segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Oliver Twist, Capítulos 31 ao 53 (Últimos Capítulos)




Capítulo XXXI
Em que a situação torna-se delicada.
— Quem vem lá? — perguntou Brittles, tomando cuidado para não
apagar a vela.
— Abra a porta — respondeu o outro. — Somos os guardas que
mandaram chamar.
Daí a nada, cheio de segurança com aquelas palavras, Brittles acudiu
ao reclamo, escancarou a porta e deu-se de cara com um homem imenso
que, sem demora, entrou no cômodo e limpou os pés no capacho como se
fosse gente da casa.
— Ordene a um criado que vá cuidar do cavalo; há aqui uma cocheira
que possamos usar?
Brittles apontou a construção e enquanto o homem auxiliava o colega
com o animal, iluminou-os cheio de admiração; então, ambos puderam
se desencapotar e revelar sua real aparência.
O homem que primeiro viera à porta era alto e contava cerca de
cinqüenta anos, tinha suíças e olhos penetrantes. O outro era ruivo e feio.
— Anuncie ao seu patrão que Blathers e Duff chegaram — disse o
homem mais forte, deitando um par de algemas à mesa.
— Boa noite, senhor! Não podemos ter em particular?
Tal proposta foi colocada pelo Sr. Losborne, que então assomava à sala
na companhia das duas senhoras.
— Esta é a dona da casa — disse o doutor, voltando-se na direção da
Sra. Maylie.
Após saudá-la, o Sr. Blathers tirou o chapéu e assentou-se, convidando
o colega, que parecia desajeitado entre os fidalgos, a fazer o mesmo.
— Como agiram os gatunos? — perguntou o sr. Blathers.
Interessado em ganhar tempo, o Sr. Losborne narrou tudo com grande
número de detalhes; o Sr. Blathers e Duff, de tempos em tempos, trocavam
ares de entendimento.
OLIVER TWIST

— Enquanto não estudar o local, não posso afirmá-lo com certeza, mas
creio que não foi trabalho de gente inexperiente; que achas, Duff ?
— Isso mesmo — respondeu Duff.
— Para entender — disse Losborne sorrindo —: o senhor acredita
que não foi serviço de gente da região?
— Isso mesmo — assentiu Blathers. — Há algo que tenha a acrescentar
sobre o roubo, senhor?
— É tudo — respondeu o doutor.
— E o que dizer sobre o menino de que os criados tanto falaram? —
perguntou Blathers.
— Coisa alguma — respondeu o doutor. — Cheio de medo, um dos
criados meteu na cabeça que o pobre tinha algo com o assalto, coisa sem o
menor cabimento, uma baboseira.
— Sendo apenas isso — observou Duff —, podemos ir.
— É certo — observou Blathers, a balançar as algemas como se fossem
castanholas. — E de onde surgiu o garoto? Decerto, não terá sido das nuvens...
— Não, conheço todo o seu passado —, respondeu o doutor, enquanto
lançava um olhar nervoso na direção das senhoras. — Mas isso pode ficar
para mais tarde; os senhores não gostariam de observar o local por onde
os ladrões tentaram invadir a casa?
— Claro, nosso costume é primeiro estudar o local e depois ouvir as
testemunhas.
Blathers e Duff, seguidos pelo doutor, as senhoras e toda a criadagem,
vasculharam portas, janelas e até a frente da casa, à procura de pegadas e
marcas que pudessem iluminar-lhes a intuição. Depois ouviram seis vezes
a narrativa dramática dos corajosos feitos do Sr. Giles e de Brittles, que se
confundiram apenas uma vez na primeira narração e talvez dez na última.
Por fim, reuniram-se a sós com tanto sigilo e gravidade que uma
conferência de doutores da arte médica, diante da cena, tornar-se-ia um
jogo de crianças.
Entrementes, o doutor andava de um lado para outro, enquanto a Sra.
Maylie e Rosa observavam-no inquietas.
— Realmente — estacou o doutor —, a situação fugiu ao meu controle.
— A mim me parece — afirmou Rosa — que, se contada com
fidelidade, a história daquela criança será o bastante para salvá-la.
— Não sei, prezada senhorita — continuou o doutor. — Para os frios
funcionários da lei, ele é apenas um viciado, e sua história, bastante duvidosa.
CHARLES DICKENS

— Mas o senhor acredita nela, não? — interrompeu-lhe Rosa.
— Por mais estranha que seja, acredito; talvez porque seja eu um tolo;
os guardas não acreditarão no pequeno.
— Por que não? — inquiriu Rosa.
— Há naquela história, formosa inquisidora, diversos pontos obscuros
e, ainda, nenhuma prova a favor do pequeno. Os homens da lei, posso
afiançar-lhe, só prestam ouvidos às provas. O pequeno, como ele mesmo
diz, foi preso por meter a mão na algibeira de um senhor, viveu em
companhia de gatunos e veio ajudar os ladrões a escancarar a janela da
casa; quando daria o alarme para alertar os moradores e, assim, dirimirse,
um criado tolo acertou-lhe uma bala e impediu aquela que seria sua
única atitude virtuosa. Não percebes isso?
— Percebo, é certo — respondeu com veemência a jovem Rosa —,
mas ainda assim nada vejo que possa incriminá-lo.
— Claro que não! Abençoados sejam os olhos femininos por sempre
enxergar apenas o lado comovente do mundo.
Imposta essa certeza, pôs-se o doutor a passear com mais gravidade
que antes.
— Acredito — disse o doutor — que não devemos contar a estes homens
a verdadeira história do pequeno. Posto que não o façam mal, apenas a
publicidade dos pontos obscuros servirá para impedir vosso plano de salválo
da vida miserável.
— O que fazer? — perguntou Rosa em prantos. — Porque chamaram
essa gente?
— É, por quê? — insistiu a Sra. Maylie. — Nada far-me-ia chamá-los.
— Vamos impedir o pequeno de falar — disse o Sr. Losborne — por
conta dos delírios da febre; entrem!
— Senhores — exclamou Blathers — não foi este um golpe consentido?
— Que diabos é um golpe consentido? — impacientou-se o doutor.
— Chamamos golpe consentido — virou-se Blathers na direção das
senhoras, desprezando assim a ignorância do doutor —, quando os criados
participam dele.
— Nunca suspeitamos de alguém da casa — disse a Sra. Maylie.
— Sim, madame — respondeu Blathers —, mas mesmo assim podiam
ter tomado parte.
— Decerto — acrescentou Duff decisivamente.
— Tendo sido um trabalho bem feito — disse Blathers —, acreditamos
que fora levado a cabo por ladrões da cidade.
OLIVER TWIST

— Excelente conclusão — murmurou Duff.
— Eram dois mais um rapaz, a ver o tamanho da janela; se me permitem,
eu gostaria de visitar a criança que está em posse das senhoras.
— Será que eles não aceitariam, Sra. Maylie, um trago antes de subir?
— exclamou o doutor, com o sorriso de quem acabara de ter um pensamento.
— Claro — respondeu Rosa —, se assim o desejarem, pediremos uma
bebida.
— Qual! Senhorita, agradecemos, mas não se incomode conosco.
— E o que desejam? — perguntou o doutor.
— Um pouquinho de aguardente, se não incomoda — respondeu Blathers.
Enquanto os dois falavam à Sra. Maylie, o doutor escapou do aposento;
ao erguer o copo, Blathers afirmou que se tratava de um caso corriqueiro.
— Como aquele em Edmonton — exclamou Duff, para ajudar a
memória do amigo.
— Cujo trabalho fora feito pelo Narigudo — acrescentou Blathers.
— Você quem acha; tenho cá para mim que foi o Queridinho. O
Narigudo tomou parte naquilo tanto quanto eu — respondeu Duff.
— Qual! Lembras-te de quando ele alegou que lhe teriam roubado
suas moedas? Uma bela história, das melhores que tenho ouvido.
— De que se trata? — perguntou Rosa, ansiosa por descobrir algum
bom-humor naqueles sujeitos.
— Um assalto, senhorita, que não há quem imagine a maneira como
foi. Esse tal Narigudo...
— O Narigudo é dono de um imenso nariz — interveio Duff.
— Disso a senhorita desconfia — explicou-lhe Blathers. — O tal
Narigudo era proprietário de uma taverna e de um buraco onde vários
fidalgos iam atrás de lutas de galo e outros espetáculos da mesma espécie;
bem arrumados, aliás, pois lá estive várias vezes. Pois roubaram-lhe, certa
feita, mais de trezentos guinéus de seus aposentos. Na perseguição, conseguiu
até ferir o gatuno, mas o espertalhão fugiu mesmo deitando sangue. O
Narigudo entrou em falência e pôs-se a se descabelar pela rua, como um
doidivanas; certa feita, invadiu a delegacia e garantiu que avistara o gatuno.
Um dos melhores oficiais, então, postou-se oculto em sua taverna, até que o
Narigudo outra vez colocou-se a gritar e a correr à rua; atrás dele foi toda a
gente, atraída pela bulha, dando a entender que avistara outra vez o ladrão.
No entanto, não conseguiram meter a mão nele, que escapou cruzando
uma esquina; ainda uma vez isso aconteceu e mais outra, até que
CHARLES DICKENS

começaram a afirmar que ou diabo era o próprio autor do roubo ou os
prejuízos acabaram fazendo coisas à cabeça do Narigudo.
— E que o oficial pensava? — perguntou o doutor, que acompanhara
quase toda a aventura.
— O oficial — resumiu Blathers — não emitia opinião, acompanhava
tudo ao longe; até que foi ter com o Narigudo e afirmou que conhecia o
paradeiro do autor do roubo.
“— Então fale — exclamou o Narigudo —, diga-me onde está o
desgraçado para que eu possa morrer feliz.
— O ladrão é o senhor mesmo — afirmou o policial.”
— Pois ele tinha feito reservas com o dinheiro — concluiu Blathers
balançando as algemas. Ninguém jamais descobriria se o tolo não se
colocasse a fazer tanta bulha.
— Muito curioso — observou o doutor. — Agora, se os cavalheiros
desejarem, podemos subir as escadarias.
— É o senhor quem nos pede — respondeu Blathers.
Com Giles à frente do cortejo a iluminá-los, dirigiram-se ao quarto de
Oliver o doutor e os dois oficiais.
Posto ter dormido, Oliver apresentava estar mais febril e fatigado.
Apoiado pelo doutor, sentou-se na cama e observou os homens, sem parecer
entender o que acontecia ou sem se recordar de onde estava.
— Este é o menino que se feriu a brincar e veio até a casa atrás de ajuda,
aquele gentil cavalheiro maltratou-o tanto que quase lhe tirou a vida, como
meus cuidados profissionais puderam verificar — garantiu Losborne.
Os oficiais voltaram-se para o Sr. Giles, que passeava os olhos de Oliver
ao doutor, com uma expressão assustada e perplexa ao mesmo tempo.
— Você não pretendes me desdizer, não é? — perguntou o doutor
enquanto assistia novamente Oliver.
— Fiz o melhor — respondeu Giles. — Não sou homem de maus
bofes; pensei que fosse outro pequeno.
— Que pequeno? — perguntou o oficial.
— O pelintra — afirmou Giles —, eles levavam um pequeno, é certo.
— Você continuas a pensar aquilo? — inquiriu Blathers.
— O quê? Respondeu Giles com ar aparvalhado.
— Que é o mesmo pequeno, imbecil! — gritou o guarda.
— Não sei, não sei mesmo — disse Giles muito angustiado. — Não
posso garantir que o seja.
OLIVER TWIST

— O que achas? — perguntou Blathers.
— Não sei o que penso — respondeu o pobre Giles. — Acredito que
não seja o mesmo pequeno, estou quase certo disso.
— Este homem estará ébrio? — voltou o oficial para o doutor.
— Belíssimo pateta é o senhor — afirmou Duff para o Sr. Giles com
notável desprezo.
O Sr. Losborne, deixando um pouco os cuidados de Oliver, asseverou
que, se os oficiais ainda tivessem dúvidas, podiam ir ter com Brittles no
aposento ao lado.
Brittles apenas fez levantar outro oceano de dúvidas e contradições.
Por fim, afirmou que acreditara que o pequeno fosse o pelintra apenas
porque Giles assim o tinha dito.
Levantou-se então a possibilidade de que o Sr. Giles não houvesse ferido
pessoa alguma. Ao examinar a pistola do criado, os policiais encontraram
apenas um pouco de pólvora (o Sr. Losborne havia retirado a munição
algum tempo antes), o que tranqüilizou Giles, pois fazia-lhe sofrer a
idéia de que ferira de morte outrem. Sem dar maior conta de Oliver, os
guardas resolveram passar a noite na cidade, garantindo que voltavam
na manhã seguinte.
Logo cedo, Blathers e Duff ouviram dizer que dois homens e uma
criança haviam sido presos em condições suspeitas em Kingtown, e para
lá correram. Contudo, o grupo tinha sido considerado suspeito por se ter
surpreendido dormindo sobre uma montanha de feno, o que certamente
consiste em crime grave, mas é somente punido com prisão, aos olhos
condescendentes da lei inglesa e do amor do rei, se os dorminhocos tiverem
cometido alguma violência. Blathers e Duff, desta forma, quedaramse
tão informados quanto antes.
Depois de inúmeros colóquios e discussões, a Sra. Maylie e o Dr.
Losborne conseguiram a guarda de Oliver, mediante a responsabilidade
de levá-lo à lei de quando em quando para dar satisfações de seu comportamento.
Blathers e Duff, recompensados, voltaram à cidade com sábias
certezas sobre o caso. Duff, após geniais considerações, concluiu que o
autor do assalto só poderia mesmo ser o Queridinho, enquanto Blathers
se convencia de que o Narigudo fora o homem.
CHARLES DICKENS

Capítulo XXXII
Oliver tem dias felizes.
Posto a dura febre e a dor de um membro alquebrado, Oliver recuperouse
aos poucos de seu sofrimento, graças à generosidade afetuosa das duas
senhoras e ao tratamento do cavalheiro Losborne. Mais forte, Oliver soluçava
ao dizer que, quando estivesse sadio, poderia realizar para as duas senhoras
trabalhos que demonstrassem a gratidão que sentia por elas.
— Pobre criança, balbuciou Rosa, quando, certa vez, Oliver expressou
sua vontade de recompensá-las —, terás muitas oportunidades para nos
ajudar. Em breve, vamos ao campo, o ar fresco e a brisa suave hão de fazer
bem à tua saúde. Quando te fortaleceres, poderás realizar diversos serviços.
— Talvez penses que sou um ingrato — afirmou Oliver.
— Por Deus, tens ingratidão por quem? Perguntou a jovem.
— Àquele generoso cavalheiro e à simpática criada — respondeu Oliver.
Se pudessem saber como estou feliz, talvez ficassem satisfeitos.
— Ficarão certamente. O Sr. Losborne já me prometeu que, quando
estiveres forte o suficiente para suportar a viagem, levar-te-á a visitá-los.
— Prometeu? — alegrou-se Oliver. — Como ficarei feliz em vê-los!
Logo Oliver parecia forte o suficiente para suportar os percalços da
viagem e, na companhia do médico, subiu no carro cedido pela Sra. Maylie.
Quando iam a sair da ponte Chertsey, Oliver empalideceu e lançou um
alto balbucio.
— Que é, rapaz? — perguntou o fidalgo, vês algo, ouves algo, sentes algo?
— Ali, senhor — gritou Oliver —, é aquela a casa.
— Sim, está certo; pare, cocheiro! — ordenou o doutor. — O que há
com aquela casa?
— Os ladrões, foi naquela casa que eles me guardaram — desesperouse
Oliver.
— Inferno! — gritou o cavalheiro. — Abram a porta!
OLIVER TWIST

Antes que o cocheiro saltasse do carro, o Sr. Losborne já invadira a casa
e socava a porta com maneiras enlouquecidas.
— Olá —, disse ao abrir a porta um anão medonho —, por que tanta
bulha?
— Por quê? — exclamou o doutor, agarrando-lhe o colarinho de imediato.
— Por causa de um assalto.
— Se não me soltares, haverá é um assassinato — replicou o anão
corcunda. — Ouves-me?
— Ouço — respondeu o doutor ao meter-lhe um safanão. — Como é
mesmo o nome do pelintra? Sikes, não? Então, onde está Sikes?
Cheio de espanto e indignação, o anão livrou-se do doutor e voltou
para dentro da casa. Como mostarda subindo ao nariz, o cavalheiro invadiu
o primeiro aposento e encontrou-o vazio, sem qualquer mobília ou
outra coisa que se assemelhasse à descrição de Oliver.
— Veja lá se há motivo para o senhor invadir com estas maneiras a
minha casa! — exclamou o corcunda. — Queres me roubar?
— Alguém faria isso chegando em um carro como aquele, asno? —
gritou-lhe o doutor.
— O que queres então? — respondeu o anão. — Partirás antes que eu
te arranje alguma ou não?
— Partirei quando eu quiser — respondeu o doutor, a observar outro
aposento que, da mesma forma, em nada se parecia à descrição de Oliver.
— Esgano-lhe qualquer dia.
— É mesmo? Se quiseres, cá estou — disse cheio de raiva o anão, enquanto
dançava e rodopiava pelo aposento.
— Que estupidez — murmurou o doutor. — O pequeno deve ter-se
enganado; pega esse dinheiro e cala-te, respondeu o doutor enquanto
retornava ao carro.
O anão perseguiu-o e, no carro, enquanto o médico falava ao cocheiro,
encarou Oliver com uma expressão tão assustadora e vingativa que o
menino não pôde esquecê-la, dia e noite, por diversos meses. Quando as
rodas finalmente correram, o anão ainda ficou ao longe deitando palavrões
e se debatendo de raiva
— Sou um asno — disse o doutor —, sabia disso, Oliver?
— Não senhor.
— Então não te esqueças: um asno — tornou o médico. — Mesmo que
fosse lá o esconderijo, como eu os surpreenderia sozinho? Depois, o teu
CHARLES DICKENS

caso tornar-se-ia público; vivo a meter-me em bulhas! Espero estar agora
mais experiente!
Muito embora sempre tenha agido de modos impulsivos, o doutor gozava
do inteiro respeito de todos que o conheciam. A verdade é que ficara
desapontado por não ter conseguido confirmar os testemunhos de Oliver,
mas, como o pequeno respondera a todas as suas perguntas com precisão
e tranqüilidade, não desconfiou mais daí em diante.
Como Oliver soubesse o nome da rua onde morava o Sr. Brownlon,
percorreram o caminho sem delongas. Quando o carro tornou a esquina,
com o coração a explodir, o doutor perguntou qual era a casa.
— Aquela ali — respondeu Oliver, apontando com segurança a uma
casa branca. — Oh! Vamos rápido, sinto-me como se estivesse a morrer!
— Logo verás que eles ficarão deveras contentes por ver-te forte e bem
— respondeu o doutor, tentando acalmar o pequeno.
— Foram muito bons para mim — murmurou Oliver a choramingar.
A casa branca estava vazia e pendia, à janela, uma placa: “aluga-se”.
O Dr. Losborne resolveu bater à porta da casa vizinha, indagando o
que era feito do Sr. Brownlow.
A criada não sabia, mas dispôs-se a descobrir. De volta, contou que o Sr.
Brownlow vendera tudo e partira para o estrangeiro seis semanas antes.
Oliver, ao ouvir, entrou a soluçar e deixou-se cair.
— A governanta o acompanhou? — perguntou Losborne.
— Sim, senhor, foram todos.
— Retornemos — virou-se Losborne ao cocheiro — e não pare antes
que estivermos fora dessa Londres maldita.
— Vamos ao alfarrabista, por favor, sei onde fica o quiosque — implorou
Oliver.
— Garoto, já tivemos decepções suficientes para um dia; se partirmos
em busca do alfarrabista, descobriremos que ele se mudou ou está morto;
não, retornaremos direto para casa.
A certeza de que não mais poderia contar ao Sr. Brownlow e à Sra. Rodewin
tudo o que acontecera e os afastara fez Oliver sofrer bastante. A idéia de que
ambos partiram para tão longe julgando-o um ladrão e um impostor era
uma carga maior do que os seus ombros podiam suportar.
Os acontecimentos, contudo, não arrefeceram a benfeitoria de seus hospedeiros.
Tendo mandado ao banco a riqueza que alarmara Fagin e deixando
Giles a cuidar do resto, tomaram Oliver e partiram em direção do campo.
OLIVER TWIST

Não haverá quem possa descrever o estado de calma que o coração de
Oliver sentia naquele ambiente verde e agradável! Sobretudo aqueles
que tomam os tijolos e o cimento como sua segunda natureza! Mesmo
esses, contudo, sentirão como o ar fresco lhes faz bem ao corpo e à mente.
Oliver, entre o cheiro da rosa e o da madressilva, parecia nascer em
outro ambiente, longe da multidão em que crescera. Perto do local onde
estava, havia um pequeno cemitério em que o menino costumava passear.
Nessas ocasiões, lembrava-se do pobre túmulo de sua mãe e chorava. Logo,
porém, o céu imenso e azul coloria sua lembrança e ele afastava a dor,
chorando apenas de saudade.
Foram dias felizes.
À noite, não tinha mais o medo de envelhecer em algum calabouço ou
passar o resto da vida à roda de gatunos. Logo cedo, ia à casa de um cavalheiro
que lhe repassava o alfabeto. Depois, saía a passear com a Sra. Maylie
e Rosa. Nessas ocasiões, ouvia sobre livros. Em casa, preparava suas lições
e, no final da tarde, ouvia cheio de emoção a dócil melodia de Rosa ao
piano.
Passavam o domingo em alegria. Cedo, encantava-se à porta da igreja
com a limpeza e a graça dos pobres, que ajoelhavam e cantavam com tal
fervor que, mesmo sem sofisticação, a música lhe parecia a mais bela que
já escutara em uma igreja. Depois, visitavam os trabalhadores e, à noite,
Oliver lia a Bíblia com tal seriedade que parecia ter mais convicção no
dizer que o próprio clérigo.
Assim transcorreram três meses, tempo no qual qualquer pessoa afirmaria
ter sido de profunda felicidade. Ao cabo deles, Oliver Twist estava
completamente à vontade na companhia de Rosa e da Sra. Maylie.


Capitulo XXXIII
Em que a felicidade de Oliver e seus protetores sofre uma dura prova.
Com o verao, a cidadela tornava-se ainda mais agradavel e atraente.
As arvores se fortaleciam e a grama estendia um manto verde pelo campo!
Oliver continuava o mesmo menino docil e atencioso dos tempos da
doenca, muito embora ja estivesse restabelecido.
Certa noite, estando a lua mais brilhante que o habitual, resolveram
passear um pouco mais lentamente, ate porque a conversa lhes parecia
alegre. Ao retornar, o que fizeram com passos vagarosos, pois a Sra. Maylie
parecia fatigada, Rosa sentou-se ao piano e pos-se a entoar uma cancao
lenta e sofrida. Entao, pareceu aos outros que ela chorava.
¡X Rosa, minha querida ¡X chamou-lhe a Sra. Maylie.
Como nao houvesse resposta, a senhora insistiu e quis saber por que a
menina chorava.
¡X Nao e nada, titia ¡X respondeu a senhorita ¡X, nao posso explicar, e
que me sinto...
¡X Estas doente, querida? ¡X interrompeu-lhe a senhora.
¡X Nao, nao ¡X respondeu a garota a tremer ¡X, logo melhora, mas,
por favor, mande fechar as janelas.
Oliver correu a obedecer-lhe. A senhorita ainda tentou entoar uma
cancao mais alegre, mas seus dedos nao encontraram forcas para tal e ela
caiu em um sofa sem mais poder reprimir as lagrimas.
¡X Minha crianca ¡X abracou-a a senhora ¡X, nunca a vi nesse estado.
¡X Eu nao queria preocupar-te ¡X respondeu Rosa ¡X, mas creio estar
muito fraca.
De fato, estava. Quando os candelabros foram acesos, todos viram que
a moca empalidecera e a expressao de seu rosto parecia ansiosa, seus olhos
haviam-se tornado enevoados e distantes.
Tanto Oliver quanto a Sra. Maylie esconderam de tal forma as preocuOLIVER
TWIST
ÇcÇdÇe
pacoes com a situacao que, ao recolher-se, Rosa parecia melhor e garantia
que, no dia seguinte, levantaria restabelecida.
Ao retornar, apos um longo intervalo, a senhora disse a Oliver que muito
lhe pesaria ver-se privada da companhia da sobrinha.
¡X Deus nao permitira, ¡X respondeu Oliver. ¡X Ha duas horas ela
estava muito bem.
¡X Agora adoeceu ¡X continuou a senhora ¡X e creio que amanha estara
ainda pior. Nao posso viver sem ela!
A senhora entrou em tal desespero que Oliver abandonou seu posto
para consola-la.
¡X Pense, senhora ¡X disse Oliver, sem conseguir controlar as lagrimas,
que deitaram pela sua face ¡X, em como ela e jovem e nos faz feliz;
por piedade de nos todos, ela nao morrera; os ceus nao permitirao que
isso aconteca.
¡X Silencio ¡X exclamou a Sra. Maylie. Es apenas uma crianca; perdoe o
meu desespero, mas sou velha e ja vi coisas suficientes para saber que nem
sempre os mais jovens sao poupados; isso, porem, faz-me acreditar que existe
uma outra vida melhor que esta. Que o destino esteja nas maos de Deus.
Oliver surpreendeu-se ao notar que, aquelas palavras, sucederam jeitos
firmes e maneiras fortes no comportamento da Sra. Maylie. Era muito
novo para saber do que e capaz um coracao firme.
A noite transcorreu cheia de ansiedade. Na manha seguinte, a previsao
da Sra. Maylie se realizou: Rosa caiu tomada por uma grave febre.
¡X Nao nos lamentemos ¡X disse a Sra. Maylie, estendendo um papel a
Oliver. ¡X Esta carta deve chegar o mais rapido possivel as maos do Dr.
Losborne; esta a quatro milhas o posto dos correios na cidade; confio-lhe
a missao de leva-la ate a estalagem, que sabera posta-la.
Oliver nao respondeu, mas mostrou-se pronto a partir.
¡X Tenho outra carta ¡X continuou a Sra. Maylie ¡X, mas nao sei se a
guardo para o pior.
¡X Vai tambem para Chelsey? perguntou Oliver, ansioso por realizar, o
mais cedo que fosse, sua missao.
¡X Nao ¡X respondeu a senhora, entregando-lhe o envelope; Oliver
notou que era enderecada a um certo Harry Maylie, em uma paragem
que nao conhecia.
¡X Devo envia-la? ¡X perguntou Oliver impaciente.
¡X Nao ¡X pegou-a novamente a senhora ¡X, espero ate amanha.
CHARLES DICKENS
ÇcÇdÇf
Oliver tomou o dinheiro que a senhora lhe entregou e partiu sem mais
demora.
Nem os campos nem os riachos fizeram Oliver parar. O menino apenas
descansava alguns segundos para depois recobrar o folego e partir, escondido
pelo trigo ou correndo entre os ceifeiros. Finalmente, cheio de po e
cansaco, entrou no mercado da cidadela.
Entao, estacou e procurou pela estalagem. Avistou um banco, uma
taverna vermelha e a camara municipal. Na esquina, havia uma grande
casa circundada por madeiras verdes, em que se podia ler: George. Assim
que a avistou, para la rumou.
Dirigiu-se a um garoto que descansava sobre o portao e que, depois de
ouvi-lo, enviou-o ao encarregado da estrebaria que, depois de novamente
ouvi-lo, mandou-o ao dono da casa, um homem alto, vestido de maneiras
sobrias, encostado a porta com um palito nos dentes.
O cavalheiro entrou a casa muito atento a fim de fazer as contas, atividade
em que gastou um bom tempo. Depois que ela estava estabelecida e
paga, selou um cavalo e designou um homem para realizar a tarefa. Outro
longo intervalo foi gasto dessa vez. Oliver estava tao impaciente que
desejava, ele mesmo, montar no cavalo e galgar ate a proxima estacao.
