos minutos marcar a uma e meia. Não quis ficar nem
mais um segundo, e a mim, na verdade, também me apetecia adiar
o seguimento da narrativa. E agora que ela se recolheu e eu
fiquei ainda a cogitar durante uma ou duas horas, tenho de
arranjar coragem para ir também deitar-me, apesar de me sentir
entorpecido e de me doerem a cabeça, os braços e as pernas.

CAPÍTULO X

Belo começo para uma vida de ermita! Quatro semanas de
tortura, bolandas e doença! Ah, estas gélidas nortadas, e este
clima do Norte, tão agreste; e estas estradas intransitáveis,
e estes médicos de província sempre tão morosos! Oh, sim, e
esta ausência da humana fisionomia e, pior ainda, a sentença
terrível do Kenneth de que nem pense em sair de casa antes da
Primavera.
Heathcliff acaba de me honrar com a sua visita. Há cerca de
uma semana mandou-me um par de faisões, os últimos da época.
Grande velhaco! Sabe bem que não está completamente isento de
culpa nesta minha doença, e era isso mesmo que eu tanto queria
dizer-lhe. Mas, enfim! Como poderia eu maltratar um homem que
teve o gesto caridoso de passar uma hora sentado à minha
cabeceira a falar de outras coisas além de pílulas, tisanas,
emplastros e
sanguessugas?
Foram momentos agradáveis. Estou demasiado fraco para ler,
mas apetece-me fazer qualquer coisa de interessante. Por que
não chamar Mrs. Dean para me acabar de contar a história? Sou
capaz de me lembrar dos pontos principais até ao momento onde
parou. É isso, lembro-me de que o herói tinha fugido e ninguém
mais soubera nada dele durante três anos. E a heroína tinha
casado. Vou tocar a campainha. Ela vai gostar de me ver com
tanta disposição para
conversar.
Mrs. Dean entrou.
-- Ainda faltam vinte minutos para o seu remédio -- observou
ela.
-- Chega de remédios! -- refilei. -- O que eu quero é... --
O senhor doutor disse que é para parar com os pós. :,
-- Com todo o prazer! Mas não me interrompa. Sente-se aqui
ao pé de mim e nem pense em tocar nesse sem fim de frascos e
frasquinhos amargos como o fel. Vá lá, tire a agulha e o
novelo do bolso.. isso mesmo... e agora continue a contar a
história de Mr. Heathcliff do ponto em que a deixou até aos
nossos dias. Que fez ele? Foi estudar para o Continente e
voltou transformado num cavalheiro? Ou arranjou alguma bolsa
de estudo? Ou fugiu para a América e alcançou a fama à custa
da exploração do país adoptivo? Ou fez fortuna mais depressa
pelas estradas de Inglaterra?
-- Sabe, Mr. Lockwood, ele é bem capaz de ter feito um pouco
de tudo isso, mas não o posso asseverar. Como já disse, não
sei como foi que enriqueceu, nem por que meios conseguiu sair
da completa ignorância em que se encontrava; mas, com sua
licença, vou continuar a contar a história à minha moda, se
achar que isso o distrai em vez de o aborrecer. Então,
sente-se melhor esta manhã?
-- Muito melhor.
-- Ora ainda bem!
Parti com Miss Catherine para a Granja dos Tordos e,
para grande desilusão minha, ela portou-se infinitamente
melhor do que eu poderia supor. Parecia até dedicada demais a
Mr. Linton e mostrava-se extremamente afectuosa com a irmã
dele. Tanto um como o outro não queriam, naturalmente, que
nada lhe faltasse. Pode bem dizer-se que não era o espinheiro
que se inclinava para as madressilvas, mas as madressilvas
que enlaçavam o espinheiro. Nada de cedências de parte a
parte: uma mantinha-se inflexível; os outros é que cediam. E
quem *pode* ter mau génio e mau feitio quando não encontra nem
oposição, nem indiferença?
Reparei que Mr. Edgar morria de medo de a irritar. Tentava
disfarçar, mas assim que me ouvia responder-lhe à letra, ou
via algum dos outros criados mostrar má cara perante as suas
ordens desabridas, era bem visível a sua preocupação pelo
modo carrancudo como nos olhava, o que nunca acontecia quando
o assunto era com ele. Repreendeu-me bastas vezes pela minha
insolência e chegou a dizer-me que uma punhalada não o faria
sofrer mais do que ver a esposa desrespeitada.
Para não afligir um patrão tão bondoso, aprendi a ser menos
melindrosa e, durante seis meses, a pólvora mostrou-se tão
inofensiva como a areia, pois ninguém lhe chegava lume para a
fazer explodir. Catherine passou por fases de tristeza e de
mutismo, que :, o marido respeitava com solidário silencio,
atribuindo-as a uma mudança de caracter devido à grave doença
que a havia acometido, pois nunca fora dada a depressões. O
regresso da alegria era por ele recebido com igual alegria.
Não minto se disser que reinava entre eles uma felicidade
genuína e sempre crescente.
Mas isso acabou. Dê por onde der, acabamos sempre por ter
de pensar em nós antes de mais nada. Os mansos e os generosos
apenas são mais justos no seu egoísmo do que os prepotentes,
e a felicidade deles chega ao fim quando as circunstancias
lhes mostram que o que mais interessa a um não é a principal
preocupação do outro.
