terça-feira, 5 de abril de 2011

A Divina Comédia | Inferno - Cantos XXV ao XXX

Canto XXV
No final de seu discurso, o ladrão fechou a mão em punho
deixando apenas o dedo médio, ergueu-a para o
alto e gritou:
— Toma, Deus, olha, isto aqui é pra você!
E dali em diante, todas as serpentes se tornaram minhas amigas,
pois uma chegou e se enrolou no seu pescoço, impedindo que
ele falasse. Depois veio outra e se enrolou com tanta força nos seus
braços que ele não pôde mais sequer se mexer.
Ah! Pistóia, Pistóia, por que não te incineras de uma vez por
todas, pois nem teus fundadores fizeram tanto mal quanto agora fazes!
Eu achava que não veria mais, neste Inferno escuro, figura mais
orgulhosa que aquele que morreu nos muros de Tebas.
Sem dizer mais nada ele fugiu. Pouco depois, apareceu um
centauro, que o procurava. Estava totalmente coberto de serpentes.
No ombro, atrás da nuca, um dragão com suas asas abertas, cuspia
fogo em quem se aproximasse.
— Este que tu vês é Caco — apontou-me o mestre —, filho
de Vulcano que aqui cumpre pena por ter roubado o rebanho do
seu vizinho, Hércules, que foi quem depois o matou com cem golpes
de clava, dos quais não sentiu talvez mais que dez.
Enquanto Caco passava, três espíritos se aproximaram e nos
perguntaram:
— Quem sois vós?

Inferno 73

Notas 74
49] As transformações são as seguintes: Agnel, aparece como homem e se funde
com Cianfa, que surge como um monstro de seis patas. Buoso aparece primeiro
como homem e depois troca formas com Francesco que primeiro aparece
como um réptil cinza.
25.5 Cianfa dei Donati é um nobre florentino. É ele que aparece pela primeira vez
como um réptil de seis patas, agarra Agnel e com ele se mescla..
25.6 Agnel é Agnello dei Brunelleschi, nobre florentino. Ele aparece inicialmente
como uma alma humana, mas é depois mesclado com Cianfa, que aparece como
uma serpente de seis patas..


Inferno 74

Nossa conversa então se interrompeu. Eu não os conhecia,
mas cheguei a ouvir alguém do grupo perguntar:
— Onde será que está Cianfa?
Enquanto eu os olhava, sem nada dizer, de repente uma serpente
com seis patas se arremessou sobre um deles, envolvendo-o
totalmente. Com as patas do meio apertava seu abdômen. Com as
da frente segurava seus braços e com as de trás, suas pernas. Os
dentes afiados ela afundava na sua face e sua cauda passava no meio
das pernas do ladrão, perfurando-o, atravessando seus rins e saindo
reta pelo ventre. Entrelaçava-se tão firmemente no pecador que os
dois — alma e réptil — se fundiam como se fossem cera. Nem um
nem o outro pareciam ser mais o que eram. Um dos seus companheiros
então gritou:
— Ó Agnel, como mudaste! Não és mais nem dois nem um!
Das duas cabeças agora só havia uma e já surgiam dois semblantes
em um único rosto. Aquele ser não era mais gente nem serpente.
Transformara-se em um monstro nunca visto. E a imagem
deturpada assim se foi, num passo lento.
Vi então correndo como lagartixa, na direção de um dos dois
ladrões restantes, uma cobrinha preta. Ela veio e afundou os dentes
em um deles, atravessando-lhe o umbigo. Depois caiu e se estendeu
diante dele. O ladrão nada falava. Permanecia em pé como em transe,
olhando para o réptil que o olhava. Pelo focinho de um e pela
ferida do outro saía fumaça. Os dois começaram então a se transformar.
A serpente aos poucos adquiria feições que sumiam no
condenado, numa troca perfeitamente simétrica. Assim que a cauda
dela se dividia em duas partes, as pernas do pecador se uniam, e se
fundiam perfeitamente. A pele dele se tornava cada vez mais dura,

Notas 75
25.7 Puccio Sciancato é outro nobre florentino. Puccio é o único que não se transforma
em serpente durante a visita de Dante.
25.8 Aquele por quem Gaville chora é Francesco Cavalcanti. Ele foi morto pelos
habitantes da vila de Gaville e seus parentes vingaram a sua morte provocando
um genocídio na vila. Francesco surge como um réptil de quatro patas e troca
de formas com Buoso.
25.9 Buoso Donati: Alguns comentaristas acham que este personagem (que Dante
menciona simplesmente como “Buoso”) não é Buoso Donati (vítima de Gianni
Schicchi mencionada no Canto XXX) mas Buoso degli Abati. Ambos foram
nobres florentinos que teriam enriquecido se apropriando da propriedade alheia.
Buoso aparece com forma humana mas depois se mescla com Francesco e
parte como réptil de quatro patas.


Inferno 75

se cobrindo de escamas, enquanto a dela se tornava macia. Os seus
braços entravam pelas axilas enquanto que na fera, duas patas cresciam.
Pouco depois, um tombou e começou a rastejar enquanto o
outro se levantou. O que estava em pé ainda não tinha orelhas e
exibia uma língua de serpente, mas logo suas orelhas começaram a
nascer e sua língua se uniu, perfeitamente. A língua do que estava
no chão se dividiu em duas partes e ele recolheu as orelhas como
uma lesma recolhe seus chifres. Quando a fumaça finalmente cessou,
o réptil de quatro patas, recém formado, partiu assobiando, fugindo
do vale para as encostas. O outro seguia a fera, andando e falando.
Mas antes de partir, ele se virou e falou para aquele que não
havia se transformado:
— Quero agora que Buoso corra com as quatro patas, como
eu fiz.
E apesar dos meus olhos confusos e minha mente desorientada,
não deixei de reconhecer os dois que ficaram. Um, era Puccio
Sciancato, o único que não se transformara, e o outro era aquele
por quem Gaville chora.