Por fim, tudo se acertou e o cavalheiro partiu em grande velocidade, cruzando
a praca e logo deixando a cidade.
Aliviado pela certeza de que o pedido de socorro fora expedido, Oliver
deixou a estalagem mais bem disposto. Ao sair, contudo, trombou com
um tipo enrolado em uma capa, que deixava a sala de jantar.
¡X Ah! Exclamou o homem, encarando Oliver e recuando surpreendido.
¡X O que e isso?
¡X Perdao! ¡X exclamou Oliver. ¡X Tenho pressa e por isso entrei no
seu caminho.
¡X A morte! ¡X bradou o tipo, erguendo os grandes olhos negros na
direcao do garoto. ¡X Vieste do inferno para me incomodar!
¡X Perdao, senhor ¡X repetiu Oliver, assustado com a ma catadura do
sujeito ¡X, espero nao ter machucado o senhor.
¡X Raios partam teus ossos ¡X murmurou o tipo entre os dentes. ¡X Se
eu pudesse, terminava imediatamente contigo; que desgracas te abatam
e que a morte tome conta do teu coracao, bastardo. Que fazes aqui?
O homem balancava o punho na direcao de Oliver, tentando golpea-lo
enquanto brandia tais imprecacoes; em seguida, caiu ao chao, como se
tivesse um ataque.
OLIVER TWIST
ÇcÇdÇg
Oliver voltou a estalagem em busca de ajuda. Vendo que carregavam o
homem para dentro, correu de volta a casa, relembrando com espanto e
um pouco de medo a cena que acabara de presenciar. Mas a lembranca
nao o incomodou por muito tempo, pois ao entrar na residencia outras
preocupacoes invadiram-lhe a mente.
Rosa piorara gravemente.
Ao passar da meia-noite, entrou em delirios. Um medico da vizinhanca
a visitava de quando em quando. Depois dos primeiros cuidados, chamou
a Sra. Maylie e afirmou que, de fato, apenas um milagre a restabeleceria.
Quao frequentemente Oliver nao abandonou seus aposentos para, em
silencio, aproximar-se do da enferma e ver se nao descobria algo! Quao
frequentemente uma onda de suor frio nao lhe lavara o rosto ao ouvir passos
e achar que o pior tinha acontecido! E com qual fervor implorava pela
vida da pobre, que agora parecia condenada a sepultura!
Pela manha, a casa parecia vazia. Pessoas apenas murmuravam; de
quando em quando um rosto aparecia ao portao; maes e filhos choravam
discretamente. Durante todo o dia e as primeiras horas da noite, Oliver
vagou pelo jardim a olhar para a janela dos aposentos da doente tao soturnamente
que deixava a impressao de que a morte estava por tras dela.
Tarde da noite, chegou o Dr. Losborne.
¡X E dificil ¡X exclamou o medico. ¡X Tao jovem, tao gentil, mas ha
uma pequena esperanca.
Outro amanhecer. O sol brilhava, brilhava tanto que deixava a impressao
de que nao havia tristeza. Com as folhas e as flores crescendo saudaveis
por todo lado, a pobre senhorita jazia, enfraquecendo cada vez mais.
Oliver seguiu ate a capela e pediu em silencio pela rapariga.
Havia tanta paz e beleza no lugar, tanto brilho nos campos ensolarados,
tal graca no canto dos passaros, tanta vida e felicidade em tudo, que, ao
percorrer os arredores com os olhos, ocorreu-lhe que nao era aquele um
tempo de morte, que Rosa nao morreria enquanto tudo crescia forte e
cheio de vida. Chegou a pensar que a morte mostra-se apenas aos velhos,
e nao a uma moca tao graciosa e bela.
O balancar dos sinos afastou tais pensamentos imaturos. Mais um!
Outro! Tratava-se de um funeral. Algumas pessoas atravessavam o portao.
O falecido era jovem, a mae pranteava-o ao lado do caixao. No entanto, o
sol brilhava e os passaros cantavam.
CHARLES DICKENS
ÇcÇdÇh
Oliver voltou a casa relembrando de quao generosa para com ele havia
sido a rapariga, desejando que aqueles bons tempos voltassem para que
ele pudesse mostra-lhe como era grato por tudo.
Nao havia motivo para que ele sentisse remorso, sempre fora atencioso
e solicito. No entanto, pensava se nao havia de ter agido com mais zelo.
Devemos cuidar no trato com aqueles que nos rodeiam, pois a morte traz
a lembranca coisas que poderiam ser evitadas e outras que deveriam ter
sido feitas de melhor jeito.
Quando entrou a casa, a Sra. Maylie descansava na sala. Oliver estremeceu
ao ve-la, pois a senhora, antes, jamais havia abandonado a guarda
ao pe da sobrinha. Descobrira entao que a moca mergulhara em um sono
profundo do qual ou se libertaria para a morte ou para a cura.
Deixaram o jantar sem toca-lo e aguardaram durante horas. Viram o
dia terminar e entao os ouvidos notaram passos mais carregados. Quando
o Dr. Losborne chegou a porta, ambos involuntariamente correram
ate ele.
¡X O que aconteceu a Rosa? ¡X gritou a senhora. ¡XDiga-me pela graca
de Deus!
¡X Por favor, acalme-se, senhora ¡X respondeu o doutor.
¡X Diga-me, ela esta morta, esta morta, nao esta?!
¡X Nao! ¡X respondeu com veemencia o cavalheiro. ¡X Deus e misericordioso
e ela estara ainda conosco por muitos anos.
A senhora ajoelhou-se e tentou erguer as maos aos ceus, mas nao tinha
mais energia e tombou nos bracos do doutor que correu a socorre-la.
Capitulo XXXIV
Em que surge um jovem fidalgo e em que Oliver vive novas peripecias.
Tal era o estado de alegria de Oliver que lhe foi impossivel chorar,
falar ou descansar. Apenas depois de algum tempo o menino pode compreender
o que tinha sucedido e sentiu-se livre do peso que se abatera
sobre seu coracao. A noite caiu quando Oliver voltava para casa, carregado
de flores para enfeitar os aposentos da convalescente. Ouviu, entao, o
som de um carro que vinha a toda e protegeu-se, afastando-se as bordas
da estrada.
Oliver avistou um rosto conhecido, mas nao pode identifica-lo por causa
da velocidade do carro. Um instante depois, uma bengala ordenou que
o cocheiro estacionasse. A seguir, a bengala surgiu na janela da carruagem
e uma voz chamou Oliver pelo nome.
¡X Venha ca, Oliver! ¡X gritou a bengala. ¡X Como vai a senhora Rosa?
¡X E o senhor, Sr. Giles?, perguntou Oliver, correndo ate a janela do
carro.
Giles apontou a bengala outra vez, pronto para responder, quando foi
empurrado por um jovem fidalgo que se assentara do outro lado do carro
e que perguntou cheio de ansiedade pelo estado de Rosa.
¡X Apenas uma palavra ¡X murmurou o fidalgo ¡X, melhor ou pior?
¡X Melhor, bem melhor ¡X respondeu Oliver expedito.
¡X Deus seja louvado! ¡X exclamou o fidalgo. ¡X Tens certeza?
¡X Tenho, senhor ¡X respondeu Oliver. ¡X O restabelecimento deuse
ha poucas horas; o Dr. Losborne nos garantiu que Rosa ja nao corre
mais riscos.
Sem dizer mais, o cavaleiro abriu a porta e, tomando Oliver nos bracos,
ajudou-o a subir no carro.
¡X Tens certeza? Nao estas mesmo enganado, rapaz? ¡X murmurou o
fidalgo. ¡X Nao me deixes com esperancas que se nao irao cumprir!
OLIVER TWIST
ÇcÇeÇa
¡X Jamais eu o faria ¡X respondeu Oliver ¡X, foi o Dr. Losborne mesmo
que afirmou que ela estara conosco ainda por muitos anos; eu ouvilhe
dizer.
Novamente Oliver deitou lagrimas pelo rosto, recordando os motivos
de sua recente felicidade. O cavalheiro, por sua vez, mergulhou em profundo
silencio. Nosso heroi achou que ouvia-o solucar, mas, como imaginava
as razoes de seu estado, resolveu nao incomoda-lo e tentou ocuparse
das flores que apanhara.
O jovem cavalheiro entao afirmou que preferia continuar o caminho
sozinho, a pe pela estrada, para que pudesse se recompor antes de reencontrar
a mae. Destarte, pediu a Giles que dissesse que nao tardaria a
chegar.
Por este tempo todo, o Sr. Giles permaneceu sentado nos degraus do
carro com a cabeca apoiada a bengala. Varias vezes, levava um lenco ao
rosto, deixando claro que, em sua dor, nao havia nada de artificial ou
fingido.
¡X Perdao, Sr. Harry, mas se as criadas me virem em tal estado, perderei
toda a minha autoridade sobre elas.
¡X Bem ¡X sorriu Harry Maylie ¡X, faca como bem entender.
Assim, o carro estacou e o senhor Giles, Oliver e Harry Maylie seguiram
caminhando vagarosamente.
De quando em quando, Oliver observava o recem-chegado. Parecia-lhe
contar uns vinte e cinco anos. Era dono de belas formas e de uma simpatia
cativante. Posto houvesse a diferenca de idade, tal era a semelhanca com
a Sra. Maylie que nao seria dificil para Oliver, nao tivesse o fidalgo ja
dito, imaginar-lhe o parentesco.
A Sra. Maylie aguardava muito ansiosa o filho. O encontro deu-se com
gestos emocionados de ambas as partes.
¡X Mamae, por que nao escreveste antes?
¡X Escrevi ¡X respondeu a Sra. Maylie ¡X, mas achei mais conveniente
aguardar a opiniao do Dr. Losborne.
¡X Mas por que? ¡X replicou o mancebo. ¡X Por que te arriscastes tanto?
Se Rosa tivesse... nem ouso dizer... se a doenca a tivesse levado a outro
estado, nunca perdoarias a si mesma por me nao teres avisado! E eu jamais
teria algum outro instante de felicidade.
¡X Se tal houvesse mesmo ocorrido, estou certa de que te sentirias tao
triste que, um dia a mais, um a menos, nao seria de nada importante.
CHARLES DICKENS
ÇcÇeÇb
¡X Tera alguem duvida disso, mamae? ¡X ajuntou o mancebo. ¡X Deverias
saber disso.
¡X Sei que ela merece o mais puro amor que um homem pode oferecer;
e sei ainda que uma alteracao no comportamento daquele a quem
tem amor castigar-lhe-ia o coracao, por isso, foi-me tao dificil decidir
qual a melhor atitude.
¡X Isso nao esta certo, mamae! ¡X reclamou Harry. ¡X Pensa a senhora
que ainda sou um rapaz que age em tudo por impulsos?
¡X Penso, querido filho ¡X respondeu a Sra. Maylie, fixando-lhe os
olhos ¡X, que se um homem se casa com uma mulher que tem uma mancha,
o passar do tempo pode tornar tal esposa um peso para o marido que
a sociedade ve ascender.
¡X Mamae ¡X disse o impaciente rapaz ¡X, tal homem seria um bruto
sem a menor honra para ostentar a esposa, se agisse da forma como descreveste
a senhora.
¡X Pensas assim agora, Harry? ¡X respondeu sua mae.
¡X Assim pensarei sempre, mae ¡X disse o rapaz. ¡X O sofrimento
por que tenho passado nos dois ultimos dias obriga-me a confessar-te um
amor de que bem tens noticia. Desde que a vi, meu coracao se abriu a
Rosa; se te opuseres a nossa uniao, estaras impedindo a minha felicidade.
Pense nisso, mamae, de atencao a felicidade de que pareces fazer tao pouco
caso!
¡X Harry ¡X disse a Sra. Maylie ¡X, quero evitar as magoas justamente
nos coracoes sensiveis; ja discutimos isso por demais!
¡X Entao, deixemos Rosa decidir ¡X afirmou Harry. ¡X Nao iras oporse
a nossa vontade, iras?
¡X Nao ¡X garantiu a Sra. Maylie ¡X, mas peco que consideres...
¡X Ja considerei ¡X respondeu o mancebo com maneiras impacientes.
¡X Penso nisso desde que sou capaz de reflexoes serias; vou-me embora
apenas depois de falar a Rosa.
¡X Falaras ¡X respondeu a Sra. Maylie.
¡X Das-me a entender, mamae, que ela tratar-me-a com frieza.
¡X Longe disso ¡X exclamou a senhora Maylie.
¡X De que maneira, entao? ¡X voltou-se o rapaz. ¡X Ela tem sentimentos
por outro?
¡X Nao, e certo que nao ¡X respondeu a mae. ¡X O que eu dizia e que,
antes de revelar-lhe seus sentimentos, pense na historia de Rosa, em sua
OLIVER TWIST
ÇcÇeÇc
origem dubia. Nao deixe de considerar a intensidade das maneiras nobres
que ela nos dedica.
¡X Que mo dizes?
¡X Deixo-te com os teus sentimentos ¡X respondeu a Sra. Maylie. ¡X
Devo voltar a ela; Deus te abencoe!
¡X Voltarei a ve-la esta noite? ¡X perguntou o rapaz, cheio de ansiedade.
¡X Claro ¡X respondeu a senhora ¡X, quando eu terminar os cuidados.
¡X Falaras que estou aqui? ¡X disse Harry.
¡X Sem duvida ¡X respondeu a Sra. Maylie.
¡X E diga-lhe quao ansioso por ve-la estou, conte-lhe o meu sofrimento;
nao te recusaras a isso, nao e, mamae?
¡X Nao ¡X respondeu a senhora, acalmando o filho ¡X, contar-lhe-ei tudo.
Durante o tenso coloquio, o Dr. Losborne e Oliver permaneceram mudos
do outro lado do aposento. Apos trocarem cordiais saudacoes, o doutor
confirmou ao rapaz as palavras que Oliver lhe tinha transmitido. Fingindo
ocupar-se da bagagem, Giles ouvia tudo cheio de atencao.
¡X Atiraste outra vez, Giles? ¡X perguntou o doutor, depois de conversar
com o rapaz.
¡X Nada de especial ¡X respondeu Giles, avermelhando ate os olhos.
¡X Nem capturastes outros gatunos? ¡X acrescentou o doutor.
¡X Realmente nada ¡X disse Giles com gravidade.
¡X Uma pena ¡X lamentou o doutor ¡X, pois es perito nessas materias.
E como esta Brittles?
¡X O garoto passa bem ¡X respondeu Giles, recobrando o habitual ar
patronal. ¡X Ele manda saudacoes.
¡X Otimo! ¡X exclamou o doutor. ¡X Ao ver-te, lembrei-me de algo que
me pediu sua patroa. Tenha a bondade de me acompanhar por um instante.
Muito solene, Giles seguiu o doutor ate um aposento fechado, onde
parlamentaram por um instante. Ainda mais cerimonioso, o empregado
atravessou a sala, concluidas as conversacoes, e dirigiu-se a cozinha, a
contar as criadas que, em reconhecimento a sua bravura durante o assalto,
a patroa lhe depositara vinte e cinco libras. As mulheres imediatamente
ergueram os bracos aos ceus, certas de que a soberba do homem
cresceria ainda mais, coisa que ele negou com veemencia. Chegou mesmo
a advertir que, se fosse inadequado no trato com seus subordinados,
gostaria de ser avisado.
A noite transcorreu calma e ate cheia de risos, pois o doutor contagiou
CHARLES DICKENS
ÇcÇeÇd
a todos, inclusive ao cansado Harry Maylie, com suas piadas e ditos espirituosos.
Por fim, todos puderam se recolher, atirados ao descanso de que
bem estavam precisando.
O dia amanheceu calmo e belo. E preciso observar que, desde entao,
Oliver tinha companhia em seus passeios pelo campo. O jovem Harry
logo tornou-se eximio cacador de flores e, consequentemente, a janela
dos aposentos de Rosa, agora sempre abertas para que o ar puro confortalhe
o peito, enchiam-se de rosas. Em meio a tudo isso, ela recobrava rapidamente
a saude.
Enquanto a moca permanecia internada em seu aposento, o pequeno
ocupava-se com os estudos. Seus progressos eram notaveis e espantavam
ate ao proprio Oliver. No entanto, certo dia, a olhar para os livros, ocorreu-
lhe algo deveras inesperado.
A pequena camara onde tinha seus estudos situava-se nos fundos da
casa. Com uma janela imensa, era circundada por flores, que exalavam
um raro perfume. Atras dos jardins, havia apenas a mata; dali nao se
avistava habitacao alguma.
Uma bela tarde, apos um dia quente, Oliver sentou-se a estudar ao
lado da janela. No entanto, e nao se culpe aqui os autores, sejam quais
forem, pois o rapaz se esforcou para manter-se acordado, depois de algum
tempo Oliver caiu no sono.
Ha um tipo de sono, se e que se pode chamar tal vaguidao assim, que
nos arrebata o corpo mas deixa a mente alerta. Nesse estado, a realidade
se mistura a materia de nossos sonhos e tudo se torna a mesma massa
onirica. No entanto, quem estiver caido em sono dessa forma, nunca deixa
de perceber qualquer alteracao no mundo a sua roda.
Oliver estava ciente de que dormia naquele aposento, que os livros jaziam
a sua frente e que o ar que lhe invadia os pulmoes era puro e doce.
Mesmo assim, dormia. De repente, tomado de terror, sentiu o ar carregar-
se e achou estar, outra vez, em casa do odioso Fagin, que, prostrado a
um canto, apontava para ele enquanto discutia com um homem de face
medonha.
¡X Cale-se, meu caro! ¡X julgou estar escutando Fagin. ¡X E certo ser o
pequeno; fujamos!
¡X O proprio! Acreditou ouvir o outro dizer. ¡X Poder-nos-iamos enganar,
acreditas? Se estivesse ele oculto entre uma multidao no inferno,
encontra-lo-ia. Se estivesse ele sepulto a cinquenta pes do chao, eu sentiria
seu cheiro. Nada me faria enganar.
OLIVER TWIST
ÇcÇeÇe
O sujeito deixava a impressao de dizer isso em tal estado de rancor que
Oliver, a tremer, despertou.
Por Deus! A visao lhe roubou a voz e deixou-o sem movimentos! Ali,
tao perto que lhes podia tocar com os dedos, estavam Fagin e o homem
com quem trombara na estalagem.
Um instante foi o suficiente para que os dois deitassem a correr a toda
brida em fuga. Reconheceram-se. Depois de um momento de paralisia,
Oliver pulou a janela e pos-se a gritar por socorro.
CHARLES DICKENS
ÇcÇeÇf
Capitulo XXXV
Em que o leitor descobre os fins pouco satisfatorios da aventura de Oliver
e acompanha os importantes coloquios entre Harry e Rosa.
Quando os criados da casa atenderam aos gritos de Oliver, encontraramno
palido e agitado, apontando na direcao das arvores atras da casa, sem
conseguir ordenar as palavras com precisao. ¡§Fagin! Fagin!¡¨ exclamava.
O Sr. Giles foi incapaz de compreender os gritos do pequeno, mas Harry,
que tinha uma intuicao um pouco mais veloz, e que ouvira de sua mae a
historia de Oliver, entendeu-lhe de imediato.
¡X Para que lado foram? ¡X perguntou, tomando para si um porrete
que alguem largara por ali.
¡X La adiante ¡X apontou Oliver para a direcao que os dois haviam
tomado.
¡X Entao, devem estar no fosso; sigam o mais proximo que puderem
¡X exclamou Harry, a apressar-se tanto que os outros quase nao conseguiam
acompanhar-lhe.
Giles e Oliver puseram-se a correr tao rapido quanto podiam; logo, o
Sr. Losborne, que voltava de um passeio, pos-se a acompanha-los com
mais agilidade que suas formas deixavam parecer, perguntando o que
acontecia.
Correram as carreiras ate que atingiram o fosso. Enquanto Harry examinava
as redondezas atras de alguma pista, Oliver contou ao Dr. Losborne
o que acabara de suceder.
A cacada foi em vao. No entanto, ou pelo campo aberto ou por meio da
mata fechada, seria impossivel que os homens tivessem conseguido fugir
em tempo tao curto.
¡X Deves ter sonhado, Oliver ¡X disse Harry Maylie.
¡X E certo que nao, senhor ¡X respondeu Oliver, tremendo apenas a
menor lembranca dos malfeitores. ¡X Vi-os tao claramente quanto lhe
vejo agora.
OLIVER TWIST
ÇcÇeÇg
¡X Quem era o outro? ¡X perguntaram Harry e o Sr. Losborne ao mesmo
tempo.
¡X Aquele com quem trombei a porta da estalagem ¡X disse Oliver. ¡X
Lembro-me do momento em que nossos olhos se encontraram.
¡X Vieram mesmo por aqui? ¡X perguntou Harry. ¡X Tens certeza?
¡X Tenho ¡X respondeu Oliver. ¡X O homem alto saltou logo aqui,
enquanto Fagin desviou-se pela direita.
Os dois deram mostras de que acreditavam na descricao de Oliver, tal
era a exatidao de suas palavras. No entanto, nao havia sinal nenhum a
roda deles, nem mesmo a grama parecia ter sido pisada.
¡X Muito estranho ¡X disse Harry.
¡X Estranho? ¡X ecoou o doutor. ¡X Nem mesmo Blathers e Duff conseguiriam
algo aqui.
Mesmo sem muitas esperancas, continuaram a busca ate o entardecer.
Alem disso, enviaram Giles as tabernas da regiao, atras de alguma informacao
ou de alguem que tivesse visto os gatunos. O homem voltou, porem,
sem novidade alguma.
Na manha seguinte, as buscas continuaram. Depois, Oliver e Harry
foram ate a cidade atras de alguma noticia, mas, igualmente, nada ouviram.
Aos poucos, o assunto foi esquecido, como o sao todos os que nenhuma
novidade faz prolongar a vida.
Enquanto isso, Rosa recuperava-se bem. Ja deixara o quarto e privava
feliz com toda a familia.
Posto a alegria tomar conta de todos, Oliver sentia um certo mal-estar.
Varias vezes, a Sra. Maylie fechava-se com o filho e, entao, Rosa surgia
com o rosto inchado, dando pistas de haver chorado. Quando o Sr. Losborne
fixou o dia de sua partida, tais eventos tornaram-se mais constantes, deixando
claro que algo perturbava a rapariga e, talvez, uma outra pessoa.
Certa feita, estando Rosa sozinha na sala de jantar, Harry Maylie aproximou-
se um tanto hesitante e pediu permissao para falar-lhe.
¡X Nao vou me estender, Rosa ¡X afirmou o rapaz. ¡X Ja sabes o que
tenho para dizer-lhe, conheces certamente o que se passa nos meus sentimentos,
ainda que eu nunca lhe tenha dito.
Rosa empalideceu desde o instante em que vira o rapaz, talvez em
razao ainda de seu recente mal. Respondeu inclinando a cabeca e ficou a
esperar em silencio o que o mancebo tinha a dizer-lhe.
¡X Ja me devia ter ido ¡X murmurou o rapaz.
CHARLES DICKENS
ÇcÇeÇh
¡X Perdoa-me por dizer isso ¡X respondeu Rosa ¡X, mas penso o mesmo.
¡X Empurrou-me para ca o receio de perder quem carrega todas as
minhas esperancas. Por vezes, sao os jovens e belos espiritos que se voltam,
adoecidos, a direcao dos ceus.
Ao ouvir tais palavras, os olhos de Rosa marejaram e seu rosto
enrubesceu.
¡X Uma moca ¡X continuou o rapaz em tom apaixonado ¡X uma moca
semelhante aos anjos esteve entre a vida e a morte; quem imaginaria
que, ja as portas do paraiso, ela retornaria as dores deste mundo? Oh!
Rosa, Rosa, o desejo de que te restabelecesses, as suplicas para que te
livrasses da morte, essas foram as minhas unicas reflexoes! Pesava-me o
medo de que te fosses sem saber do amor que por ti cultivo; nao me desiluda
agora afirmando que eu nao devia ter vindo orar pela tua vida.
Rosa respondeu, em lagrimas, que desejava apenas que o rapaz retornasse
as suas importantes atividades rotineiras.
¡X Nada me e mais importante do que lutar pelo teu coracao; depende
apenas de ti que esta minha batalha termine bem sucedida e feliz.
¡X Como poderia eu ser indiferente as tuas palavras e aos teus sentimentos?
¡X exclamou Rosa.
¡X Devo lutar pelo teu coracao, querida Rosa?
¡X Deves lutar para me tirares do teu ¡X afirmou a garota, enquanto
cobria o rosto cheio de lagrimas com as maos.
¡X Por que dizes isto? ¡X indagou o rapaz.
¡X E certo que o saibas ¡X assentiu a rapariga. ¡X Trata-se de uma
obrigacao que tenho para com outros e, tambem, para comigo mesma.
¡X Consigo mesma?
¡X Sim, Harry, dever de, nascida em uma familia sem nome ou fortuna,
nao atrapalhar o teu futuro e manchar a tua carreira.
¡X E para esta direcao que apontam teus sentimentos? ¡X indagou
Harry.
¡X Nao! ¡X exclamou Rosa, ruborescendo imediatamente.
Ansioso, o mancebo perguntou pelos sentimentos da jovem Rosa.
¡X Talvez eu os revelasse, se minha resposta nao prejudicasse aquele que
amo ¡X disse Rosa. ¡X Sejamos apenas os amigos que, ate hoje, tao bem
conseguimos ser. E melhor nao mais repetirmos conversas dessa natureza!
¡X Deixe-me saber tuas razoes ¡X respondeu Harry.
¡X Teu destino sera cheio de sucessos, Harry; nao quero atrapalha-lo
OLIVER TWIST
ÇcÇeÇi
com a mancha do meu passado nem envergonhar o filho daquela que
substituiu tao carinhosamente a minha mae. ¡X Ao dizer isso, Rosa caminhou
em direcao a porta, cheia de cansaco. ¡X Desejo sofrer sozinha a
falta de um passado nobre.
¡X Fosse eu ¡X disse Harry, enquanto bloqueava-lhe a passagem ¡X
desfavorecido pela sorte e tivesse pela frente um destino de pobreza e
doenca, aceitar-me-ias?
¡X Oh! Por favor ¡X lamentou Rosa ¡X, nao e justo que me perguntes isso!
¡X Se responderes da forma que espero, uma luz cintilara em meu coracao.
Fala-me! Rosa, fala-me em respeito ao sentimento que tenho por ti.
¡X Fosse o teu futuro apenas um pouco superior ao meu, responder-teia
de outra forma ¡X afirmou Rosa. ¡X Sou agora feliz, mas garanto que,
entao, eu seria ainda mais. Sei que se trata de uma fraqueza, no entanto e
ela que me permite prosseguir em minha decisao; deixa-me ir agora,
Harry!
¡X Prometas-me entao ¡X continuou Harry ¡X apenas mais uma coisa:
em um ano, menos ate, poderei tornar-te a indagar sobre isso?
¡X Nao ¡X respondeu Rosa, a sorrir melancolicamente ¡X, nao se for
para tentar fazer-me declinar da minha decisao; seria inutil.
¡X Poderas repetir tua resolucao ¡X replicou Harry. ¡X Deitarei-te aos
teus pes a minha situacao e entao decidiras; se continuares nessa mesma
ideia, nao mais te incomodarei.
Ela ofereceu-lhe a mao a um beijo, mas ele a puxou para junto de si e
beijou-lhe a testa, saindo da sala em seguida.
CHARLES DICKENS
ÇcÇeÇj
Capitulo XXXVI
Mesmo curto e aparentemente descabido, deve ser lido como
complemento ao anterior e introducao ao proximo.