Foi numa tarde calma de Setembro: eu vinha a chegar do
pomar com um cesto de maçãs que tinha andado a apanhar;
começara a escurecer e a lua espreitava já por cima do muro
alto do pátio, anichando sombras indefinidas nos recantos
formados pelas inúmeras partes salientes do casarão; pousei a
carga nos degraus, à porta da cozinha, para descansar e
aproveitar ao mesmo tempo para respirar um pouco mais aquela
aragem macia e perfumada; estava de costas para a porta e
olhos postos na lua; e, então, ouvi uma voz dizer atrás de
mim:
-- És tu Nelly?
Era uma voz grave, com sotaque estrangeiro; havia algo, no
entanto, no modo como pronunciara o meu nome que a tornava
familiar. Voltei-me a medo para ver quem tinha falado, pois as
portadas estavam fechadas e não tinha visto ninguém enquanto
me encaminhava para os degraus.
Vi um vulto mover-se no alpendre e, ao aproximar-me,
divisei um homem alto vestido de escuro, de pele e cabelos
muito escuros. Estava encostado à porta, com a mão no
ferrolho, como se tencionasse abri-la. «_Quem poderá ser?»
pensei. «_Mr. Earnshaw? Não! A voz não se parece nada.»
-- Estou aqui à espera há uma hora -- continuou a voz,
enquanto eu continuava boquiaberta. -- E durante todo esse
tempo reinou um silêncio de morte. Nem me atrevi a entrar. Não
me reconheces? Olha, não sou nenhum estranho!
Um raio de lua iluminou-lhe o rosto: faces macilentas, meio
cobertas por fartas suíças negras; sobrancelhas carregadas,
olhos encovados e um olhar estranho. Recordo-me bem dos olhos!
-- Não pode ser! -- exclamei, levando as mãos à cabeça, sem
:, saber se estava ou não perante uma alma deste mundo. -- Não
pode ser! Então tu voltaste? E és mesmo tu? És mesmo?
-- Sim, sou eu, o Heathcliff -- respondeu, desviando a vista
e olhando para as janelas que reflectiam uma mi ríade de luas,
mas não projectavam qualquer luz interior. -- Eles estão em
casa? Onde está ela? Não pareces contente por me ver, Nelly...
Mas não te aflijas. Ela está aqui? Responde! Quero dar-lhe só
uma palavra à tua senhora. Vai dizer-lhe que está aqui uma
pessoa de Gimmerton que lhe quer falar.
-- Que irá ela dizer? -- exclamei. -- Que irá ela fazer? Se
eu ainda não me refiz da surpresa, ela então vai ficar de
cabeça perdida! És *mesmo* o Heathcliff, não és? Mas estás
muito mudado! Não estou a perceber nada. Acaso te alistaste no
exército?
-- Vai levar-lhe o meu recado -- interrompeu-me ele, com
impaciência. -- Não terei sossego enquanto não fores!
Levantei a aldraba e entrei; mas, quando cheguei à sala
onde os senhores estavam, faltou-me coragem para entrar.
Por fim, lá arranjei uma desculpa (perguntar-lhes se queriam
que acendesse as velas) e abri a porta.
Estavam os dois sentados lado a lado, junto à janela aberta
de par em par, com as portas de tabuinhas encostadas para
trás, a contemplarem o Alto dos Vendavais, que se erguia
altivo acima da neblina prateada, para lá das árvores e dos
prados e de todo o vale de Gimmerton, demarcado por uma orla
de bruma (pois logo a seguir à capela, como deve ter reparado,
a regueira que vem dos pântanos desagua num córrego que corre
pelo vale fora); porém, a nossa antiga casa não se via,
construída que está sobre a outra vertente. Toda a cena -- a
sala, os seus ocupantes, a paisagem -- respirava uma tal
tranquilidade, que me estava a custar cumprir a minha missão.
Já me vinha embora sem dar o recado, depois de ter perguntado
sobre as velas, quando um rebate me fez retroceder e murmurar:
-- Está ali um sujeito de Gimmerton que lhe quer falar,
minha senhora.
-- Que quer ele? -- quis saber Mrs. Linton.
-- Não lhe perguntei -- respondi.
-- Corre as cortinas, Nelly -- ordenou -- e traz-nos o chá.
já volto.
Mrs. Linton saiu da sala. Mr. Edgar perguntou quem era, sem
se mostrar muito interessado. :,
-- Alguém por quem a senhora não esperava -- respondi. - O
Heathcliff... O senhor não se lembra? O rapaz que vivia em
casa de Mr. Earnshaw.
-- O quê? Esse cigano .. esse labrego? -- bradou. -- E por
que não disseste à Catherine que era ele?
-- Chiu! O senhor não lhe deve chamar esses nomes -- disse
eu. -- A senhora ia ficar toda ofendida se o ouvisse. Ficou
com o coração destroçado quando ele fugiu. Acho que este
regresso a vai encher de júbilo.
Mr. Linton dirigiu-se ao outro lado da sala, a uma das
janelas que dava para o pátio. Abriu-a e debruçou-se. Deviam
estar os dois lá em baixo, pois apressou-se a exclamar:
-- Não fiques aí fora, meu amor! Manda entrar essa pessoa,
se for nossa conhecida.
Daí a pouco ouvi a porta abrir-se e Catherine veio a correr
pela escada acima, ofegante e completamente fora de si, tão
excitada que nem parecia estar feliz; a sua cara fazia supor,
pelo contrário, alguma terrível calamidade.
-- Ai, Edgar, Edgar! -- exclamou meio sufocada, lançando-lhe
os braços à volta do pescoço -- Edgar, meu querido! O
Heathcliff voltou... está aqui! -- E apertou ainda mais o
pescoço do marido.