Notas 76
26 Personagens e símbolos do Canto XXVI
26.1 Os maus conselheiros são os que induziram outros a praticar a fraude. De
acordo com Dorothy Sayers “o fogo que atormenta também oculta os conselheiros
da fraude, pois pecado deles foi cometido às escondidas. E como pecaram
com suas línguas, agora a fala só pode passar pela língua da chama furtiva.”
[Sayers 49]
26.2 Ulisses (Odisseus, na mitologia grega) era rei de Íthaca e um dos líderes do exército
grego na guerra de Tróia. Ele surge em diversas obras gregas antigas
como herói bravo e virtuoso. Nas obras de Virgílio é um político armador de
intrigas e conspirações. Sempre foi retratado como um exímio estrategista, tendo
sido o autor do logro do cavalo de Tróia junto com Diomedes, que levou a
conquista da cidade pelos gregos. Ulisses e Diomedes também são acusados do
roubo do Palladium (estátua de Atena de Palas) que os troianos acreditavam ter
caído do templo de Atena no céu, e que era a causa da invencibilidade de Tróia.
Entre os maus conselhos de Ulisses está o incentivo dado a Aquiles ao revelar
que o oráculo lhe profetizava grandes glórias (a rendição de Tróia). Mas Ulisses
escondeu de Aquiles a segunda parte do oráculo, que profetizava também que
ele morreria na guerra.
26.3 Diomedes foi rei de Argos e aliado de Ulisses e dos gregos na guerra de Tróia.
26.4 Penélope era, segundo a mitologia grega, princesa de Esparta e esposa de Odisseus
(Ulisses), que lutava na guerra de Tróia. Ulisses passou mais de 20 anos
longe de Penélope, antes e depois da guerra, mas ela nunca duvidou que ele
voltaria. Embora fosse constantemente assediada por inúmeros pretendentes,
ela sempre os dispensava dizendo que não podia escolher um novo esposo enquanto
não terminasse uma colcha que tecia para seu sogro Laertes. Toda noite
ela desfazia o trabalho feito durante o dia e assim evitava ter que fazer a escolha.
Uma noite, porém, ela foi surpreendida por uma criada que revelou seu
segredo e foi assim obrigada a concluir o trabalho. Quando os pretendentes
estavam prontos a ouvir sua decisão, Ulisses voltou, disfarçado, matou todos
eles e voltou para Penélope. [Encarta 97]

Canto XXVI
Alegra-te Florença pois és tão grande que até pelo Inferno
o teu nome se expande! Cinco eminentes florentinos encontrei
naquele fosso, o que me fez sentir vergonha de ti.
Subimos pela escada de pedras que havia sido o caminho
pelo qual havíamos descido. Ele ia na frente e me puxava rochedo
acima, apoiando-se nas rachaduras, por onde o pé não podia avançar
sem a mão.
A oitava vala resplandecia de chamas. Isto pude ver quando
meus pés chegaram a um ponto onde o fundo já aparecia. As chamas
não estavam imóveis. Elas se moviam continuamente como
gente o que me levou a imaginar que mantinham em sua custódia
um pecador. O meu guia, como sempre adivinhando meu pensamento,
confirmou:
— Em cada fogo há um espírito que é torturado pelo fogo incessante.
— Ó mestre — perguntei —, isto que acabas de falar eu já tinha
adivinhado, mas dize-me quem está naquele fogo duplo, com
uma chama dividida em duas pontas?
— Naquela chama — respondeu — sofrem dura pena Ulisses
e Diomedes. Naquela chama se arrependem de ter tramado o logro
do cavalo de Tróia e o roubo do Paládio.
— Podem eles falar através do fogo? — perguntei.
— Sim — respondeu o mestre —, mas deixa que eu fale, pois,
sendo gregos, podem te desprezar.

Inferno 76

Notas 77
26.5 A última viagem de Ulisses não tem precedentes em qualquer outra obra literária
sobre o explorador grego, cujas aventuras foram narradas por vários outros
autores, além de Homero. É criação de Dante e uma das mais famosas passagens
do Inferno. Ulisses fala que atravessou o mediterrâneo até os pilares de
Hércules (estreito de Gibraltar). Foi além dos pilares, virou para o sudoeste e
navegou por mais cinco meses quando finalmente viu, no horizonte, a forma de
uma altíssima montanha. Jamais conseguiu chegar até ela pois antes um redemoinho
afundou sua embarcação, matando ele e todos os seus tripulantes. A
montanha era o monte do purgatório, que fica do outro lado do mundo.
26.6 Os pilares de Hércules são formados pelo rochedo de Gibraltar na Espanha e
pelo rochedo de Ceuta (Abila) em Marrocos e separam o mar Mediterrâneo do
oceano Atlântico. No mundo antigo acreditava-se que os pilares de Hércules
sinalizavam o ponto onde acabava o mundo habitado (na época, só se conhecia
três continentes: Europa, África e Ásia). De acordo com a mitologia clássica os
montes antigamente formavam um só rochedo que foi partido em dois por
Hércules.


Inferno 77

Chegou o fogo a um lugar propício e o mestre se aproximou,
perguntando:
— Ó vós que são dois dentro de uma única chama, se mereci
de vós o meu viver, se mereci de vós alguma fama, quando no
mundo meus altos versos escrevi, não vos moveis, mas que um de
vós me diga onde foi perdido, para morrer.
A ponta maior da chama logo cresceu e começou a se agitar, e,
como se fosse uma língua ondulando, virou-se para nós e falou:
— Quando descobri que nada podia impedir minha ânsia de
viajar e conhecer o mundo, nem ternura de filho ao velho pai, nem
o amor da minha Penélope, decidi explorar o mar aberto e profundo,
acompanhado de minha tripulação fiel. Passamos da Espanha e
Marrocos, e continuamos além dos pilares que por Hércules foram
fixados, sinalizando aos homens que daquele ponto não passassem.
Navegamos em mar aberto por cinco meses, com a vela sempre à
esquerda, até que vimos no horizonte uma enorme montanha.
Mesmo distante, apagada e escura, nunca eu vira outra assim tão
grande. Mas nossa alegria durou pouco e logo transformou-se em
pranto. Da nova terra saiu um grande redemoinho que atingiu a
nossa embarcação na popa. Três vezes o barco rodou até que na
quarta fomos sepultados nas profundezas do oceano.

