quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Oliver Twist, Capítulos 6 ao 10


Capítulo VI
Luta e vitória.
Ao cabo de um mês de ensaios, Oliver estava admitido como aprendiz.
Houve justamente nessa época uma epidemia. Em estilo comercial, os
caixões tinham subido; e no espaço de algumas semanas Oliver ganhou
muita experiência. O êxito da engenhosa especulação do Sr. Sowerberry ia
além das suas esperanças.
Os mais antigos habitantes não se lembravam de ter visto tanta moléstia
mortífera, principalmente nas crianças; numerosos foram os enterros
a cuja frente ia o pequeno Oliver com um retalho de fumo que lhe ia do
chapéu aos joelhos, o que causava grande pasmo e gosto a todas as mães.
Oliver acompanhou também o patrão aos enterros de adultos para adquirir
a impassibilidade e a insensibilidade necessárias a um urubu consumado.
Teve muita ocasião de observar a bela resignação e força de alma
com que as pessoas corajosas suportam a perda de seus parentes.
Assim que, quando se encomendava a Sowerberry um enterro para
alguma pessoa velha e rica, possuindo muitos sobrinhos e sobrinhas, os
quais durante a última moléstia se haviam mostrado inconsoláveis, e cuja
dor nem perante o público se pudera conter, todos esses parentes eram
depois encontrados em casa alegres e satisfeitos, conversando com uma
isenção que pareciam não ter perdido nada. Certos maridos suportavam
com admirável calma a perda da mulher; as mulheres, por seu lado, vestindo
luto pelo marido, procuravam torná-lo mais atraente possível; era
de notar que aqueles cuja dor fizera explosão na ocasião do enterro ficavam
calmos quando entravam em casa e alegres antes do chá.
Este espetáculo a um tempo curioso e consolador excitava o pasmo de
Oliver.
Não posso afirmar com certeza, na qualidade de biógrafo, se o exemplo
de toda essa gente dispunha Oliver à resignação. O certo é que ele
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continuou durante muitos meses a suportar a dominação e maus-tratos
de Noé Claypole, que tinha ciúme de o ver na posição de urubu, quando
ele, mais antigo, não tinha subido a tanto.
Chego agora a um ponto importantíssimo na história de Oliver; vou
falar de uma ação que pode parecer quase indiferente, mas que modificou
e mudou completamente o seu futuro.
Oliver e Noé tinham descido à cozinha, à hora do jantar, para comer
um pedaço de carneiro — libra e meia da carne mais comum. Mas Carlota
havia saído, e durante a sua ausência o Sr. Noé Claypole, faminto e vicioso,
cuidou que não podia passar melhor o tempo do que molestando o
pequeno Oliver Twist.
Para ter esta inocente distração, Noé pôs os pés sobre a toalha, puxou
pelos cabelos de Oliver, beliscou-lhe as orelhas e chamou-lhe um nome
feio. Anunciou o projeto de ir vê-lo enforcar algum dia; em suma, não houve
diabrura que não fizesse ou dissesse; mas como nada disso fizera chorar
Oliver, Noé experimentou outro meio mais engenhoso; fez o que fazem
muitos espíritos mais célebres que Noé; recorreu às personalidades.
— Bastardo! — disse ele. — Como vai tua mãe?
— Morreu — respondeu Oliver. — Peço-lhe que me não fale nisso.
A criança corou dizendo estas palavras. Tinha a respiração precipitada,
e, ao ver-lhe a contração dos lábios e das narinas, o Sr. Claypole cuidou
que ele ia chorar; por isso voltou à carga.
— De que morreu tua mãe? — perguntou ele.
— De desespero, segundo me disseram — respondeu Oliver como se
fala a si mesmo —, e eu creio que compreendo o que é morrer assim.
— Tra, lá, lá, lá — cantarolou o Sr. Claypole vendo rolar uma lágrima
pela face de Oliver. — Por que diabo choramingas desse modo?
— Não é por sua causa — disse Oliver enxugando a face, — acredite
que não é.
— Ah! Sim? Não sou eu?
— Não, não é — respondeu Oliver em tom seco. — Olhe, já basta; não
diga mais uma palavra a respeito de minha mãe... É conselho que lhe dou.
— Conselho que me dá? — exclamou Noé. — Na verdade, estás petulante!
Parece que tua mãe era uma bela mulher, não?
E Noé abanou a cabeça de um modo expressivo e torceu o narizinho
vermelho.
— Tu bem sabes, órfão — continuou Noé, animado pelo silêncio de
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Oliver e com um tom de compaixão fingida (mais ofensivo de todos) —, tu
bem sabes que nem eu nem tu lhe podemos dar remédio; bem sabes que
tua mãe era uma mulher da vida airada.
— Que diz? — perguntou Oliver levantando a cabeça.
— Uma mulher pública — respondeu friamente Noé —, e muito
melhor foi que morresse, porque haveria de acabar na cadeia ou na forca.
Com o rosto afogueado, Oliver atirou-se para Noé, derrubando cadeiras e
mesa, agarrou-o pelo gasnete, sacudiu-o com raiva tal que os dentes de Noé
bateram uns contra os outros e, reunindo todas as forças, aplicou-lhe um
soco que o levou ao chão.
Um instante antes era aquele pequeno, apesar dos maus-tratos, a imagem
da doçura; mas a sua coragem fora despertada enfim; a afronta à
memória de sua mãe pô-lo fora de si; batia-lhe o coração com força; tinha
uma atitude altiva e os olhos animados; tudo nele estava mudado, agora
que ele via o seu covarde perseguidor estendido a seus pés e o desafiava
com mais energia que não conhecera antes.
— Assassino! — gritou Noé. — Carlota! Patroa! O aprendiz assassinou-
me; socorro! Oliver está danado! Carlota!
Aos gritos de Noé, respondeu Carlota com um grito agudo e a Sra.
Sowerberry com outro grito agudíssimo; a primeira entrou na cozinha
por uma porta lateral e a segunda parou na escada a fim de observar se
não expunha a sua vida, caso descesse mais.
— Ah! Miserável! — disse Carlota apertando Oliver com todas as suas
forças, que eram iguais às de um homem robusto e sadio. — Ingrato!
Assassino! Monstro!
E a cada sílaba Carlota dava um soco em Oliver e ao mesmo tempo um
grito agudo, para maior glória da sociedade, cuja causa ela defendia.
O pulso dela não era leve; mas, receando que não fosse bastante para
acalmar a cólera de Oliver, a Sra. Sowerberry desceu à cozinha e, segurando
com uma mão na criança, com a outra lhe arranhava a cara. Noé,
aproveitando a vantagem da posição, levantou-se e desandou alguns pares
de socos nas costas de Oliver.
O exercício era tão violento que não podia durar muito; quando os
três se cansaram de dar pancadas, arrastaram a criança, que gritava e se
debatia, sem todavia mostrar medo, para o celeiro, onde a fecharam a
chave; depois a Sra. Sowerberry deixou-se cair numa cadeira e debulhou-
se em lágrimas.
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— A patroa vai desmaiar! — disse Carlota. — Noé, dá cá um copo
d’água.
— Oh! Carlota — disse a Sra. Sowerberry, falando como podia apesar
da tosse e da porção d’água fria que Noé lhe deitava à cara. — Oh! Carlota,
que fortuna não termos sido assassinados na cama!
— Foi uma grande fortuna, realmente — respondeu Carlota. — Espero
que o patrão tome esta lição a fim de não receber em casa estas
criaturas terríveis, que nasceram para o assassinato e o roubo. Pobre Noé!
Quando eu entrei estava quase morto!
— Coitado! — disse a Sra. Sowerberry, lançando um olhar compassivo
para Noé.
Noé (que era mais alto que Oliver) esfregava os olhos com a palma da
mão e soluçava.
— Que faremos? — disse a Sra. Sowerberry. — Meu marido saiu, não
há homem em casa; e Oliver dentro de dez minutos vai pôr a porta abaixo
com pontapés.
Oliver dava efetivamente sucessivos pontapés na porta do celeiro.
— Meu Deus... Não sei — disse Carlota. — Se mandássemos chamar a
polícia?
— Ou a guarda? — acrescentou Noé Claypole.
— Não, não — disse a Sra. Sowerberry, lembrando do antigo amigo de
Oliver. — Noé, vai à casa do Sr. Bumble e diga-lhe que venha cá, já e já;
não precisa ir procurar o boné. Anda, anda; no caminho leva sempre uma
faca aplicada no olho para desinchar.
Noé não esperou mais nada; saiu às carreiras. A gente da rua ficava
admirada de ver um rapaz a correr, sem boné e com uma faca no olho.
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
Capítulo VII
Oliver prossegue em sua rebelião.
Noé Claypole correu a toda brida e só parou à porta do asilo da mendicidade.
Esperou cerca de um minuto para começar outra vez seus soluços
e dar à cara uma expressão de dor e de terror; depois bateu à porta e
apresentou ao mendigo que lhe abriu a porta uma cara tão triste que este,
posto estivesse acostumado a ver caras infelizes, recuou espantado.
— Que aconteceria a este pequeno? — disse o velho mendigo.
— O Sr. Bumble! O Sr. Bumble! — gritou ele, fingindo um grande
medo, e com tal força que não só o Sr. Bumble ouviu logo, apesar de ser
um pouco surdo, mas até criou tal susto que saiu ao pátio sem chapéu de
três bicos, circunstância notável e verdadeiramente curiosa, pois mostra
que um bedel, em um momento de comoção súbita e poderosa, pode momentaneamente
ficar bruto e esquecer a sua dignidade pessoal.
Noé continuou:
— Sr. Bumble, é Oliver que...
— Como? — interrompeu o Sr. Bumble com uma expressão de sincera