-- Está bem, está bem -- protestou ele, enfadado. -- Mas não
é razão para me estrangulares! Nunca o achei assim tão
importante. Não precisas de fazer tanto espalhafato!
-- Sei que nunca gostaste dele -- retorquiu ela, reprimindo
um pouco a emoção. -- Mas, agora, se gostas de mim, tens de
ser amigo dele. Posso dizer-lhe que suba?
-- Para aqui? -- estranhou o marido. -- Para a sala?
-- E para onde havia de ser?
Mr. Linton, incomodado, sugeriu que a cozinha seria o local
mais apropriado.
Catherine, perante a sobranceria dele, olhou-o meio
zangada, meio trocista.
-- Não! -- disse por fim -- Para a cozinha eu não vou! Põe
duas mesas aqui, Ellen, uma para o teu patrão e para Miss
Isabella, que pertencem à fidalguia, e outra para o Heathcliff
e para mim, que pertencemos à plebe. Achas bem assim,
querido? Ou queres que mande acender uma lareira para ti
noutro lado? Se assim for, é só dizeres. Vou lá abaixo
buscar o meu convidado. Nem caibo em mim de tanta felicidade!
:,
Edgar, porém, impediu-a, quando ela já se preparava para
correr pela escada abaixo.
-- Vai *tu* dizer-lhe que suba -- ordenou, dirigindo-se a
mim -- e tu, Catherine, podes mostrar-te satisfeita, mas tenta
não seres absurda. Não é preciso que toda a gente te veja
receberes um criado que andou fugido como se fosse teu irmão.
Desci e fui encontrar Heathcliff à espera no alpendre, com
ar de quem naturalmente contava que o mandassem entrar.
Seguiu-me sem dizer palavra e levei-o à presença do senhor e
da senhora, cujas faces ruborescidas eram denunciadoras de
acesa discussão. Porém, era outro o sentimento que ruborizava
as faces da senhora quando o amigo surgiu à porta: correu para
ele, pegou-lhe nas mãos e levou-o até Mr. Linton. Depois,
pegou na mão que Linton estendia relutante e apertou os seus
dedos entre os do visitante.
Agora que a luz da fogueira e dos candelabros lhe batia em
cheio, eu estava boquiaberta com a transformação de
Heathcliff: tinha-se tornado num homem alto, atlético, bem
constituído, ao lado do qual o meu patrão parecia um rapazito
magricela. O seu porte aprumado era indício de ter servido no
exército; a sua expressão era muito mais madura e decidida
que a de Mr. Linton; adivinhava-se nela inteligência, sem
quaisquer sinais da degradação de outros tempos. Todavia, o
sobrolho carregado retinha ainda uma certa ferocidade
semi-aplacada, e os olhos negros chispavam com um fogo
reprimido; e a postura era de grande dignidade, sem quaisquer
indícios de rudeza, se bem que demasiado austera para se
tornar cativante.
O meu patrão estava tanto ou mais espantado do que eu: teve
um minuto de manifesta hesitação, sem saber como havia de se
dirigir ao «labrego», como ele lhe chamara. Heathcliff
retirou a mão esguia de entre as dele e fitou-o com frieza até
ele se resolver a falar.
-- Tenha a bondade de se sentar -- disse por fim. -- Mrs.
Linton, em nome dos velhos tempos, pediu-me que o recebesse
com cordialidade e eu, naturalmente, fico sempre muito feliz
quando alguma coisa lhe dá prazer.
-- E eu também -- replicou Heathcliff. -- Especialmente se
for eu o responsável. Ficarei uma ou duas horas com muito
prazer.
Sentou-se frente a Catherine, que não tirava os olhos dele,
como se temesse que ele se evaporasse mal ela desviasse o
olhar. Ele, por seu turno, poucas vezes levantava os olhos:
apenas uma vez por outra, e de fugida, mas era cada vez mais
visível o deleite que :, sentia nessa troca furtiva de
olhares. A felicidade recíproca que os invadia era intensa
demais para dar lugar a constrangimentos; o mesmo não se
passava com Mr. Edgar, que estava lívido de contrariedade
sentimento esse que atingiu o clímax quando a mulher se
levantou e, atravessando a sala, agarrou de novo nas mãos de
Heathcliff, rindo às gargalhadas, completamente fora de si.
-- Amanhã vou julgar que tudo isto foi um sonho! -- exclamou
-- Não vou acreditar que te vi e te toquei e falei contigo uma
vez mais. E tu foste tão cruel, Heathcliff! Não merecias esta
recepção. Ficares três anos ausente e sem dares notícias, e
sem nunca pensares em mim!
-- Pensei mais em ti do que tu em mim -- segredou-lhe ele
-- Mas pouco depois ouvi dizer que tinhas casado, Cathy.
Enquanto estive à espera lá em baixo, no pátio, foi este o
plano que eu tracei: ver o teu rosto de relance uma vez mais,
olhando-me com surpresa e, quem sabe, falso contentamento,
depois, ajustar contas com o Hindley e, finalmente,
antecipar-me ao julgamento e executar eu mesmo a minha própria
sentença de morte. Mas a tua recepção tirou-me essas ideias da
cabeça; livra-te, no entanto, de pores má cara da próxima vez!
Não, não desta vez não me vais mandar embora de novo...
Tiveste mesmo pena da outra vez, não tiveste? Sabes, eu tive
as minhas razões. Passei por muitas provações desde que ouvi a
tua voz pela última vez, e tens de perdoar-me, pois lutei
sempre a pensar em ti!