¡X Entao, estas resolvido a acompanhar-me em viagem esta manha? ¡X
perguntou o doutor quando Harry Maylie veio ter com Oliver o desjejum.
¡X Se me reservares um lugar no carro ¡X respondeu o mancebo ¡X,
achas que alterei minhas intencoes?
¡X Acho possivel, ja que as mentes jovens giram mais que o catavento
de certas igrejas ¡X respondeu o Sr. Losborne.
¡X E as almas idosas, por conta de certa gravidade nas acoes, acham-se
com razao ao censurar nossas duvidas ¡X replicou Harry.
¡X Se me exalto mais do que meu posto e minha idade permitem, ou
se me ponho a fazer gracejos para divertir um tolo qualquer, eis o maximo
de minhas impropriedades; ja o senhor, es tao voluvel que nao passas
trinta minutos com a mesma ideia na cabeca.
¡X Contar-me-a, outro dia, uma historia diferente ¡X afirmou Harry,
corando sem qualquer razao aparente.
¡X Espero ter motivo para isso ¡X respondeu Losborne ¡X, posto desconfie
do contrario. Ontem pela manha, disse que ca ficarias para acompanhar
tua mae a praia; ainda antes que anoitecesse, disseste-me que
iria comigo ate Londres; a noite, instigaste-me a partir antes que as
senhoras estivessem em pe. Tudo isso e pessimo para o pequeno Oliver
que, a esta hora, ja devia estar metido em seus estudos de botanica, nao
e, meu rapaz?
¡X Ser-me-ia pesaroso nao estar aqui quando o senhor e Harry partissem,
respondeu Oliver.
¡X Bom rapaz ¡X disse o doutor ¡X, quando voltares a cidade, iras certamente
a minha casa. Mas, Harry, responda-me seriamente: recebeste
algum chamado das altas rodas para te colocares tao ansioso por partir?
OLIVER TWIST
ÇcÇfÇa
¡X Presumo que incluas, em tua selecionada corte, meu nobre tio
¡X respondeu Harry. ¡X Nao, nao me convocou desde que cheguei e
creio que nao havera razao para faze-lo ainda em boa parte deste ano.
¡X Es um rapaz de valor ¡X disse o doutor ¡X, mas certamente vao
querer que estejas nas eleicoes que virao antes do Natal. Tais incertezas e
angustias sao um bom treino para a vida politica.
¡X E o que dizer se a pessoa, ou o cavalo, nao tem a intencao de entrar
no jogo? ¡X perguntou Harry.
¡X Entao, seria um asno, caso se colocasse em atividades que nao lhe
dissessem respeito ¡X respondeu Losborne.
Harry Maylie ensaiou discordar, mas, com um murmurio, colocou fim
ao coloquio. Logo, o carro estacionou e, diligente, Giles pos-se a cuidar da
bagagem, fiscalizado pelos olhos atentos do doutor.
¡X Oliver ¡X chamou-lhe Harry em voz baixa ¡X, preciso dizer-lhe algo.
O pequeno acompanhou-o ate a janela, estranhando o semblante entre
agitado e triste de Harry.
¡X Es capaz de escrever bem? ¡X perguntou-lhe Harry, pousando a
mao em seu ombro.
¡X Penso que sim ¡X respondeu Oliver.
¡X Estarei longe por algum tempo e quero que me escrevas, a cada
quinzena, para o correio central de Londres. Podes fazer-me isso?
¡X Claro, senhor ¡X respondeu-lhe Oliver, alegre com a nova missao.
¡X Preciso saber da saude de minha mae e de Rosa, se estao bem e
felizes. Entendeste-me?
¡X Perfeitamente, senhor.
¡X Eu gostaria que elas nao soubessem disso ¡X continuou o rapaz ¡X,
pois talvez minha mae se sinta ansiosa por dar-me boas noticias; facamos
disso um segredo nosso; nao deixes de contar-me tudo.
Oliver, orgulhoso de sua importancia, prometeu-lhe segredo e, entre
manifestacoes de simpatia e apreco, recebeu as despedidas de Harry Maylie.
O doutor ja se assentara no carro. Giles abriu a porta e, enquanto as
criancas postavam-se no jardim para assistir a partida, Harry lancou uma
olhadela a uma das janelas e entrou no carro.
¡X Vamos a todo vapor ¡X gritou. ¡X So ficarei satisfeito se voarmos!
¡X Ei! ¡X acenou-lhe o doutor. ¡X Prefiro que viajemos em seguranca.
Logo o carro desapareceu em meio a uma nuvem de poeira. Quando a
nuvem se esvaiu, os expectadores deixaram de observar o caminho. Apenas
CHARLES DICKENS
ÇcÇfÇb
um deles, Rosa, ficou a olhar a estrada por muito tempo, por tras da cortina
de onde percebera o ultimo olhar de Harry. O rapaz pareceu-lhe
feliz, o que a tranquilizou, pois receava ter cometido um erro. Nos seus
olhos, no entanto, brotaram lagrimas, o que denunciava alguma tristeza.
Capitulo XXXVII
Que trata de frequentes contrastes no matrimonio.
O Sr. Bumble, assentado em uma das saletas do asilo, observava o brilho
do sol a refletir na superficie exageradamente polida do fogao. De
quando em quando, erguia os olhos ao telhado, onde moscas esvoacavam
ao redor de uma armadilha. Pensativo, os insetos devem te-lo feito recordar
alguns lances de seu passado.
Havia, porem, outros aspectos tristes no local alem do melancolico semblante
do Sr. Bumble. Onde estaria o nobre casaco e o elegante chapeu?
Por certo, ainda vestia calcoes e meias, mas estes em nada se pareciam
com os majestosos modelos de outrora. Ocorre que o Sr. Bumble deixara
o cargo de bedel.
Alguns cargos, seja qual for a sua importancia, alcancam especial valor
pelas vestes que exigem. O xerife tem seu uniforme, o bispo e o conselheiro
tambem. Ao bedel, cumpre vestir o casaco. Ficam privados de sua
vestimenta e em que se tornam? Simples mortais. A dignidade, a santidade
ate, estao muito mais ligadas a roupa que as acompanha do que o
nobre leitor imagina.
O Sr. Bumble fora as nupcias com a Sra. Corney e, agora, tinha o posto
de administrador do asilo de mendicidade. Outro bedel viera para cumprir
suas funcoes e, consequentemente, usar o casaco e o chapeu.
¡X Amanha ja serao dois meses ¡X suspirou Bumble ¡X, quase uma vida.
O suspiro denunciava que as ultimas oito semanas nao tinham sido
propriamente felizes.
¡X Vendi-me ¡X continuou Bumble ¡X, vendi-me por alguns pequenos
luxos, por um preco de nada.
¡X Qualquer preco ser-te-ia caro ¡X murmurou sua interessante esposa.
¡X Creio que sinto falta de toda aquela docura e sensibilidade ¡X disse
o Sr. Bumble.
OLIVER TWIST
ÇcÇfÇe
¡X E, em verdade, um pessimo destino ¡X respondeu sua companheira.
¡X Deveria eu encher-me de sentimentos carinhosos depois de todo o
sacrificio que fiz?
¡X Sacrificio, Sra. Bumble? ¡X perguntou o fidalgo com muita aspereza.
¡X Ficaras cochilando ai para sempre? ¡X perguntou a mulher entre
outras altercacoes.
¡X Fico aqui enquanto me der na telha ¡X respondeu o Sr. Bumble ¡X,
tenho esse direito.
¡X Esse direito... ¡X desdenhou a Sra. Bumble.
¡X O posto do homem e o de chefe ¡X continuou o Sr. Bumble.
¡X E qual e o lugar da mulher? ¡X indagou a viuva do Sr. Corney.
¡X Obedecer, senhora ¡X berrou o Sr. Bumble. ¡X Se o malfadado
Corney tivesse lhe ensinado isso, talvez ainda vivesse.
Certa de que aquele era o momento de golpear decisivamente o marido,
a Sra. Bumble deixou-se cair em uma cadeira e, chamando-o de bruto
e insensivel, entregou-se a um mar de lagrimas. No entanto, o coracao do
Sr. Bumble era a prova d¡¦agua e nao se atingia pelas lagrimas da mulher.
Ao contrario, o homem olhou-a com satisfacao e, mesmo, encorajou-a a
chorar mais, pois essa era uma atitude brutalmente saudavel.
¡X Abre os pulmoes, limpa os olhos, lava as faces e ameniza o temperamento
¡X disse o Sr. Bumble ¡X, chora mesmo.
Ao dizer essas gentilezas, o Sr. Bumble tomou o chapeu e dirigiu-se a
porta. A senhora, cuja experiencia matrimonial era larga, recorrera as lagrimas
porque julgara artificio mais conveniente que o ataque fisico, mas
estava preparada para faze-lo, como o Sr. Bumble, alias, logo descobriria.
A primeira amostra disso teve o Sr. Bumble ao ver seu chapeu arremessar
para o outro lado do aposento. Tendo deixado livre a cabeca do
marido, a senhora prendeu-lhe o pescoco com um dos bracos e, com o
outro, deitou-lhe uma serie de safanoes, aplicados com singular vigor. Ao
fim disso, arranhou-lhe as faces e puxou-lhe os cabelos com bastante animo;
quando julgou o ataque suficiente, atirou-lhe a uma cadeira e desafiou-
o a repetir o lugar que ocupava no casamento.
¡X Levante-se e corre ¡X gritou a Sra. Bumble com ares de comandante
¡X, se nao queres que eu cometa uma loucura.
O Sr. Bumble ergueu-se confuso e pos-se a imaginar qual seria a loucura;
ao apanhar o chapeu, lancou um olhar em direcao a porta.
CHARLES DICKENS
ÇcÇfÇf
¡X Sai! ¡X ordenou a Sra. Bumble.
¡X Claro, minha senhora ¡X exclamou Bumble, tentando chegar logo
a porta. ¡X Estas tao nervosa que eu...
Neste instante, a Sra. Bumble agachou a fim de acertar a posicao de
um carpete que se movera durante a batalha. O Sr. Bumble, entao, aproveitou
para sair, sem sequer tentar concluir a frase, deixando a mulher
com o dominio pleno do lugar.
¡X E dificil de acreditar nisso ¡X disse o Sr. Bumble, enquanto dava
um jeito em suas vestes desordenadas. ¡X Ela nao parecia ser o tipo que
fizesse tais coisas.
Tomado de assalto, o Sr. Bumble fora vitima de belos bofetoes.
Tendo uma decidida propensao a bulha, dai lhe derivara certa covardia,
o que, alias, nao lhe consiste em falta de carater, ja que muitos oficiais
do nosso respeito e admiracao padecem da mesma enfermidade. Tal
nota, longe de rebaixa-lo, serve para valorizar seu carater e mostrar, com
justica, que o homem esta a altura do cargo.
Suas humilhacoes, porem, ainda nao tinham chegado a termo. Depois
de passear pelo asilo e concluir que os maridos que se livraram das esposas,
em vez de receber punicoes, deveriam ser condecorados pelo feito,
entrou em uma saleta onde um grupo de miseraveis lavavam a roupa da
paroquia: era de la que vinham as vozes que ouvia.
¡X O que significa tal confusao? ¡X exclamou o Sr. Bumble, outra vez
tomado de dignidade.
Dizendo isso, o Sr. Bumble abriu a porta e entrou demonstrando raiva
e nervosismo. No entanto, ao dar-se com a esposa, cobriu-se de humildade.
¡X Querida ¡X disse Bumble ¡X, nao sabia que estavas aqui.
¡X Nao sabia que eu estava aqui! ¡X repetiu a Sra. Bumble. ¡X Procuras
o que por aqui?
¡X Julguei, querida, que essas senhoras tagarelavam demais ao fazer
seus deveres ¡X respondeu o Sr. Bumble, sorrindo sem entusiasmo para
duas velhas que se curvavam sobre uma bacia, admiradas pela humildade
do administrador do asilo.
¡X Achavas que tagarelavam? ¡X disse a Sra. Bumble. ¡X Por que te
preocupas?
¡X Porque, querida... ¡X correu a responder o Sr. Bumble com toda a
submissao.
OLIVER TWIST
ÇcÇfÇg
¡X Por que te preocupas? ¡X tornou a Sra. Bumble.
¡X E verdade que aqui, querida, es a patroa, mas achei que nao estivesses
trabalhando neste momento.
¡X Vou-lhe dizer algo ¡X respondeu a gentil senhora. ¡X Nao queremos
a tua intromissao, intrometes-te em tudo, fazendo bulhas e sendo,
por todos, motivo de piada. Fora ja daqui!
O Sr. Bumble, atormentado com os risinhos de escarnio das duas lavadeiras,
hesitou por um instante. Impaciente, a Sra. Bumble tomou uma
bacia e ameacou-o, apontando para a porta.
O que mais poderia fazer? quando o homem alcancou a porta, o escarnio
das lavadeiras atingiu a proporcao de sonoras gargalhadas; caira da
tao respeitosa posicao de bedel para a degradante figura de marido submisso
e maltratado.
¡X Em apenas dois meses ¡X disse o Sr. Bumble, tomado por pensamentos
lugubres ¡X, ha apenas dois meses eu cuidava nao so de mim,
mas de todo o asilo, agora...
Parecia-lhe muito, pensou distraido a alcancar a rua.
Galgou uma rua, outra e ainda mais uma. O exercicio, entao, amenizou-
lhe as dores na alma e ele sentiu sede. Cruzara diversas tabernas. Por
fim, estacou frente a uma delas e, espreitando, notou que apenas um homem
descansava ali. Como comecara a chover, entrou e pediu uma bebida,
assentando no recinto que vira da rua.
O homem que lhe fazia companhia era alto e vestia uma enorme capa.
Tinha o ar de estrangeiro e aparentava haver percorrido uma grande
distancia. Observou Bumble de soslaio, mas nem se dignou a responder
com um movimento de cabeca a saudacao.
Muito digno, o Sr. Bumble nao deu conta da descortesia e tomou sua
genebra lendo o jornal com ares muito nobres.
Aconteceu, porem, o que acontece em tais circunstancias: o Sr. Bumble,
varias vezes, sentiu-se tentado a observar o outro, mas, sempre que se
atrevia, logo baixava os olhos, pois topava com os do estranho.
Depois de trocar olhares por um longo tempo, a voz soturna e desagradavel
do estranho finalmente resolveu falar.
¡X Procuravas-me quando espiaste pela janela? ¡X perguntou.
¡X Nao, a menos que sejas o senhor... ¡X deteve-se Bumble, muito embora
estivesse ansioso por saber o nome do estranho.
¡X Estou certo ¡X disse o outro ¡X, ou saberias meu nome; ja que nao
sabes, recomendo-lhe que nao o perguntes.
CHARLES DICKENS
ÇcÇfÇh
¡X Nao desejava incomoda-lo, rapaz ¡X respondeu o Sr. Bumble com
ares nobres.
¡X Nao incomoda ¡X garantiu o estranho, tomando o jornal para instaurar
outro longo periodo de silencio.
Ele mesmo, contudo, quebrou-o mais tarde.
¡X Ja o vi antes? ¡X perguntou. ¡X Vestia-te de outro modo e nos cruzamos
a rua, eras bedel, nao?
¡X Era ¡X respondeu o Sr. Bumble surpreendido ¡X bedel do asilo da
paroquia.
¡X Claro ¡X acrescentou o outro, balancando a cabeca ¡X, foi daqueles
modos que o vi.
¡X Sim, sim ¡X disse o Sr. Bumble, tentando imaginar a ocupacao do
estranho. ¡X Nao te consigo reconhecer.
¡X Seria um milagre se conseguisse ¡X acrescentou com frieza o outro.
¡X Que fazes agora?
¡X Administro o asilo ¡X respondeu com firmeza o Sr. Bumble, lentamente.
¡X Administro o asilo, rapaz!
¡X Casou-se? ¡X inquiriu o estranho.
¡X Sim ¡X disse Bumble ¡X, apos mover-se no assento. ¡X Ha dois
meses.
¡X Casaste homem feito ¡X observou o estranho. ¡X Antes tarde do
que nunca.
O Sr. Bumble estava prestes a acertar o axioma e expressar sua opiniao
de que o justo seria ¡§antes nunca do que tarde¡¨, quando o estranho
o interrompeu.
¡X Mas tens os mesmos interesses que tinhas antes, nao? ¡X resumiu o
estranho, procurando com olhos cortantes o rosto do Sr. Bumble, ao notar
que ele erguera o pescoco ao ouvir a pergunta. ¡X Responda com sinceridade,
senhor, percebes o quanto te conheco.
¡X Creio que um homem casado ¡X respondeu o Sr. Bumble medindo
o estranho da cabeca aos pes ¡X nao e menos interessado que o solteiro. Os
funcionarios da paroquia nao recebem o suficiente para recusar um pagamento
extra, desde que proveniente de atividade civica e apropriada.
O estranho sorriu e balancou a cabeca, como se quisesse sinalizar que
nao se enganara com o homem. Depois, fez soar a campainha.
¡X Torna-lhe a encher o copo ¡X disse o estranho ao taberneiro ¡X,
com algo quente e forte. Assim e que gostas, nao?
OLIVER TWIST
ÇcÇfÇi
¡X Nem tao forte ¡X respondeu Bumble, com uma discreta tosse.
O taberneiro sorriu e deixou o lugar, voltando logo com um jarro de uma
bebida que, ao primeiro trago, fez os olhos do Sr. Bumble encherem-se de
lagrimas.
¡X Agora ouca-me ¡X disse o estranho, enquanto fechava a porta e as
janelas. ¡X Cheguei hoje a sua procura. O dia ajudou-me, fazendo nossos
caminhos se encontrarem. Responda-me logo, pois desejo encontrar um
lugar para pousar antes que escureca; detesto a escuridao quando estou
sozinho. Entendes-me?
¡X Estou a te ouvir ¡X respondeu o Sr. Bumble ¡X, mas talvez seja
exagero dizer que o entenda.
¡X Preciso de algumas informacoes ¡X continuou o estranho. ¡X Naturalmente,
pagarei por elas, e certo. Comecemos com isso.
Enquanto falava, o estranho empurrou com discricao para seu companheiro
um par de moedas. Depois de convencer-se de sua autenticidade, o
Sr. Bumble guardou-as satisfeito no colete e entao o homem continuou:
¡X Force a memoria, vejamos, ha doze anos, no inverno...
¡X Ha bastante tempo ¡X disse Bumble ¡X, certo, lembro-me.
¡X O sitio e o asilo.
¡X Certo.
¡X De noite.
¡X Sim.
¡X O lugar e o maldito buraco onde mulheres dao a luz criancas barulhentas
que serao entregues aos cuidados da paroquia.
¡X O aposento em que nascem as criancas ¡X disse o Sr. Bumble, sem
contudo mostrar-se tao excitado quanto o outro.
¡X Sim ¡X respondeu o estranho ¡X, ali nasceu um garoto.
¡X Muitos garotos ¡X ajuntou o Sr. Bumble, balancando a cabeca muito
desapontado.
¡X Ao diabo! ¡X gritou o estranho. ¡X Falo de um de faces doceis e
palidas, um que foi aprendiz de um fabricante de caixoes e que, depois,
suponho que tenha fugido para Londres.
¡X Estas a falar de Oliver, do pequeno Twist; recordo-me dele, claro,
um pelintra da pior especie, o tal...
¡X Nao e sobre ele que desejo ouvir, ja sei demais acerca do diabrete,
quero que me digas para onde foi a mulher que cuidou da mae dele.
¡X Onde ela esta? ¡X repetiu Bumble, faceiro por conta da bebida ¡X
suponho que nao esteja em lugar algum.
CHARLES DICKENS
ÇcÇfÇj
¡X O que queres dizer? ¡X perguntou o estranho com modos rudes.
¡X Ela morreu no ultimo inverno ¡X respondeu-lhe Bumble.
Ao ter essa informacao, o estranho olhou-o fixamente, ate que seus
olhos tornaram-se muito distantes, como se estivessem afogados em pensamentos
profundos. Por fim, respirou mais levemente e afirmou que
aquilo nao era la grande coisa; enfim, aprontou-se para sair.
No entanto, o esperto Bumble viu na situacao a oportunidade de descobrir
o segredo que sua companheira, tao diligentemente, guardava.
Justamente no dia da morte da velha Sally, pedira a mao da Sra. Corney,
evento que o fazia lembrar-se de tudo. A esposa nunca lhe contou o assunto
do coloquio que tivera com a velha moribunda, mas ele estava certo
de que se tratava de algo ligado a mae de Oliver.
Refeita a memoria, Bumble informou ao estranho que sabia de uma
senhora que podia lhe dar preciosas informacoes sobre a mulher que cuidara
da mae do pequeno.
¡X Onde posso encontra-la? ¡X respondeu o estranho de imediato, deixando
claro que sua ansiedade tinha se reacendido.
¡X Posso fazer o contato ¡X ofereceu-se Bumble.
¡X Para quando? ¡X replicou o estranho no mesmo instante.
¡X Amanha ¡X garantiu Bumble.
¡X Entao, traga tal pessoa neste endereco ¡X disse o estranho, enquanto
rabiscava tremulamente num papel o endereco de um casebre a beira
do rio. ¡X Venha as nove da noite. E de seu interesse que ninguem mais
saiba da nossa conversa.
Com isso, os homens se separaram sem qualquer outra cerimonia que
a confirmacao do horario do encontro.
Ao observar o endereco, o administrador do asilo notou que nao havia
nome algum na folha. Como o estranho nao havia se distanciado muito,
resolveu alcanca-lo para sanar a duvida.
¡X O que mais deseja o senhor ¡X gritou o estranho quando Bumble
tocou seu braco.
¡X Perdao, senhor, mas esqueceste de me dizer a tua graca.
¡X Monks.
Capitulo XXXVIII
Que conta o coloquio noturno entre o Sr. e a Sra. Bumble e Monks.
O Sr. e a Sra. Bumble deixaram a rua principal da cidade, rumo a um
amontoado de casebres erguidos em um lodacal a beira do rio, em meio a
uma noite cheia de breu e chuvosa. As capas puidas e sujas que cobriam
serviam nao apenas para proteger-lhes da chuva, como tambem para
oculta-los dos olhos curiosos dos pedestres.
O marido empunhava uma lanterna cuja luz nao iluminava um passo
sequer e caminhava a frente, deixando que a mulher se guiasse, atraves
da lama, pelos sulcos de suas pegadas no chao; caminhavam envoltos em
profundo silencio. As vezes, Bumble voltava o pescoco para certificar-se
de que, de fato, sua esposa o seguia; quando a percebia quase colada as
suas costas, apertava o passo novamente.
O bairro era conhecido por abrigar pelintras de toda especie, que tentavam
esconder o fato de que viviam de furtos e trapacas. Tratava-se de
um amontoado de casebres, erguidos sem qualquer ordem ou cuidado,
seguindo a margem do rio. Aqui e ali, barcos socobravam na beirada lamacenta
e alguns remos e cordoes pareciam deixar, a primeira vista, a
impressao de que os moradores daqueles casebres tiravam seu sustento
das aguas do rio; uma olhadela, contudo, no estado daquelas pecas deixava
claro que tinham sido largadas ali apenas para despistar um intruso
dos verdadeiros negocios dos moradores da vila.
Uma antiga fabrica, outrora lugar de trabalho para muitos moradores
do local, erguia-se arruinada ao centro dos casebres. Os pilares, desde ha
muito tempo carcomidos pelos ratos e devorados por vermes e pela umidade,
apodreciam de maneira a produzir uma vista triste e desolada.
A frente dessa construcao, o honroso casal estacou e, na mesma hora,
a chuva e o vento comecaram a castigar quem por ali nao estivesse
abrigado.
OLIVER TWIST
ÇcÇgÇc
¡X O local deve ser este ¡X afirmou Bumble a observar o papel amassado
que trazia na algibeira.
¡X Quem vai la? ¡X gritou uma voz vinda do alto.
O Sr. Bumble ergueu a cabeca e avistou alguem a beira de uma porta.
¡X Apenas um instante ¡X gritou a voz ¡X, que ja me encontro com os
senhores. Com isso, a porta fechou-se e a voz desapareceu.
¡X Aquele e o cavalheiro? ¡X perguntou a gentil esposa do Sr. Bumble.
Com a cabeca, Bumble respondeu-lhe afirmativamente.
¡X Nao te va esquecer da nossa combinacao ¡X disse a matrona ¡X e
abras a boca apenas se nao tivermos outro jeito; nao va nos comprometer!
Bumble, arrependido por ter aceito o convite, ia logo palestrar sobre a
desvantagem que seria falar qualquer coisa para o estranho quando justamente
Monks apareceu por tras de uma pequenina porta lateral.
¡X Entrem ¡X gritou impaciente ¡X, nao me deixem esperando!
Sem qualquer outro convite, a mulher tomou a frente e entrou. Bumble,
sem a empafia que o caracterizava, colocou-se logo para dentro, tambem,
como se nao quisesse ficar para tras.
¡X Que inferno fazes ai fora na chuva? ¡X gritou Monks ao Sr. Bumble;
que batera a porta ao entrar.
¡X Estavamos apenas apreciando a paisagem ¡X respondeu Bumble,
cheio de apreensao a olhar cheio de apreensao o homem.
Depois desse agradavel coloquio, Monks encarou a mulher com tal
insistencia que ela, sempre tao destemida, voltou os olhos ao chao.
¡X E esta a mulher, entao? ¡X inquiriu Monks.
¡X Ca esta ela ¡X replicou Bumble, sem se esquecer das recomendacoes
da esposa.
¡X Achas que uma mulher nao e capaz de guardar um segredo, nao? ¡X
afirmou a senhora, devolvendo-lhe o olhar intimidador.
¡X Um, ao menos, elas o guardam com fervor ¡X respondeu Monks.
¡X Qual? ¡X retornou a mulher.
¡X Um atentado a sua honra; nao ira a mulher revelar algo que pode
complica-la perante a lei e a sociedade; compreendes-me, madame?
¡X Nao ¡X respondeu a mulher, vagamente corada.
¡X E certo que nao ¡X continuou Monks ¡X, nem poderia.
Com um sorriso ironico, o homem levou-os a um outro aposento, bastante
largo mas um tanto baixo. No caminho, o casal assustou-se com o
estrondo de um trovao que fez todo o predio tremer.
CHARLES DICKENS
ÇcÇgÇd
¡X Detesto este som! ¡X berrou o homem. ¡X Odeio ouvir esse ruido a
invadir buracos e covas.
Depois de um minuto de silencio, o homem retirou as maos do rosto e
o Sr. Bumble assustou-se com a palidez e o terror que assaltaram a face do
estranho.
¡X Nao de atencao ¡X exclamou Monks ao ver o susto do Sr. Bumble
¡X a esses meus achaques; sao os trovoes, muitas vezes, que os causam.
Depois disso, Monks levou-os a uma sala e acendeu um palido bico de gas.
¡X Quanto mais rapido ¡X exclamou Monks ao ver o casal instalado ¡X
formos ao assunto, tanto melhor. A senhora sabe do que se trata, espero?
Posto que a pergunta fosse dirigida ao Sr. Bumble, sua esposa adiantou-
se e afirmou ter conhecimento de tudo.
¡X A senhora esteve com a megera moribunda e ela lhe fez uma confissao...?
¡X A respeito da mae do garoto que o senhor citou.
¡X Primeiro, preciso saber qual a natureza dessa confissao ¡X exclamou
Monks.
¡X Isso depois ¡X respondeu a mulher ¡X, primeiro e preciso saber
quanto vale a informacao.
¡X So no inferno pode-se saber o valor de algo sem conhecer sua natureza
¡X respondeu o homem.
¡X O senhor ja deve ter estado la ¡X replicou a mulher, a quem nao
faltava o espirito, como bem podia observar o atonito marido.
¡X Bah! ¡X grunhiu Monks. ¡X Valera algum dinheiro?
¡X Pois se valera! ¡X foi o que ouviu como resposta.