alegria. — Ele fugiu? Fugiu?
— Não senhor, não fugiu; mas quis assassinar-me; depois quis assassinar
Carlota e a patroa. Oh! Que dores! Ai que dores, Sr. Bumble!
E Noé torcia-se em todos os sentidos para fazer crer ao Sr. Bumble que
no ataque violento e feroz de Oliver Twist recebera alguma grave lesão
interna que lhe causava atrozes sofrimentos.
Quando Noé viu o efeito que as suas palavras produziam no Sr. Bumble,
quis comovê-lo ainda mais, redobrando as suas queixas; e quando viu
atravessar o pátio um sujeito de colete branco gemeu de um modo mais
trágico do que nunca, pois achou que era importante chamar a atenção
do dito personagem.
Despertou-se a atenção deste, que se voltou subitamente e perguntou
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por que razão berrava aquele rapaz e por que motivo não lhe aplicava o
bedel dois ou três murros para fazê-lo articular melhor as suas palavras.
— É um pobre rapaz da escola da caridade — respondeu o Sr. Bumble,
que escapou de ser assassinado pelo jovem Twist.
— Ora, ora. Essa já esperava eu — disse o sujeito do colete branco. —
Desde o princípio tive um singular pressentimento de que aquele pequeno
há de acabar na forca.
— E quis também assassinar a criada — disse o Sr. Bumble, pálido
de medo.
— E a patroa também — acrescentou Noé Claypole.
— E o patrão também, não? — disse o Sr. Bumble.
— Não, porque tinha saído; se não fosse isso morria às mãos do diabrete;
ele dizia que queria dar cabo da pele do patrão.
— Disse isso? — perguntou o sujeito do colete branco.
— Sim, senhor — respondeu Noé —, e minha ama manda saber se o
Sr. Bumble podia ir lá dar uma sova em Oliver, porque o patrão saiu.
— Certamente que pode — disse sorrindo o sujeito do colete branco.
— Tu és um rapaz digno; aqui está um penny pelo teu trabalho. Bumble,
pegue na bengala e vá à casa do Sr. Sowerberry. Não poupe o infame.
— Qual! Poupá-lo! — disse o bedel, enterrando um chicote na ponta
da bengala.
— Diga a Sowerberry que não o poupe; não se deve poupar aquele
peralta! — disse o sujeito do colete branco.
— Deixe estar — respondeu o bedel.
E depois de pôr na cabeça o chapéu de três bicos, o Sr. Bumble saiu
apressadamente acompanhado por Claypole para a casa do empresário
de enterros.
A situação era a mesma. O Sr. Sowerberry não tinha ainda voltado
para casa e Oliver continuava a dar vigorosos pontapés na porta do celeiro.
A Sra. Sowerberry e Carlota pintaram por tal modo a ferocidade do
pequeno que o Sr. Bumble achou prudente parlamentar antes de abrir a
porta. Começou por dar um tremendo pontapé à maneira de exórdio;
depois, aplicando a boca à fechadura, disse com voz forte e imponente:
— Oliver!
— Ande, abra a porta! — respondeu o pequeno.
— Conheces a voz que te fala? — disse o Sr. Bumble.
— Conheço.
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— E não tens medo? Não tremes ouvindo a minha voz?
— Não! — respondeu corajosamente Oliver.
Tão contrária resposta àquela que ele esperava fez com que o bedel
hesitasse. Deixou a fechadura, empertigou-se e contemplou uma por uma
as três testemunhas desta cena, sem proferir uma palavra.
— Olhe, Sr. Bumble — disse a Sra. Sowerberry —, Oliver naturalmente
endoideceu. Uma criança que tivesse algum juízo não lhe responderia
daquele modo.
— Não é loucura — disse o Sr. Bumble, depois de alguns instantes de
reflexão, é carne.
— Carne? — perguntou a Sra. Sowerberry.
— Sim, minha senhora, aquilo é carne — disse o bedel com um tom
majestoso. — A senhora deu-lhe carne a comer. Por isso fez com que ele
criasse uma alma artificial, deslocada em pessoas daquela condição. Pergunte
isto aos membros do conselho, que são filósofos práticos. Que vale
aos pobres ter alma? Já é muito que lhe alimentamos a vida do corpo. Se
lhe houvesse dado mingau, nunca aconteceria semelhante coisa.
— Meu Deus! — disse a Sra. Sowerberry, levantando os olhos para o
resto da comida. — Aqui está o que é ser generosa!
— Olhe — disse o Sr. Bumble, à dona da casa —, na minha opinião o
que se deve fazer é deixá-lo no celeiro um ou dois dias até que a fome o
enfraqueça, soltá-lo depois e alimentá-lo com mingau durante todo o tempo
de aprendizagem; a família dele toda era composta de gente raivosa; o
médico e a alma disseram que a mãe chegara ao asilo depois de fadigas
tais que teriam morto outra qualquer mulher.
O Sr. Bumble estava neste ponto do seu discurso quando Oliver, que
ouvia assaz o diálogo para compreender que tratavam de sua mãe, tornou
a desprender pontapés na porta. Sowerberry chegou nessa ocasião; explicaram-
lhe o atentado de Oliver com a exageração que as duas mulheres
acharam conveniente para encolerizar o patrão; ele abriu a porta e trouxe
Oliver pela gola.
As roupas de Oliver tinham-se rasgado na luta; estava com o rosto arranhado,
os cabelos em desordem; estava porém calmo; ao sair lançou a
Noé um olhar de cólera.
— Você é uma pérola! — disse Sowerberry a Oliver dando-lhe uma
bofetada.
— Ele insultou minha mãe — respondeu Oliver.
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— E quando assim fosse... miserável — disse a Sra. Sowerberry. — Ele
ainda disse pouco, ela merecia muito mais.
— Não — disse a criança.
— Sim, sim — disse a Sra. Sowerberry.
— Mente! — respondeu Oliver.
A Sra. Sowerberry desatou a chorar. A torrente de lágrimas não deixou
ao marido nenhuma alternativa. Se ele hesitasse um instante em punir
Oliver mais severamente, é claro como o dia que segundo os usos recebidos
nas brigas domésticas ele seria um bruto, um marido desnaturado,
tendo só de homem o rosto e mil outros epítetos agradáveis que não posso
meter neste capítulo.
O fabricante de caixões de defunto tinha alguma estima ao pequeno,
mas era impossível deixar de o castigar. O castigo foi tal que a Sra.
Sowerberry ficou satisfeita e a bengala paroquial do Sr. Bumble não entrou
em serviço. Oliver foi metido no quarto que ficava por trás da cozinha;
de noite, abriram-lhe a porta e, no meio de descomposturas a ele e a
mãe, saiu o pobre Oliver para a cama debaixo do balcão.
Oliver entrou a refletir. Ouvira os sarcasmos e as injúrias com desdém;
sofrera a pancada sem um grito; já se ia desenvolvendo nele um sentimento
de orgulho. Mas agora que ninguém o via, ajoelhou-se e derramou
amargas lágrimas.
Oliver ficou muito tempo nessa posição. A vela ia acabar de arder quando
ele se levantou; olhou prudentemente à roda de si, escutou atentamente;
depois puxou o ferrolho da porta e olhou para a rua.
A noite estava fria e escura; as estrelas pareciam mais do que nunca
longe da terra; não ventava. As árvores tinham um aspecto sepulcral.
Oliver fechou a porta e, aproveitando os últimos clarões da vela para reunir
em um lenço o pouco que possuía, assentou-se em um banco e esperou
a madrugada.
Desde que um raio de luz penetrou na loja, Oliver levantou-se e abriu
outra vez a porta, olhou timidamente, hesitou alguns instantes, depois
empurrou a porta para trás; estava na rua.
Olhou para todos os lados, incerto sobre que caminho tomaria. Lembrou-
se de ter visto as carroças, quando saíam da cidade, galgarem juntamente
à colina; foi pela mesma direção e chegou a um pequeno atalho
pelos campos, que iam ter à grande estrada; meteu-se por ele e caminhou
rapidamente.
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
Lembrou-se de ter ido por aquele atalho quando acompanhava o Sr.
Bumble da casa onde fora criado ao asilo de mendicidade. O caminho
levou-o direitinho à tal casa; batia-lhe o coração violentamente, e ele
esteve a ponto de voltar para trás; mas já tinha andado muito e, se se
desviasse, perderia muito tempo; demais era já tão claro que receava ser
visto, continuara a andar.
Chegou à casa da velha onde fora criado; tudo estava silencioso; Oliver
parou e olhou para o jardim; uma criança estava ali capinando, e, no
momento de levantar a cabeça, Oliver reconheceu um de seus antigos
companheiros. Sentiu-se contente por vê-lo antes de se ir embora; ainda
que mais moço que ele, era aquele menino seu amigo e companheiro;
tantas vezes tiveram fome, tantas vezes foram espancados ambos.
— Silêncio, Dick! — disse Oliver, vendo a criança correr à grade. — Já
estão todos levantados?
— Não, eu só.
— Não digas que me viste, Dick; vou fugindo; dão-me pancadas; vou
buscar fortuna, tão longe que nem sei. Como estás pálido!
— Ouvi dizer ao médico que eu ia morrer — disse a criança com um
ligeiro sorriso. — Estou bem contente por te ver, meu amigo; mas não te
demores.
— Sim, até algum dia; estou certo de que nos havemos de tornar a ver;
e então hás de estar bom e feliz.
— Feliz, creio, quando tiver morrido, e não antes. O médico tem razão,
Oliver, porque eu sonho todas as noites com anjos. Abraça-me; adeus,
meu amigo, que Deus te abençoe.
Aquela bênção vinha da boca de uma criança, mas era a primeira que
Oliver ouvia. No meio das provanças, dos sofrimentos, das vicissitudes de
sua vida, jamais a esqueceu.