-- Catherine, a menos que queiras tomar o chá frio, peço-te
o favor de vires para a mesa -- interveio Linton,
esforçando-se por manter o seu tom habitual e a delicadeza
possível. -- Mr. Heathcliff tem uma longa caminhada pela
frente até onde possa pernoitar, e eu estou cheio de sede.
Catherine tomou o seu lugar junto ao bule e Miss Isabella
acorreu à sala, ao chamado da campainha. Quanto a mim,
retirei-me depois de lhes ter chegado as cadeiras para a
frente.
A refeição não durou nem dez minutos e Catherine nem chegou
a servir-se, incapaz de comer ou beber fosse o que fosse.
Edgar entornou o chá no pires e só bebeu um ou dois goles.
Naquela tarde a visita de Heathcliff não se prolongou por
mais de uma hora. Perguntei-lhe à saída se ia para Gimmerton.
-- Não. Vou para o Alto dos Vendavais -- respondeu -- Mr.
Earnshaw convidou-me esta manhã quando o fui visitar.
Mr. Earnshaw convidara-o! *_Ele* fora visitá-lo! Pensei muito
:, nestas frases depois de ele se ir embora. Ter-se-ia
tornado num hipócrita, e voltado agora para a aldeia com
alguma patifaria em mente? Dava que pensar. Tive um
pressentimento: dizia-me o coração que era melhor ele ter
ficado por onde andava.
A meio da noite, fui despertada do primeiro sono por Mrs.
Linton, que viera sorrateira até ao meu quarto e, sentando-se
na cama, me puxou os cabelos para me acordar.
-- Não consigo dormir, Ellen -- disse, à laia de desculpa.
Quero que alguém vivo me faça companhia nestas horas
infelizes! O Edgar está amuado por eu estar feliz com uma
coisa que não lhe interessa; não abre a boca a não ser para me
dizer coisas mesquinhas e idiotas; diz que sou cruel e
egoísta por querer conversar quando ele está indisposto e
cheio de sono. Arranja sempre maneira de ficar indisposto à
mínima contrariedade! Teci alguns louvores a Heathcliff, e o
Edgar, ao ouvir-me, desatou a chorar, fosse da enxaqueca ou da
inveja. Então levantei-me e vim-me embora.
-- E para que foi a senhora elogiar o Heathcliff ao seu
marido? -- observei. -- Quando eram pequenos não podiam um com
o outro, e aposto que o Heathcliff detestaria também ouvi-la
elogiar Mr. Edgar. A natureza humana é assim. Não fale mais
dele ao seu marido, a menos que queira entrar em guerra aberta
com ele.
-- Mas não achas que é sinal de fraqueza? -- prosseguiu. --
Eu cá não sou invejosa, nunca me incomodou o brilho do cabelo
louro da Isabella, nem a brancura da sua pele; nem a sua
elegância, nem a predilecção que toda a família tem por ela.
Até tu, Nelly, quando nos vês a discutir, corres logo em
defesa da Isabella; e eu cedo como uma mãe babada, começo a
chamar-lhe minha querida e a afagá-la até lhe passar a birra.
O irmão gosta que nos demos bem, e isso agrada-me. São os dois
muito parecidos, uns meninos mimados que acham que o mundo
gira à volta deles; apesar de lhes fazer as vontades, acho que
um castigo bem aplicado só lhes faria bem.
-- Está enganada, Mrs. Linton -- corrigi-a. -- São eles que
lhe fazem as vontades. Havia de ser o bom e o bonito se não
lhas fizessem! E a senhora bem pode dar-se ao luxo de lhes
satisfazer alguns caprichos, desde que eles se antecipem a
todos os seus desejos. Mas olhe que pode acabar por tropeçar
nalgum obstáculo intransponível para ambas as partes e, nessa
altura, aqueles a quem chama fracos são bem capazes de se
mostrarem tão obstinados como a senhora. :,
-- E então trava-se uma luta de morte, é isso que queres
dizer Nelly? -- retorquiu, dando uma gargalhada. -- Não. Ouve
bem o que te digo: tenho tanta confiança no amor do Linton que
estou convencida de que se o matasse ele não ia retaliar.
Aconselhei-a a estimá-lo ainda mais por ele a amar tanto.
-- E estimo -- respondeu. -- Mas não é preciso pôr-se a
chorar por uma ninharia. É uma infantilidade; em vez de se
debulhar em lágrimas por eu ter dito que o Heathcliff era
agora digno do respeito de qualquer pessoa e que seria uma
honra para o fidalgo mais importante da região ser seu amigo,
devia ter sido ele a dizê-lo e ter até a amabilidade de se
mostrar satisfeito, atendendo a que o Heathcliff se portou de
forma irrepreensível, acho eu, apesar das razões que deve ter
contra o Edgar. Vai ter de se habituar ao Heathcliff, e o
melhor é aprender a gostar dele.
-- Que pensa da ida de Heathcliff para o Alto dos Vendavais?
-- inquiri. -- Aparentemente está muito mudado... um bom
cristão... de mão amiga estendida a todos os seus inimigos!