¡X Roubaram-lhe algo, nao foi? Algo que ela trazia junto de si...
¡X Faca-me uma oferta ¡X interrompeu-lhe a senhora ¡X, ja sei o suficiente
para concluir que o senhor e o homem a quem devo falar.
Bumble, a quem a mulher nunca dera a confianca de saber o segredo,
ouviu todo o coloquio com os olhos arregalados; quando a mulher fez a
proposta, seu indisfarcavel espanto tornou-se ainda maior.
¡X Quanto vale ao senhor o segredo? ¡X insistiu a senhora.
¡X Tanto valera nada quanto posso pagar vinte libras por ele ¡X admitiu
o homem, conte-mo primeiro, depois discutiremos o valor.
¡X Por vinte e cinco libras em ouro, dir-te-ei o que quiseres saber ¡X
propos a mulher.
¡X Vinte e cinco libras! ¡X espantou-se Monks.
OLIVER TWIST
ÇcÇgÇe
¡X Fui clara ¡X continuou a mulher ¡X, nao se trata de nenhuma fortuna.
¡X Nao sera uma soma alta demais para um segredo que, depois de tantos
anos, podera nao ter mais valor? ¡X murmurou Monks, impaciente.
¡X Talvez tenha a revelacao as mesmas qualidades de um bom vinho
¡X sorriu a senhora.
¡X Mas e se nao houver valor algum no segredo? ¡X perguntou Monks
hesitante.
¡X Voce pode recupera-lo com toda a facilidade ¡X respondeu a Sra.
Bumble. ¡X Sou uma mulher e estou sozinha e desprotegida.
¡X Nao esta sozinha, estou aqui contigo ¡X garantiu Bumble em uma
voz temerosa e palida ¡X, estou aqui ao seu lado ¡X exclamou, batendo os
dentes. ¡X O Sr. Monks e um fidalgo, jamais usaria de violencia contra
pessoas da paroquia como nos.
¡X E melhor que te cales ¡X respondeu a Sra. Bumble ¡X, pois nao
passas de um imbecil.
¡X Se nao te puderes calar ¡X asseverou irritado Monks ¡X, e melhor
que fales baixo; pelo jeito, este e seu marido, nao? ¡X perguntou a senhora.
¡X Pois e ¡X admitiu rindo a Sra. Bumble.
¡X Desde que entraram, achei que fossem casados; a verdade e que
prefiro tratar com duas pessoas, se ambas tiverem os mesmos objetivos;
acreditem!
Apos dizer isso, Monks meteu as maos na algibeira da capa e sacou
uma bolsa com vinte e cinco moedas de ouro, mostrando-as a mulher.
¡X Agora ¡X afirmou o homem ¡X, tome-as e, assim que estourar o
trovao que esta prestes a cair sobre o telhado, continue a historia.
Quando o som do trovao os ensurdeceu, os tres estavam tao proximos
para ouvir a narrativa da mulher que os rostos quase se encontravam.
A lampada alumiava apenas os rostos, deixando o resto do aposento
ao escuro.
¡X Quando a mulher que conheciamos por Sally ¡X comecou a
governanta ¡X morreu, estavamos apenas eu e ela em uma saleta...
¡X Nao havia mais ninguem? ¡X interrompeu-lhe Monks. ¡X Ninguem
mais a escutou?
¡X Nenhuma alma sequer ¡X respondeu a Sra. Bumble. ¡X Eu estava
ao pe do corpo quando a morte a levou para junto de si.
¡X Otimo ¡X exclamou Monks satisfeito ¡X, continue.
¡X Ela falou de uma jovem que tinha trazido ao mundo um bebe, nao
CHARLES DICKENS
ÇcÇgÇf
apenas naquele mesmo quarto como na propria cama em que ela estava
moribunda.
¡X Hum ¡X vociferou Monks ¡X, diabos, como sao as coisas!
¡X A crianca e aquela que disseste o nome ontem ¡X continuou a mulher
¡X, e a mae e a moca que fora roubada por Sally.
¡X Em vida? ¡X perguntou Monks.
¡X Nao, quando morta ¡X garantiu a matrona ¡X, ela roubou do corpo
aquilo que a jovem pedira-lhe que guardasse para o filho.
¡X E o vendeu? ¡X perguntou Monks, irritado. ¡X Vendeu-o para quem
e em que circunstancia?
¡X Depois de admitir-me, com muito sofrimento, o que fizera ¡X ela
expirou.
¡X E morreu? ¡X gritou Monks. ¡X Estas mentindo, nao consinto que
mintas para mim, corto-lhe o pescoco se nao me disseres o que a mulher
revelou antes de morrer.
¡X Nem mais uma palavra ¡X continuou a mulher, sem mostrar, ao
contrario do marido, qualquer sinal de intimidacao pela reacao violenta
do homem; no entanto, agarrou-me e vi que, em uma de suas maos, havia
um pedaco de papel amassado e sujo.
¡X E qual era o conteudo? ¡X exclamou Monks.
¡X Nada ¡X respondeu a mulher. ¡X Tratava-se de uma duplicata de
penhor.
¡X De qual casa? ¡X indagou Monks.
¡X Dir-te-ei no momento conveniente ¡X garantiu a mulher. ¡X Ao
precisar de dinheiro, a mulher penhorou o objeto e passou o resto dos
anos economizando para resgata-lo, mas nao conseguiu a cifra necessaria;
quando morreu, faltavam apenas dois dias para o final do prazo. Achando
que talvez me fosse util, fui ate a casa e resgatei-o.
¡X Onde ele esta agora? ¡X inquiriu Monks, cheio de pressa.
¡X Ca esta ¡X adiantou-se a senhora, arremessando um pequeno pacote
a mesa, muito aliviada por se livrar daquilo. Dentro, havia uma pequena
caixa com dois aneis de noivado.
¡X O nome Ines ¡X continuou a Sra. Bumble ¡X esta gravado no interior
do anel. ¡X Ha um espaco vazio e depois uma data, exatamente um
mes antes do nascimento da crianca, conforme constatei.
¡X E tudo o que tens? ¡X perguntou Monks, depois de observar satisfeito
o embrulho.
¡X Tudo ¡X respondeu a matrona.
OLIVER TWIST
ÇcÇgÇg
O Sr. Bumble suspirou aliviado ao notar que nada havia sido dito acerca
das vinte e cinco libras e ate ousou enxugar o suor que correra por seu
rosto durante o coloquio.
¡X Nada mais sei sobre essa historia ¡X disse a senhora, depois de uma
curta pausa ¡X e nem desejo saber, mas gostaria, se me deres permissao,
de fazer duas perguntas.
¡X Pergunte ¡X respondeu surpreso Monks ¡X, mas nao garanto que
lhe vou responder.
¡X E isso que o senhor queria de mim? ¡X inquiriu a matrona.
¡X E ¡X respondeu Monks. ¡X E qual a outra pergunta?
¡X O que queres com isso? Pretendes me prejudicar?
¡X Nao prejudicarei nem a senhora, nem a mim; observem isso, mas
nao se mexam, se quiserem continuar vivos!
Ao cabo disso, Monks ergueu um anel de ferro que jazia por debaixo da
mesa e abriu uma porta aos pes do Sr. Bumble, que deu um pulo de susto.
¡X Olhem para baixo ¡X ordenou Monks iluminando o buraco. ¡X
Nao tenham receio, se eu quisesse, podia te-los deixado cair quando sentaram
sobre a portinhola.
Sentindo-se em seguranca, tanto a Sra. quando o Sr. Bumble aproximaram-
se da portinhola. Por baixo, enxergaram a corrente tormentosa
da agua, que corria e chocava-se violentamente contra as pilastras. Como
houvera ali, anos atras, uma casa de maquinas, as ferramentas dificultavam
um pouco a passagem da agua que, depois de vencidos os obstaculos,
continuava violentamente a correr no escuro.
¡X Se um homem e arremessado neste inferno, onde estara amanha?
¡X perguntou Monks.
¡X Vinte milhas correnteza abaixo e todo feito em pedacos ¡X respondeu
Bumble.
Monks tirou da algibeira o pequeno embrulho, atou-o a um peso e
arremessou-o a agua.
Os tres se entreolharam aliviados.
¡X Acabou-se! ¡X exclamou Monks a fechar com violencia a portinhola.
¡X Que o mar cuide dos mortos e de todos os seus pertences; acredito que
com isso nao temos mais o que conversar.
¡X Certo ¡X observou cerimonioso o Sr. Bumble.
¡X O senhor mantera o segredo, nao? ¡X inquiriu Monks. ¡X Quanto a
sua esposa, sei que nao dara com a lingua nos dentes.
CHARLES DICKENS
ÇcÇgÇh
¡X E de meu interesse que a coisa morra aqui.
¡X E para o bem de voces ¡X respondeu Monks. ¡X Agora, saiam o
mais rapido que puderem.
Aqui, o coloquio se encerrou.
Seguido da esposa, Bumble correu a sair. Monks, por sua vez, foi ate a
porta para se certificar de que os dois partiriam mesmo. Atravessaram
um aposento, atentos para nao cair em alguma possivel trapaca. Livre na
escuridao, o casal apenas acenou para seu misterioso colega. Quando os
dois desapareceram, Monks chamou por um rapaz que ficara oculto no
comodo de baixo.
Capitulo XXXIX
Em que reaparecem alguns nobres e respeitaveis personagens.
Sikes, na noite seguinte aquela em que se deu a negociata, despertou e
perguntou as horas.
A pergunta nao fora feita no mesmo casebre em que Sikes habitava
antes do passeio a Chertsey, mas em outra residencia do mesmo bairro.
Tratava-se de um pardieiro sujo e mal iluminado, erguido em uma
travessa erma e escura. A completa falta de conforto e a ausencia de
mobilia, alem da carencia de roupas sobressalentes e do estado cadaverico
de Sikes, denunciavam que o fidalgo perdera um pouco da sua
antiga nobreza.
O pelintra jazia na cama, enquanto o cao acercava-se e, as vezes, grunhia
ao ouvir algum ruido vindo da rua. Proxima a janela, uma mulher
costurava o velho colete do ladrao. Encontrava-se, tambem, tao magra e
palida que apenas a voz com que respondera a pergunta possibilitou sua
identificacao: trata-se da mesma Nancy que ja apareceu nesta historia.
¡X Pouco deve ter passado das sete ¡X respondeu a garota. ¡X Como
esta agora a noite, Bill?
¡X Fraco feito a agua ¡X respondeu Sikes. ¡X Vem ca e me ajuda a sair
desta maldita cama.
Nem a doenca fizera arrefecer o temperamento terrivel de Sikes; enquanto
a rapariga ajudava-o, ele a xingou e golpeou-lhe o pescoco, acusando-
a de maus-tratos.
¡X Se nada mais tens a me dizer ¡X disse Sikes ¡X, deixa de choramingos
e ponha-te daqui para a rua.
¡X Bill, nao vais me maltratar esta noite, certo? ¡X implorou a rapariga,
estendendo-lhe o braco.
¡X Por que eu nao deveria?
¡X Ora ¡X continuou a rapariga com tal ternura feminina que ate sua
OLIVER TWIST
ÇcÇhÇa
voz encheu-se de docura ¡X, porque passei todas essas noites a cuidar de
ti e a amparar-te enquanto a doenca nao te deixava levantar; se considerares
isso, nao me maltratarias como acabaste de fazer.
¡X Certo, eu nao te maltrataria. Mas olha que estas a chorar outra vez.
¡X Nao te ocupes de mim ¡X respondeu a moca caindo sentada a uma
cadeira ¡X, pois logo me recupero.
¡X Logo te recuperas de que? Deixe de frescuras e levante agora mesmo.
Normalmente, apenas a ameaca teria surtido o efeito esperado. No
entanto, a rapariga estava tao exausta que tombou desmaiada. Como acreditava
que o caso nao passasse de mais um dos achaques de Nancy, o
pelintra lancou-lhe algumas maldicoes. Como tambem nao obtivesse sucesso,
resolveu sair e chamar por socorro.
¡X O que esta havendo? ¡X, perguntou Fagin a porta.
¡X Nancy teve algo ¡X respondeu Sikes. ¡X E melhor ajudar-me do
que ficar ai a fazer caretas.
Surpreso, Fagin saiu a socorrer a rapariga, enquanto seu leal amigo, o
Sr. Jack Dawkins (conhecido tambem pela alcunha de Matreiro), agarrou
um pacote das maos de Carlinhos Bates, tirou dele uma garrafa e
deitou um gole na boca da paciente, nao sem antes experimentar da bebida
para evitar qualquer equivoco.
¡X Faca ar no rosto dela com algo, Carlinhos ¡X exclamou o Sr. Dawkins
¡X, e voce, Fagin, aperte-lhe as maos enquanto Bill desaperta as amarras
da saia.
Tais procedimentos, aplicados todos com muita competencia, principalmente
o que coubera a Bates, que parecia divertir-se com a funcao,
terminaram por surtir efeito e despertar a rapariga. Quando ela finalmente
se restabeleceu, Sikes manifestou sua surpresa pela entrada inesperada
dos companheiros.
¡X Qual maldicao guiou-os ate aqui? ¡X perguntou-lhes.
¡X Maldicao alguma, meu caro, pois elas nao trazem boas noticias. Matreiro,
tire da sacola o que conseguimos esta manha com o nosso oficio.
Obediente, o Matreiro desatou o embrulho e entregou-as, uma por vez,
as mercadorias que trazia a Bates, que, sempre anunciando-lhes a raridade
e excelencia, ia colocando-as sobre a mesa.
¡X Um empadao de coelho, Bill ¡X anunciou o fidalgo ¡X, cha e acucar dos
melhores, dois paes frescos, queijos e a melhor bebida que jamais provaste.
Ao dizer isso, Bates sacou da algibeira uma garrafa de vinho enquanto
CHARLES DICKENS
ÇcÇhÇb
o venerando Dawkins estendia uma dose de genebra ao doente, que, sem
demora, engoliu-a de todo.
¡X E desse jeito que iras te recuperar, Bill ¡X exclamou Fagin.
¡X O que dizes? Podia eu ter expirado vinte vezes que nao farias caso;
como deixas um amigo abandonado assim por tanto tempo?
¡X Vejam, rapazes, as gentilezas que nos, que trouxemos todas essas
delicias, temos que ouvir!
¡X Os generos sao de fato preciosos ¡X amansou Sikes ¡X, todavia, abandonaste-
me faminto e adoentado, como se eu fosse aquele cao; aquiete-o,
Bates!
¡X Jamais vi um cao tao divertido ¡X gritou o senhor Bates, enquanto
atendia ao pedido do companheiro. ¡X Percebe de longe o cheiro da comida;
far-nos-ia rico se subisse ao palco de algum velho drama.
¡X Fique quieto ¡X gritou Sikes, enquanto o cao se metia debaixo da
cama. ¡X O que dizes em sua defesa, pelintra?
¡X Por conta de um servico, precisei ficar longe de Londres por algum
tempo ¡X respondeu-lhe o judeu.
¡X E nos outros dias ¡X continuou Sikes ¡X, onde te meteste enquanto
eu delirava nessa maldita cama?
¡X Juro, Sikes, que nao pude te socorrer; nao posso explicar assim entre
tanta gente, mas juro pela minha honra que nao te podia ajudar!
¡X Juras por que? ¡X exclamou Sikes, com visivel desgosto. ¡X Traze-
me algo que possa tirar esse mal-estar da garganta antes que eu
morra!
¡X Nao te irrites ¡X correu o judeu a atende-lo ¡X, em momento algum,
esqueci-me de ti.
¡X Disso tenho certeza; enquanto eu ardia aqui, estiveste a tramar-me
planos; logo que se recuperar, Bill fara isso, Bill concluira aquilo, Bill levara
a cabo qualquer coisa; nao fosse pela rapariga, eu ja estaria enterrado.
¡X Claro, Bill, se nao fosse a rapariga; mas so a tiveste ao pe por causa
do pobre Fagin.
¡X Ele esta certo ¡X afirmou Nancy ao se aproximar.
Nancy mudara o rumo da conversa; aos poucos, enquanto os garotos
serviam a rapariga algo de beber, Fagin conseguiu acalmar Sikes, estendendo-
lhe a aguardente e rindo a socapa das maldicoes e grosserias que o
ladrao proferia.
¡X Tudo ficara certo ¡X disse Sikes ¡X, contanto que me arranjes algum
para esta noite.
OLIVER TWIST
ÇcÇhÇc
¡X Nao tenho uma moeda sequer ¡X replicou Fagin.
¡X Estao todas em casa ¡X continuou Sikes ¡X, busque-as para mim!
¡X Todas! Nao sao suficientes ¡X exclamou Fagin abrindo as maos ¡X
nem para...
¡X Nao desejo saber o tamanho da sua fortuna; tu mesmo te demorarias
a descobrir, de tao grande; apenas quero um pouco para esta noite.
¡X Certo, certo ¡X respondeu Fagin ¡X, logo enviarei o Matreiro para
pega-las.
¡X Nao dara certo! O Matreiro e esperto demais e acabara se perdendo
no caminho. Mandarei Nancy buscar o dinheiro; enquanto fico a aguardala,
deitar-me-ei um pouco.
Apos regatearem ambos, fixaram a quantia e, enquanto Nancy se preparava
para busca-la, o Matreiro e Bates se colocaram a guardar os mantimentos.
Fagin, entao, despediu-se de seu gentil amigo e saiu a rua acompanhado
por Nancy e pelos outros.
Logo, chegaram a casa, surpreendendo o Sr. Chitling a perder seus
ultimos tostoes na decima quinta partida de cartas que empreendia contra
Tobias Crackit. Envergonhado, Chitling levantou-se e, tentando disfarcar,
perguntou por Sikes.
¡X Veio alguem aqui, Tobias? ¡X inquiriu Fagin.
¡X Ninguem! Devias-me ¡X respondeu Tobias ¡X pagar-me melhor
por cuidar tanto tempo da casa. Que coisa mais cacete ter que ficar a roda
deste garoto!
Falando assim, Tobias Crackit ajeitou o casaco e saiu a rua, enquanto
Tom Chitling argumentava que ele, e nao Tobias, sofrera por conta da
desagradavel companhia.
¡X Es um bufao, Tom ¡X disse Carlinhos Bates.
¡X Qual o que! ¡X Respondeu Chitling. ¡X Sou, Fagin?
¡X Es um genio ¡X respondeu o judeu, batendo-lhe nos ombros e piscando
em direcao ao resto do bando.
¡X Crackit e um nobre, nao e, Fagin? ¡X perguntou Tom.
¡X Ele o e, meu caro ¡X respondeu o judeu.
¡X E e conveniente ter com ele, nao e, Fagin? ¡X continuou Tom.
¡XE muito conveniente ¡X admitiu o judeu. ¡X Estao com ciumes de
tua fortuna.
¡X E certo que lhe poderei arrancar algum dinheiro da proxima vez
¡X murmurou Tom.
CHARLES DICKENS
ÇcÇhÇd
¡X Sem a menor duvida; logo recuperaras o teu dinheiro! Tom, Matreiro,
Carlinhos! Ja sao quase dez horas; voces nao vao trabalhar? ¡X gritou o judeu.
Atentos ao que dissera Fagin, os rapazes apanharam os chapeus e sairam,
passando boa parte do caminho a rirem de Tom Chitling. Mas a
verdade e que o pobre em nada era diferente dos outros que tencionavam
entrar para a nobreza representada por Tobias Crackit.
¡X Agora que se foram ¡X Fagin aproximou-se de Nancy ¡X, verei se
arranjo o dinheiro; tenho ca um movel em que guardo uns poucos pertences
que os rapazes me trazem; nada de minha propriedade, pois nao
tenho propriedades. Oh! Caluda! Vejamos quem se aproxima...
A rapariga, a principio, nao pareceu incomodar-se com a chegada do
forasteiro; ao ouvir-lhe a voz, no entanto, saltou, levantou-se e atirou para
longe o chapeu. O judeu, voltando-se de imediato para a porta, nao percebeu
o gesto da moca.
¡X Bah! E o homem que eu esperava! ¡V exasperou-se o judeu. ¡X Nao
fale palavra acerca do dinheiro, Nancy.
Aproximando os dedos dos labios, o ladrao apanhou uma vela e acercou-
se da porta. Quase no mesmo instante, o homem adentrou o aposento
e colocou-se proximo a rapariga.
Era Monks.
¡X E apenas uma de minhas criancas ¡X adiantou-se o judeu ao perceber
que Monks se incomodara com a presenca estranha. ¡X Nao se mova, Nancy.
Posto Monks erguesse o braco em sua direcao, Nancy nao deu mostras
de querer sair do aposento. Fagin, temeroso de que, a uma ordem sua, a
garota desse com a lingua nos dentes, convidou Monks a outro aposento.
A rapariga se descalcou, galgou as escadas e meteu o ouvido, ansiosa
por conhecer a conversa, a porta do aposento em que os dois nobres colegas
conversavam.
¡X Algo de novo? ¡X inquiriu o judeu.
¡X Sim.
¡X Boas novidades? ¡X continuou Fagin, procurando ser discreto para
nao irritar o visitante.
¡X Nem tao mas ¡X respondeu Monks. ¡X Acertei tudo de pronto, preciso
apenas conversar com voce.
Dito isso, os dois homens sairam. O aposento ficou vazio por um quarto
de hora. Agil, Nancy ja voltara ao sitio onde os homens a haviam largado.
Quando o visitante se foi, Fagin voltou e pos-se a procurar o dinheiro,
enquanto Nancy se arrumava para sair.
OLIVER TWIST
ÇcÇhÇe
¡X Estas muito palida, Nancy ¡X exclamou o Judeu.
¡X Palida? ¡X repetiu a rapariga, a olhar para ele.
¡X Deveras; o que aconteceu?
¡X Fiquei metida aqui neste calor por horas; seja gentil e me mande
logo de volta.
Fagin suspirava a cada moeda que metia nas maos de Nancy. Depois,
separaram-se com um ligeiro ¡§boa- noite¡¨.
Na rua, a garota pos aturdida a correr em direcao contraria ao local
onde a esperava Sikes. Depois de correr a toda brida para la e para ca,
estacou, levou as maos ao rosto e deitou a chorar, desesperada por nunca
conseguir cumprir aquilo que pretendia a si mesmo.
Talvez as lagrimas tenham recuperado o animo da rapariga, pois ela
virou-se e deitou a correr, tao rapido quanto antes, para chegar logo a
casa onde o pelintra descansava.
Se Nancy estava nervosa, Sikes nao o percebeu. Apenas levantou a cabeca
e, quando soube que a rapariga trazia o dinheiro, voltou a dormir.
Para Nancy, o efeito do dinheiro nas maos de Sikes foi benefico, pois o
ladrao passou todo o tempo as voltas com as bebidas e sequer percebeu a
agitacao que tomava conta da rapariga e que lhe denunciava a intencao
de cometer algum ato ousado. Se estivesse em companhia do arguto Fagin,
seria desmascarada, mas ao lado de Sikes, que nunca lhe dera muita atencao,
nao corria o menor risco.
Quando o sol se ja punha, o rosto da rapariga tornou-se ainda mais
sombrio, e o proprio Sikes, embriagado, espantou-se.
O pelintra, enfraquecido ainda pela febre, deitado a cama, quando notou
a estranheza de Nancy, preparava-se para pedir-lhe o terceiro trago de
genebra.
¡X Que diabo estas a sofrer, Nancy? ¡X perguntou-lhe a erguer os bracos.
¡X Nao tenho coisa alguma, por que me encaras com esses modos?
¡X O que esta a te incomodar? ¡X perguntou Sikes, balancando-a.
¡X Um punhado de coisas ¡X respondeu a garota ¡X, mas nao te incomodes
com isso.
O docil tom com que a rapariga exclamou essas ultimas palavras impressionou
Sikes ainda mais do que a horrivel figura que ele vira em seu
rosto.
¡X Pois vou te dizer o que tens ¡X exclamou o pelintra. ¡X Se nao apanhaste
a febre que me abateu, entao planejas algo; nao, nao farias isso!
CHARLES DICKENS
ÇcÇhÇf
¡X O que? ¡X perguntou Nancy.
¡X Nao ¡X continuou Sikes murmurando consigo mesmo ¡X, nao existe
rapariga mais dura que ela; de outra forma, eu lhe teria cortado a
garganta. Nao, esta mesmo com febre...
Certo disso, o ladrao tomou de uma so vez a bebida e, depois, amaldicoando-
a, pediu o remedio. A garota colocou o copo na boca do ladrao e
esperou que ele bebesse todo o conteudo.
¡X Agora, torna-te a expressao de sempre! Do contrario, farei com que
nunca mais te reconhecas a ti mesma!
A rapariga obedeceu. Sikes tomou-lhe o braco e, enquanto tentava dormir,
abriu e fechou os olhos diversas vezes. Depois, tentou erguer-se, mas
caiu prostrado e ferrou em um sono profundo.
¡X O laudano por fim fez efeito ¡X murmurou a rapariga a erguer-se
da cama. ¡X Espero que eu ainda possa partir.
Ao passo que se preparava para sair, Nancy espiava o sono do bandido
a todo momento, como se, mesmo tendo tomado o veneno, a pesada mao
dele estivesse para lhe cair nos ombros. Antes de sair, ainda beijou os
labios de Sikes; depois, cerrou a porta e correu apressada a rua.
Quando cruzou a viela, o vigia anunciou as nove e meia.
¡X Ha tempo que a meia hora ja se passou? ¡X perguntou a rapariga.
¡X Falta apenas um quarto ¡X respondeu o vigia.
¡X Tenho menos de uma hora ¡X murmurou Nancy a correr.
As lojas ja se tinham fechado quando o relogio bateu as dez e aumentou
ainda mais o nervosismo da rapariga. As carreiras, ela tentava avancar
entre a multidao que galgava as ruas.
¡X Vai la uma doida ¡X dizia a gente ao ve-la em disparada.
Ao atingir, finalmente, o bairro mais rico da cidade, a rapariga encontrou
as ruas quase desertas, o que terminou por causar ainda mais estranheza
aos poucos pedestres que se encontravam por ali. Alguns iam atras
dela, curiosos por ver o destino daquela disparada; outros apenas acompanhavam
a corrida com os olhos.
Quando atingiu seu destino, contudo, Nancy estava sozinha.
Tratava-se de uma residencia de familia. Nancy estacou e percebeu
que o relogio soava as onze horas. Depois de olhar a roda, entrou em
direcao as escadas.
¡X Por quem procuras, minha jovem? ¡X perguntou uma rapariga que
a observava por tras de uma porta.
OLIVER TWIST
ÇcÇhÇg
¡X Uma senhorita que reside nesta casa ¡X respondeu-lhe Nancy.
¡X Uma senhorita ¡X repetiu a moca cheia de desprezo. ¡X Que senhorita?
¡X A Srta. Maylie ¡X disse Nancy.
A jovem apenas repetiu o olhar de desdem e saiu atras de um homem.
Quando ele apareceu, Nancy repetiu o chamado.
¡X Quem deseja ter com ela? ¡X perguntou o criado.
¡X Nao ha necessidade de dize-lo ¡X respondeu Nancy.
¡X E de que se trata? ¡X insistiu o homem.
¡X Apenas preciso falar-lhe ¡X reiterou Nancy.
¡X Ora, tome o seu caminho! ¡X gritou o criado.
¡X Nem voces dois conseguirao por-me fora daqui; nao ha quem possa
levar um recado entregue por uma pobre maltrapilha como eu?
Ao ouvir isso, um cozinheiro de feicoes agradaveis, que espiava tudo na
companhia de outros criados, ofereceu-se para levar a mensagem.
¡X Transmita-lhe o recado, Joe! ¡X disse o cozinheiro.
¡X E de que adiantara? ¡X replicou o criado. ¡X Acreditas mesmo que
a senhorita ira privar com um tipo como esse?