Capítulo VIII
Oliver vai a Londres e encontra em caminho um rapaz misterioso.
Chegando ao fim do atalho, achou-se Oliver na grande estrada. Eram
oito horas; e, posto que estivesse já a cinco milhas da cidade, correu e
escondeu-se por trás de uma cerca até meio-dia; assentou-se num marco
de pedra, e pela primeira vez entrou a considerar que lugar escolheria
para ganhar a vida.
O marco indicava, em letras grossas, que a cidade de Londres ficava a
70 milhas; o nome Londres despertou no espírito do menino uma nova
série de idéias. Não poderia ele ir a Londres, a cidade imensa, onde nem
o sr. Bumble viria a descobri-lo? Oliver ouvira sempre dizer aos velhos
mendigos do asilo que um rapaz de juízo nunca ficava desamparado em
Londres, e que havia nessa grande cidade meios de existência desconhecidos
à gente do campo. Era esse o lugar que convinha a um rapaz sem
asilo, destinado a morrer na rua, se lhe não dessem a mão.
Oliver levantou-se e continuou viagem.
Andou mais quatro milhas, sem pensar no que devia sofrer antes de
chegar a Londres; como essa idéia lhe surgisse ao espírito, atrasou o passo
e pôs-se a pensar nos meios de lá chegar.
Tinha no embrulho que levava um pedaço de pão, uma camisa velha,
dois pares de meias, e na algibeira um penny que lhe dera o Sr. Sowerberry
depois de um enterro em que se distinguira na alta qualidade de urubu.
— Não é mal, pensava Oliver, ter uma camisa lavada, dois pares de
meias, e um penny; mas é escasso recurso para viajar 63 milhas a pé durante
o inverno.
Oliver tinha, como muita gente, fácil penetração para descobrir as dificuldades,
e lenta inteligência para achar os meios de a remover; de
maneira que, depois de refletir muito, sem achar a solução que procurava,
pôs o embrulho às costas e continuou a andar.
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
Nesse dia andou 20 milhas sem comer outra coisa além do pedaço de
pão e alguns copos d’água que pediu à porta das cabanas. De noite, entrou
em um campo, deitou-se ao pé de um moinho, resolvido a esperar ali o
dia. Ao princípio teve medo, ouvindo o assobiar do vento; sentia frio e
fome; mais que nunca estava desamparado; contudo o cansaço fê-lo dormir
e ele esqueceu tudo.
De manhã, ao levantar-se, sentiu as juntas presas por causa do frio, e
tinha tanta fome que comprou um pouco de pão com o penny, na primeira
aldeia que atravessou. Quando chegou a noite tinha andado 12 milhas;
estava com os pés inchados e as pernas tão fracas que tremiam; a segunda
noite que passou ao relento quebrou-lhe totalmente as forças.
Não podia andar; esperou, ao pé de uma ladeirinha, que passasse alguma
diligência, e pediu esmola aos passageiros da almofada; ninguém fez
caso dele; os que o viram disseram-lhe que esperasse que a diligência
chegasse ao alto, e que lhes mostrasse quanto tempo era capaz de andar
para ganhar meio penny. O pobre Oliver tentou acompanhar a diligência,
mas não pôde; então os passageiros da almofada puseram o meio penny
na algibeira, dizendo que Oliver era um vadio. A diligência desapareceu
no meio de uma nuvem de poeira.
Se não fora a boa alma de um guarda-barreira, a caridade de uma
velha, os sofrimentos de Oliver seriam abreviados como os de sua mãe,
isto é, morreria o pequeno na estrada. Mas o guarda-barreira, e a velha,
cujo neto naufragara e errava em alguma paragem remota do mundo,
teve piedade dele e deram-lhe do pouco que tinha, com palavras tais que
encheram a alma de Oliver.
Na manhã do sétimo dia chegou ele à pequena cidade de Barnet.
As portas ainda estavam fechadas e as ruas desertas; o sol estava brilhante;
com os pés em sangue e coberto de poeira, Oliver assentou-se nos
degraus de uma casa.
Pouco a pouco foram-se abrindo as janelas e aparecendo gente que
parava e olhava para Oliver, sem lhe darem nada.
Havia já algum tempo que ele ali estava; admirava-se de ver tantas
tavernas, porque a metade das casas de Barnet são tavernas grandes e
pequenas; olhava distraído para os carros que passavam e admirava-se
de que fizessem em algumas horas um trajeto em que ele gastara um
semana inteira.
Foi arrancado de suas reflexões por um rapaz que lhe passara pela frente
CHARLES DICKENS