Notas 78
27 Personagens e símbolos do Canto XXVII
27.1 Guido de Montefeltro (1223-1298) é a chama que fala neste Canto. Ele era um
capitão guibelino famoso por sua sabedoria e estratégias militares. Obteve sucesso
em várias batalhas contra os guelfos. Chegou a ser excomungado mas, alguns
anos depois, se reconciliou com a igreja e entrou para a ordem dos franciscanos.
O seu filho, Buonconte, morreu em 1289 lutando pelos guibelinos na
batalha de Campaldino, na qual Dante lutava do outro lado, pelos guelfos.
27.2 A águia de Polenta: Os governantes de Polenta ostentavam uma águia no seu
brasão. Reinaram sobre Ravenna por 170 anos (até 1441) e em seus territórios
estava incluída a Cérvia.
27.3 Os mastins de Verruchio: são os tiranos Malatesta e seu filho Malatestino de
Rimini. Eles mataram Montagna dei Parciati, um guibelino também de Rimini.

Canto XXVII
A chama agora estava imóvel e quieta. Nada mais falou e já
se afastava com a licença do poeta quando uma outra,
que vinha logo atrás, chamou nossa atenção à sua ponta
que liberava ruídos estranhos. A ponta começou a mover-se, como
se fosse uma língua, até que ouvimos:
— Ó tu a quem dirijo a minha voz, que falavas há pouco em
lombardo, dizendo: “Podes ir, não te peço mais nada”, embora tenha
eu demorado em chegar a ti, não te incomodes se eu falar contigo,
pois vês que não incomoda a mim, que estou ardendo em
chamas! Se tu acabas de cair do mundo, daquela doce terra latina,
diga-me, está a Romanha em paz ou em guerra?
Eu ainda escutava a chama falar quando o mestre me cutucou
e disse:
— Fala tu, pois este é latino!
E eu, que já estava preparado para lhe responder, comecei:
— Ó tu que te escondes nessa chama, no coração dos seus tiranos
tua Romanha sempre esteve em guerra, mas quando eu a deixei,
ela não estava envolvida em conflitos. Ravena está como há
muitos anos e a águia de Polenta já estica suas asas sobre a Cérvia.
O mastim novo de Verrucchio, assim como o velho, continuam a
sugar o sangue de seu povo.
Falei-lhe ainda de Forli, Lamone, Santerno e outras cidades da
Romanha. No final, lhe pedi:

Inferno 78

Notas 79
27.4 Fortaleza Penestrina: A família Colonna, excomungada pelo papa Bonifácio
VIII (por não considerar legítima a renúncia do papa Celestino V, praticamente
obrigado a deixar o cargo por insistência de Bonifácio), se refugiou na sua fortaleza
Penestrina, que pôde suportar os ataques das tropas papais. Levando adiante
uma sugestão do frade Guido, Bonifácio prometeu anistia total à família
Colonna, que, acreditando na sua boa fé, se rendeu. Bonifácio então, os traiu,
prendendo-os e mandando destruir o palácio.
27.5 O príncipe dos novos fariseus é o papa Bonifácio VIII (19.2):

Inferno 79

— Agora peço que me conte quem és, para que eu possa estender,
no mundo, a tua fama.
— Se eu acreditasse que eu estava falando com uma alma que
iria voltar ao mundo, esta chama não mais se moveria, mas como
nunca, deste abismo, alma alguma jamais escapou, sem medo de infâmia
eu te respondo. Fui guerreiro e depois frade franciscano,
acreditando que assim poderia corrigir os meus erros do passado.
Arrependi-me dos meus pecados e confessei meus erros. Ai miserável!
E bem teria valido se não fosse aquele príncipe dos novos fariseus
que me pediu para ajudá-lo a destruir a fortaleza Perestrina.
Para ele, não importava o cargo supremo que ocupava, nem os votos
sagrados e nem o cordão que eu usava. Ele me pediu conselho,
e eu calei. Mas depois falou de novo: “Não sejas desconfiado! Eu já
te absolvo dos pecados que vieres a cometer. O céu eu posso fechar
ou abrir, como tu sabes, pois são duas as chaves que meu antecessor
não soube guardar.” Eu, convencido pelos seus argumentos,
aceitei, e disse: “Padre, desde que me absolvas do pecado que estou
prestes a cometer, te aconselharei: Prometa a eles, anistia. Depois, quando
obedecerem, volte atrás e não cumpra a promessa! Se assim fizeres, triunfarás!”
No momento da minha morte, São Francisco veio buscar minha
alma, mas antes que ele pudesse me levar um querubim negro
se antecipou e, utilizando argumentos lógicos, demonstrou que eu
deveria ir para o Inferno: “Para baixo ele virá comigo, pois deu
conselho fraudulento. Não se pode absolver o impenitente, nem
pode o arrependido ainda querer pecar, pois assim nada vale seu arrependimento.”
Coitado de mim. Quando ele me tomou ainda falou:
“Nem imaginavas que eu pudesse argumentar tão bem, não
foi?” O demônio me levou até Minós, que se enrolou no rabo oito

Notas 80

Inferno 80

vezes e, de tanta raiva ainda o mordeu, me enviando a esta oitava
vala para ser prisioneiro do fogo eterno.
Depois que concluiu o seu relato, a chama calou-se e se afastou,
torcendo e debatendo o corno agudo. Eu e o mestre dali partimos,
subindo pela escarpada para o arco seguinte, que atravessa o
fosso onde pagam suas penas aqueles que as ganharam desunindo.