-- Ele explicou tudo -- disse Catherine. -- Também fiquei
intrigada como tu. Disse que foi lá para te pedir notícias
minhas, pois pensava que ainda lá moravas, e o Joseph chamou o
Hindley, que veio cá fora e lhe começou a perguntar o que
tinha feito e como é que tinha conseguido levar a vida, até
que acabou por o mandar entrar. Estavam mais pessoas lá
dentro, a jogar as cartas, e o Heathcliff juntou-se a eles. O
meu irmão perdeu algum dinheiro a favor dele e, vendo-o tão
abonado, convidou-o a voltar lá nessa noite, convite que ele
aceitou. O Hindley não é nada cuidadoso a escolher os amigos
e nem se deu ao trabalho de ponderar as razões que poderiam
levá-lo a desconfiar de alguém a quem torpemente ofendera.
Mas o Heathcliff garantiu-me que os motivos que o levaram a
reatar relações com o seu antigo algoz foram o desejo de se
instalar perto da Granja e o apego que sente pela casa onde
vivemos os dois, e também a esperança de que eu terei, assim,
mais oportunidades de o visitar do que se ficasse alojado em
Gimmerton. Faz tenção de oferecer bom dinheiro ao meu irmão
para ficar a morar no Alto, e a ganância do Hindley vai sem
dúvida levá-lo a aceitar. Sempre foi ávido por dinheiro,
embora o que apanha com uma mão logo deite fora com a outra.
-- Belo lugar para um jovem se fixar! -- disse eu. -- Não
receia as consequências, Mrs. Linton?
-- O meu amigo não me preocupa -- respondeu de pronto.
-- :, O seu espírito forte mantê-lo-á longe dos perigos. O
Hindley é que me preocupa um pouco; mas esse já não consegue
descer mais baixo do que está; e, quanto à possibilidade de
violência física, eu saberei estar de permeio. O que se passou
esta noite reconciliou-me com Deus e com os homens! Estava
revoltada com a Divina Providência. Sofri muito... muito...
Nelly! Se esta criatura com quem vivo soubesse o quanto, teria
vergonha de ensombrar o fim desse sofrimento com a sua
petulância vã. Foi para o poupar que suportei tudo sozinha:
deixasse eu transparecer a agonia em que tantas vezes me
encontrava, e ele teria aprendido a ansiar pelo seu alívio
tanto quanto eu. Mas tudo isso já passou e não guardo
ressentimentos. Sinto-me capaz de suportar seja o que for
daqui em diante! Se a mais perversa das criaturas me
esbofeteasse, não só lhe daria a outra face, como lhe pediria
perdão por a ter provocado. E, para o provar, vou agora mesmo
fazer as pazes com o Edgar. Boas-noites. Sou um anjo! -- E,
nesta lisonjeira convicção, se retirou.
Na manhã seguinte era bem patente o êxito da resolução em
boa hora tomada: Mr. Linton não só pusera de lado a
impertinência (embora o seu espírito parecesse ainda abatido
perante a exuberante vivacidade de Catherine), como não
levantara objecções a que Isabella a acompanhasse nessa tarde
ao Alto dos Vendavais; Catherine retribuiu-lhe a generosidade
com tantas e tão calorosas manifestações de afecto e de
carinho, que durante uns dias a casa parecia um paraíso, e
todos, patrão e criados usufruíam dessa perpétua felicidade.
Heathcliff, ou melhor, Mr. Heathcliff, como passaria a
tratá-lo, tomou a liberdade de começar por fazer algumas
visitas cautelosas à Granja dos Tordos: parecia querer avaliar
até que ponto o dono da casa suportaria a sua intrusão.
Catherine, por seu turno, achou por bem moderar as
demonstrações de alegria com que o recebia. Assim, e a pouco e
pouco, ele foi conquistando o direito de ver a sua visita ser
esperada com naturalidade.
Conservara muito da reserva que o caracterizava na
adolescência e que tão útil se revelava ao ajudá-lo a reprimir
qualquer manifestação mais exuberante dos seus sentimentos. A
desconfiança do meu patrão conheceu uma acalmia, a ponto de,
levado por certos acontecimentos, a ter canalizado durante
algum tempo noutra direcção.
Esta nova fonte de preocupações surgiu com a inesperada
fatalidade de Isabella Linton, ao sentir-se súbita e
irresistivelmente atraída pelo visitante que Mr. Edgar tão a
contra-gosto tolerava. Ela :, era nessa altura uma encantadora
jovem de dezoito anos; infantil nas atitudes, mas senhora de
um espírito e sentimentos igualmente vivos, e de um
temperamento vivo até demais quando a irritavam. O irmão, que
a amava com grande ternura, ficou apavorado com esta
inclinação tão absurda. Além da degradação social proveniente
da união com um homem sem nome, e da possibilidade de todos os
seus bens, por falta de um herdeiro homem, poderem vir parar
às mãos de Heathcliff, Edgar era suficientemente inteligente
para se aperceber das intenções de Heathcliff, para saber que,
apesar de exteriormente tão mudado, a sua mente sempre fora, e
permaneceria, inalterável. E como temia essa mente! Provocava
nele sentimentos de revolta, e todo ele se retraía só de
pensar em entregar Isabella à guarda de um tal homem.
Mais se retrairia ainda, se soubesse que a afeição dela
nascera sem ser solicitada e não despertava no objecto amado
reciprocidade de sentimentos; é que, no momento em que
descobriu a sua existência, logo atribuiu as culpas à má fé
de Heathcliff.