pouco antes sem parecer vê-lo, e voltara e se colocara do outro lado da
rua para o observar atentamente.
A princípio Oliver não lhe deu grande atenção; mas o rapaz ficou tanto
tempo na mesma posição e lugar, que Oliver levantou a cabeça e olhou
para ele.
Então o rapaz atravessando a rua e dirigindo-se para Oliver disse:
— Então que há, amiguinho?
O rapaz que lhe falava tinha quase a mesma idade que ele; era o indivíduo
mais original que Oliver vira até então. Tinha o nariz arrebitado e torcido, a
testa estreita, as feições comuns, e o exterior porquíssimo, o que não impedia
que se mostrasse com ares de fidalgo. Era baixinho, tinha as pernas arqueadas
e olhos sem vergonha; o chapéu estava posto na cabeça de modo que
parecia prestes a cair; e efetivamente cairia se o pequeno não desse de quando
em quando um movimento à cabeça para o repor na posição primitiva. Tinha
uma casaca que lhe descia até aos calcanhares; trazia as mangas arregaçadas
até os cotovelos, provavelmente com o fim de meter as mãos, como
então fazia, na algibeira da calça de veludo. Calçava sapatos à Bucher.
— Então, que há amiguinho? Perguntou aquele misterioso rapaz.
— Tenho fome e estou muito cansado, respondeu Oliver com lágrimas
nos olhos. Ando há sete dias.
— Sete dias! Disse o outro; Ah! Compreendo. Por ordem do bico? Oliver
parecia admirado.
— Ignora acaso o que é o bico?
Oliver respondeu com singeleza que sempre cuidou que bico era boca
de pássaro.
— Que inocência! Exclamou o rapaz; um bico é uma autoridade policial;
andar por ordem do bico é nunca andar direito, é andar às furtadelas.
Esteve no moinho?
— Que moinho? Disse Oliver.
— Que moinho! O moinho que anda sem água*. Anda comigo; tu precisas
comer; a bolsa não está muito recheada, mas enquanto houver…
Anda, anda!
— O rapaz ajudou Oliver a levantar-se, levou-o para a loja de um sujeito
que vendia velas, comprou aí um pouco de presunto e um pão de
duas libras; meteu o presunto dentro do pão e foi com Oliver para uma
sala que ficava no fundo de uma taverna.
* Alude a um costume das prisões inglesas.
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Ali o misterioso rapaz mandou vir cerveja; a convite do seu novo amigo,
Oliver atirou-se ao banquete e comeu com unhas e dentes, enquanto o
companheiro o contemplava.
— Você vai a Londres? Disse o rapaz quando Oliver acabou.
— Vou.
— Tem casa lá?
— Não.
O indivíduo entrou a assobiar e meteu as mãos na algibeira.
— Mora em Londres?
— Sim, quando estou em casa, respondeu o rapaz. Precisa de casa para
passar a noite?
— Sim, desde que saí de minha terra ainda não dormi em nenhuma
casa.
— Não te incomodes, disse o misterioso rapaz, eu devo estar esta noite
em Londres, e conheço lá um velho respeitável que te dará casa de graça,
com a condição que sejas apresentado por um dos seus amigos. Eu sou
amigo dele.
Dizendo isto, esvazia o copo.
A inesperada oferta de uma casa não era para desprezar, principalmente
depois que o rapaz afiançou que o tal velho arranjaria um bom
emprego para Oliver.
Daqui nasceu uma conversa mais íntima e confidencial, em que Oliver
soube que o seu amigo se chamava Jack Dawkins e era amigo e protegido
pelo referido sujeito velho.
O exterior do Sr. Dawkins não falava muito em favor das vantagens
que lhe dava o crédito do seu protetor, mas como a sua conversa era leviana
e incoerente, e como ele confessava que os seus amigos o conheciam pela
alcunha de Matreiro, Oliver concluiu que o seu companheiro era naturalmente
gastador e estouvado, pelo que os preceitos morais do seu benfeitor
não lhe faziam efeito. Com este pensamento, resolveu captar o mais
depressa possível a estima do velho e desistir da amizade do Matreiro, se
este, como parecia, não se corrigisse.
Jack Dawkins não quis entrar em Londres antes da noite, e era perto
de onze horas quando chegaram à barreira de Islington. Tomaram pela
rua de S. João, desceram a rua que vai ter ao teatro de Sadlerwell, costearam
Exmouth Street Coppice-Row; atravessaram o terreno helênico que
se chamava outrora Hokley in the Hol, e chegaram a Little Saffron Hill e
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
Great Saffron-Hill, que o Matreiro atravessou com passo rápido, recomendando
a Oliver que o não perdesse de vista.
Posto que Oliver fizesse isso mesmo, não deixava de lançar alguns olhares
furtivos para os dois lados da rua: era o lugar mais sujo e miserável
que ele tinha visto. A rua era estreita e úmida e o ar, carregado de miasmas
fétidos. Havia um grande número de lojas pequenas onde as crianças
berravam apesar da hora adiantada da noite. Os únicos lugares que pareciam
prosperar eram as tavernas, onde irlandeses das fezes do povo, isto
é, das fezes da espécie humana, discutiam com todas as forças. Vielas e
passagens estreitas deixavam ver algumas casas miseráveis, diante das
quais homens e mulheres embriagados rolavam na lama da rua; e às
vezes saíam com precaução desses antros indivíduos de cara sinistra, cujas
intenções não pareciam ser louváveis nem tranqüilizadoras.
Oliver estava a perguntar a si mesmo se não era melhor fugir, quando
chegaram ambos ao fim da rua. Segurou-lhe o guia no braço, empurrou
a porta de uma casa próxima de Fieldlane, fê-lo entrar em uma alameda
e fechou a porta.
— Quem vem lá? — gritou uma voz em resposta a um assobio do
Matreiro.
— Plummy e Slam! — foi a resposta.
Era sem dúvida uma senha para indicar que tudo ia bem.
A fraca luz de uma vela iluminou a parede no fundo da alameda e
viu-se aparecer uma cabeça ao nível do solo, por trás de uma escada quebrada
que outrora levava a uma cozinha.
— São dois — disse o homem levantando a vela e pondo a mão por
cima dos olhos para melhor distinguir os objetos. — Quem é o outro?
— Um recruta, respondeu Jack Dawkins, apresentando Oliver.
— De onde vem?
— Do país dos inocentes. Fagin está em cima?
— Está separando os lenços. Subam.
O homem desapareceu e eles ficaram nas trevas.
Sempre levado pelo companheiro, que lhe segurava na mão, Oliver
apalpava com a outra o lugar em que andava. Subiu dificilmente na escuridão
os degraus arruinados que o seu companheiro trepava com uma
presteza denunciadora do muito que ele os conhecia.
O Matreiro empurrou a porta de um quarto e introduziu Oliver. As paredes
e o teto estavam sujos pelo tempo e pelo desmazelo. Diante da lareiOLIVER
TWIST