Notas 81
28 Personagens e símbolos do Canto XXVIII
28.1 Os semeadores de discórdias dividem-se em três tipos: (1) criadores de cismas
religiosos (Maomé, Ali), (2) instigadores de conflitos sociais (Caio Cúrio,
Pier da Medicina), e (3) semeadores de desunião familiar (Bertran de Born e
Mosca) [Sayers 49]. O demônio que os pune causa mutilações em partes do
corpo representativas do tipo de discórdia provocada.
28.2 O profeta Maomé (570-632) foi o fundador do Islã, cujos ensinamentos proféticos,
que abrangiam desde princípios políticos até sociais e religiosos, se tornaram
a base da civilização islâmica e tiveram grande influência na história mundial.
Nascido na cidade de Meca (Arábia), foi órfão de pai e mãe antes dos seis anos,
tendo sido criado pelo seu tio. Tornou-se, como a maioria de sua tribo, um ativo
comerciante e fez várias viagens à Síria onde conheceu Khadija, uma viuva cujos
negócios ele passou a administrar. Ela ficou tão impressionada com a sua honestidade
que o ofereceu casamento, que ele aceitou aos 25 anos. Maomé teve a oportunidade
de ouvir judeus e cristãos pregarem sua religião nas feiras de Meca, e,
freqüentemente se retirava para orar e meditar sobre as questões que eles levantavam.
Num desses retiros, teve a visão do arcanjo Gabriel que o proclamou profeta
de Deus. Inicialmente assustado com a responsabilidade que lhe foi passada,
foi aos poucos assumindo sua missão profética e passou a pregar em público,
tendo como primeiros seguidores sua esposa e o seu primo Ali. Ele pregava a
existência de um único Deus, do juízo final e lutava pela justiça social e econômica.
Maomé formalizou suas revelações no Corão, que se tornou livro sagrado.
Afirmou ser o último dos profetas e que o Corão era a última das revelações. Por
pregar contra as tradições tribais, Maomé foi várias vezes perseguido, tendo que
se refugiar em Medina. O início do seu exílio marca o início do calendário islâmico.
Em Medina, ele estabeleceu o império islâmico, implementando amplas reformas
sociais, porém dando autonomia aos judeus e cristãos. [Encarta 97] Salvatore
Viglio comenta sobre sua presença no inferno: “Dante pertence a uma época
em que eram freqüentes os conflitos entre cristãos e muçulmanos e vivos os horrores
das invasões dos grupos islâmicos sobre as nações cristãs. Embora admire a
cultura árabe, não sai do clima de hostilidade religiosa, proveniente da pregação
das Cruzadas. Dentro da mentalidade da idade média, considera Maomé um cristão
dissidente, que, por vaidade, teria separado grande parcela da humanidade da
verdadeira igreja de Cristo.” [Viglio 70]

Canto XXVIII
Quem poderia, mesmo fazendo uso da melhor prosa,
narrar as cenas de sangue e das feridas, que eu vi naquele
triste lugar? Todas as línguas, por certo, estariam
falidas, pois nossa memória e nosso vocabulário não são suficientes
para compreender tamanha dor. Nem nos campos de batalha das
piores guerras se viu tantos corpos estraçalhados, com deformações
e feridas tão terríveis, quanto os que povoavam aquela nona vala.
Próximo a nós estava um condenado com as entranhas à vista,
rasgado do nariz à garganta e com os intestinos pendurados entre as
pernas. Eu o olhava, hesitante, quando ele, me olhando de volta,
rasgou o peito com as mãos dizendo:
— Vês, tu, como eu me maltrato? Vês como Maomé e Ali estão
desfeitos, gemendo, e todos esses semeadores de discórdias e heresias?
Todos aqui são continuamente rasgados, cruelmente, por um
diabo que aqui nos tortura eternamente. Em vão saram as feridas,
pois logo ele volta e nos dilacera outra vez! — depois me perguntou
— E tu, quem és, tentando retardar a tua pena aí sobre a ponte?
— Nem morte ainda o alcançou, nem culpa ordena que ele sofra
aqui — respondeu Virgílio —, mas para que ele possa ter esta
experiência, eu, que estou morto, devo guiá-lo por todo este Inferno
de giro em giro. Isto é tão verdadeiro como a minha presença
aqui.

Inferno 81

Notas 82
28.3 Ali (600-661): Primo de Maomé, foi um dos seus primeiros seguidores. Ali casou-
se com Fátima, a única das filhas do profeta que sobrevivera à idade adulta,
e assumiu o como o quarto califa do Islã em 656.
28.4 Frade Dolcino foi um reformador mal sucedido da igreja cristã. A sua seita –
os Irmãos Apostólicos – pregava a volta da religião à simplicidade dos tempos dos
apóstolos, o fim da propriedade privada, a comunhão dos bens e das mulheres.
Sustentavam que a eucaristia não podia conter o corpo de Cristo, que a confissão
dos pecados a padres humanos e pecadores era inútil, que a cruz não deveria
ser adorada como símbolo divino e que o batismo com água benta não tinha
valor espiritual algum, entre outras doutrinas consideradas heresia pela igreja de
Roma. O papa Clemente V baniu sua seita e ordenou o fim da irmandade. Fugiram,
então, Dolcino e seus seguidores para as proximidades de Novarra onde
resistiram às forças do papa durante um ano, até que finalmente foram vencidos
pela fome [Musa 95]. Dolcino e sua companheira, a bela Margareth de
Trento foram condenados à fogueira em 1307, mas antes foram torturados cruelmente.
Margareth foi queimada primeiro, num fogo lento, diante de Dolcino.
Este, depois de assistir à morte de sua companheira, foi preso a uma carroça
puxada por bois, que desfilou por várias ruas da cidade. Em sua volta havia vários
potes de ferro cheios de brasas. Mergulhadas nas brasas estavam grandes
pinças de ferro, incandescentes. Durante o desfile pela cidade, as pinças eram
aplicadas em várias partes do corpo nu de Dolcino, até que toda a pele tivesse
sido arrancada. No final, depois de desfilar por toda a cidade, a carcaça foi jogada
sobre o que sobrou de Margareth [Longfellow 67]. Para a igreja, a doutrina
de Dolcino era extremamente perigosa por causa de suas posições contrárias às
determinadas por Roma e por influenciar tantos seguidores. Os culpados,
quando capturados, sempre eram submetidos a torturas exemplares. No seu livro
O Nome da Rosa, o escritor Umberto Eco narra um episódio onde religiosos
são acusados de heresia por seguirem princípios da seita de Dolcino.
28.5 Guido del Cassero e Angioliello da Calignano eram dois cidadãos de Fano.
Eles morreram por afogamento em Cattolica – cidade às margens do mar Adriático,
numa região conhecida por seu mar turbulento. O afogamento não foi
acidental mas o cumprimento de uma ordem de Malatestino de Rimini [Sayers
49].