Já todos havíamos reparado há algum tempo que Miss Linton
andava a remoer alguma. Mostrava-se irritada e enfadada, e
passava a vida a implicar com Catherine, com o risco iminente
de lhe esgotar a paciência, já de si tão limitada. Começámos
por desculpá-la, atribuindo o seu comportamento à falta de
saúde, pois mirrava e definhava dia a dia. Até que um dia a
sua impertinência atingiu
os limites: recusou-se a tomar o pequeno almoço, queixando-se
de que os criados não faziam nada do que ela mandava, a
senhora a tratava como se ela não existisse e Edgar a
ignorava, apontando ainda que tinha apanhado uma constipação
por termos deixado as portas abertas e o lume apagado só para
a humilharmos, e mais uma centena de outras faltas igualmente
frívolas; foi então que Mrs. Linton, peremptória, insistiu
para que se metesse na cama e, ralhando-lhe, ameaçou que ia
mandar chamar o médico. Mal ouviu o nome do Dr. Kenneth,
afirmou sem demora que estava de perfeita saúde, e que era
apenas a rispidez de Catherine que a punha triste e
mal-humorada.
-- Como podes tu dizer que eu sou ríspida, minha marota? --
exclamou a senhora, perplexa com esta afirmação tão pouco
razoável. -- Estás decerto a perder a razão. Vá, diz lá
quando é que fui ríspida?
-- Ontem -- soluçou Isabella. -- E agora também! :,
-- Ontem! ? -- admirou-se a cunhada. -- Em que ocasião?
-- Durante o nosso passeio pela charneca; mandaste-me ir dar
uma volta por onde me apetecesse, enquanto tu andaste a
passear com Mr. Heathcliff!
-- E é a isso que chamas ser ríspida? -- disse Catherine a
rir. -- Não o fiz com a intenção de me ver livre de ti; tanto
me fazia estares ali como não; apenas achei que a minha
conversa com o Heathcliff não tinha nada que te pudesse
interessar.
-- Não foi nada disso -- choramingou a jovem. --
Mandaste-me embora porque sabias que eu queria ficar!
-- Ela estará boa da cabeça? -- exclamou Mrs. Linton,
voltando-se para mim. -- Vou repetir-te a nossa conversa
palavra por palavra, Isabella, e tu me dirás que encanto
poderia ter para ti.
-- Quero lá saber da conversa -- replicou Isabella. -- O que
eu queria era estar com...
-- Então? -- disse Catherine, ao vê-la hesitar.
-- Com ele. E não vou deixar que me mandes embora outra vez!
-- prosseguiu, exaltadíssima. -- Pareces um cão a comer um
osso, Cathy; só tu é que podes ser amada, mais ninguém!
-- Mas que grande atrevimento, minha serigaita! -- exclamou
Mrs. Linton, boquiaberta. -- Nem quero acreditar num disparate
destes! Não é possível que queiras atrair as atenções do
Heathcliff, que o possas considerar uma pessoa simpática!
Espero bem ter percebido mal, Isabella.
-- Não, não percebeste mal -- asseverou a jovem, toldada
pela paixão -- Amo-o mais do que tu alguma vez amaste o Edgar;
e ele poderia vir a amar-me, se tu o deixasses!
-- Nesse caso, não queria estar no teu lugar nem por um
reino! -- declarou Catherine, com grande ênfase (e parecia
sincera). -- Nelly, ajuda-me a fazer-lhe ver que isto é uma
loucura. Diz-lhe que espécie de homem é o Heathcliff: um
enjeitado, sem educação, sem cultura; uma charneca árida, de
tojo e pedras! Mais depressa soltaria aquele canário no
parque num dia de Inverno do que aconselhar-te a entregares o
coração ao Heathcliff! Isso só prova que é o teu deplorável
desconhecimento do seu carácter que te meteu esse sonho
impossível na cabeça, nada mais. Sim, não penses que ele
oculta rios de benevolência e afeição sob toda aquela dureza
exterior! Ele não é nenhum diamante em bruto, nenhuma ostra
grosseira onde se esconde uma pérola; é um homem terrível,
feroz, desapiedado. Nunca lhe digo «deixa este ou aquele
inimigo em paz, :,
porque seria mesquinho ou cruel prejudica-los», o que lhe digo
é «_Deixa-os em paz, porque *eu* detestaria vê-los
maltratados.» E ele, Isabella, seria capaz de te esmagar como
um ovo de passarinho se te tornasses num fardo demasiado
incomodativo. Sei que seria incapaz de amar uma Linton, embora
o ache bem capaz de casar com a tua fortuna e a tua condição.
A avareza está cada vez mais enraizada nele. Pronto, aqui tens
o seu retrato, e feito por alguém que é amiga dele; tão amiga
que, se o visse seriar lente interessado em te apanhar até
talvez me calasse e te deixasse cair na armadilha.
Miss Linton fitava a cunhada, a transbordar de indignação.
-- É vergonhoso! Vergonhoso! -- repetia, furiosa. -- És pior
do que vinte inimigos, a tua amizade só destila veneno!
-- Ah, com que então não me acreditas ? -- replicou
Catherine. -- Pensas que falo por despeito?
-- Sei que o fazes -- retorquiu Isabella. -- E horroriza-me
esse teu procedimento.
-- Tanto melhor! -- gritou a outra; -- Faz como bem
quiseres. Foi o que eu fiz e, agora, perante tanta insolência,
dou o assunto por encerrado.
-- E eu que sofra com o egoísmo dela! -- disse Isabella a
soluçar quando Mrs. Linton saiu do quarto. -- Todos, estão
todos contra mim; ela destruiu a minha única consolação. Mas
só disse mentiras, não foi? Mr. Heathcliff não é nosso
inimigo; é um homem honrado, honesto; senão, como ia ele
lembrar-se dela?