Tal comentario ouricou o animo de quatro camareiras que, de dentro da
casa, concluiram que Nancy devia logo ser posta para fora da propriedade.
¡X Tenham a piedade de transmitir meu recado a senhorita, depois,
podem fazer o que quiserem comigo.
O gentil cozinheiro intercedeu outra vez em favor de Nancy e conseguiu
que o criado levasse a mensagem para dentro da casa.
¡X E o que devo falar-lhe? ¡X perguntou o homem a subir as escadas.
¡X Diga-lhe que uma moca implora para falar com a Srta. Maylie a
sos; se o coloquio lhe nao interessar, a Srta. podera considerar-me uma
impostora.
¡X Vais meter-te em apuros ¡X disse o homem.
¡X Transmita-lhe a mensagem ¡X respondeu Nancy com aspereza ¡X,
vejamos qual sera a resposta!
O criado desapareceu e Nancy ficou estacada, a ouvir nervosa as expressoes
de desprezo que as criadas, cheias de pratica, diziam sem pudor.
Tais expressoes, alias, aumentaram de intensidade quando o homem
retornou e convidou a rapariga a entrar.
¡X Nao e negocio ser direita neste mundo ¡X exclamou uma das criadas.
Enquanto as outras criadas concordavam, Nancy seguiu o homem ate
um pequeno aposento onde ele a deixou e saiu.


Capitulo XL
Em que se continua o anterior.
Ainda que tivesse sido maltratada pela vida nas ruas de Londres, restava
a Nancy algo da dignidade natural da mulher, tanto que, quando percebeu
os passinhos que se aproximavam, encolheu-se envergonhada, como
se lhe fosse dificil falar naquelas circunstancias.
Contrapunha-se a esse nobre sentimento, porem, o orgulho, vicio tanto
dos mais baixos e miseraveis quanto das criaturas mais abastadas e bem
criadas. A amiga de ladroes e pelintras, a companheira dos enforcados, a
que vivia a aguardar a propria condenacao, mesmo esse pobre ser ainda
conservava orgulho suficiente para vencer um sentimento que, para si, tratava-
se de uma fraqueza, mas que, em verdade, era o unico que ainda a
ligava a humanidade que, desde tao cedo, ela tinha perdido.
Nancy abriu os olhos para ver que, a sua frente, postava-se uma moca
jovem e bonita; depois voltou-os ao chao e disse:
¡X Nao e nada facil privar de ti, senhorita; se eu me tivesse cansado e
partido, certamente um dia te arrependerias.
¡X Lamento pelos maus tratos que, porventura, recebeste, mas deixemos
isso de lado; dize-me por que me procuras.
O tom amavel da voz de Rosa, suas maneiras gentis e afetuosas e a
ausencia de qualquer arrogancia ou despeito em suas atitudes deixaram
a rapariga surpresa e a fizeram banhar-se em lagrimas.
¡X Oh! Senhorita! Se existissem mais pessoas como voce, nao as haveria
como eu ¡X engasgou-se Nancy, enquanto agarrava as maos de Rosa.
¡X Sente-se ¡X pediu-lhe Rosa ¡X, se precisas de algo que estiver ao
meu alcance, farei o que puder para te ajudar.
¡X Deixe-me em pe, senhorita, e nao te dirijas a mim com modos tao
afaveis sem antes saber quem eu sou; esta aquela porta cerrada?
¡X Sim ¡X respondeu Rosa, afastando-se um pouco a fim de pedir socorro
se assim precisasse ¡X, por que?
OLIVER TWIST
ÇcÇhÇi
¡X Porque ¡X continuou Nancy ¡X vou entregar-te a minha e a vida
dos outros; sou a criatura que entregou Oliver as maos de Fagin, o judeu,
quando o pequeno saiu de casa em Pentonville.
¡X Foi voce! ¡X exclamou Rosa Maylie.
¡X Sim, sou eu a infame criatura de que tens tanto ouvido falar, a que
vive desde que se conhece por gente em meio aos gatunos e ladroes das
ruas de Londres e que nunca teve melhor vida que a que eles lhe oferecem,
piedade, Senhor! Apesar de ser mais jovem do que minha aparencia
deixa perceber, digo que ate as mulheres mais miseraveis fogem da minha
presenca nas ruas.
¡X Como e triste o que me contas ¡X murmurou Rosa.
¡X Nunca deixes de agradecer, senhorita, pelas companhias que tiveste
desde a infancia e por nunca terdes sentido frio ou fome a roda de
bulhas e bebedeiras, pois e assim que tenho vivido desde que nasci.
¡X Doi-me o coracao escutar-te ¡X falou Rosa, com a voz compadecida.
¡X Que Deus a abencoe ¡X continuou Nancy. ¡X Fugi de homens que
me matarao se souberem que corri para ca contar-lhe o que ouvi; conheces
um homem chamado Monks?
¡X Nao ¡X respondeu Rosa.
¡X Pois ele conhece a senhorita ¡X exclamou a rapariga ¡X e sabe onde
moras; foi por te-lo ouvido dizer o local que pude vir ate aqui.
¡X Nunca ouvi tal nome ¡X insistiu Rosa.
¡X Talvez o conhecas por outra alcunha ¡X insistiu Nancy. ¡X Logo
depois que Oliver fora recolhido para dentro de sua casa, ouvi Fagin e
este homem conversando; pelo que sei, o homem de que estamos tratando,
Monks.
¡X Entendo ¡X confirmou Rosa.
¡X O tal Monks ¡X continuou Nancy ¡X encontrara Oliver em companhia
de dois homens. Os dois combinaram entao que se o pequeno fosse
de novo trazido a turma do judeu e, ainda mais, tornado um ladrao, Monks
o compraria para algum servico.
¡X Que tipo de servico? ¡X inquiriu Rosa.
¡X Quando eu estava a ouvir justamente isso ¡X disse Nancy ¡X, fui
surpreendida e acabei tendo que fugir; depois deste dia, nunca mais avistei
tal homem.
¡X E o que aconteceu entao?
¡X Vou revelar-te, senhorita; ontem a noite, a criatura retornou. EsCHARLES
DICKENS
ÇcÇhÇj
condi-me para novamente nao ser surpreendida e poder ouvir tudo. Ouvi
de Monks o seguinte: ¡§Entao, o unico objeto que nos serviria para identificar
o pequeno jaz no fundo do rio e a maldita bruxa esta apodrecendo
embaixo da terra¡¨. Ambos riram e se deliciaram com a vitoria. Monks,
tratando do pequeno, afirmou que, mesmo tendo conseguido o dinheiro
dele, preferia usa-lo de outra forma, fazendo-o passar pelos calaboucos,
anulando assim o testamento e, depois, dando um jeito de lhe arranjar
um enforcamento por algo que Fagin com facilidade trataria. E certo que
apenas depois de terem feito bom uso do miseravel.
¡X Qual e o significado de tudo isso? ¡X perguntou Rosa.
¡X Posto que venha da minha boca, e a verdade ¡X respondeu-lhe Nancy.
¡X Entao, a criatura, alternando imprecacoes a que estou acostumada a ouvir,
garantiu que se pudesse vingar-se dando cabo da vida do pequeno sem arriscar
seu proprio pescoco, o faria sem demora; mas, como nao pode, deseja ter
o pequeno a sua volta; pois, caso Oliver resolva tirar vantagem de seu nascimento,
ainda lhe pode fazer mal; depois ¡X exclamou a assustada Nancy
¡X, ainda disse ao outro: ¡§Pois bem, Fagin, sendo voce um judeu, nunca fez
nada parecido com o que pretendo fazer ao meu jovem irmao, Oliver¡¨.
¡X Jovem irmao! ¡X exclamou Rosa.
¡X Foram essas as palavras dele ¡X confirmou Nancy, enquanto espiava
ao redor, assombrada pela imagem de Sikes, que nao lhe saia da cabeca. ¡X
O homem acrescentou ainda, referindo-se a senhorita e a outra senhora,
que divertia-se a pensar na quantidade de libras que receberia de vos
para revelar a historia da miseravel crianca.
¡X Nao estas afirmando que ele esta determinado a isso? ¡X perguntou
Rosa a empalidecer.
¡X Garanto-lhe que esta mesmo determinado a faze-lo ¡X assentiu
Nancy. ¡X Quando se enche de colera, torna-se muito serio; conheco homens
capazes de fazer coisas piores, mas prefiro ouvi-los dezenas de vezes
a me aproximar de Monks; ja escureceu por demais e eu preciso retornar
antes que deem conta da minha ausencia.
¡X Mas o que poderei fazer com isso que me dizes? ¡X perguntou Rosa.
¡X Espere! Por que te apressas a retornar a companhia daqueles que descreve
em cores tao negras? Se contares essa historia a um fidalgo que esta
no quarto ao lado, ele em meia hora lhe arranjara um lugar seguro.
¡X Devo retornar ¡X disse a rapariga. ¡X E dificil explicar isso a uma
alma tao caridosa quanto a sua, mas nao posso deixar para tras a compaOLIVER
TWIST
ÇcÇiÇa
nhia de um dos homens de que te falei, nem mesmo para abandonar essa
vida miseravel.
¡X O fato de te arriscares vindo aqui, a honestidade com que me transmites
as noticias, a vergonha e a piedade que encontro nos teus sentimentos;
tudo isso leva-me a crer que ainda podes te redimir; oh! ¡X exclamou
a senhorita enchendo-se de lagrimas. ¡X Nao deixes de ouvir
outra moca, a primeira que apelou para ti cheia de compaixao; escutai o
que te digo e deixe-me oferecer-te um futuro melhor.
¡X Senhorita ¡X exclamou Nancy caindo de joelhos ao chao ¡X, es a
primeira pessoa que me fala assim de maneiras tao doceis; se tais palavras
me tivessem atingido antes, talvez me houvessem salvo de uma vida
de pecado e amargura, mas agora e tarde, muito tarde!
¡X Para o arrependimento ¡X exclamou Rosa ¡X, nunca e tarde.
¡X E, senhorita, exclamou Nancy em grande agonia ¡X, nao quero ser
a causa da morte dele.
¡X E por que serias? ¡X perguntou Rosa.
¡X Se revelo a qualquer outra pessoa o que lhe disse aqui, prende-loiam
e logo ele seria levado a forca; e o mais forte deles, mas tambem o
mais cruel.
¡X Nao iras, por causa de um homem dessa natureza, sacrificar uma
vida melhor, nao?
¡X Nao sei o que me acontece ¡X respondeu a rapariga ¡X, apenas e
assim comigo e com muitas outras iguais ou ainda mais desgracadas que
eu; agora, devo partir. Talvez seja um castigo de Deus ter que viver presa
a esse homem que me maltrata tanto; mas mesmo que eu soubesse que
morreria nas maos dele, nao o abandonaria.
¡X Eu nao devo permitir ¡X disse Rosa ¡X que voce parta depois de me
dizer todas essas coisas.
¡X Confiei em ti, senhorita, sem nada pedir em troca; deves-me deixar
partir.
¡X Como poderei ajudar Oliver, dizei-me, ja que pareces tao ansiosa
por isso?
¡X Podes te aconselhar com algum fidalgo que lhe guardara segredo e
sabera o que fazer.
¡X E onde poderei te encontrar? ¡X perguntou Rosa. ¡X Nao e do meu
interesse saber o sitio onde residem essas pessoas vis, mas desejo ter em
mente um local onde possamos falar.
CHARLES DICKENS
ÇcÇiÇb
¡X Prometes que guardaras o segredo e viras sozinha ou acompanhada
apenas da pessoa a quem pediras auxilio? E garantes que nao serei seguida
ou observada? ¡X perguntou Nancy.
¡X Prometo de coracao ¡X respondeu Rosa.
¡X Se eu estiver respirando, estarei todo domingo em frente a London
Bridge, entre as onze e as doze badaladas.
¡X Ainda aguarda um momento; pensa na tua condicao e na oportunidade
que tens de muda-la; estou ao teu lado, nao apenas porque confiaste
em mim, mas tambem porque es uma mulher perdida que precisa ser
salva; retornaras ao meio dos ladroes e deste homem que tanto te maltrata,
quando uma palavra te pode resgatar? Que forca e essa que te impele
a esta vida de infortunio e miseria?
¡X Quando senhoritas jovens, belas e bem nascidas como es ¡X respondeu
Nancy com firmeza ¡X tomam-se de amor, o arrebatamento carregaas
longe, ainda que tenham casa, amigos ou outros pretendentes; nos,
mulheres sem qualquer outro teto que nao o tampo do caixao, quando
permitimos que um homem preencha o vazio que nos toma o coracao,
havera alguem que nos possa recuperar? Piedade, senhora, piedade por
nos ter restado da alma feminina apenas o arrebatamento que, ao contrario
de nos trazer conforto e seguranca, como deveria ser, nos condena a
ainda mais miseria e sofrimento.
¡X Entao ¡X exclamou Rosa ¡X, tome algum dinheiro para o caso de te
ser preciso ate o nosso proximo encontro.
¡X Nem uma moeda ¡X respondeu a rapariga a erguer os bracos.
¡X Nao recuse todas as minhas ofertas de ajuda ¡X replicou Rosa.
¡X A maior ajuda que me poderias fazer, senhorita, seria dar-me cabo
da vida agora mesmo, pois nunca me senti tao mal; Deus te abencoe e
separe a ti tanta felicidade como a mim separou tanta vergonha.
Depois destas palavras, a rapariga desapareceu, e Rosa deixou-se cair
a poltrona, perturbada pelo estranho coloquio que acabara de ter. Aos
poucos, tentava ordenar os pensamentos, que pareciam vir de um breve
pesadelo.
Capitulo XLI
Em que sucedem novos fatos e se comprova que a surpresa,
como infortunio, raramente vem sozinha.
A situacao da senhorita era, em verdade, de dificil julgamento e assaz
complicada. Rosa sentia um imenso desejo de esclarecer os misterios
que envolviam Oliver, mas, ao mesmo tempo, nao podia trair a confianca
que aquela pobre mulher lhe depositara. Suas palavras tinham tocado
Rosa Maylie e o esforco que a miseravel despendia para ajudar Oliver lhe
tinham despertado o vivo desejo de resgata-la daquela desgracada vida.
O que poderia fazer em quarenta e oito horas? A familia pretendia
pousar em Londres apenas tres noites; aquela era a primeira. Como conceber
um plano que pudesse ser levado a cabo em tao pouco tempo, ou
como adiar a partida sem despertar suspeitas?
O Sr. Losborne as acompanhava, mas Rosa conhecia bem a impetuosidade
do fidalgo: ser-lhe-ia impossivel conter o doutor apos a explosao de
indignacao que por certo teria ao receber a noticia da ameaca do sequestro
de Oliver. Ela sabia tambem que ninguem a apoiaria em sua tentativa
de defender aquela miseravel rapariga; por essa mesma razao, Rosa deveria
ter cautela ao contar o fato a Sra. Maylie, pois e certo que ela iria
aconselhar-se ao fidalgo. Por fim, veio-lhe a ideia pedir ajuda a Harry,
mas Rosa julgou ¡X com lagrimas nos olhos ¡X que isso nao seria correto,
por conta do ultimo coloquio que tiveram, logo agora que o rapaz talvez a
estivesse esquecendo.
Incomodada por estes terriveis pensamentos, tendo aqui e ali uma certeza
logo abandonada, Rosa passou a noite insone e ansiosa. Depois de
consultar a consciencia por diversas vezes, chegou a desesperada conclusao
de que deveria procurar Harry.
¡§Para nos dois¡¨, pensou, ¡§o encontro sera doloroso, mas talvez ele nao
venha, apenas escreva; ou entao vira mas nao me procurara, como quanOLIVER
TWIST
ÇcÇiÇe
do se foi.¡¨ Nesse instante, Rosa deixou cair a pena e afastou o papel, para
que ele nao se manchasse com as lagrimas.
Ela hesitava em escrever a primeira palavra, considerando e reconsiderando
os pensamentos, quando Oliver, que tinha saido a rua acompanhado
pelo Sr. Giles, entrou no aposento sem folego e agitado, a dar mostras
de que outra desgraca talvez tivesse se sucedido.
¡X Por que te agitas tanto? ¡X perguntou Rosa, indo ao encontro do
pequeno.
¡X Estou quase para sufocar ¡X respondeu Oliver. ¡X Por Deus, quem
pensaria que eu tornaria a ver e poderia entao confirmar a verdade da minha
historia?
¡X Nunca pensei que voce nao nos tivesse contado a verdade ¡X respondeu-
lhe a rapariga ¡X, mas o que te faz tao nervoso?
¡X Avistei o cavalheiro ¡X respondeu Oliver, tentando organizar a fala
¡X, avistei o Sr. Brownlow, de que tanto falamos!
¡X Onde? ¡X perguntou Rosa.
¡X Quando saltava de uma carruagem ¡X, caminhando continuou
Oliver; nao lhe consegui falar, porquanto ele nao me vira. Mas Giles fezme
o favor de perguntar se ele habitava aquele lugar e lhe responderam
que sim; olha aqui ¡X disse o pequeno, a mostrar um pedaco de papel ¡X, e
neste lugar que ele vive; quero ir para la agora mesmo. Oh! como me vou
sentir bem se lhe puder falar outra vez!
Distraida pelas novidades, Rosa tomou o papel das maos de Oliver e
leu o endereco, decidindo-se logo a verificar o que estava acontecendo.
¡X Vamos ¡X exclamou a moca ¡X, peca que chamem um carro; vou
apenas avisar minha tia de que ficaremos fora por algumas horas e logo
estarei pronta.
Oliver nao precisava se aprontar e em menos de cinco minutos os dois ja
estavam dentro do carro. Quando chegaram, Rosa pediu que Oliver a esperasse
e mandou seu cartao para o criado do Sr. Brownlow, insistindo em ve-lo
com urgencia; logo, o criado retornou e pediu a senhorita que o acompanhasse.
No andar de cima, Rosa foi apresentada a um fidalgo ja em avancada
idade e de aparencia benevolente. Proximo aos dois, assentava-se outro fidalgo,
com o queixo repousado na bengala, de faces bem menos afaveis.
¡X Senhorita ¡X exclamou o primeiro ¡X, queira fazer o favor de
sentar-se.
¡X Suponho que sejas o Sr. Brownlow, disse Rosa desviando os olhos do
outro fidalgo.
CHARLES DICKENS
ÇcÇiÇf
¡X E assim que me chamam, senhorita ¡X respondeu-lhe o homem.
¡X Este e o meu amigo, o Sr. Grimwig; Grimwig, deixa-nos a sos por
alguns instantes?
¡X Acredito ¡X interrompeu-lhe Rosa ¡X que o cavalheiro possa ouvir
nosso coloquio. Se estou certa, e do conhecimento dele o assunto de que
pretendo tratar.
O Sr. Brownlow assentiu com a cabeca. Grimwig, que levantara cerimonioso,
suspirou e sentou-se outra vez, nao sem antes fazer um gesto de
agradecimento.
¡X O Sr. ¡X disse Rosa cheia de embaraco ¡X surpreender-se-a com o que
lhe tenho a dizer, mas como tenho noticia de sua bondade para com um
pequeno que me e muito caro, estou certa de que me ouviras com atencao.
¡X E certo! ¡X exclamou o Sr. Brownlow.
¡X O nome dele e Oliver Twist ¡X, acrescentou Rosa.
Tao logo Rosa pronunciou o nome, o Sr. Grimwig, que dava mostras de
estar lendo um grosso volume, largou-o ao chao e com isso anunciou um
grande espanto. Depois, irritado por se ter traido dessa forma, o fidalgo
procurou recompor-se a poltrona.
O Sr. Brownlow, cujo espanto, muito embora reagisse de maneira distinta
a do amigo, tambem era visivel, aproximou-se de Rosa e disse:
¡X Por caridade, senhorita, deixa de lado a bondade com que julgaste
as minhas atitudes para com essa pobre crianca e, caso saibas de algo
que possa mudar os maus pensamentos que me restaram dela, por Deus,
fala-me logo.
¡X Um pessimo carater, comerei minha cabeca se ele nao for um diabrete
¡X disse entre os dentes o Sr. Grimwig.
¡X E uma crianca de maneiras nobres e de bom coracao ¡X corou Rosa,
e as provacoes a que a vida lhe condenou acabaram por dar-lhe sentimentos
de honra maiores ate do que os de numerosos homens de idade bem
mais avancada.
¡X Tenho apenas sessenta e um ¡X respondeu Grimwig, com a mesma
rigidez na face.
¡X Nao de ouvidos ao meu amigo ¡X disse o Sr. Brownlow ¡X, ele nao
pensa antes de falar.
¡X Sim, ele pensa ¡X murmurou Grimwig.
¡X Nao, ele nao pensa ¡X insistiu Brownlow irritado.
¡X Ele vai comer a propria cabeca se nao estiver certo ¡X continuou
Grimwig.
OLIVER TWIST
ÇcÇiÇg
¡X Pois merece que a cortem fora ¡X redarguiu Brownlow.
¡X Ele gostaria de saber quem fara isso ¡X disse Grimwig, a socar a
bengala no chao.
Depois de discutir dessa forma, os dois dividiram o rape e apertaram as
maos, como de costume.
¡X Agora, Srta. Maylie, retornemos a questao que tanto te preocupa ¡X
disse Brownlow. ¡X Queira antes apenas saber que me esforcei de todas as
maneiras para localizar o pequeno; o que me dizes sobre a pobre criatura?
Rosa, que pudera reorganizar o pensamento, fez um resumo do que
havia acontecido a Oliver desde que ele deixara a casa do Sr. Brownlow,
ocultando apenas a figura de Nancy, e revelou que o pequeno apenas se
lamentava de nao ter tido a oportunidade de rever seu benfeitor.
¡X Oh Deus ¡X exclamou o velho ¡X, isso me deixa muito feliz, muito
feliz! Mas nao me disseste onde ele esta nesse momento, Srta. Maylie.
Perdoe-me, mas por que nao o trouxeste consigo?
¡X Ele esta esperando-o em um carro a porta de sua casa ¡X respondeu
Rosa.
¡X A porta ¡X gritou o fidalgo, enquanto punha-se a correr escada
abaixo sem dizer qualquer outra palavra.
Quando a porta por tras de si foi de novo cerrada, o Sr. Grimwig levantou
a cabeca e, com a bengala, desenhou tres circulos no ar. Depois dessa
curiosa coreografia, ergueu-se e passeou pelo quarto, nao sem tropecar
por diversas vezes, estando por fim a frente de Rosa e, sem qualquer censura,
beijou-lhe a face.
¡X Nao se assuste ¡X exclamou o senhor, a notar que Rosa surpreendeu-
se com a estranha atitude. ¡X Nao tenha medo, sou velho o suficiente
para ser seu avo; ca estao eles!
No mesmo instante em que o velho fidalgo afundou-se na poltrona, o
pequeno e o Sr. Brownlow entraram no aposento; Grimwig saudou Oliver
com gestos graciosos e corteses. Se a felicidade na expressao do pequeno
fosse a unica recompensa do coloquio, Rosa ja se consideraria satisfeita.
¡X Ha ainda uma outra pessoa que nao pode ser esquecida ¡X exclamou
o senhor Brownlow, enquanto fazia soar a campainha. ¡X Chamem
a Srta. Bedwin, por favor!
A velha governanta respondeu ao chamado, cumprimentou todos a
porta e esperou por ordens.
¡X A cada dia, enxergas menos, Bedwin ¡X exclamou Brownlow.
CHARLES DICKENS
ÇcÇiÇh
¡X Esta e a verdade, senhor ¡X respondeu a senhora ¡X, na minha
idade, os olhos ja nao estao la essas coisas...
¡X Entao ¡X continuou o Sr. Brownlow ¡X, va atras dos oculos e retorne
para descobrir o motivo por que te chamam.
A velha senhora meteu as maos na algibeira atras dos oculos. Oliver,
por sua vez, nao pode esperar e, logo ao primeiro impulso, atirou-se aos
bracos da governanta.
¡X Deus me ouviu! ¡X gritou a velha senhora, retribuindo-lhe o abraco.
¡X Pois se nao e a minha pequena crianca!
¡X Minha boa governanta! ¡X exclamou Oliver as lagrimas.
¡X Eu tinha certeza de que ele iria voltar ¡X exclamou a senhora ¡X,
eu tinha certeza! Como te pareces bem, estas vestido com tanta nobreza!
Por onde andaste durante todo este tempo? Oh, e a mesma face docil, mas
nao tao palida; sao os mesmos olhos, mas bem menos tristes. Nunca esqueci
teu rosto, tenho-o visto ao meu lado todos esses dias.
Enquanto dizia essas coisas, a senhora afastava-se para poder enxergalo
e, logo, abracava-o outra vez.
Deixando-os a sos para que pudessem conversar a vontade, o Sr. Brownlow
acompanhou Rosa ao aposento colado a este e ouviu da boca da senhorita a
historia de Nancy, que nao o deixou menos surpreso e perplexo.
Rosa explicou tambem os motivos por que nao contara nada ao senhor
Losborne ate aquele momento. O cavalheiro considerou que ela agira
com prudencia e logo se colocou a disposicao para um coloquio com o
doutor. Para que o encontro nao tardasse, os dois combinaram que
Brownlow iria a casa de Rosa as oito horas daquela mesma noite. Enquanto
isso, a senhorita encarregar-se-ia de colocar a senhora Maylie a
par de todos os detalhes. Feito o acordo, ela e Oliver voltaram ao carro.
A previsao da senhorita foi de fato acertada: assim que ouviu as primeiras
palavras acerca da historia de Nancy, o doutor pos-se a berrar maldicoes
e ameacou-a com as sancoes que Blathers e Duff, aqueles dignos
oficiais da lei, tinham-no explicado. Depois, meteu o chapeu a cabeca e
preparou-se para ir atras da ajuda dos dois. Ele de fato teria ido se a reacao
e os argumentos do Sr. Brownlow nao tivessem sido a altura.
¡X Entao, o que ha a se fazer? ¡X perguntou o impetuoso doutor, quando
as duas mulheres concordaram com Brownlow. ¡X Recompensar todos
esses ladroes, pondo-lhes a mao cem libras pelo bem que fizeram a
Oliver?
OLIVER TWIST
ÇcÇiÇi
¡X Nao isso ¡X respondeu o Sr. Brownlow a rir-se ¡X, mas devemos nos
acautelar.
¡X Cautela! Exclamou o doutor. ¡X Pois mando-os todos aos...
¡X Nem quero pensar para onde ¡X interrompeu-o o sr. Brownlow. ¡X
Apenas considere se essa e a atitude mais adequada para os nossos propositos.
¡X E o que queremos? ¡X perguntou o doutor.
¡X Queremos descobrir as origens de Oliver e recuperar-lhe, se essa
historia for verdadeira, a heranca a que ele tem direito.
¡X Ah! ¡X Acalmou-se o Dr. Losborne. ¡X Eu me havia esquecido disso.
¡X De fato ¡X continuou o Sr. Brownlow ¡X, se conseguirmos levar os
gatunos ao calabouco e salvar a rapariga, de que isso nos seria util?
¡X Alguns deles seriam enforcados ¡X afirmou Losborne ¡X e os outros
mandados ao degredo.
¡X Muito bom ¡X exclamou o Sr. Brownlow ¡X, a sorrir, mas isso lhes
acontecera cedo ou tarde; se adiantarmos a prisao deles, em uma atitude
digna de Dom Quixote, prejudicaremos diretamente os interesses de
Oliver, ou os nossos, o que e a mesma coisa.
¡X Os interesses? ¡X perguntou o doutor.
¡X Teremos muita dificuldade para decifrar esse misterio, a menos
que possamos contar com essa criatura, Monks. Tal coisa so sera possivel
se o abordarmos quando ele estiver distante do bando; e, se o mandamos
prender, nao teremos prova alguma contra ele. Ao que parece, nao esta
metido em negocio algum com os outros gatunos; nao conseguiremos mais
que uma condenacao de alguns dias na prisao por vadiagem; depois, e
certo que ele feche a boca e nos seja tao util quanto um homem cego,
surdo, mudo e doido.