Inferno 82

Quando ouviram essas palavras, mais de cem almas se aproximaram
para me ver, quase esquecendo por um momento o seu
intenso sofrimento.
— Diga ao Frei Dolcino — falou Maomé — que ele se abasteça
de mantimentos e não saia do seu refúgio nas montanhas, se
ele não tiver pressa em me encontrar. Se não tomar esses cuidados,
o bispo de Novarra certamente o vencerá!
Depois de falar, Maomé se levantou e saiu. Veio então outro
que tinha a garganta furada, o nariz totalmente decepado e apenas
uma orelha inteira. Ele se separou do grupo e abriu sua goela vermelha,
que falou:
— Ó tu que vi na sua terra latina, lembra-te de Pier de Medicina
quando voltares, e avisa a Guido e Angiolello que, se nossa visão
é certa, eles serão arrancados do seu barco e afogados perto de
Cattólica, por traição de um tirano cruel. Aquele traidor, que só vê
por um olho, reina sobre uma cidade que alguém aqui deseja nunca
ter visto.
— Quem é aquele que nunca deseja ter visto a cidade onde
reina o tirano? — perguntei.
— É este aqui. Mas ele não fala nada! — disse Pier, mostrando
um companheiro calado e assustado, cuja boca ele abriu com a
mão. — Este homem, no exílio, acabou com as dúvidas de César
quando lhe disse: “O homem preparado, quando hesita, perde.”
Oh, como ele parecia assustado, com a língua presa na garganta,
Cúrio, que antes fora tão grande orador.
Um outro, com ambas mãos truncadas, levantou os cotos no
ar, espalhando sangue sobre seu rosto, e gritou:

Notas 83
28.6 O tirano cruel de um olho só é Malatestino de Rímini foi nobre guelfo da
família dos Malatesta – tiranos de Rimini. Malatestino era cego de um olho. No
Canto XXVII, Dante o chama de “mastim novo de Verrucchio” (o mastim velho
é Malatesta). Verruchio era o nome do castelo dos Malatesta (veja nota 27.3).
28.7 Pier da Medicina era, de acordo com o estudioso Benvenuto da Imola, instigador
de rixas entre as famílias de Polenta e de Malatesta (veja Malatestino).
[Musa 95] Suas mutilações ocorrem na garganta (que usava para mentir e espalhar
intrigas), no nariz (que usava para farejar segredos alheios) e na orelha (que
usava para escutar através das portas e paredes).
28.8 Caio Cúrio (Caius Cribonius Curio): foi condenado ao exílio em Rimini e
por isso Pier da Medicina diz que ele deseja nunca ter visto Rimini (cidade às
margens do rio Rubicon). Ele era um tribuno romano sob as ordens de Pompeu
– cônsul romano que, aproveitando a ausência de Júlio César (que estava
conquistando a Gália) aplicara um golpe de estado se declarando Cônsul de
Roma. Em 49 a.C., César estava proibido de cruzar a fronteira entre a Gália e a
república romana, marcada pelo rio Rubicon. Segundo Lucano (em Pharsalia),
Cúrio dirigiu-se a César e o convenceu a atravessar o rio e avançar na direção
de Roma. Essa ação iniciou a guerra civil romana (discórdia pela qual Caio é
punido) que culminou com a vitória de César três meses depois. [Encarta 97],
[Mauro 98] e [Musa 95]
28.9 Mosca dei Lamberti foi um nobre florentino que, ao instigar uma briga entre
as famílias Buondelmonti e Amadei, levou Florença a se dividir entre guelfos e
guibelinos. As famílias se desentenderam quando Buondelmonte dei Buondelmonti,
que estava prometido em casamento a uma moça da família Amadei, a
trocou por uma da família Donati. Quando seus parentes estavam procurando a
melhor maneira de reparar o dano, Mosca disse “o que está feito, está feito”,
anunciando que Buondelmonte já havia sido assassinado. Por causa disso, a cidade
se dividiu, tomando partidos, e daquele dia em diante, Florença passou a
ser palco constante de disputas entre as facções rivais. [Sayers 49]

Inferno 83

— Recorda o pobre Mosca, que disse “o que está feito, está
feito” que para os toscanos foi semente tosca!
— E para a tua casta será a morte! — respondi-lhe, irritado, e
ele, com mais essa ferida, retirou-se.
Continuei a observar a multidão quando vi um corpo que caminhava
sem cabeça. Ele segurava sua cabeça pelos cabelos, balançando-
a como lanterna. Quando chegou junto da ponte, ergueu alto
o braço que a segurava, para que sua fala pudéssemos ouvir melhor:
— Sou Bertran de Bórnio — gritou —, e sofro esta pena
monstruosa por ter instigado o jovem rei contra seu pai. Eu pus o
pai contra o filho e por ter separado aqueles antes tão unidos, tive o
meu cérebro separado do meu tronco. E assim, em mim tu vês, o
perfeito contrapasso.