-- Tire-o dos seus pensamentos, Miss Isabella -- pedi eu. --
Aquilo é ave de mau agoiro, não é para si. Mrs. Linton foi
muito dura, mas não posso contradizê-la. Ela conhece o coração
dele melhor do que eu ou qualquer outra pessoa; e nunca o
faria parecer pior do que é. As pessoas honestas não escondem
os seus actos. O que tem ele feito para viver? Como fez
fortuna? Por que razão veio morar para o Alto dos Vendavais,
para a casa de um homem que ele odeia? Ouvi dizer que Mr.
Earnshaw está cada vez pior desde que ele chegou. Passam a
noite inteira a jogar; e Hindley já hipotecou a propriedade;
não faz mais nada senão comer e jogar, foi o que ouvi dizer a
semana passada; quem me disse foi o Joseph, quando o encontrei
em Gimmerton.
-- Nelly -- disse ele -- vamos ter a polícia lá em casa a
fazer investigações por causa das brigas. Houve um que ficou
quase sem dedos e outro que sangrava que nem um vitelo. Sabes
que mais? :,
Quem devia ir preso era o patrão. Mas esse tem tanto medo
do banco dos réus ou dos juízes, como de Pedro, Paulo, João,
Mateus, ou outro qualquer! Parece até que gosta, que faz por
isso. Aquele Heathcliff saiu-me um bom espertalhão! Capaz de
rir como ninguém de uma boa piada... Quando vai à Granja, ele
não vos conta a vidinha regalada que leva entre nós ? Ora
escuta: levanta-se ao sol-pôr e, daí p.rá frente, é só jogar
dados e beber, de janelas fechadas e velas acesas até ao
meio-dia do outro dia; só então o tresloucado do patrão sobe
p.ró quarto a gritar e a praguejar de tal sorte que as pessoas
decentes têm de tapar os ouvid >s, envergonhadas; e o magano
lá fica, a contar os ganhos e a comer e a dormir e .inda se
vai pôr à conversa com a mulher do vizinho. E está-se mesmo a
ver que conta a Miss Catherine como o dinheiro do pai dela vai
passando p.ró bolso dele, e como o irmão dela s.afunda cada
vez mais, enquanto ele lhe vai dando uma ajuda... -- Sabe,
menina, o Joseph é um velho rabugento, mas não é nenhum
mentiroso; e se o que ele diz do Heathcliff é verdade, a
menina não ia querer um marido assim, pois não?
-- Estás de conluio com eles, Ellen! -- replicou Isabella. --
Não vou dar ouvidos às tuas calúnias. Deve ser bem grande a
tua malevolência, para me quereres convencer de que não
existe felicidade neste mundo!
Se ela se teria curado sozinha desta fantasia, ou se
teimaria em dar-lhe continuidade, isso eu não sei, pois teve
bem pouco tempo para pensar no assunto. No dia seguinte ouve
um julgamento na cidade mais próxima, e o meu patrão teve de
comparecer. Sabendo da sua ausência, Mr. Heathcliff veio mais
cedo que o costume.
Catherine e Isabella estavam as duas na biblioteca, ainda
zangadas uma com a outra, mas em silêncio. Esta última,
preocupada com a sua recente indiscrição ao revelar num fugaz
acesso de paixão os seus sentimentos mais secretos; a
primeira, depois de muito pensar no sucedido, deveras ofendida
com a sua companheira e, se agora lhe dava vontade de rir
tanta petulância, não queria dar essa impressão à outra.
Riu-se, de facto, mas foi quando viu Heathcliff passar
junto à janela. Eu andava a varrer a lareira e reparei no
sorriso malicioso que lhe aflorou aos lábios. Isabella,
absorta nos seus pensamentos, ou na leitura, não se mexeu até
a porta se abrir, quando já era tarde demais para tentar
escapar, o que de bom grado teria feito, se tivesse tido a
oportunidade. :,
-- Entra; ora ainda bem que vieste! -- exclamou a senhora
alegremente, puxando uma cadeira para junto da fogueira. --
Ora aqui estão duas almas muito tristes à espera de uma
terceira que venha derreter o gelo entre elas; e tu és
precisamente quem nós escolheríamos. Sabes, Heathcliff, vou
ter a honra de te apresentar alguém que te estima ainda mais
do que eu própria. Espero que te sintas lisonjeado. Não, não é
a Nelly, não olhes para ela! É a minha pobre cunhadinha, que
está de coração despedaçado só pela mera contemplação da tua
beleza física e moral. Está nas tuas mãos tornares-te irmão
do Edgar! Não, Isabella, não fujas -- prosseguiu, agarrando,
com pretenso ar de brincadeira, a rapariga que atordoada se
levantara indignada. -- Esgatanhámo-nos como duas gatas por
tua causa, Heathcliff, e eu fiquei a perder em protestos de
devoção e admiração; e, ainda por cima, fui informada de que,
se eu tivesse a delicadeza de me manter afastada, a minha
rival, como ela se considera, desfecharia uma seta direita ao
teu coração, que te prenderia para sempre e lançaria a minha
lembrança no eterno esquecimento!
-- Catherine! -- disse Isabella, recuperando a dignidade,
sem tentar defender-se da mão que lhe apertava o braço. --
Agradeço que respeites a verdade e não me calunies, nem mesmo
a brincar! Mr. Heathcliff, tenha a bondade de pedir à sua
amiga que me solte. Ela esquece-se de que o senhor e eu não
somos amigos íntimos e que o que a diverte a ela é para mim
indizivelmente penoso.