ra, em uma mesa de pinho, havia uma vela metida no gargalo de uma
garrafa, duas ou três canecas de estanho, um pão, manteiga e um prato.
Estavam ao fogo algumas salsichas, ao pé das quais se achava um velho
judeu com um garfo na mão.
O rosto do judeu estava todo cortado de rugas, e as feições ignóbeis e
repelentes desapareciam em parte debaixo de uma camada de cabelos
ruivos que lhe caía pelas fontes; vestia um chambre velho de flanela, não
tinha gravata e parecia dividir a sua atenção entre a assadeira e uma
corda onde estava pendurada uma porção de lenços.
Havia no quarto uma porção de ruins camas feitas com sacos velhos. À
roda da mesa, quatro ou cinco crianças da idade do Matreiro fumavam
cachimbo e bebiam licor com ares de rapazes feitos.
O Matreiro disse algumas palavras em voz baixa ao judeu; os pequenos
vieram ter com o Matreiro e voltaram-se rindo para Oliver. O mesmo
fez o judeu, sempre com o garfo na mão.
— Apresento-lhe o meu amigo Oliver Twist — disse Jack Dawkins.
O judeu riu-se fazendo uma careta. Fez um grande cumprimento a Oliver,
travou-lhe da mão e disse que esperava ter a honra de estreitar relações.
Os outros pequenos vieram apertar a mão de Oliver, de maneira que
lhe caiu o embrulho; um deles apressou-se a desembaraçá-lo do boné;
outro teve a bondade de lhe examinar as algibeiras para lhe poupar o
trabalho de as esvaziar quando se fosse deitar. Não teriam parado nisto os
obséquios, se o judeu não começasse a dar garfadas na cabeça e nos ombros
dos cinco peraltas.
— Temos muito prazer em receber-te aqui Oliver — disse o judeu. —
Matreiro, tira do fogo algumas salsichas e aproxima um banquinho para
Oliver. Ah! Estás admirado dos lenços? É uma bela coleção, não, meu
amigo? Acabamos de os preparar para a barrela. Nada mais, Oliver; nada
mais. Eh! Eh! Eh!
As últimas palavras do judeu foram recebidas com aclamação pelos
jovens discípulos.
Depois começou a ceia.
Oliver comeu o seu quinhão; o judeu preparou-lhe depois um copo de
grog feito com genebra recomendando que o bebesse de um só trago,
porque outro conviva precisava do copo. Oliver obedeceu; daí a pouco
sentiu-se levado brandamente para cima de um dos sacos, onde dormiu
profundamente.
CHARLES DICKENS