Notas 84
28.10 Bertran de Born: Famoso poeta inglês, foi um dos maiores trovadores provençais.
Ele é acusado de ter semeado a discórdia entre o rei Henrique II (Henry)
da Inglaterra e o seu filho, o príncipe de mesmo nome. O contrapasso deBertran de Born é um dos mais nítidos da Comédia. O efeito do pecado foi a separação
de pai e filho. O contrapasso é a separação de cabeça e tronco. Vários
outros círculos do inferno apresentam contrapassos, porém nem todos são tão
evidentes quanto este.
Bertran de Born, condenado a ter a cabeça separada do
corpo para sempre, por ter causado a separação de pai e
filho. Ilustração de Gustave Doré (século XIX).

Inferno 84

Notas 85
29 Personagens e símbolos do Canto XXIX
29.1 Cronologia: como a lua cheia está abaixo dos pés de Dante e Virgílio, é aproximadamente
1 hora da tarde (sábado).
29.2 Geri del Bello era primo do pai de Dante. Sua reputação não era das melhores.
Ele se envolveu numa rixa com a família Sacchetti e foi assassinado, provavelmente
por um dos Sacchetti. “A vingança pela morte de parentes era considerada
obrigatória na época, e, aparentemente, a morte de Geri ainda não fora
vingada pela família Alighieri em 1300.” [Musa 95]

Canto XXIX
Tanta gente ferida e sofrendo deixaram meus olhos inundados
de lágrimas. Virgílio notou e me perguntou:
gente? Nos ou
— O que procuras? Por que olhas tanto para essa
tros fossos isto não aconteceu. Se quiseres contar todos,
lembra-te que o vale se estende por 22 milhas e a Lua já se encontra
aos nossos pés. Vamos andando porque o tempo é curto e
há muito mais para ver adiante.
— Se soubesses o que eu estava procurando, talvez tivesses
deixado eu permanecer por mais tempo. — falei e continuei a seguir
o mestre, que não parou para me ouvir. Acrescentei — Dentro
daquela vala, onde eu mantinha o olhar, acredito que esteja um espírito
da minha família, a chorar pela sua culpa aqui punida.
— Não tenhas tal preocupação com ele pois ela não é recíproca.
— respondeu o mestre. — Quando estávamos lá ao pé da ponte
pude vê-lo te ameaçar com o dedo erguido e prestei atenção quando
falaram seu nome: “Geri del Bello”. Tu não ouviste porque estavas
demais entretido com a cabeça falante de Bertran de Born.
— Ó mestre meu, a violenta morte que não lhe foi vingada —
disse eu —, o deixou indignado, acredito, e foi essa a razão pela
qual se escondeu sem querer falar comigo. É por isso que sinto
pena e tristeza por ele.
Continuamos a conversar até chegarmos a um ponto, desde a
ponte, onde já era possível avistar o vale inteiro. Só o vale. Dentro
dele não se via nada por causa da escuridão. Quando finalmente

Inferno 85

Notas 86
29.3 Falsificadores (alquimistas): A décima bolsa do Malebolge pune aqueles que
falsificaram coisas, palavras, dinheiro e pessoas. O Canto XXIX fala dos falsificadores
de matéria (coisas), especificamente, os alquimistas. “Na nossa sociedade,
eles podem ser representar aqueles que adulteram remédios e comida, os que
constróem prédios e casas com materiais de baixa qualidade e acabamento de
primeira, etc.” [Sayers 49] No Malebolge eles estão cobertos de sarnas e sofrem
com uma coceira incessante.

Inferno 86

estávamos no meio da ponte que atravessa este último claustro do
Malebolge pudemos vê-lo por completo, e ouvir gritos tão terríveis
que me levaram a cobrir os ouvidos. Amontoados naquela
vala estavam centenas de doentes, com seus membros apodrecendo
como leprosos. O ar estava dominado por um cheiro forte de
carne podre.
Descemos por uma via à esquerda da saída da ponte até chegar
a um ponto onde se tinha uma visão mais nítida daquele poço,
onde são punidos os falsários. A visão era terrível. Por todo o vale
se estendiam montes de espíritos empilhados, tão cansados que mal
se moviam. Uns se estiravam, de bruços ou de costas, sobre os corpos
dos outros. Outros se arrastavam, lentamente, com dificuldade.
Passo a passo andávamos sem dizer uma palavra, vendo aquelas
almas doentes, incapazes de levantar seus corpos deformados. Vimos
dois pecadores sentados, um de costas para o outro, com os
corpos totalmente cobertos de sarnas. Eles se coçavam freneticamente,
afundando suas unhas na pele e tentando, em vão, atenuar a
coceira que nunca cessava.
— Tu que arrancas tua pele com as unhas — dirigiu-se Virgílio
a uma das almas — dize-me se existe algum latino aqui presente,
para que tuas unhas possam servir a esse teu trabalho eternamente.
— Latinos somos nós que tu vês aqui, desfigurados. — respondeu
um deles chorando — Mas quem és tu e por que nos perguntas?
— Sou o guia deste ser vivente — respondeu o mestre — e
aqui desci com a intenção de mostrar-lhe todo o Inferno.
Com a explicação, ambos viraram-se, lentamente, na minha direção.
O mesmo fizeram outros, mais distantes, que ouviram essas

Notas 87
29.4 Capocchio era o nome ou apelido de um homem que em 1293 foi queimado
vivo em Siena por alquimia. [Musa 95]
29.5 Griffolino de Arezzo era um físico. Griffolino levou Alberto, o afilhado do
bispo de Siena, a acreditar que ele era capaz de ensiná-lo a voar. Alberto,
tolo, acreditou e lhe pagou uma razoável quantia pela aula. Griffolino, porém,
não cumpriu o acordo e Alberto, descobrindo que fora enganado, denunciou
Griffolino ao seu padrinho, o bispo, que o mandou para a fogueira.