¡X Entao, peco perdao de vos perguntar, es da opiniao de que a promessa
feita a rapariga, promessa levada a cabo com a melhor das intencoes,
deva ser mantida?
¡X Nao discuta essa materia ¡X falou o Sr. Brownlow a Rosa, percebendo
que ele se preparava para responder ao doutor ¡X, pois e seguro que a
promessa sera mantida; para que possamos tracar um plano, e util que
nos encontremos com a pobre rapariga, a fim de saber se ela podera nos
colocar em contato com o tal Monks, desde que nos comprometamos a
nao leva-lo a justica; como nao poderemos ter com ela ate o proximo
domingo, sugiro que aguardemos sem fazer bulha do caso.
O Dr. Losborne ouviu muito a contragosto a proposta que impunha
CHARLES DICKENS
ÇcÇiÇj
espera tao longa, mas, como Rosa e a Sra. Maylie apoiaram o Sr. Brownlow,
todos terminaram aprovando-a.
¡X Eu gostaria ¡X falou Brownlow ¡X de pedir o auxilio do meu amigo
Grimwig; ele tem espirito galhofeiro, mas e muito esperto; alem disso,
preparou-se para exercer a profissao de advogado, mas desanimou depois
de ter sido procurado apenas uma vez em vinte anos.
¡X Nao faco qualquer objecao a chamarmos o seu amigo ¡X afirmou o
Dr. Losborne ¡X se, em contrapartida, eu puder chamar o meu.
¡X Devemos colocar isso em discussao ¡X respondeu Brownlow ¡X,
mas, a proposito, quem e o seu amigo?
¡X Ele e filho dessa senhora e amigo intimo de Rosa ¡X disse Losborne,
concluindo com um olhar muito significativo dirigido a senhorita.
Rosa corou, mas nao disse nada contra a proposta de Losborne, possivelmente
por se sentir em minoria, e o Sr. Grimwig e Harry Maylie foram
aceitos no comite.
¡X Entao ¡X disse a Sra. Maylie ¡X, deveremos ficar na cidade esperando
que a investigacao possa dar algum sinal de exito; se me for seguro
de que ha ainda uma esperanca, fico aqui por um ano, se for preciso.
¡X Excelente ¡X exclamou Brownlow. ¡X Como noto nos rostos que
me cercam o desejo de perguntar por que nao fui atras de confirmar a
historia de Oliver e, ao contrario, ausentei-me do reino, peco-vos que nao
me pergunteis nada por enquanto; no momento certo, contar-vos-ei a
minha historia; agora, vamos, Oliver, sozinho no aposento ao lado, deve
pensar que nos cansamos de sua companhia, e o jantar esta posto.
O Sr. Brownlow estendeu o braco a Sra. Maylie e abandonou o aposento,
seguido pelo Dr. Losborne e por Rosa. Com isso, o comite foi efetivamente
encerrado.
Capitulo XXLII
Em que um velho conhecido de Oliver ganha importancia na cidade.
No mesmo momento em que Nancy, tendo deixado Sikes a dormir,
correra a casa de Rosa Maylie a fim de cumprir sua missao, duas pessoas
que merecem atencao para essa historia entravam em Londres.
Trata-se de um homem e de uma mulher ou, se for melhor, de um
macho e de uma femea, ja que o primeiro e um desses seres demasiado
magros, com os membros longos e tortos, aos quais e dificil precisar a
idade, ja que, quando sao rapazes, parecem homens doentes e, quando
adultos, parecem rapazes crescidos precocemente. A mulher e jovem, mas
com formas robustas o suficiente para aguentar o enorme fardo que carrega
as costas. Seu marido nao leva muito peso, apenas um bastao com
um leve embrulho em uma das pontas. Isto e suas pernas de tamanho
incomum permitem-lhe caminhar a uns doze passos adiante da mulher,
a quem, por vezes, ele reclama da extrema vaguidao.
Ambos caminharam desta forma ao longo da estrada cheia de po, desviando-
se do caminho apenas quando uma carruagem aparecia-lhes a
frente. Finalmente, atingiram o arco de Highgate, embaixo do qual o
homem parou e chamou pela esposa, que se atrasava.
¡X Vamos, como es lerda, Carlota!
¡X O peso e enorme ¡X respondeu a mulher, ao chegar sem folego por
causa do cansaco.
¡X Enorme! E para que trouxeste tudo isso? ¡X gritou-lhe o homem.
¡X Ainda esta longe? ¡X perguntou a mulher, enquanto se apoiava em
um muro, cheia de suor.
¡X Longe? Quase chegamos ¡X respondeu o andarilho de longas pernas.
¡X Veja as luzes de Londres!
¡X Ate la se vao ao menos duas milhas ¡X respondeu a mulher com
desanimo.
OLIVER TWIST
ÇcÇjÇc
¡X Para mim, duas ou vinte sao a mesma coisa ¡X respondeu-lhe Noe
Claypole. ¡X Levante-se e vamos agora mesmo, ou terei que te colocar a
caminho aos pontapes.
Ao notar que o nariz vermelho de Noe tornara-se ainda mais vermelho
e que ele atravessara a rua com intencao de despedir-lhe um chute, a
mulher ergueu-se logo e pos-se em marcha.
¡X Onde pensas em pousar? ¡X perguntou ela depois de uns poucos passos.
¡X Nao sei ¡X respondeu Noe, ainda mais indisposto.
¡X Espero que seja aqui perto ¡X disse Carlota.
¡X Nao por aqui ¡X respondeu Noe.
¡X Por que nao?
¡X Quando eu lhe digo sim ou nao, isso e o suficiente, nao precisas
saber o porque ¡X respondeu o nobre cavalheiro.
¡X Nao precisa se zangar ¡X redarguiu sua companheira.
¡X Por acaso, querias que parassemos na primeira estalagem para que
Sowerberry nos surpreenda e nos leve de volta com algemas aos pulsos?
Vamos nos meter nas vielas mais estreitas e descansar apenas na estalagem
mais afastada que possamos encontrar; e agradeca-me por ser tao
esperto, pois se nao tivessemos tomado esse caminho, ja estarias
acorrentada ha tempos, e por ser tao tola.
¡X Sei que nao sou tao esperta, respondeu-lhe a mulher ¡X, mas nao
culpes apenas a mim, pois estarias tambem preso.
¡X Quem arrancou o dinheiro foste tu ¡X lembrou-a Claypole.
¡X Mas o fiz para ti ¡X respondeu a mulher.
¡X E estou com ele? ¡X perguntou Claypole.
¡X Nao, deixaste tudo comigo ¡X disse Carlota, acariciando-lhe o pescoco.
Esta e a verdade, mas, como Claypole nao costuma confiar em ninguem,
e justo para com este senhor dizer que apenas fizera dessa forma
para o caso de, se forem apanhados, ter uma desculpa para se livrar da
prisao. Ele, contudo, nao revelou suas reais inspiracoes, e o casal se pos a
andar muito apaixonado.
Prudente, o Sr. Claypole caminhou sem descanso ate atingir a entrada
de Islington, onde, por causa dos pedestres e do numero de carros, julgou
ja estar em Londres. Estacou apenas para observar as ruas mais cheias e,
em consequencia, as que deviam ser evitadas; seguiu caminho pela estrada
de St. John e logo embrenhou-se pelas vielas escuras e sujas de um dos
piores bairros que o progresso construiu em Londres.
CHARLES DICKENS
ÇcÇjÇd
Noe Claypole, com Carlota as suas costas, galgou essas vielas, as vezes
saltando um corrego para melhor espiar o interior de uma estalagem e,
julgando-a demasiada movimentada, pondo-se a caminho novamente a
fim de encontrar o lugar ideal para seus negocios. Enfim, estacou a frente
de uma construcao, a mais humilde e suja das que tinha examinado, e,
depois de observa-la do lado oposto da rua, decidiu-se a passar a noite ali.
¡X Da-me o pacote ¡X disse Noe a mulher ¡X e fale apenas quando te
perguntarem algo; qual e mesmo o nome da estalagem? T-r-e-s o que?
¡X Coxos ¡X respondeu-lhe Carlota.
¡X Tres-Coxos ¡X repetiu Noe ¡X, belo nome; cola-te a mim!
Ao dizer isso, Noe abriu a porta e entrou, seguido por sua companheira.
Nao havia ninguem a entrada. No balcao, um jovem judeu lia um jornal
e, ao perceber o forasteiro, olhou-o com aspereza. Noe respondeu ao
olhar com outro tao aspero quanto.
Caso Noe estivesse vestido com seu habitual uniforme, haveria motivo
para o olhar aspero do balconista; como trajava apenas uma camisa, porem,
nao havia o que justificasse uma saudacao tao pouco amigavel.
¡X Os Tres-Coxos estao aqui? ¡X perguntou Noe.
¡X E este o nome da estalagem ¡X respondeu-lhe o outro.
¡X Um cavalheiro, de passagem pela estrada, recomendou-nos esta casa
¡X disse Noe enquanto cutucava Carlota, talvez para mostrar-lhe a habilidade
com que se apresentava ou talvez para preveni-la e pedir seu silencio.
¡X Queremos passar a noite aqui.
¡X Nao estou certo de que ha lugar ¡X respondeu Barney, o empregado
¡X, mas vou logo verificar isso.
¡X Sirva-nos um pouco de carne e um gole de cerveja ¡X disse Noe.
Barney levou-os a uma mesa e trouxe a refeicao pedida. Depois, anunciou
que tinha um quarto e que eles podiam passar a noite ali.
O compartimento dos fundos, para onde Barney se dirigira, ficava atras
do sitio em que o casal tinha sua refeicao e permitia, atraves de uma
pequena cortina colocada a frente de um vidro, a visao de tudo que estivesse
acontecendo; caso o espiao colasse os ouvidos a parede, tambem
poderia escuta-los. O dono da casa tinha acabado de encostar a orelha a
parede, quando Fagin entrou neste mesmo compartimento, chamando
por um de seus jovens aprendizes.
¡X Cale-se ¡X respondeu-lhe Barney, que tambem fora ao pequeno
aposento ¡X, ha forasteiros no quarto ao lado.
OLIVER TWIST
ÇcÇjÇe
¡X Forasteiros? ¡X murmurou Fagin.
¡X Sao caipiras e, se nao e engano, praticam o mesmo oficio que o teu.
Fagin interessou-se por essa ultima informacao e, apoiando-se a um
banco, meteu os olhos ao vidro e observou Noe separar um pequeno bocado
de carne e uma dose homeopatica de cerveja para sua esposa, que
aceitava, satisfeita, o que o companheiro lhe oferecia.
¡X Aquele sujeito me agrada ¡X exclamou Fagin ¡X, sabe como tratar
uma rapariga; e certo que nos sera util; nao facam tanto barulho para que
eu possa ouvir o que eles estao a dizer.
¡X O que desejo, Carlota, e viver como um fidalgo ¡X disse Claypole,
enquanto continuava a fala que Fagin nao ouvira o inicio ¡X, e, se quiseres,
podes viver como uma verdadeira senhora.
¡X E o que desejo, querido ¡X respondeu-lhe Carlota, mas nem sempre
encontraremos caixas para esvaziar e esconderijo onde nos meter sem
dar as vistas de ninguem.
¡X Ha mais coisas a esvaziar ¡X respondeu Claypole ¡X que caixas.
¡X O que? ¡X Perguntou-lhe sua companheira.
¡X Algibeiras, bolsas de velhas senhoras, casas, carruagens e bancos ¡X
disse Claypole, servindo-se da cerveja.
¡X Nao conseguiras fazer tudo sozinho, querido ¡X disse Carlota.
¡X Encontrarei quem me ajude ¡X respondeu Noe. ¡X Encontraremos
pessoas que nos queiram fazer de socios; apenas voce, quando livre, vale
por cinquenta mulheres, de tao ladina e pelintra que es.
¡X Ah! Como gosto de ouvir-te dizer essas coisas ¡X suspirou Carlota,
beijando a face horrorosa do amavel companheiro.
¡X Nao me agrades tanto, pois me irrito com isto ¡X falou Noe, a
afastar-se da esposa cheio de gravidade. ¡X Queria mesmo ter uma quadrilha
sob meu comando para que eu nao precisasse me esforcar; seria
essa uma grande oportunidade de lucro; demais, se me aparecesse um
socio, dar-lhe-ia com prazer a quantia que trazes, ate porque nao sabemos
como nos desvencilhar dela.
Depois de dizer isso, Claypole olhou para a caneca de cerveja com ares
de sabio e, apos engolir um trago, mostrou-se satisfeito. Enquanto ele
meditava, a porta abriu-se com um estrondo e um estranho apareceu para
lhe interromper as graves elucubracoes.
O estranho era Fagin.
Ele cumprimentou-os com uma mesura, sentou-se a mesa mais proxima
e pediu uma bebida para Barney.
CHARLES DICKENS
ÇcÇjÇf
¡X A noite e agradavel, senhor ¡X disse Fagin a Claypole ¡X, mas um
pouco fria demais para a estacao; pelo que noto, voces chegam do interior.
¡X Por que o senhor acha isso? ¡X perguntou-lhe Noe.
¡X Nao temos tanto po em Londres ¡X respondeu Fagin, estendendo o
braco em direcao aos sapatos de Noe e da esposa e, depois, do embrulho.
¡X O senhor e um homem esperto ¡X respondeu-lhe Noe a rir-se. ¡X
Veja isso, Carlota.
¡X Aqui nessa cidade ¡X respondeu Fagin, enquanto simulava certa
intimidade ¡X precisamos ser espertos.
Fagin concluiu a observacao metendo o dedo no nariz, gesto que
Claypole tentou imitar, no que fracassou, pois o tamanho de seu nariz
nao era grande o suficiente para tanto. Fagin, por sua vez, interpretou a
imitacao como um gesto amigavel e ofereceu para o casal o licor que
Barney acabara de lhe trazer.
¡X De boa qualidade ¡X observou Claypole.
¡X Meu caro ¡X disse Fagin ¡X, um homem precisa estar sempre a
esvaziar uma algibeira, uma bolsa de mulher, uma diligencia ou um banco
se deseja tomar um trago com regularidade.
Claypole, logo que ouviu as palavras de Fagin, afundou-se na cadeira,
olhando para a mulher e depois para o judeu com uma expressao de profundo
terror.
¡X Nao te assustes ¡X, disse Fagin, arrastando a cadeira para mais perto
do casal ¡X, ninguem alem de mim ouviu o coloquio de voces.
¡X Nao fui eu que fiz aquilo ¡X exclamou Noe a recolher as pernas
amedrontado. ¡X Carregas tudo contigo, Carlota, sabes que tudo esta
contigo.
¡X Nao me importo com o que tens ou fizeste ¡X respondeu Fagin: ¡X
Tenho a mesma ocupacao que vos e, por isso, logo simpatizei com ambos.
¡X Em que te ocupas? ¡X perguntou Noe, um pouco mais tranquilo.
¡X No mesmo oficio que todos os outros nessa hospedaria ¡X respondeu
Fagin. ¡X Foi a boa fortuna que lhes trouxe ate aqui: o local e perfeito
para todo tipo de ratoneiros.
Muito embora a mente de Noe se tranquilizasse com essa ultima fala
de Fagin, seu corpo continuou agitado e estremecido, pois ele fungava e
se mexia de um lado para outro na cadeira, encolhido de temor.
¡X Vou continuar ¡X falou Fagin depois de tranquilizar Carlota com
gestos e sorrisos amigaveis. ¡X Tenho um conhecido que lhe podera indiOLIVER
TWIST
ÇcÇjÇg
car o melhor caminho a seguir; depois de passar por diversos negocios,
poderas escolher o que mais lhe agradar.
¡X Falas seriamente? ¡X perguntou Noe.
¡X E por que brincaria eu com o senhor? ¡X respondeu-lhe Fagin. ¡X
Vamos a um local reservado, pois desejo-lhe revelar algo.
¡X E melhor nao sairmos daqui ¡X respondeu Noe, a esticar outra vez
as pernas. ¡X Mas ela vai levar as bagagens para cima; Carlota, leva esses
embrulhos para nossos aposentos.
Carlota obedeceu a ordem sem qualquer objecao, saindo logo da sala
enquanto o marido abria a porta.
¡X Ela e uma excelente trabalhadora, nao? ¡X perguntou Noe como se
houvesse domado um animal selvagem.
¡X Excelente ¡X concordou Fagin. ¡X Voce e um genio, meu caro.
¡X Se nao o fosse, ca nao estaria ¡X respondeu Noe. ¡X Mas diga-me o
que desejas, pois logo ela retorna.
¡X Se gostares do meu amigo ¡X disse o judeu ¡X, aceitarias entrar em
sociedade com ele?
¡X Se for dos bons, nao terei duvidas ¡X respondeu Noe.
¡X E dos melhores em toda a cidade ¡X disse o judeu ¡X e tem um
grupo bom consigo.
¡X Sao daqui mesmo? ¡X perguntou Noe.
¡X E gente da cidade ¡X respondeu o judeu. ¡X Na verdade, nao te
empregaria se nao estivesse, neste momento, precisando muito de um
auxiliar.
¡X Vou ter que lhe dar algum dinheiro? ¡X inquiriu Noe.
¡X Do contrario, nao havera negocio ¡X respondeu Fagin.
¡X Acredito que vinte libras sejam uma boa quantia.
¡X Caso se trate de uma nota, cujo numero ja foi anotado com certeza,
e uma quantia infima, ja que se nao podera troca-la em banco algum; o
melhor que tens a fazer e manda-la ao exterior, onde podera conseguir
algo em troca.
¡X E quando posso encontra-lo? ¡X perguntou Noe, ainda cheio de
duvidas.
¡X Amanha pela manha ¡X respondeu-lhe o judeu.
¡X Onde?
¡X Aqui.
¡X E qual sera a minha paga? ¡X inquiriu o pensativo Noe.
CHARLES DICKENS
ÇcÇjÇh
¡X Uma vida de fidalgo; luxo, comida e bebida a vontade; do que voce
e a rapariga conseguirem, metade fica contigo ¡X respondeu Fagin.
Noe aceitou a proposta, mas e dificil saber se ficara satisfeito com os
termos do negocio ou se o fizera por saber que Fagin lhe podia prejudicar
por conta das informacoes que tivera acerca de seus oficios passados.
¡X Como Carlota e capaz de trabalhar muito, eu gostaria de um servico
leve ¡X acrescentou Noe.
¡X Um posto sem muita responsabilidade ¡X completou Fagin.
¡X Algo desse genero ¡X concordou Noe. ¡X Desejo um servico que
nao me exija muito esforco nem me coloque em perigo com a policia.
¡X Notei que falavas, meu caro, em coisas de espionagem ¡X disse
Fagin. ¡X Meu amigo esta atras de alguem capaz de realizar servicos
como esse.
¡X Eu nao me incomodaria de, por vezes, realizar esse tipo de servico
¡X continuou Noe ¡X, mas sabes que tal atividade nao e muito lucrativa.
¡X E verdade ¡X observou o judeu ¡X, e mesmo possivel que nao o seja.
¡X O que dizes? ¡X perguntou Noe, ansioso pela resposta. ¡X Sobre
algo que nao chame a atencao e que envolva o mesmo risco que ha em
ficar em casa.
¡X E quanto as velhotas? Voce lhes agarra os pacotes e dispara a correr.
¡X Elas costumam gritar? ¡X perguntou Noe, enquanto balancava a
cabeca.
¡X Cala-te ¡X disse o judeu a bater as maos no joelho de Noe. ¡X Roubaras
as criancas!
¡X Que criancas? ¡X perguntou Claypole.
¡X As criancas cujas maes mandam recados com dinheiro; basta tomar-
lhes a quantia e empurra-las; depois, continuas andando como se a
unica coisa que tivesse acontecido fosse uma crianca que caiu e se machucou
¡X concluiu Fagin a rir-se.
Noe repetiu as gargalhadas e assentiu; era aquilo mesmo que desejava
fazer.
¡X E isto! ¡X exclamou o judeu. ¡X E nao lhe faltarao boas esquinas
em Canden-town, Battlebridge e arrabaldes, onde as maes vivem a mandar
criancas com recados.
Com isto, Fagin fez um gesto ao colega e ambos comecaram a rir.
¡X Entao esta feito ¡X disse Noe, acalmando-se a chegada de Carlota.
¡X A que horas amanha?
OLIVER TWIST
ÇcÇjÇi
¡X Se lhe for conveniente, as dez ¡X respondeu-lhe o judeu, perguntando,
depois de observar o aceno de Noe, qual nome deveria dizer ao amigo.
¡X Bolter ¡X afirmou Noe, que ja se tinha preparado para essa pergunta.
¡X Morris Bolter ou, se preferir, Sr. Bolter.
¡X Um servo, Sra. Bolter ¡X virou-se Fagin com maneiras grotescas.
¡X Espero que logo possamos nos conhecer melhor.
¡X Ouviste o fidalgo, Carlota? ¡X perguntou Claypole.
¡X Sim, Noe ¡X respondeu-lhe a Sra. Bolter.
¡X Quando me quer agradar, ela me chama de Noe ¡X disse Morris
Bolter, virando-se para o judeu ¡X, o senhor entende, nao?
¡X Entendo, claro ¡X respondeu-lhe Fagin. ¡X Boa noite!
Com essas mesuras, Fagin despediu-se. Noe Claypole advertiu, entao,
sua esposa e pediu-lhe que tivesse mais atencao. Depois, contou-lhe
sua nova ocupacao, soberbo nao apenas porque era homem, mas tambem
por conta da importancia de seu novo posto: o de ladrao de criancas em
Londres e arrabaldes.
Capitulo XLIII
Em que o Matreiro entra em cena.
¡X Pelo que noto ¡X disse Claypole, tambem conhecido por Bolter, ao entrar
na casa de Fagin na manha seguinte ¡X, o tal amigo e o senhor mesmo.
¡X Todo homem e o seu proprio amigo ¡X respondeu Fagin com um
sorriso insinuante. ¡X Nao havera nenhum outro tao bom quanto ele.
¡X Com raras excecoes ¡X disse Bolter com ares de sabedoria ¡X, ha
pessoas cujo unico inimigo e si mesmo.
¡X Alguns feiticeiros ¡X disse o judeu ¡X dizem que o tres e um numero
magico, outros dizem que e o sete; qual nada! O numero magico e o um!
¡X Viva o numero um! ¡X gritou Bolter.
¡X Em uma pequena comunidade como a nossa ¡X disse o judeu, que
sentia necessidade de explicar a posicao ¡X, o numero um abarca a mim
e a todos os outros rapazes.
¡X Genial! ¡X exclamou Bolter.
¡X Repare ¡X continuou o judeu sem fazer caso da interrupcao ¡X,
estamos tao unidos que acabamos sendo apenas um; no entanto, seu dever
e cuidar do numero um, ou seja, de voce mesmo.
¡X Tens toda razao ¡X concordou Bolter.
¡X Claro, mas deves tomar conta de ti, o numero um, sem te esqueceres
de mim, o numero um.
¡X Numero dois, queres dizer ¡X disse Bolter, que sempre fora um egoista.
¡X Nao! ¡X redarguiu o judeu. ¡X Tu me deves considerar tao importante
quanto a si mesmo.
¡X Bem, o senhor e agradavel, o que me faz sentir uma certa simpatia,
mas nao somos tao unidos assim.
¡X Apenas raciocine ¡X disse Fagin a estender os bracos ¡X, o senhor
fez um belo ato, por isso, aproximei-me, mas essa mesma coisa pode pendurar
uma corda em teu pescoco, nao percebes?
OLIVER TWIST
ÇdÇaÇa
Bolter aproximou as maos ao pescoco e falou algo que, mesmo inaudivel,
devia significar que concordava com aquilo.
¡X A forca, meu amigo, e o monumento que tem coroado os atos de
alguns sujeitos que ousaram demais na sua carreira; passar longe desse
monumento deve ser o seu esforco numero um.
¡X E certo que o sera ¡X assentiu Bolter ¡X, mas por que falas nisso?
¡X Apenas para ser claro contigo ¡X respondeu o judeu. ¡X Para se ver
livre disso, tu precisas de mim; para que meus negocios deem certo, preciso
de voce; sao as nossas prioridades; para que consigamos isso, voce
deves te preocupar com o teu numero um e com o meu; se fizermos tudo
juntos, tenho certeza de que nada dara errado, do contrario, caimos todos.
¡X E verdade ¡X concordou o pensativo Bolter ¡X, o senhor e mesmo
um homem sabio.
Fagin notou que a exclamacao de Bolter era sincera, o que o alegrou,
pois havia conseguido demonstrar a superioridade de sua argucia, o que
era fundamental para o sucesso da empreitada. Para reforcar ainda mais
tal impressao, o judeu narrou-lhe um punhado de feitos, muito aumentados
pela ficcao, que serviram para elevar a admiracao de Bolter, que ouvia
a tudo estupefato e, tambem, um tanto temeroso, o que tinha razao de
ser nas presentes circunstancias.
¡X Preciso de um homem de confianca ¡X disse Fagin ¡X, pois apanharam
ontem o meu melhor auxiliar.
¡X Estas dizendo que ele morreu? ¡X perguntou-lhe Bolter.
¡X Nao ¡X respondeu Fagin ¡X, a coisa nao e assim tao ruim.
¡X Entao, sera que...
¡X Preso ¡X interrompeu-lhe o judeu ¡X, sim, ele foi preso.
¡X O caso e grave? ¡X perguntou Bolter.
¡X Nao muito ¡X respondeu o judeu. ¡X E acusado de roubar uma
algibeira; foi encontrado com uma boceta de rape de prata, a dele mesmo,
meu caro, a dele mesmo; o interrogatorio sera hoje; eu daria por ele
cinquenta bocetas de rape; devias te-lo conhecido, ah, sim, devias ter conhecido
o Matreiro.
¡X Mas ainda poderei conhece-lo ¡X disse Bolter.
¡X Nao sei ¡X respondeu-lhe Fagin. ¡X Se nao encontrarem nenhuma
outra evidencia, em um ou dois meses ele estara novamente conosco; se
acharem alguma outra coisa, porem, a historia sera diferente; bem sabem
como o Matreiro e esperto; e certo que o condenarao a uma eterna.
CHARLES DICKENS
ÇdÇaÇb
¡X O que e uma eterna? ¡X perguntou Bolter. ¡X Por que nao falas
coisas que eu seja capaz de entender?
Fagin ia explicar-lhe que a pena ¡§eterna¡¨, na linguagem do vulgo,
significa uma condenacao a trabalhos forcados no degredo pelo resto da
vida, quando foi interrompido pela entrada repentina de Carlinhos Bates,
cuja face retorcida deixava-lhe uma expressao comica.
¡X Esta tudo certo, Fagin ¡X afirmou Bates, depois que os dois estranhos
foram apresentados.
¡X Nao compreendo ¡X resmungou o judeu.
¡X A policia localizou o dono da boceta de rape e arranjou mais dois ou
tres para fazer a identificacao. O Matreiro desta vez nao escapa do degredo
¡X respondeu Bates. ¡X Vou mandar cerzir um terno de luto para visita-lo
antes da partida. E pensar que Jack Dawkins termina a carreira desta
forma por causa de uma reles boceta de rape sem valor! Se ao menos
tivesse ele metido as maos na algibeira de algum fidalgo, terminaria de
outro modo, nao como um pelintra comum e miseravel.
¡X Por que o chamas de comum e miseravel? ¡X interrompeu-lhe Fagin,
com um olhar de reprovacao. ¡X Nao era ele, entre todos voces, sempre o
melhor?
¡X Era ¡X respondeu o choroso Bates.
¡X Entao, para de dizer essas tolices ¡X disse Fagin cheio de colera.