Capítulo IX
Novos pormenores acerca do amável ancião e seus discípulos,
rapazes das mais altas esperanças.
No dia seguinte, já a manhã ia adiantada, quando Oliver acordou depois
de um sono profundo e prolongado.
No quarto estava só o velho judeu, aquecendo café em uma caçarola,
assobiando baixinho; de quando em quando parava para escutar, se acaso
ouvia algum rumor; e quando via que tudo estava tranqüilo continuava a
assobiar e a mexer o café com uma colher de metal.
Conquanto Oliver não estivesse dormindo, não se podia dizer que estivesse
totalmente acordado. Há certo estado entre o sono e a vigília em
que a gente sonha mais no espaço de cinco minutos, com os olhos abertos
e sem ter consciência do que se passa, do que sonharia em cinco noites
com os olhos fechados e em completo sono. Nesses momentos o homem
não percebe o que se passa em seu espírito de maneira que possa ter uma
fraca idéia das pujantes faculdades desse espírito quando, liberto dos vínculos
terrenos, foge à terra zombando do tempo e do espaço.
Oliver estava em um desses momentos. Com os olhos semifechados,
via o judeu, ouvia-o assobiar baixinho, reconhecia o rumor da colher na
caçarola; e, contudo, o seu espírito, durante esse tempo, viajava no passado
e ia ter com todas as pessoas que ele havia conhecido.
Apenas o café ficou pronto, o judeu pôs a caçarola no chão e ficou alguns
instantes em atitude indecisa, como se não soubesse o que faria primeiro;
depois olhou para Oliver e o chamou pelo nome; este não respondeu e
parecia dormir profundamente. O judeu dirigiu-se cautelosamente para a
porta, fechou-a e tirou de um alçapão no assoalho uma caixinha que levou
cuidadosamente para a mesa; faiscavam-lhe os olhos enquanto abria a tampa
e olhava para o interior da caixinha; aproximou da mesa uma cadeira velha,
sentou-se e tirou da caixa um magnífico relógio de ouro cravejado de
brilhantes.
OLIVER TWIST

— Ah! Boas alminhas! — disse o judeu, erguendo os ombros e contraindo
o rosto com um feio sorriso! — Foram sempre firmes! Incapazes de
vender o velho Fagin. E com que interesse? Não alargariam o laço, nem
deixariam de espernear. Não! Não! Bons rapazes! Bons rapazes!
Fazendo estas e outras reflexões, o velho pôs outra vez o relógio na
caixinha; tirou ainda uma meia dúzia de relógios do mesmo quilate, contemplou-
os com os mesmos êxtases; depois anéis, broches, pulseiras, jóias
de todo gênero, tão preciosas e de tão fino lavor que Oliver nem de nome
as conhecia.
O judeu pôs todas essas jóias na caixinha e tirou uma última jóia, tão
pequena que lhe cabia na palma da mão semifechada; parece que tinha a
inscrição finíssima, porque o judeu levou a contemplá-la muito tempo e
com extrema atenção; como se perdesse a esperança de decifrar os
caracteres, pôs a jóia outra vez na caixinha e, recostando-se na cadeira,
continuou as suas reflexões:
— Bela coisa é a pena de morte! — disse ele a meia voz. — Os mortos
nunca se arrependem; os mortos não vêm revelar nada! Ah! é uma boa
garantia para o comércio! Eram cinco enfileirados e pendurados e nenhum
foi covarde, nenhum denunciou o velho Fagin!
Dizendo estas palavras, o judeu corria ao acaso os olhos negros e brilhantes
à roda de si e de súbito deu com os olhos de Oliver.
Oliver contemplava o judeu com uma curiosidade muda; num abrir e
fechar de olhos, o judeu compreendeu que fora observado; fechou
atropeladamente a caixinha e, travando de uma faca, levantou-se furioso;
mas tremia tanto que Oliver, apesar de seu terror, podia ver vacilar a
lâmina da faca.
— O que é? — disse o judeu. — Por que razão me observas? Não
dormias? O que viste? Fala depressa! Anda! Fala ou morre!
— Eu não podia dormir mais — respondeu a criança com brandura
— e sinto tê-lo incomodado.
— Estás acordado há uma hora? — perguntou o judeu com ar ameaçador.
— Não, senhor — respondeu Oliver.
— Estás certo disso?
— Estou certo de que dormi até agora.
— Está bom, está bom, meu amigo — disse o judeu voltando subitamente
às suas maneiras ordinárias e brincando com a faca antes de a pôr
outra vez na mesa, como para fazer crer que a tinha tirado para se divertir.
CHARLES DICKENS

— Eu estava certo disso; queria só meter-te medo. És um bom rapaz,
Oliver.
E o judeu esfregava as mãos e ria-se, mas deitava à caixinha um olhar
inquieto.
— Vistes algumas destas coisas tão bonitas, meu amiguinho? — disse
ele depois de um curto silêncio e pondo a mão sobre a caixinha.
— Vi, sim senhor — disse Oliver.
— Ah! — disse o judeu empalidecendo... — São minhas, Oliver, é
toda a minha riqueza, é o que me resta na velhice. Chamam-me avaro,
meu amigo, avaro e nada mais.
Oliver pensou que o velho devia realmente ser imensamente avaro,
pois vivia naquela casa tão suja, tendo tantos relógios consigo; mas refletiu
que a sua amizade ao Matreiro e aos outros rapazes devia custar-lhe
muito dinheiro. Oliver olhou para o judeu com ar respeitoso e perguntou
se podia levantar-se.
— Pois não, amiguinho, pois não — respondeu o velho. — Olha, tens
ali atrás da porta um cântaro d’água, vai buscá-lo, que eu te darei uma
bacia para te lavares.
Oliver levantou-se, atravessou o quarto e abaixou-se para tirar o cântaro;
quando se voltou a caixinha tinha desaparecido.
Mal acabara de se lavar e despejar a bacia pela janela por ordem do
judeu quando viu entrar o Matreiro acompanhado por um jovem amigo
que Oliver vira na véspera à noite ocupado em fumar e lhe fora apresentado
com o nome de Carlinhos Bates. Depois sentaram-se todos à mesa; o
almoço constava de café e uns pães pequenos, com presunto que o Matreiro
trouxe no fundo do chapéu.
— Então — disse o judeu, dirigindo-se ao Matreiro e olhando maliciosamente
para Oliver —, espero, meus amigos, que tenham trabalhado
hoje alguma coisa.
— Muito.
— Sim — acrescentou Carlinhos Bates —, trabalhamos muito.
— Vocês são duas flores — disse o judeu. — Que trouxeste, Matreiro?
— Duas carteiras.
— Cheias? — perguntou o judeu com ansiedade.
— Têm alguma coisa — respondeu o Matreiro apresentando duas
carteiras, uma verde e outra encarnada.
— Podiam ter mais alguma coisa — disse o judeu, depois de examiOLIVER
TWIST