Como o visitante não respondesse e se fosse sentar,
mostrando-se indiferente aos sentimentos que ela pudesse
nutrir por ele, Isabella voltou-se para a sua torturadora e
implorou-lhe, num sussurro, que a libertasse.
-- Nem pensar! -- gritou Mrs. Linton. -- Nunca mais vais
dizer que sou como um cão agarrado a um osso. Ficas aqui, sim
senhora. Então, Heathcliff, não te mostras satisfeito com a
bela novidade que te dei? A Isabella jura que o amor do Edgar
por mim não é nada comparado com o que sente por ti. Tenho a
certeza de que foi mais ou menos isso que ela disse, não foi,
Ellen? E não come nada desde o nosso passeio de anteontem, de
desgosto e raiva por eu a ter privado da tua companhia por
achar que não lhe interessava.
-- Deves estar enganada... -- disse Heathcliff, rodando a
cadeira e colocando-se de frente para elas. -- Seja como for,
neste momento só deseja estar longe de mim! -- E fitou
demoradamente o objecto do seu discurso, como se se tratasse
de algum bicho :, estranho e nojento, uma centopeia das
Índias, por exemplo, que a curiosidade nos leva a fixar,
apesar da aversão que provoca.
A pobrezinha não aguentou mais: as suas faces empalideceram
e ruborizaram-se sucessivamente e, com as pestanas orladas de
lágrimas, usou toda a força dos seus dedos frágeis para se
libertar das garras de Catherine; percebendo, porém, que mal
afastava um dedo do braço, logo outro se cravava, e que não
era capaz de os soltar a todos ao mesmo tempo, começou a usar
as unhas que, afiadas como eram, não tardaram a ornamentar a
opressora com profundos vergões vermelhos semi-circulares.
-- Mas ela é uma fera! -- exclamou Mrs. Linton, soltando-a e
sacudindo a mão dorida. -- Desaparece daqui por amor de Deus,
e que eu não torne a ver essa tua cara de víbora! Que tolice
mostrares-lhe as tuas garras. Não vês a que conclusão ele vai
chegar? Cuidado, Heathcliff! Olha que são armas mortíferas...
cuidado com os teus olhos!
-- Arrancava-lhas dos dedos, se alguma vez me ameaçasse --
foi a sua resposta brutal, quando a porta se fechou atrás de
Isabella. -- Mas por que irritaste a criatura desta maneira,
Cathy? Não estavas a dizer a verdade, pois não?
-- Claro que estava -- asseverou ela. -- Há semanas que anda
perdida de amores por ti; e as cenas que ela fez esta manhã...
e os impropérios que me disse... e tudo porque lhe apresentei
claramente os teus defeitos a fim de moderar tanta adoração.
Mas deixemos isso. Só a quis castigar pela sua petulância,
foi tudo. Quero-lhe bem demais, meu querido Heathcliff, para
permitir que lhe deites a mão e a devores por completo.
-- E eu bem de menos para sequer tentar -- contrapôs ele.
-- A menos que seja à maneira dos vampiros. Havias de ouvir
falar de coisas muito estranhas, se eu vivesse sozinho com
essa deslavada dessa boneca de cera; a menos estranha seria
pintar-lhe sobre a pele branca as cores do arco-íris e pôr-lhe
aqueles olhos azuis todos pretos dia sim-dia não; parecem-se
detestavelmente com os do Edgar.
-- Deliciosamente, queres tu dizer -- observou Catherine. --
São uns olhos de pomba, uns olhos de anjo!
-- Ela é herdeira do irmão, não é? -- perguntou ele após um
breve silêncio.
-- Devia custar-me admitir tal coisa -- respondeu Catherine.
-- Meia dúzia de sobrinhos hão-de dar-lhe cabo do título, se
Deus :, quiser! Esquece esse assunto por agora... estás a
mostrar-te demasiado interessado na fortuna do teu vizinho.
Lembra-te de que a fortuna *desse* vizinho é minha.
-- Se fosse minha, também não deixaria de o ser -- atalhou
Heathcliff. -- No entanto, a Isabella Linton pode ser parva,
mas não é louca; em resumo, o melhor é esquecermos o assunto,
como sugeriste.
E foi o que fizeram, pelo menos nas palavras: no tocante a
Catherine, provavelmente também no pensamento; quanto ao
outro, estou certa de que pensou nisso muitas vezes ao longo
da tarde. Via-o sorrir interiormente -- um sorriso que mais se
assemelhava a um esgar -- e mergulhar em ominosa meditação
sempre que Mrs. Linton se ausentava da sala.
Tomei a decisão de vigiar todos os seus movimentos. O meu
coração pendia invariavelmente mais para o lado do patrão do
que de Catherine; e com razão, pensava eu, pois ele era
bondoso, digno de confiança e honrado, ao passo que ela, bem,
não se pode dizer que ela fosse o *oposto*, mas parecia
permitir-se tantas liberdades que eu confiava muito pouco nos
seus princípios, e simpatizava ainda menos com o seu feitio. O
meu maior desejo era que acontecesse alguma coisa que
libertasse pacificamente tanto o Alto dos Vendavais como a
Granja das garras de Mr. Heathcliff, e tudo voltasse a ser
como era antes. As suas visitas eram para mim um constante
pesadelo; e, desconfio, também para o meu patrão. A presença
dele no Alto era uma afronta inconcebível. Parecia que Deus
tinha abandonado a ovelha tresmalhada aos seus próprios
erros, e eu via uma fera à solta, interpondo-se entre a ovelha
e o redil, à espera de uma oportunidade para a atacar e
destruir.

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