¡X Ninguem mais falara dele ¡X resmungou Bates ¡X nem nunca mais
alguem sabera de seus brilhantes feitos; pois se nao e essa uma grande
injustica!
¡X Veja o orgulho que eles tem da profissao! ¡X riu-se Fagin, enquanto
tornava o rosto em direcao de Bolter.
O Sr. Bolter assentiu com a cabeca, enquanto Fagin observou com evidente
prazer o desespero de Bates. Depois, aproximou-se e bateu-lhe no
ombro.
¡X Acalma-te ¡X disse Fagin, fazendo-lhe um agrado ¡X, logo todos
saberao como ele e esperto. Alem disso, lembra-te da idade dele; e uma
honra ser degredado tao novo!
¡X E certo que se trata de uma honra ¡X concordou Bates, um pouco
mais consolado.
¡X Nao ha de lhe faltar nada no calabouco, continuou Fagin ¡X tera
cerveja a vontade e algum dinheiro para gastar.
¡X Nao sei se as coisas serao dessa maneira ¡X disse Bates.
OLIVER TWIST
ÇdÇaÇc
¡X Claro que serao ¡X riu-se Fagin. ¡X Alem disso, vamos arranjar
para ele um grande advogado, daqueles que fazem poses e discursos; toda
a plateia sabera dos feitos do grande Matreiro, certo, Bates?
¡X Sera algo muito divertido! ¡X concordou Bates a rir-se.
¡X Claro ¡X continuou o judeu ¡X, sera muito engracado.
¡X Muito engracado ¡X repetiu Bates.
¡X Ja estou a imaginar ¡X exclamou Fagin.
¡X Eu tambem ¡X disse Bates ¡X, juro que estou a ve-lo em minha
frente; sera mesmo um acontecimento: Jack Dawkins a falar para uma
plateia de oficiais da lei, como se fosse intimo de todos!
De fato, o judeu tinha tao habilmente dado asas a imaginacao excentrica
do seu jovem aluno que o pelintra, que a principio considerara o
Matreiro uma vitima, agora via o amigo como a estrela de um acontecimento
que, outra vez, permitir-lhe-ia dar destaque as suas geniais
qualidades.
¡X De qualquer maneira, temos de saber o que ele vai dizer hoje ¡X
afirmou Fagin.
¡X Devo ir ate la? ¡X perguntou Bates.
¡X De jeito nenhum, respondeu Fagin ¡X, e uma loucura! Um so e ja
perda suficiente.
¡X Nao pensas em ir voce mesmo, nao e? ¡X exclamou Bates.
¡X Seria assaz imprudente ¡X disse Fagin.
¡X E por que nao envias este nosso novo amigo? ¡X continuou Bates,
enquanto segurava o braco de Bolter. ¡X Ninguem ainda o conhece.
¡X Se ele nao fizer caso ¡X respondeu Fagin.
¡X Fazer caso? ¡X exclamou Bates. ¡X E de que ele faria caso?
¡X De nada, meu caro ¡X respondeu Fagin, voltando-se para Bolter ¡X,
realmente de nada.
¡X Eu? ¡X disse Noe, bastante alarmado. ¡X Nao, nao, nao e essa a
minha especialidade.
¡X E qual e a especialidade dele, Fagin? ¡X perguntou Bates, a olhar
com desgosto a expressao covarde de Noe. ¡X Descansar quando nada
esta mal e comer quando tudo esta bem?
¡X Nao cometas rapaziadas com teus superiores ¡X retorquiu Bolter ¡X
ou logo seras castigado.
Bates riu tao estrondosamente da ameaca que Fagin precisou esperar
um bocado de tempo ate que pudesse explicar para Bolter que nao haCHARLES
DICKENS
ÇdÇaÇd
via perigo algum em ele ir a delegacia de policia; pois e certo que ainda
nao chegara a comunicacao do interior informando do que ele fizera e,
caso fosse disfarcado, aquele seria um lugar tao seguro quanto qualquer
outro.
Foi o medo que sentia de Fagin que fez Bolter, de muita ma vontade,
aceitar a empresa. Seguindo as instrucoes do judeu, Bolter trocou as roupas
que usava por um traje de carroceiro que os ladroes carregavam. Cederam-
lhe, tambem, um chapeu e um chicote. Trajado nesses modos,
Bolter devia desempenhar a figura de um interiorano que adentra a delegacia
apenas para observar o que la se passa.
Uma vez paramentado, explicaram a Bolter como reconhecer o Matreiro
e depois o levaram ate bem perto da rua Bow. Apos explicar-lhe
como se comportar dentro do posto de policia, Bates enviou-lhe e prometeu
aguardar ali mesmo ate que voltasse.
Noe Claypole, ou Morris Bolter, conforme a vontade do leitor, seguiu
com perfeicao as instrucoes de Bates, que conhecia aquele lugar como a
palma da mao e sequer precisou pedir qualquer informacao para alcancar a
sala dos juizes. Noe achou-se em meio a uma multidao, principalmente de
mulheres, que tentava enxergar a coluna dos reus, a esquerda; as testemunhas,
no meio; e, a direita, a mesa dos juizes. Esta ultima ocultava-se dos
outros, deixando-os todos a imaginar a majestade da justica.
No banco dos reus, havia apenas duas mulheres, que acenavam para os
admiradores enquanto um homem lia um texto para dois agentes da policia.
Ao lado, um carcereiro se distraia com uma chave e se movia apenas
quando o grito abafado de uma crianca ameacava a gravidade da justica e
ele precisava pedir para que o bebe fosse levado para fora. A sala cheirava
mal e a pintura das paredes ja descascava. A depravacao e a miseria que,
com certeza, conviviam com as pessoas que se acotovelavam ali eram quase
tao repugnantes quanto o po dos objetos.
Noe procurava atento pelo Matreiro. Apesar de diversas mulheres se
passarem perfeitamente por sua mae ou irma e alguns homens, sem esforco,
assemelharem-se a seu pai, ninguem ali correspondia a descricao
que tinham feito de Jack Dawkins. Aguardou ate que as duas mulheres,
condenadas, retiraram-se e entrou outro reu que, sem a menor possibilidade
de erro, era quem procurava.
O Sr. Dawkins entrou cambaleando com a mao metida na algibeira. Assim
que se assentou, perguntou por que motivo o tinham mandado para la.
OLIVER TWIST
ÇdÇaÇe
¡X Cala-te! ¡X disse o carcereiro.
¡X Sou um ingles ¡X continuou o Matreiro. ¡X Exijo os meus direitos?
¡X Seus privilegios logo chegarao bem apimentados ¡X respondeu o
carcereiro.
¡X Se eu nao os tiver garantidos, terei que recorrer ao Ministro ¡X
afirmou Dawkins. ¡X Peco que os senhores magistrados terminem logo
com isto, pois tenho um compromisso para logo e, como sou um homem
de palavra, nao desejo perde-lo, o que, ademais, acarretar-me-a serios
prejuizos e, para sana-los, nao terei outra solucao que nao mover uma
acao de perdas e danos contra aqueles que me prendem aqui.
O Matreiro, entao, demonstrando particular interesse pelo seu caso,
perguntou ao carcereiro os nomes dos dois magistrados que estavam ali
para julga-lo. Tal atitude causou um riso estrondoso na plateia, certamente
nao menor inclusive que aquele que, se estivesse ali, o estouvado
Bates daria.
¡X Silencio! ¡X gritou o carcereiro.
¡X De que se trata? ¡X perguntou um dos magistrados.
¡X Trata-se de um ladrao, excelencia.
¡X E o acusado ja esteve aqui outras vezes?
¡X Muitas vezes ¡X respondeu o carcereiro ¡X, esta sempre por aqui,
excelencia, conheco-o muito bem.
¡X Entao me conheces? ¡X exclamou o Matreiro, enquanto tomava
nota da afirmacao. ¡X Esta ai um caso de deformacao de carater.
Neste instante, ouviu-se uma nova gargalhada e um novo grito de silencio.
¡X E onde estao as testemunhas?
¡X Onde estao elas? ¡X repetiu o Matreiro. ¡X Eu tambem gostaria de
ve-las.
O desejo foi logo atendido.
Apresentou-se um policial, que afirmava ter visto o reu sacar do bolso de
um senhor, em meio a uma multidao, um lenco e, depois de julga-lo muito
velho, limpar o proprio rosto e devolve-lo ao lugar de onde o tinha encontrado.
Por esta razao, conduzira-o ate a delegacia, quando entao encontrara
em seu poder uma caixa de rape de prata com o nome do dono gravado.
Logo o rapaz que tinha aquele nome apresentou-se e afirmou que dera
falta da caixa tao logo conseguira livrar-se daquela mesma multidao.
¡X Desejas perguntar algo para a testemunha? ¡X perguntou o magistrado
ao Matreiro.
CHARLES DICKENS
ÇdÇaÇf
¡X Nao me rebaixarei a tal ponto ¡X respondeu Dawkins.
¡X Tens algo a declarar?
¡X Ouviste o que o juiz perguntou? ¡X berrou o carcereiro ao Matreiro,
pespegando-lhe um par de socos.
¡X Perdao ¡X exclamou Matreiro com os olhos distantes ¡X, foste a
mim que te dirigiste?
¡X E a primeira vez que encontro um vagabundo tao ousado ¡X ralhou
o carcereiro. ¡X Nao queres dizer mais nada, pelintra?
¡X Nao, ao menos nesta casa ¡X respondeu o Matreiro ¡X, pois nao e
aqui que se faz a justica; queiram saber que, neste momento, meu advogado
esta a falar com o vice-presidente da Camara dos Comuns; e noutro
sitio que vou falar aos meus iguais, quando esses dois juizes arrependerse-
ao de ocupar o posto de que se orgulham.
¡X Ja chega! Gritou o magistrado. ¡X Mantenham-no preso.
¡X Venha ¡X disse o carcereiro.
¡X Esse ar de medo nao vos adiantara nada ¡X exclamou o Matreiro
aos magistrados ¡X, nao terei pena de voces!
Dito isto, o Matreiro deixou-se levar para fora da sala, ameacando levar
o caso as altas cortes. Do lado de fora, pos-se a rir, orgulhoso do feito.
Depois de ve-lo em uma pequena cela, Noe esforcou-se para chegar ao
local onde Bates o aguardava. Antes de aparecer, o prudente gatuno certificou-
se de que ninguem seguira Bolter.
Ambos correram para contar a Fagin as animadoras noticias de que
o Matreiro estava tendo sucesso e conseguindo manter a sua gloriosa
reputacao.
Capitulo XLIV
Em que Nancy falha ao tentar cumprir a promessa feita a Rosa Maylie.
Posto ser especialista nas artes do fingimento e da dissimulacao, Nancy
nao conseguia esconder por inteiro a perturbacao que suas ultimas atitudes
lhe tinham causado no espirito. Lembrava-se de que tanto Sikes quanto
Fagin confiaram-lhe servicos que nao dariam a qualquer outra pessoa,
certos de que ela nunca os trairia. Mesmo que tais servicos fossem infames,
e apesar de serem amargos seus sentimentos com relacao a Fagin,
que a lancara ao mundo da miseria e do crime, do qual nao ha volta,
mesmo assim ela temia ser a causadora da prisao que culminaria com a
morte que ele tanto temia.
Eram essas, porem, meras elucubracoes de um espirito que, apesar de
nao conseguir se livrar de suas antigas companhias, estava firme no proposito
a que se tinha determinado. Outrora o temor por Sikes talvez fosse
forte o suficiente para que a fizesse recuar. Agora, contudo, quando ja se
tinha imposto a si mesmo o segredo e recusara ate um refugio para a vida
miseravel que levava, que mais podia fazer?
Ela estava decidida.
Ainda que estivesse convencida disso, esses atrozes sofrimentos voltavam
com insistencia a sua cabeca, deixando-lhe marcas. Em poucos dias,
ela emagrecera e se tornara muito palida. Por vezes, nao percebia o que
lhe era dito, outras, ficava indiferente a coloquios em que, antes, seria a
parte principal; porventura, ria sem causa e fazia bulhas sem a menor
justificativa. Um instante depois, sentava-se calada com a cabeca repousada
nas maos e o esforco que fazia para despertar era a principal mostra
de que estava doente e de que seus pensamentos voavam distantes daquilo
que seus companheiros discutiam.
Era domingo a noite e o sino de uma igreja proxima bateu as horas.
Sikes e o judeu conversavam, mas calaram-se para ouvir. A rapariga tambem
procurou escutar: onze horas.
OLIVER TWIST
ÇdÇaÇi
¡X Falta apenas uma hora para a meia-noite ¡X exclamou Sikes, a
empurrar a cortina para observar o exterior. ¡X A noite esta escura e
pesada, excelente para o trabalho.
¡X E uma pena ¡X respondeu Fagin ¡X que nao tenhamos nada em
mente.
¡X Pela primeira vez, estas certo ¡X continuou Sikes ¡X, e uma pena.
O judeu suspirou e balancou a cabeca, desanimado.
¡X Nao temos nada a fazer a nao ser esperar as coisas se acertarem e
recuperar o tempo perdido ¡X afirmou Sikes.
¡X Gosto de te ouvir dizer essas coisas ¡X exclamou Fagin, ousando
afagar-lhe o ombro.
¡X Melhor que gostes ¡X retorquiu Sikes.
¡X Parece-me que hoje ¡X riu-se Fagin ¡X estas se sentindo melhor.
¡X Nao me sinto bem com essa garra nos meus ombros, respondeu
Sikes enquanto afastava a mao do judeu.
¡X Voce se sente pilhado, nao e, meu caro? ¡X exclamou Fagin, demonstrando
que nao se ofendera.
¡X Sinto-me pilhado pelo demonio ¡X respondeu Sikes. ¡X Nunca vi
homem parecido contigo, a nao ser, talvez, teu pai, que a essa hora deve
estar chamuscando.
Como resposta, Fagin apontou para Nancy, que se tinha vestido e preparava-
se para sair.
¡X Ei, Nancy, aonde pensas que vai a esta hora da noite?
¡X Nao longe.
¡X E isso e maneira de responder? ¡X voltou Sikes. ¡X Para onde vais?
¡X Ja disse que nao vou muito longe.
¡X E eu perguntei onde, nao me ouviu?
¡X Nao sei ¡X respondeu-lhe a rapariga.
¡X Eu sei ¡X retorquiu Sikes, mais por causa do seu espirito obstinado
do que por fazer caso de que Nancy fosse aonde bem entendesse ¡X, vais
ficar aqui; senta-te.
¡X Nao me sinto bem ¡X disse a rapariga ¡X, preciso de ar fresco.
¡X Coloque a cabeca na janela ¡X respondeu-lhe Sikes.
¡X Nao e suficiente, disse Nancy, preciso passear um pouco.
¡X Nao iras ¡X respondeu Sikes e levantou-se para trancar a porta e
jogar as chaves sobre um armario. ¡X Agora ¡X disse o ladrao ¡X, fica ai
quieta.
CHARLES DICKENS
ÇdÇaÇj
¡X Tu, Sikes, por acaso sabes o que estas a fazer? ¡X empalideceu Nancy.
¡X Se eu sei o que estou a fazer? ¡X gritou Sikes a Fagin. ¡X Ela deve
ter enlouquecido, do contrario, nao falaria dessa maneira comigo.
¡X Estas me deixando louca ¡X exclamou Nancy, a colocar as maos no
peito como se quisesse evitar uma violenta reacao. ¡X Deixa-me sair agora.
¡X Nao ¡X respondeu-lhe Sikes.
¡X Diga-lhe para deixar-me sair, Fagin ¡X gritou Nancy, enquanto batia
os pes no chao. ¡X Sera melhor para ele.
¡X Cala-te, mulher ¡X gritou Sikes, virando-se para enfrenta-la ¡X, ou
o cao arranca-lhe a garganta; o que tens?
¡X Deixa-me sair ¡X Nancy gritou e depois se atirou ao chao em frente
a porta ¡X deixa-me sair por apenas uma hora.
¡X Que meus membros encolham ¡X exclamou Sikes ¡X se esta rapariga
nao estiver louca.
¡X Nao antes de me deixares sair ¡X gritou Nancy ¡X, nao antes de me
deixares sair.
Na primeira oportunidade, Sikes agarrou a rapariga e arrastou-a ate
um quarto ao lado, prendendo a pobre miseravel em uma cadeira. Ela
debateu-se, insistindo para sair ate que, as doze badaladas, desistiu fatigada.
Advertindo-a para que nao mais tentasse sair, Sikes deixou-a para tras e
voltou a companhia do judeu.
¡X Como esta estranha ¡X exclamou o ladrao a limpar o suor do rosto.
¡X E verdade ¡X exclamou o pensativo Fagin.
¡X Por que diabos resolveu sair esta noite foi o que ela nao conseguiu
me dizer ¡X exclamou Sikes. ¡X Tu, que a conheces melhor, talvez saibas.
¡X Obstinacao, meu caro, obstinacao feminina ¡X respondeu o judeu
com os ombros encolhidos.
¡X E o que tambem suponho grunhiu Sikes. ¡X Pensei que a tivesses
educado, mas ela nunca esteve tao mal.
¡X Mal ¡X repetiu Fagin ¡X, muito mal; nunca a vi berrar por tao pouco.
¡X Nem eu ¡X concordou Sikes ¡X, minha febre deve ter-lhe sobrado
no sangue.
¡X E certo ¡X respondeu o judeu.
¡X Pois, da proxima vez, arranco-lhe eu mesmo o sangue ¡X ameacou
Sikes.
Com um gesto, Fagin demonstrou que aprovava a atitude do nobre colega.
¡X Quando estive convalescendo, ela nao me saiu do lado ¡X afirmou
OLIVER TWIST
ÇdÇbÇa
Sikes ¡X, enquanto tu, Fagin, deixaras-me para tras; talvez as privacoes
por que passamos naquele periodo tenham-na deixado perturbada.
¡X So pode ser ¡X murmurou o judeu ¡X, agora, cala-te.
Nancy voltava a companhia dos ladroes; vinha com os olhos inchados
e vermelhos. Sentou-se no mesmo lugar em que estava antes e comecou
a rir.
¡X Agora, mudou o comportamento ¡X exclamou Sikes, olhando surpreso
para o amigo.
Fagin, com um gesto, sugeriu que nao mais lhe dessem atencao; dali a
pouco a rapariga voltou ao seu estado natural. Depois de dizer que nao
receava que ela recomecasse, Fagin apanhou o chapeu e desejou boa noite
a Sikes; a porta, estacou e pediu para que lhe alumiasse o caminho.
¡X Arranja-lhe um pouco de luz ¡X disse Sikes a Nancy. ¡X Seria uma
pena se um fidalgo quebrasse o pescoco no escuro.
Nancy seguiu o velho com uma vela. No final do corredor, ele estacou,
fez sinal de silencio com os dedos e murmurou:
¡X O que aconteceu, Nancy?
¡X O que voce acha? ¡X respondeu no mesmo tom a rapariga.
¡X Se ele, Nancy ¡X disse o judeu apontando para cima ¡X, e tao duro
contigo, por que nao...
¡X O que? ¡X perguntou Nancy, com os labios quase a tocar o ouvido do
velho.
¡X Nao vou te dizer agora ¡X disse o judeu ¡X, voltaremos a falar sobre
isso; podes confiar em mim, Nancy. Se queres te vingar daqueles que te
tratam como um cao, ou pior do que um cao, pois ele o afaga de quando
em quando, vem encontrar-me; nao convives com ele ha muito, ao passo
que a mim me conheces ja faz tempo.
¡X Sei do que es capaz ¡X respondeu a rapariga, sem a menor emocao.
¡X Boa noite.
Nancy nao deixou que Fagin a tocasse, mas desejou-lhe boa noite outra
vez e respondeu ao aceno do judeu com um gesto. Depois, fechou a
porta por tras de si.
Fagin, no caminho de casa, ocupou-se com os pensamentos que lhe
atormentavam o espirito. Estava com a ideia fixa de que Nancy, e isso nao
apenas por conta do que tinha acabado de acontecer (que apenas confirmava
seus pensamentos), cansada de ser maltratada, tinha procurado uma
outra companhia. As maneiras afetadas, as saidas repentinas de casa, a
CHARLES DICKENS
ÇdÇbÇb
indiferenca com relacao a quadrilha que outrora tanto a preocupava e
seu desespero por sair aquela hora confirmavam suas suspeitas. O objeto
dessa paixao nao estava decerto entre os rapazes da gangue do judeu. Se
conseguissem encontra-lo, talvez arranjassem ao grupo um apoio tao valioso
quanto o de Nancy.
Fagin ainda se magoava por antigas desavencas que tivera com Sikes.
Se conseguisse que a rapariga o envenenasse, livrar-se-ia de um antigo
desafeto e, alem, teria a moca nas maos.
¡§Mas¡¨, conjeturava o judeu, ¡§e se ela nao aceitasse o acordo?¡¨
Como tinha o cerebro possante para tais tramas, logo o judeu achou a
solucao; bastava que se colocasse de tocaia e descobrisse o motivo da mudanca
repentina da rapariga. Assim, ele ameacaria revelar tudo a Sikes
(de quem ela tinha pavor) e nao lhe sobraria qualquer outra alternativa.
¡X E isso! ¡X exclamou Fagin, a pensar em voz alta. ¡X Desta maneira
ela nao tera opcao e fara o servico.
Com isso, Fagin lancou um olhar cheio de colera para tras e, com as
maos metidas na algibeira, voltou para casa, enquanto apertava os dedos
como se estivesse a esmagar o inimigo com as maos.
Capitulo XLV
Fagin emprega Noe Claypole em uma missao secreta.
O velho despertou logo cedo e ficou ansioso a espera de seu novo auxiliar.
Quando este apareceu, partiu com voracidade para o desjejum.
¡X Bolter ¡X falou Fagin, enquanto puxava a cadeira adiante de
Morris Bolter.
¡X Ca estou ¡X respondeu-lhe Noe ¡X, mas me deixa comer antes de
falar qualquer coisa.
¡X Podes falar enquanto comes, ou nao? ¡X retorquiu Fagin, a amaldicoar
a avidez do jovem amigo.
¡X Sim, inclusive sinto mais fome ¡X respondeu-lhe Noe, enquanto
cortava uma enorme fatia de pao. ¡X Onde esta Carlota?
¡X Saiu ¡X disse Fagin. ¡X Mandei-a passear com outra rapariga porque
queria conversar contigo a sos.
¡X Certo, mas eu preferia que antes ela me preparasse algumas torradas
com manteiga; mas fale, pois isso nao me interrompera.
Em verdade, nada interromperia o seu firme proposito de fartar-se a mesa.
¡X Trabalhaste bem ontem, meu caro ¡X comecou Fagin. ¡X Conseguiste
uma fortuna: seis xelins e nove pence e meio logo no primeiro dia!
¡X Nao deixa de fora as tres vasilhas e a caneca de leite ¡X acrescentou
Noe.
¡X Nao, claro que nao; as vasilhas foram grandes conquistas e a caneca,
uma jogada de mestre.
¡X Para quem esta comecando ¡X disse o modesto Bolter ¡X, ate que
nao foi mal; a caneca estava a apodrecer a frente de uma estalagem, talvez
ate enferrujasse.
Enquanto o judeu fingia uma gargalhada, Claypole devorou o seu primeiro
naco de pao e logo partiu para o segundo.
¡X Preciso que voce me realize ¡X falou Fagin ¡X um servico que exige
cuidado e atencao.
OLIVER TWIST
ÇdÇbÇe
¡X Nao me va enviar ¡X respondeu-lhe Noe ¡X outra vez para aquela
estacao de policia; nao sou adequado para essas coisas.
¡X Nao ha o menor perigo na empreitada ¡X continuou Fagin. ¡X Trata-
se apenas de tocaiar uma mulher.
¡X Velha?
¡X Uma rapariga ¡X respondeu Fagin.
¡X Para isso devo servir, pois ja na escola eu entregava os outros; e por
que queres espiona-la?
¡X Nao se trata de nada demais; apenas quero que vejas por onde ela
anda, com quem fala e sobretudo o que conversa; traze-me todas essas
informacoes.
¡X E de quanto sera a paga? ¡X perguntou ansioso.
¡X Se fizeres bem o servico ¡X disse Fagin ¡X, uma libra; so paguei tanto
assim por um servico quando sabia que dele teria grandes recompensas.
¡X E de quem se trata? ¡X inquiriu Noe.
¡X Ela e do nosso bando.
¡X Entao, desconfias de alguem? ¡X perguntou Noe.
¡X Arranjou novas companhias ¡X respondeu-lhe Fagin ¡X, preciso
saber de quem se trata.
¡X Se forem pessoas respeitaveis ¡X riu-se Noe ¡X, iras te aproximar
delas, nao? Estou a tua disposicao.
¡X Eu sabia que aceitarias ¡X disse Fagin, satisfeito com o sucesso.
¡X E onde esta ela? ¡X perguntou Noe. ¡X Quando devo comecar?
¡X No momento apropriado, mostro-te de quem se trata ¡X respondeu-
lhe Fagin. ¡X Deixa tudo por minha conta.
O espiao passou as proximas noites preparado para, a primeira ordem de
Fagin, sair a rua atras de sua presa. Durante seis longas noites, o judeu retornou
a casa aborrecido, a afirmar que ainda nao chegara o momento certo. Na
setima, ele sequer conseguia esconder a excitacao de seu rosto. Era domingo.
¡X Ela saira esta noite, meu caro; passou o dia sozinha e o homem que ela
tanto teme estara de volta apenas de madrugada; seja veloz e vem-me atras!
A intensa agitacao do judeu contaminou Noe, que ergueu-se sem dizer
palavra. Os dois caminharam por um labirinto de ruas escuras e estreitas
ate chegarem a frente de uma taberna, que Noe reconheceu ser a mesma
onde tinha se hospedado da sua chegada a Londres.
Ja se tinha passado das onze horas e a porta estava cerrada. Fagin fez um
ruido e a porta abriu-se com muita cautela. Os dois entraram em silencio.
CHARLES DICKENS
ÇdÇbÇf
Trocando as palavras por gestos, Fagin mostrou o vidro atraves do qual
Noe devia observar.
¡X E ela que devo seguir?
O judeu fez um gesto afirmativo.
¡X Nao consigo ver-lhe o rosto ¡X reclamou Noe. ¡X Ela esta com as
faces voltadas para o chao e a vela me atrapalha.
¡X Espera ¡X respondeu Fagin, enquanto fazia um sinal a Barney. O
rapaz, entao, entrou na sala, ajeitou a vela e falou algo com Nancy. Para
ouvi-lo, a moca ergueu o rosto.
¡X Consegui ve-la ¡X exclamou Noe.
¡X Observe-a com atencao ¡X disse o judeu.
¡X Consigo reconhece-la entre uma multidao.
Quando a rapariga ergueu-se e passou a poucos passos de onde eles
estavam, ambos prenderam a respiracao para que nao fossem ouvidos. O
moco, que segurava a porta, chamou-os com um sussurro e disse que eles
poderiam sair. Noe olhou para Fagin e desapareceu.
¡X Va pela esquerda ¡X disse-lhe Barney ¡X, e fique do outro lado da
avenida.
Noe obedeceu e pode reconhecer, ja um pouco distante, a figura da
rapariga. Nancy estacou uma ou duas vezes e deixou passar dois homens
que se iam atras dela. Enquanto avancava, contudo, parecia tomar coragem
e vencer o nervosismo. O espiao, sempre distante, caminhava sem
olhar em qualquer outra direcao.
Capitulo XLVI
O encontro se realiza.
Quando duas figuras surgiram atravessando a ponte de Londres, o relogio
bateu tres quartos passados das onze. Uma, a mulher, avancava a
passos apressados e observava cheia de ansiedade ao redor, como se quisesse
avistar alguem; a outra, a figura de um homem, procurava adequar
seu passo ao da mulher, estacando quando ela estacava e correndo quando
ela corria, sempre oculto nas sombras do caminho.