nar o interior das carteiras. — Mas estão novas e são bem trabalhadas.
Não é, Oliver?
— Sim, senhor — respondeu Oliver.
A resposta fez com que o Sr. Carlinhos Bates risse às gargalhadas, com
grande admiração de Oliver, que não via ali motivo de riso.
— E tu que me trouxeste, meu amigo? — disse Fagin a Carlinhos Bates.
— Lenços — respondeu mestre Bates.
E tirou quatro da algibeira.
— Bem — disse o judeu, examinando-os minuciosamente —, são excelentes;
mas tu não os marcaste bem; é preciso tirar as marcas com uma
agulha; ensinaremos a Oliver a desmarcar isto. Não é, Oliver?
— Como o senhor quiser — respondeu Oliver.
— Tu hás de querer trabalhar nos lenços como o Carlinhos, não?
— Com todo o gosto, se o senhor me ensinar.
Mestre Bates achou esta resposta tão engraçada que soltou uma nova
gargalhada; mas como estava a beber café quase se engasgou.
— É tão inocente! — disse Bates apenas pôde falar, como para se desculpar
da gargalhada.
O Matreiro não disse palavra; mas passou a mão pelos cabelos de Oliver,
fê-los cair sobre os olhos e disse que aprenderia depressa.
O sujeito, vendo que Oliver ficara muito corado, mudou de conversa e
perguntou se a execução que se fizera nessa manhã atraíra muita gente.
Redobrou o pasmo de Oliver, porque da resposta dos dois rapazes concluiu
que eles haviam assistido à execução e achava esquisito que tivessem tido
tempo para fazer obras tão bonitas como as carteiras e os lenços.
Depois do almoço, o amável ancião e os dois pequenos entraram a
fazer uma coisa curiosa e extravagante.
Aqui está o que era.
O judeu punha uma boceta em uma algibeira da calça, uma carteira
na outra; na do colete um relógio preso a uma corrente que passava pelo
pescoço; pôs na camisa um alfinete de pedra fingindo brilhante, abotoou
a casaca até o pescoço e, pondo na algibeira de trás o lenço e a caixa dos
óculos, entrou a passear de um lado para outro, com a sua bengala na
mão, justamente como os nossos velhos passeiam na rua; ora parava diante
do fogo e ora diante da porta, como se contemplasse atentamente os moradores
das lojas. Às vezes deixava à roda de si, olhos vigilantes como
se receasse ladrões, e apalpava todas as algibeiras, uma após outra, para
CHARLES DICKENS

ver se não perdera nada, e tudo isso com um ar tão cômico e natural que
Oliver ria às gargalhadas.
Os dois rapazes o acompanhavam de perto e de cada vez que ele se
voltava escondiam-se com tanta habilidade que era impossível acompanhar
os seus movimentos. Afinal, o Matreiro pisou-lhe nos pés, ao passo
que o Carlinhos o empurrou por trás e, num fechar de olhos, boceta,
carteira, relógio, corrente, alfinete, lenço de assoar, tudo, até a caixa dos
óculos, desapareceu com extraordinária rapidez.
Quando o judeu sentia alguma mão em uma das algibeiras, dizia que
algibeira era e a brincadeira recomeçava.
Depois de se repetir esta brincadeira muitas vezes, vieram duas moças
ver os rapazes; chamava-se uma Betty e outra Nancy; tinham os cabelos
bastos, mas não tratados, e os sapatos rotos; não se podia dizer que fossem
bonitas; mas eram muito coradas e tinham no olhar muita resolução e
descaramento. Como as maneiras delas fossem agradáveis e livres, julgou
Oliver que deviam ser amáveis pessoas e não se enganava.
Durou muito a visita; uma delas queixou-se de ter o estômago gelado,
veio licor, e a conversação tornou-se cada vez mais animada.
Afinal, o Carlinhos Bates declarou que era tempo de se pôr na pira e
Oliver pensou que aquilo, em boa linguagem, queria dizer sair, porque o
Matreiro, o Carlinhos e as duas moças saíram logo e o velho judeu teve a
generosidade de lhes dar dinheiro para se divertirem.
— Não te parece agradável este viver? — disse Fagin a Oliver. —
Todos eles têm agora o dia por seu.
— Já acabaram o trabalho? — perguntou Oliver.
— Já — disse o judeu. — Salvo se acharem alguma coisa que fazer no
caminho; nesse caso, acredita que não ficarão ociosos. Imita-os, meu amigo,
imita-os, faze tudo o que te disserem, obedece-lhes em tudo, principalmente
ao Matreiro. O Matreiro há de ser um grande homem, e tu podes
seguir-lhe as pisadas. Dize cá, a ponta do meu lenço não aparece de fora
do bolso?
— Sim, senhor — disse Oliver.
— Vê se o tiras sem que eu sinta, como eles faziam há pouco.
Oliver levantou com uma mão o fundo da algibeira como vira fazer o
Matreiro e com a outra tirou o lenço.
— Tiraste? — perguntou o judeu.
— Aqui está — disse Oliver mostrando o lenço.
OLIVER TWIST

— És um bonito rapaz — disse o amável ancião, passando a mão por
cima da cabeça de Oliver. — Eu nunca vi rapaz mais hábil do que tu;
toma lá um shilling pelo teu trabalho; se continuares assim, hás de vir a
ser o maior homem da época. Anda, vem aprender a desmarcar lenços.
Oliver perguntava-se com espanto que relação havia entre bifar por
brincadeira o lenço do velho e a possibilidade de vir a ser um grande
homem; mas pensou que o judeu, por ser mais velho, devia saber mais do
que ele e foi entregar-se com ardor ao seu novo estudo.
CHARLES DICKENS

Capítulo X
Oliver estreita as suas relações com os novos amigos e adquire
experiência à sua custa. A pequenez deste capítulo não impede que seja
um dos mais importantes da história do nosso herói.
Oliver passou muitos dias no quarto do judeu ocupado em desmarcar
os lenços que chegavam em quantidade e em tomar parte na brincadeira
que já descrevemos e que se repetia todas as manhãs entre o judeu e os
dois discípulos.
Ao cabo de algum tempo, Oliver começou a suspirar pelo ar da rua e
pediu muitas vezes ao judeu que o deixasse ir trabalhar fora com os seus
companheiros.
Oliver estava tanto mais desejoso de trabalhar ativamente, quanto que
já fazia idéia cabal da inflexível severidade do judeu. Cada vez que o Matreiro
ou o Carlinhos Bates voltavam para casa, à noite, com as mãos abanando,
proferia um longo e enérgico discurso acerca dos inconvenientes da
preguiça e da ociosidade e, para melhor lhes gravar na memória a necessidade
de serem ativos, mandava-os dormir sem ceia. Uma vez chegou a
precipitá-los do alto da escada; mas eram raras as violências como esta.
Obteve Oliver a licença tão insistentemente solicitada; havia já três
dias que não tivera lenços para desmarcar, e os jantares foram mesquinhos;
estes motivos influíram talvez na decisão do velho judeu; fosse como
fosse, ele disse a Oliver que podia sair e o pôs sob a guarda de Carlinhos
Bates e seu amigo, o Matreiro.
Saíram os três: o Matreiro com as mangas arregaçadas e o chapéu de
banda, como era costume; mestre Bates com as mãos nas algibeiras, e
Oliver entre ambos perguntando a si mesmo onde iriam eles e que ramo
de indústria tinha que aprender.
Caminhavam com um passo tão vagaroso, e uns ares de basbaques ociosos,
que Oliver começou a crer que eles haviam saído para enganar o velho
OLIVER TWIST