Inferno 87

palavras. O mestre então pediu que eu fizesse as perguntas que desejasse.
— Para que a memória de vós não desapareça das mentes dos
homens no mundo primeiro — falei —, dizei-me quem sois e de
onde viestes.
— Eu fui alquimista de Arezzo e este aqui é Alberto, que me
condenou à fogueira. Eu lhe disse brincando que eu sabia levitar e
ele, insatisfeito por eu não tê-lo transformado em um Dédalo, reclamou
ao seu protetor, que me mandou queimar. Mas não foi por
isto que estou aqui. Por ter no mundo usado a alquimia, Minós não
se enganou e me colocou aqui, entre os falsários.
Eu comentava com o mestre sobre a ingenuidade do povo de
Siena quando outro, que me ouvira falar, se aproximou e disse:
— Se achas mesmo isto do sienenses, então olha pra mim. Eu
sou Capocchio, que falsificava metais e moedas. Deves lembrar-te
de mim e saber que eu não era nada ingênuo pois falsificava muito
bem.

Notas 88
30 Personagens e símbolos do Canto XXX
30.1 Falsificadores (2): O Canto XXX fala de mais três tipos de falsários (além dos
alquimistas, falsificadores de matéria, encontrados no Canto XXIX). Os falsificadores
de pessoas são os impostores que assumem identidades falsas, se passando por
outras pessoas. São punidos com a insanidade extrema e correm feito loucos
pelo Malebolge mordendo e arrastando os outros condenados. Os falsificadores de
palavras são os culpados de perjúrio, falsidade ideológica e falso testemunho.
Fervem de febre tão intensa que os deixa imóveis. Os falsificadores de dinheiro se
desfazem com uma hidropisia tão grave que os derrete totalmente. Sentem uma
sede nunca saciada porém nos sonhos só vêem rios, fontes e muita água, o que
os tortura ainda mais. Segundo Dorothy Sayers, a imagem de doentes pode representar
a decadência da sociedade por causa da falsidade, com uma doença
mortal e já em estado de necrose avançada. “Malebolge começou com a corrupção
da igreja e do estado. Nesta última vala, o próprio dinheiro é corrompido,
cada afirmação se tornou perjúrio, e cada identidade, uma mentira. Não sobrou
meio de troca.” [Sayers 49]
30.2 Gianni Schicchi pertencia à família Cavalcanti, de Florença. Era exímio em
disfarces e na arte da imitação. Segundo Benvenuto, Buoso Donati (25.9) foi
um ilustre nobre de Florença que, ao sentir que a hora de sua morte se aproximava,
teve uma crise de consciência por ter enriquecido ilicitamente através de
roubos, e decidiu deixar gordos legados para diversas pessoas que ele poderia
ter prejudicado. Porém, o seu filho Simone, se sentindo prejudicado, contratou
os serviços de Gianni para que este se passasse por seu pai, elaborando um novo
testamento que desfazia o primeiro e declarando como único herdeiro o seu
filho Simone Donati. No testamento, Gianni não se esqueceu dele próprio. Incluiu
no testamento a seguinte cláusula: “para Gianni Schicchi de Cavalcanti eu
deixo a minha égua”. [Longfellow 67]
30.3 Mirra era filha do rei Ciniras. Apaixonada pelo próprio pai, tramou com sua
ama uma forma de entrar nos seus aposentos à noite e passar por uma jovem
aguardada pelo rei. No escuro, o rei não a reconheceu e manteve, sem saber, relações
sexuais com a própria filha. Mirra voltou várias outras vezes até que,
numa certa noite, o rei, desejando saber quem era aquela que tanto o amava, acendeu
uma tocha e viu que era Mirra. Ele sacou a espada para matá-la mas ela fugiu. Arrependida, pediu perdão aos deuses e foi transformada em uma árvore:
um pé de mirra. O seu filho, quando finalmente nasceu, se chamou Adonis.
(Ovídio, Metamorfoses X: 298-518)

Canto XXX
Nem entre os loucos mais insanos se viu fúria e crueldade
como aquela que se apossou de duas sombras pálidas,
nuas, que se perseguiam pelo vale escuro como
porcos soltos nas pocilgas. Uma delas afundou os dentes no pescoço
de Capocchio e saiu arrastando-o para longe, esfolando seu ventre
no chão áspero.
Ficou o alquimista de Arezzo, tremendo, que me disse:
— Aquele louco é Gianni Schicchi. Ele vive sempre assim raivoso
e nos maltrata o tempo todo.
— Oh! — disse-lhe — Tomara que aquele outro não te morda
também, mas, antes que ele se vá, dize-me quem é.
— Aquela é Mirra — disse —, a princesa depravada, que se
tornou amante do seu próprio pai se passando por outra e assim
enganou o rei. Da mesma maneira agiu Gianni, que se fez passar
por Buoso Donati no seu leito de morte, falsificando o testamento
em seu favor.
Depois que se foram os dois loucos raivosos, dos quais não
desgrudei o olhar, voltei a minha atenção às outras almas. Vi então
um deformado que parecia um violão. Seu corpo estava inchado
por uma hidropisia tão grave que ele não conseguia se mover. A sua
boca permanecia sempre aberta pois não conseguia fechá-la. Um
lábio se recolhia para cima e o outro pendia, solto e pesado. Ao
perceber que eu o olhava, ele falou:

Inferno 88

Notas 89
30.4 Mestre Adamo era um falsificador de moedas da Brescia que, instigado pelos
condes Guido, Alessandro e Aguinolfo de Romena falsificou o florim de ouro
de Florença, cunhando a moeda com 21 quilates em vez de 24 (três a menos,
como diz no poema). [Longfellow 67]
30.5 Florim: A moeda de Florença (florim) tinha gravada em um dos lados, o padroeiro
da cidade, João Batista, e do outro, um lírio.
30.6 A esposa de Potifar: José, filho de Israel, havia sido vendido como escravo
por seus irmãos. Potifar, oficial do Faraó, comprou José que passou a servi-lo.
Potifar em pouco tempo passou a confiar em José e o fez mordomo de sua
mais alta confiança. A esposa de Potifar, porém, tentou seduzir José a ir para a
cama com ela. José recusou. Ela não desistiu. Passou a insistir dia após dia. José
sempre recusava. Um dia, ela encontrou-se a sós com ele, agarrou-lhe pela capa
e tentou seduzi-lo à força. Ele fugiu, deixando a capa nas mãos dela. Ela então
mentiu para seu marido dizendo que José havia tentado violentá-la, mostrando
a capa como prova. Potifar, acreditando na palavra da mulher, expulsou José e
mandou prendê-lo no cárcere (Gênese 39).
30.7 Sinon foi o grego que, deixando-se levar prisioneiro pelos troianos, os convenceu
a levarem, para dentro das paredes da cidade, um grande cavalo de madeira
deixado pelos gregos. O cavalo, disse, era um presente dos gregos para substituir
a estátua de Palas (Palladium) roubada por Ulisses e Diomedes (26.2 e 26.3). O
cavalo estava repleto de soldados que, à noite, saíram de seu esconderijo e tomaram
Tróia.

Inferno 89

— Ó vós que, não sei por que, não sofrem flagelo algum, vede
aqui a miséria do mestre Adamo. Em vida, tive tudo o que quis e
agora, eu faço qualquer coisa por uma gota d'água. A imagem das
fontes e rios que descendem ao Arno me assombra eternamente e
isto mais me castiga que o mal que resseca o meu rosto descarnado.
Fui eu quem falsificou a moeda cunhada com o Batista e por isto
fui torrado na fogueira. O que eu mais queria era encontrar por aqui
as almas malditas de Guido, Alessandro e seu irmão. Foram eles
que me incentivaram a cunhar o florim com três quilates a menos.
Dizem os raivosos que um dos malditos já chegou. Se eu fosse ligeiro
o suficiente para me mover pelo menos uma polegada a cada
cem anos eu já teria começado a procurá-lo, mesmo sabendo que é
preciso percorrer 11 milhas para dar uma volta completa nesta vala,
que pelo menos meia milha tem de largura.
— Quem são essas almas que fumegam ao teu lado? — perguntei.
— Elas já estavam aqui quando eu cheguei — respondeu — e,
desde então, nunca se moveram. Ela é a falsa que acusou José. Este
outro é o falso Sinón, o grego que mentiu em Tróia. Este fedor exalam
por causa de sua febre aguda.
Sinón, talvez ofendido pelas palavras de Adamo, juntou as
forças, levantou-se e o golpeou. O mestre Adamo retaliou imediatamente
atingindo-lhe o rosto com o braço, e disse:
— Embora eu não possa caminhar por este vale, minha mão é
livre para o que for preciso.
— Mas ela não estava tão livre quando tu seguias para a fogueira,
estava? — respondeu irado o outro — Mas a tinhas muito
bem quando cunhavas!

Notas 90

Inferno 90

— Agora dizes a verdade, mas não fostes tão verdadeiro em
Tróia! — respondeu Adamo.
— Minhas palavras foram falsas, assim como as moedas que
fizestes! — gritou Sinón.
E assim os dois começaram uma interminável discussão, e eu
permaneci, parado, absorvido pela briga, até que o mestre gritou, irritado:
— Vai, continua olhando! Mais um pouco e eu perco a paciência!
Fiquei tão envergonhado com a repreensão que mal consegui
pedir desculpas. O mestre percebeu, e me disse:
— Menos vergonha que essa tua já seria suficiente para lavar
falta maior. Deixa para lá, esquece! Mas lembra, se outra vez estiveres
exposto a tais situações, cuides de procurar o meu apoio. Querer
ouvir tais rixas é gostar de baixaria.

Notas 91
Mapa 3: MALEBOLGE (“valas malditas” – círculo VIII): 10 valas em degraus
(decrescentes), interligadas por pontes (a ponte sobre a sexta vala está em
ruínas).
Vala 1: Sedutores e rufiões. São açoitados por diabos que os exploram e controlam
(Canto XVIII).
Vala 2: Aduladores. Sofrem submersos em um rio de fezes (Canto XVIII).
Vala 3: Simoníacos (traficantes de religião). Enterrados de cabeça para baixo,
empilhados. O último fica com os pés de fora em chamas (Canto XIX).
Vala 4: Adivinhos. Condenados a não olhar para frente, com a cabeça torcida
para trás (Canto XX).
Vala 5: Corruptos (traficantes de justiça). Submersos em um rio de pez fervente
e maltratados por diabos espertos (Canto XXI).
Vala 6: Hipócritas. Vestem capas de chumbo pesadíssimas e são obrigados a
caminhar com elas (Canto XXIII).
Vala 7: Ladrões. Se transformam, sendo consumidos por serpentes e outros
répteis mutantes (Canto XXIV).
Vala 8: Maus conselheiros. Estão presos em uma chama que os envolve completamente
(Canto XXVI).
Vala 9: Criadores de intrigas: São mutilados por um diabo e se mutilam o tempo
todo (Canto XXVIII).
Vala 10: Alquimistas, impostores, perjuros e falsificadores: Cobertos de sarnas
que provocam coceiras, tomados pela insanidade ou vítimas de doenças degenerativas
que os deformam e não lhes permite o movimento (Canto XXIX).
Gigantes: Estão dentro do Cócito mas suas cabeças e troncos são visíveis à distância
(Canto XXXI).
Mapa 3: Malebolge. Ilustração de Helder da Rocha.

Inferno 91

Notas 92

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