judeu, e não para trabalhar. O Matreiro tinha o mau costume de tirar os
bonés das crianças que encontrava e deitá-los ao pátio que estivesse próximo;
mestre Bates, pela sua parte, parecia ter uma noção imperfeitíssima do
direito de propriedade; bifava as batatas e cebolas que encontrava nas casas
de quitanda e metia-as na algibeira, as quais eram assaz largas e profundas.
Oliver achava tudo isto muito malfeito e estava prestes a dizê-lo e a
voltar para casa, quando a sua atenção foi atraída para outro lado por
causa de um movimento singular do Matreiro.
Vinham eles de uma passagem estreita a pouca distância de Clerkenwell,
quando o Matreiro parou, pôs o dedo na boca e fez recuar os seus companheiros
com a maior circunspecção.
— Que há? — perguntou Oliver.
— Sio! — disse o Matreiro. — Vês aquele patinho ali à porta do livreiro?
— Sim, vejo ali um senhor, do outro lado da rua — disse Oliver.
— Vamos pregar-lhe a peça — disse o Matreiro.
— Famoso achado! — acrescentou Carlinhos Bates.
Oliver contemplou-os com surpresa, mas não teve tempo de os interrogar,
porque eles atravessaram a rua devagarinho e foram colocar-se
por trás do sujeito. Oliver acompanhou-os a alguns passos de distância
e, não sabendo se devia seguir ou recuar, parou e arregalou os olhos.
O velho tinha um aspecto respeitável; trazia óculos de ouro. Vestia
uma casaca verde-garrafa, colete de veludo preto, calça branca e uma
bengala de bambu debaixo do braço. Tirara da loja um livro e lia-o com
tanta atenção como se estivesse em seu próprio gabinete. É provável que
imaginasse estar lá, pois era evidente que ele não via nem a cara do livreiro,
nem a rua, nem os rapazes, nem o que quer que fosse, exceto o
livro que ia lendo absorto, voltando as páginas com mais vivo interesse.
Quais não foram o horror e o medo de Oliver, colocado a alguns passos
atrás, quando viu o Matreiro mergulhar a mão na algibeira do velho,
tirar um lenço, que deu a Carlinhos Bates, depois fugir com o seu companheiro
pela esquina da rua!
Num rápido instante, a pobre criança compreendeu o mistério dos lenços,
dos relógios, das jóias e da existência do judeu. Ficou dois segundos
imóvel; fervia-lhe o sangue como se ele estivesse em um braseiro; assustado
e confuso e, sem saber o que fazia, deitou a correr.
Mas no mesmo instante que ele corria, o velho procurou o lenço no
bolso e, não o achando, voltou-se rapidamente. Quando viu a criança a
CHARLES DICKENS

correr, pensou naturalmente que era o ladrão, entrou a correr atrás dele,
sem deixar o livro, e gritando:
— Pega ladrão! Pega ladrão!
Não foi o velho o único a gritar contra o ladrão. O Matreiro e mestre
Bates, para não atrair a atenção, correndo, meteram-se do outro lado da
esquina e apenas ouviram gritar pega ladrão e viram Oliver fugir, adivinharam
o que se passava, voltaram à outra rua e, como bons cidadãos,
gritaram igualmente:
— Pega ladrão! Pega ladrão!
Posto que Oliver tivesse sido educado por filósofos, não conhecia esta
admirável máxima deles — que a conservação própria é a primeira lei
da natureza; se a conhecesse talvez estivesse preparado para o que acontecera;
mas, na sua ignorância, ficou mais assustado com os gritos, correu
ainda mais, sempre perseguido pelo velho e pelos dois rapazes.
Pega ladrão! Neste grito há um quê de mágico; o negociante deixa o
balcão e o carroceiro, a carroça; o carniceiro abandona o cepo, o padeiro,
o cesto, o leiteiro, a celha, o moço de recados, o embrulho, o menino de
escola, os brinquedos, o calceteiro, a alavanca. Tudo corre em desordem,
gritando, berrando, empurrando os que passam ao voltar as ruas, excitando
os cães e assuntando as galinhas. Ruas, praças, becos, todas repetem
o mesmo grito: pega ladrão! Cem vezes repetem esse grito, e o povo
aumenta em cada canto. Vai seguindo sempre o mesmo povo, patinhando
na lama ou batendo com os pés na calçada; abrem-se as janelas, sai
gente das casas, todos se precipitam. Quem está no teatro de bonecos
deixa Polichinelo e acompanha o povo, gritando todos: pega ladrão!
Pega ladrão! O homem tem no coração a paixão enraizada de perseguir
alguém. Uma infeliz criança ofegante de cansaço, semimorta de
medo, com o rosto banhado de suor, redobra os esforços para não ser pegada;
mas todos correm mais, redobram os gritos, aumentam as vaias.
Pega ladrão! Dizem todos com regozijo. Ah! Prendam a pobre criança
quando não seja senão por piedade.
Está preso enfim. Bela proeza! Lá está o pobre menino estendido no
chão, o povo à roda dele, lutam uns com os outros para verem melhor o
criminoso.
— Dê lugar!
— Um pouco de ar!
— Não vale a pena!
OLIVER TWIST

— Onde está a pessoa roubada?
— Está aqui!
— Deixem passar este senhor!
— Será este o pequeno?
— É.
Oliver estava no chão, coberto de lama e poeira, deitando sangue pela
boca, olhando com olhos pasmados para o povo, quando o velho apareceu
e respondeu às perguntas que lhe faziam com ansiedade.
— Sim — disse ele —, receio que seja ele.
— Receia! — murmurou o povo. — Que bom coração.
— Coitadinho! Feriu-se!
— Não, senhor — diz um brutamontes. Fui eu que lhe despedi um soco,
por sinal que os dentes dele me cortaram a mão; fui eu que o prendi.
Ao mesmo tempo levara a mão ao chapéu e sorria, esperando receber
alguma coisa em paga do trabalho; mas o velho olhou para ele com asco
e olhou à roda de si como se procurasse fugir daquele lugar; tê-lo-ia provavelmente
feito e ocasionado assim nova perseguição, se um oficial de
polícia, a última pessoa que aparece nestas ocasiões, não tivesse passado
por entre o povo e pegado na gola de Oliver.
— Vamos, levante-se! — disse ele.
— Não fui eu, senhor; juro que não fui eu; foram os outros dois meninos;
devem estar por aí.
Isto dizia Oliver torcendo as mãos com desespero.
— Oh! Não! Eles estão bem longe — dizia o agente que, supondo
brincar, dizia a verdade; porque o Matreiro e Carlinhos Bates tinham
seguido pela primeira rua.
— Não lhe faça mal — disse o velho compassivamente.
— Oh! Não se lhe faz mal — disse o agente (e como prova rasgou até
o meio das costas o casaco de Oliver). — Anda, eu bem te conheço; a mim
ninguém me embaça. Anda, levanta-te!
Oliver, que mal se podia suster, fez um esforço para se levantar, e o
agente, com passo rápido, o arrastou pela gola pela rua adiante: o velho
os acompanhava indo ao lado do oficial de polícia; muitas pessoas do
povo tratavam de passar adiante e olhar para trás, a fim de ver Oliver; os
garotos berravam alegremente e seguiam o cortejo.

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