Desse jeito, atravessaram a ponte, da margem de Middlesex para a de
Surrey, quando a mulher, desapontada por nao ter encontrado ninguem,
retornou um pouco. O movimento brusco, porem, nao embaracou seu
vigia que, depois de alguns malabarismos, deixou-a passar ao lado oposto.
Quando ela se distanciara de novo, ele voltou a segui-la. Perto do meio
da ponte, ela estacou.
O homem estacou tambem.
O breu cobria toda a noite. Pouca gente circulava, aquela hora, no escuro.
Os transeuntes nao davam atencao nem aquela mulher, nem ao
homem que a observava. Sua roupa tinha sido preparada para nao dar
nas vistas daqueles miseraveis de Londres que procuravam um arco frio
ou qualquer canto para repousar.
No leito do rio, uma nuvem cobria e avermelhava as embarcacoes e
dificultava a visao das construcoes que se erguiam as margens. As torres
das igrejas de Sao Marcos, de um lado, e de Sao Salvador, do outro, nao
eram refletidas pela agua escura que corria, ainda, sem deixar o menor
sinal dos armazens e dos mastros das embarcacoes que se amontoavam
em toda a extensao do rio.
Quando o sino de Sao Paulo denunciou a morte de mais um dia, a
rapariga ja nao mais disfarcava o nervosismo, indo a frente e logo recuando
um pouco, sempre com o espiao a sua cola. A meia-noite caia sobre a
OLIVER TWIST
ÇdÇbÇi
populacao da cidade. O palacio, a estalagem, a prisao, a casa de loucos, as
camaras de nascimento e de morte, de saude e de doenca, o rosto rigido
do cadaver e o sono tranquilo da crianca, para todos era meia-noite.
Pouco depois que o relogio soou, uma jovem senhorita, acompanhada
por um fidalgo de cabelos brancos, saltou de um carro perto da ponte,
despediu-se do veiculo e correu a atravessa-la.
Os dois iam apressados, com a expectativa de encontrar alguem que
dificilmente estaria por ali, quando avistaram a tal pessoa. Estacaram
surpresos, mas logo corrigiram o ato, pois no mesmo instante um sujeito
vestido de campones passou tao perto de ambos que quase os tocou.
¡X Nao aqui ¡X disse Nancy ¡X, tenho medo de falar-lhes aqui. Vamos
sair do passeio por aquela escada.
Logo que ela disse essas palavras e apontou para o lugar, o campones
voltou-se e perguntou por que nao saiam do caminho.
A escadaria era a mesma que descia a margem do Surrey, em frente a
igreja de Sao Salvador. O campones, sem ser notado, desceu-a apressado.
A escadaria formava-se de tres lances. No segundo, a construcao terminava
em uma plataforma que avancava em direcao ao Tamisa. Os degraus,
ali, distanciavam-se de tal maneira que, virando-se um angulo sequer, a
pessoa ja se ocultava dos outros. Nesse ponto, o campones olhou a roda e
concluiu que nao havia melhor ponto para, por tras da pilastra e com a
mare baixa, espionar a conversa.
O tempo passava tao devagar e os outros demoravam-se tanto a chegar
que o espiao, varias vezes, julgou que se tinha colocado em lugar inadequado
para ouvir ou que tinham desistido da conversa. Quando estava
quase abandonando o posto, ouviu passos e depois o som de vozes que
vinham de um lugar muito proximo.
O campones juntou-se a parede e espichou os ouvidos.
¡X Ja estamos longe o suficiente ¡X disse a voz que com certeza era a
do fidalgo. ¡X Nao sei se mais alguem confiaria em ti tanto para vir ate
esse lugar. Como podes perceber, partilho da tua loucura.
¡X Minha loucura! ¡X exclamou a rapariga. ¡X Es muito sabio, senhor,
mas isso nao importa.
¡X Por que ¡X continuou o cavalheiro um pouco mais gentil ¡X, trouxeste-
nos a lugar tao ermo? Por que nao nos deixa conversar la em cima,
onde ha um pouco de luz?
¡X Ja lhe disse, cavalheiro ¡X respondeu Nancy a tremer ¡X, que
CHARLES DICKENS
ÇdÇbÇj
tenho receio de falar la em cima; sinto tanto medo que mal me posso
parar em pe.
¡X Medo de que? ¡X perguntou o fidalgo, que parecia apiedar-se
dela.
¡X Nao sei bem de que ¡X respondeu a miseravel. ¡X Passei o dia pensando
na morte; o medo quase queimou-me viva; para me distrair, coloquei-
me a ler um livro, mas ate nas letras eu via essas coisas.
¡X Imaginacao ¡X exclamou o fidalgo para acalma-la.
¡X Nao ¡X disse a rapariga em voz assustada. ¡X Posso jurar que vi a
palavra caixao escrita em todas as paginas do livro e, ainda esta noite, um
passou perto de minha casa.
¡X Nao ha nada de anormal nisso ¡X respondeu o cavalheiro ¡X, eles
passam todos os dias a minha frente.
¡X Caixoes de verdade ¡X retorquiu a rapariga ¡X, aquele nao era.
Havia algo de tao estranho nas maneiras da rapariga que a pele do
espiao se arrepiou e o sangue gelou-lhe as veias. A voz da senhorita, pedindo
para que a rapariga se acalmasse e deixasse para tras tais pensamentos,
tranquilizou-o um pouco.
¡X Seja gentil com ela ¡X disse a senhorita ao cavalheiro ¡X, a pobre
criatura precisa disso.
Depois de dar um tempo para que ela se acalmasse, o cavalheiro se
dirigiu a Nancy:
¡X Voce nao esteve aqui no domingo passado ¡X disse.
¡X Nao pude sair ¡X respondeu Nancy ¡X, prenderam-me.
¡X Quem?
¡X Ja conversei sobre tal homem com esta senhorita.
¡X Ele nao suspeita, espero, de que nos procuraste ¡X exclamou o
cavalheiro.
¡X Nao ¡X respondeu a rapariga, a balancar a cabeca ¡X, mas me e
muito dificil largar-lhe sem dizer o meu destino; no dia que privei com
essa senhorita, so sai porque dei-lhe laudano para beber.
¡X Ele despertou antes da tua volta? ¡X perguntou o fidalgo.
¡X Nao, e nem ele nem ninguem suspeita de mim.
¡X Bom ¡X exclamou o cavalheiro ¡X, agora me escute.
¡X Estou pronta ¡X respondeu a rapariga depois de uma pausa.
¡X Esta senhorita revelou-me, a mim e a um amigo de confianca, o
que lhe disseste ha quinze dias ¡X disse o fidalgo. ¡X Confesso que, no
OLIVER TWIST
ÇdÇcÇa
inicio, achei que talvez nao pudessemos confiar em voce, mas agora acredito
que podemos.
¡X Podem ¡X assentiu a rapariga.
¡X Para provar ¡X continuou o cavalheiro ¡X, a minha confianca, vou
te revelar todo o nosso plano; tentaremos arrancar o segredo desse tal de
Monks; mas se nao conseguirmos, teremos que apanhar o homem conhecido
como ¡§judeu¡¨.
¡X Fagin! ¡X encolheu-se a rapariga.
¡X Entregue-nos esse homem ¡X continuou o fidalgo.
¡X Nao vou fazer isso ¡X respondeu a rapariga ¡X, nunca! Ele e pior
que o diabo para mim, mas nao o entrego.
¡X Nao? ¡X continuou o fidalgo, que parecia esperar tal resposta.
¡X Nunca ¡X respondeu a rapariga.
¡X Diga-me por que.
¡X Pela razao ¡X afirmou a rapariga ¡X que esta senhorita conhece e
nao diz porque me prometeu guardar segredo. E essa mesma razao que
me empurra a seguir a vida miseravel que ele leva.
¡X Entao ¡X apressou-se a dizer o fidalgo ¡X, entregue-me Monks e
deixe-me cuidar dele.
¡X E se ele entregar os outros?
¡X Prometo que, nesse caso, nao passaremos nada adiante; a propria
historia de Oliver deve ter momentos embaracosos; tiramos dele as informacoes
e depois deixamos todos em paz.
¡X E se as coisas nao acontecerem dessa forma? ¡X perguntou Nancy.
¡X Garanto que o judeu so sera levado as grades com o seu consentimento
¡X disse Rosa. ¡X Tenho razoes para achar que voce ira entrega-
lo.
¡X A senhorita me promete? ¡X perguntou a rapariga.
¡X Dou-lhe a minha palavra de honra ¡X respondeu Rosa.
¡X E Monks jamais sabera quem deu as informacoes? ¡X inquiriu Nancy,
depois de uma pausa.
¡X Jamais ¡X respondeu o cavalheiro ¡X, faremos a coisa de tal jeito
que ele nao suspeitara de nada.
¡X Sou mentirosa e vivo entre mentirosos ¡X disse Nancy depois de
outra pausa ¡X, mas vou acreditar nas suas palavras.
Depois de receber garantias de segredo, a rapariga, em voz tao baixa
que o espiao muitas vezes nao podia ouvi-la, descreveu a estalagem de
CHARLES DICKENS
ÇdÇcÇb
onde tinha vindo. Deu a localizacao exata do lugar e o horario em que
Monks costumava frequenta-lo; para recordar as feicoes do ladrao, Nancy
pos-se a pensar um instante.
¡X Ele e alto ¡X continuou a rapariga ¡X e forte, mas nao robusto. Quando
anda, olha com frequencia para tras, primeiro para um lado, depois para
o outro; seus olhos sao os mais fundos que ja vi em um homem; os labios sao
palidos e desfigurados pelas marcas dos dentes, pois, quando tem ataques
de nervosismo, morde as maos e chega a cobri-las de feridas. ¡X Por que o
senhor parou de escrever? ¡X perguntou a rapariga de repente.
¡X Nao foi nada ¡X respondeu o fidalgo ¡X, continue por favor.
¡X Muito do que estou a te dizer, ouvi-o das pessoas da casa, pois estive
com ele apenas duas vezes e, em ambas as ocasioes, ele estava coberto por
uma capa enorme. Acho que e tudo que posso dizer. Nao! ¡X exclamou
ela. ¡X No pescoco dele, e possivel enxergar...
¡X Uma enorme marca vermelha, como a cicatriz de uma queimadura
¡X interrompeu-lhe o fidalgo.
¡X Entao, o senhor o conhece? ¡X exclamou a rapariga surpreendida e,
por um instante, eles ficaram tao quietos que o espiao podia ouvir-lhes
respirar.
¡X Penso que sim ¡X respondeu o fidalgo ¡X, pela sua descricao; mas
pode ser que esteja a confundi-lo com outro; isso veremos depois.
Um ou dois passos mais distante, como se nao quisesse ser ouvido e, desta
forma, quase ao lado do espiao, o fidalgo murmurou que so podia ser ele.
¡X Agora ¡X continuou o cavalheiro, ja no posto antigo (conforme a
voz deixava o espiao perceber) ¡X, voce nos fizeste um grande favor e e
nosso desejo recompensar-te; o que podemos fazer por ti?
¡X Nada ¡X respondeu Nancy.
¡X Por favor ¡X insistiu o cavalheiro, em uma voz tao docil que o mais
duro coracao tocar-se-ia ¡X, diga-me o que posso fazer para te ajudar.
¡X Nada ¡X respondeu a rapariga a chorar ¡X, nao podes fazer nada
por mim, pois ja estou perdida.
¡X Julgaste dessa forma ¡X disse o fidalgo. ¡X O passado te foi um peso
enorme, mas podes ter esperancas no futuro. Nao estamos dizendo que
podemos trazer-te paz de espirito, pois isso so voce mesmo podera conseguir;
mas um lugar onde te abrigares, ou na Inglaterra ou em um pais no
estrangeiro, se preferires, nao so podemos te proporcionar, como esse e o
nosso mais profundo desejo. Antes que o dia nasca outra vez, estaras lonOLIVER
TWIST
ÇdÇcÇc
ge das maos daqueles seus antigos companheiros que tanto mal te causaram;
venha, nao deves mais trocar uma palavra sequer com esses ladroes.
Nao perca essa oportunidade!
¡X Ela vai se convencer! ¡X exclamou a senhorita.
¡X Acho que nao, querida ¡X respondeu o fidalgo.
¡X Nao, nao vou ¡X disse a rapariga. ¡X Nao tenho como me libertar
da desgraca em que vivo, e tarde demais; agora, devo retornar a
minha casa.
¡X Casa? ¡X repetiu a senhorita, dando enfase a palavra.
¡X A minha casa, senhorita ¡X repetiu a rapariga ¡X, o lar que todo o
trabalho da minha vida conquistou. Devo ir-me. Se queres me oferecer
algo, peco que me deixes ir sozinha.
¡X Talvez tenhamos comprometido a tua seguranca, conversando contigo
mais tempo do que dispunhas ¡X disse o cavalheiro.
¡X Sim ¡X respondeu a rapariga cheia de pressa.
¡X Como sera, daqui em diante, a tua vida? ¡X perguntou a senhorita.
¡X Como? ¡X repetiu a rapariga. ¡X Veja as aguas escuras desse rio. Ja
nao ouviste falar dos pobres miseraveis que se atiram aqui? Daqui a alguns
anos, ou meses, talvez, sera esse o meu fim.
¡X Nao fale isso ¡X exclamou a senhorita a chorar.
¡X Deus proteja a senhorita das noticias desses horrores ¡X disse a rapariga.
¡X Boa noite!
O fidalgo distanciou-se um pouco.
¡X Leve esta bolsa ¡X disse a senhorita ¡X para o caso de alguma
emergencia.
¡X Nao ¡X recusou a rapariga ¡X, nao fiz nada por dinheiro; ao menos,
permita-me a honra do meu desinteresse. Apenas me deixe algo que eu
possa vestir, um anel, talvez. Nao, nao, o lenco ou uma luva. Isso! Muito
obrigado, que Deus vos abencoe.
O fidalgo e a senhorita deixaram-na ir, pois temiam que sua ausencia
lhe causasse problemas ainda maiores. Depois, foi possivel ouvir alguns
passos e, em seguida, as vozes desapareceram.
As duas figuras, porem, estacaram apos galgar as escadas.
¡X Ela nos chama, parece que estou a ouvir sua voz ¡X exclamou a
senhorita.
¡X Nao, minha querida ¡X respondeu o Sr. Brownlow, a olhar com
tristeza para tras ¡X, ela nao saira dali enquanto nao nos formos.
CHARLES DICKENS
ÇdÇcÇd
Como Rosa Maylie estacara, o fidalgo tomou-lhe o braco e fez com que
ela o seguisse. Quando por fim eles sumiram, Nancy estirou-se em um
dos degraus e pranteou, em grossas lagrimas, toda a sua angustia.
Depois ergueu-se e alcou a escada com grande dificuldade. O espiao
ainda permaneceu em seu posto por alguns minutos e, apos ter certeza de
que todos tinham mesmo partido, deslizou pelas sombras da mesma maneira
que tinha feito para chegar ate ali.
No topo, outra vez, Noe Claypole observou com atencao as redondezas
e, certo de que ninguem o vira, desabalou em direcao a casa de Fagin
o mais rapido que podia.

Capitulo XLVII
Que conta as fatais consequencias do encontro.
Faltavam duas horas para que o novo dia clareasse; e esse o momento
que, no outono, pode com justeza ser chamado de madrugada; as ruas
estao escuras e desertas, os ultimos beberroes se recolhem e ate os ruidos
noturnos parecem estar dormitando. Fagin aguardava na sua velha toca
com os olhos tao vermelhos e o rosto tao palido e contorcido que parecia
mais um fantasma que um velho ladrao.
Encontrava-se junto a uma lareira apagada, todo enrolado a um manto,
com o rosto defronte a chama de uma vela. A mao direita erguia os
labios, a denunciar que ele estava metido em profundos pensamentos,
deixando a mostra as gengivas que mais se pareciam com as de um cao ou
de um rato.
Perto dele, Noe Claypole jazia em um sono profundo. O velho olhava
para ele e, em seguida, voltava o rosto para a vela; depois, olhava a roda e,
outra vez, em direcao a vela. Tudo isso indicava que o objeto de seus
pensamentos estava em outro lugar.
Estava.
Ele parecia mortificado por causa do fracasso de seu plano, sentindo
um odio profundo da rapariga que ousara fazer combinacoes com estranhos;
tambem nao acreditava que ela nao o entregaria e se encolerizava
por nao poder se vingar de Sikes; por fim, temia a prisao e a morte. Todos
esses pensamentos ferviam em seu cerebro; causavam-lhe terriveis sentimentos
e o faziam planejar acoes nefastas.
Assim, ficou sentado ate ouvir passos a rua.
¡X Ja era hora ¡X murmurou Fagin ¡X, ja era hora...
A campainha soou no mesmo momento em que dizia aquelas palavras.
Ele ergueu-se, foi ate a porta e retornou acompanhado de um homem
todo coberto, com um embrulho debaixo do braco. Quando os dois se
sentaram, o homem livrou-se da capa; era Sikes.
OLIVER TWIST
ÇdÇcÇg
¡X Pensei que conseguia chegar aqui tres horas atras, mas deixemos
isso de lado ¡X disse ele. ¡X Tome conta do embrulho e faca o melhor uso
possivel.
Fagin tomou o pacote, trancou-o em um armario e voltou a sentar.
Enquanto fazia isso, contudo, nao tirou os olhos do ladrao. Agora que, de
novo, estavam frente a frente, mirava-o com tal violencia que seus labios
chegava a tremer.
¡X O que foi? ¡X perguntou Sikes. ¡X Por que me olhas desse jeito?
O judeu ergueu o dedo, mas o nervosismo nao o deixou dizer nada.
¡X Inferno! ¡X exclamou Sikes. ¡X O velho esta louco, preciso ter
cuidado.
¡X Nao, nao estou ¡X respondeu Fagin. ¡X Nao por tua causa.
¡X Nao? ¡X exclamou Sikes enquanto transferia a pistola para um lugar
mais conveniente. ¡X Isso e bom para um de nos.
¡X O que vou te contar, Sikes, deixar-te-a em pior estado que eu.
¡X Entao ¡X respondeu o outro ¡X, fale logo, senao Nancy comeca a
pensar que estou perdido por ai.
¡X Perdido! ¡X exclamou Fagin. ¡X Disso ela ja cuidou.
Sikes olhou-o perplexo e, como nao ouvisse qualquer explicacao, ergueu
Fagin pelo colarinho com grande violencia.
¡X Fala ¡X disse ele ¡X, fala logo antes que eu te corte a garganta.
¡X Imagine que aquele rapaz ali deitado... ¡X comecou Fagin.
Sikes olhou, como se nao o tivesse visto desde que entrara, em direcao
a Noe; certo...
¡X Imagina que aquele rapaz ¡X continuou Fagin ¡X resolva se colocar
contra nos todos e, durante um fortuito encontro com estranhos, descreva-
nos e revele onde podemos ser encontrados; imagine que ele tenha
revelado um plano que envolve a todos nos sem correr o menor risco de
ser preso ou prejudicado por causa disso; imagine que ele tenha feito
tudo isso apenas por um mero capricho; ainda me ouves? ¡X perguntou
Fagin. ¡X O que achas disso?
¡X O que eu acho? ¡X respondeu Sikes a tremer. ¡X Se ainda ninguem
o tivesse feito, esmagaria seus ossos e o torceria inteiro.
¡X E se eu tivesse feito isso? ¡X inquiriu Fagin. ¡X Eu que posso levar
para a forca, alem do meu, uma quantidade enorme de pescocos.
¡X Nao estou certo ¡X murmurou o ladrao ¡X, mas se pudesse, moeria
sua cabeca em pleno tribunal.
CHARLES DICKENS
ÇdÇcÇh
¡X E se quem tivesse feito isso fosse Bates, ou o Matreiro ou...
¡X Nao me importa quem ¡X respondeu Sikes ¡X, faria o mesmo com
qualquer um.
Fagin nao respondeu nada, apenas tomou o pobre dorminhoco nos bracos
e colocou-o sentado. Depois de ouvir seu nome falso por diversas vezes,
Noe espreguicou-se e abriu os olhos.
¡X Bolter, pobre Bolter ¡X disse Fagin, com uma cruel alegria. ¡X Estas
muito cansado depois de ter, por tanto tempo, seguido a rapariga.
¡X A rapariga? ¡X espantou-se Sikes.
Fagin nao respondeu, apenas repetiu o apelido de Noe para desperta-lo
por inteiro.
¡X Conte-me tudo outra vez ¡X exclamou Fagin ¡X, conte tudo para
que ele possa ouvir.
¡X Contar o que? ¡X perguntou o confuso Noe.
¡X Conte-nos sobre Nancy ¡X disse Fagin, enquanto segurava o punho
de Sikes, como se quisesse impedi-lo de sair. ¡X Voce a seguiu?
¡X Sim.
¡X Ate a ponte de Londres?
¡X Sim.
¡X La ela encontrou duas pessoas?
¡X Sim.
¡X Um fidalgo e uma senhorita com quem ela ja tinha se encontrado
antes e que lhe pediram para entregar Monks e todos os seus companheiros,
e ela entregou; e que perguntaram qual a aparencia deles, e ela revelou;
e que quiseram saber onde eles se escondem, e ela disse! ¡X gritou o
judeu quase a explodir de furia.
¡X Foi isso ¡X respondeu Noe ¡X, foi exatamente isso que ouvi.
¡X E o que conversaram sobre o domingo ultimo? ¡X perguntou o judeu.
¡X Sobre domingo ultimo ¡X repetiu Noe ¡X, certo, eu tambem ja falei
sobre isso.
¡X Mas repita ¡X gritou Fagin, enquanto apertava o punho de Sikes
com um braco e erguia o outro para o alto, cheio de colera.
¡X Ela disse ¡X continuou Noe, bem mais desperto ¡X que nao pode ir
ao encontro combinado porque ficara presa em casa.
¡X E o que mais? ¡X inquiriu Fagin. ¡X Ela disse quem a prendera?
¡X Ela revelou que nao pudera sair por causa de um homem ¡X continuou
Noe ¡X e ainda afirmou que da primeira vez, ah, quando ela disse
OLIVER TWIST
ÇdÇcÇi
isso, quase comecei a rir, so conseguiu encontra-los porque lhe dera uma
dose de laudano.
¡X Inferno! ¡X berrou Sikes, livrando-se do judeu. ¡X Preciso ir!
O ladrao empurrou o velho e desceu as escadas enfurecido.
¡X Sikes ¡X gritou o judeu, enquanto o seguia ¡X, espera, preciso dizer-
te ainda uma palavra.
A palavra nao teria sido dita se o ladrao houvesse conseguido abrir a
porta. Quando Fagin o alcancou, ele a esmurrava cheio de odio.
¡X Nao acho que seja util ¡X disse Sikes ¡X que voce me fale qualquer
coisa agora; preciso sair!
¡X So uma palavra ¡X disse o judeu, com a mao na fechadura. ¡X Nao
sejas...
¡X O que? ¡X interrompeu-o o outro.
¡X Nao seras violento, nao e?
Como a aurora surgia, havia luz o suficiente para que o rosto dos ladroes
fosse visivel. Ambos nao conseguiam disfarcar o fogo nos olhos.
¡X Digo, Sikes ¡X afirmou Fagin, consciente de que nao devia esconder
nada do outro ¡X, que deves ser prudente para nao ameacar a nossa
seguranca.
Sem responder, Sikes abriu violentamente a porta e saiu apressado a rua.
No caminho, o ladrao nao desviou os olhos nem a direita, nem a esquerda,
nao virou o pescoco para os ceus ou para o chao e, enquanto nao
chegou a frente de casa, nao relaxou um musculo ou grunhiu uma palavra
sequer. Ali, de subito, mudou o comportamento; empurrou com vagar
a porta, depois trancou-a sem qualquer ruido, subiu as escadas com
calma e empurrou a cortina onde, por tras, jazia a rapariga.
Nancy descansava ainda com as roupas que usara para sair a rua. Quando
notou a presenca do outro, ergueu-se e abriu os olhos, assustada:
¡X Levanta ¡X disse o homem.
¡X E voce? ¡X disse a rapariga, sem esconder sua satisfacao por ve-lo.
¡X Sou eu ¡X respondeu o ladrao. ¡X Levante-se.
Uma vela ardia sobre a mesa, mas o homem lancou-a a lareira. Nancy,
ao notar que a luz ainda estava fraca, empurrou a cortina.
¡X Deixe-a como estava ¡X vociferou Sikes ¡X, a luz aqui ja e suficiente.
¡X Por que voce esta me tratando desse jeito? ¡X perguntou a rapariga.
O bandido encarou-a quase sem folego. Depois, agarrou-a pela cabeca
e o pescoco e deitou sua mao sobre a pequenina boca da rapariga.
CHARLES DICKENS
ÇdÇcÇj
¡X Diga-me ao menos o que foi que eu fiz ¡X grunhiu a rapariga, cheia
de medo.
¡X Voce sabe muito bem o que fez, maldita! ¡X gritou o bandido, impedindo-
a de respirar. ¡X Um espiao ouviu todas as tuas palavras.
¡X Entao, bem sabes que poupei-te a vida; agora, poupe a minha ¡X exclamou
a rapariga, prendendo-se ao corpo do bandido. ¡X Pense em tudo
que fiz para ficar perto de ti.
Por mais forca que fizesse, o ladrao nao conseguia desvencilhar-se da
rapariga.
¡X Aquela senhorita e o cavalheiro ¡X continuou a rapariga ¡X ofereceram-
me uma casa no estrangeiro onde eu pudesse viver e morrer tranquila.
Por favor, deixe-me implorar o mesmo favor para voce; ainda e
tempo de largar essa vida de miseria e sofrimento.
O bandido conseguiu livrar um de seus bracos e agarrou a pistola; mesmo
furioso, contudo, percebeu que se a disparasse, chamaria a atencao da
policia.
Entao, golpeou duas vezes o rosto da rapariga.
Ela tremeu as pernas e caiu. Mesmo assim, conseguiu apanhar um
lenco, o de Rosa Maylie, e, com as maos erguidas, clamou para que o
Criador a poupasse.
A cena foi horrivel.
O assassino virou-se, cobriu o rosto com uma das maos para nao enxergar
o que pretendia fazer e, com a outra, matou a rapariga.
Capitulo XLVIII
Sikes foge.
Nao ha, entre todos os abominaveis crimes cometidos em Londres, um
mais cruel que esse!
O sol, o mesmo sol que alem de luz traz a cidade esperanca e alegria, surgiu
radiante e glorioso. Tanto atraves de janelas cobertas com trapos encardidos
como nos vitrais das igrejas, o astro distribuia seus raios. Se a cena foi pavorosa
a sombra, o que nao seria iluminada por luz mais brilhante?
Sikes permaneceu sem se mover por algum tempo. Ele ouvira um suspiro
e, cheio de furia, voltara a carga. Em meio aquele mar de carne e
sangue, o que mais o incomodava era o corpo espreitando.
O assassino acendeu um fosforo e ateou fogo ao porrete com que golpeara
a rapariga. A chama queimou os cabelos emaranhados a madeira, que
produziram uma cinza cujo ar fez espalhar pela chamine. Apesar de sua
frieza, isso tambem o incomodou. Quebrou o porrete e lancou os restos as
cinzas. Lavou-se e as roupas: os pontos em que ele nao conseguiu eliminar
as manchas, cortou e lancou-os fora. O quarto estava cheio de sangue:
ate as patas do cao estavam sujas.
Enquanto fazia tudo isso, nao dera as costas ao cadaver. Depois, arrastouse
com o cao ate a porta, tomando cuidado para nao levar para a rua as
marcas do crime. Fechou a porta com vagar, trancou-a e abandonou a casa.
Antes de ir embora, procurou saber se algo podia ser visto do exterior
da casa. Da rua, viu a cortina que ela quisera abrir para enxergar a luz. A
rapariga estava estirada justamente ali e o ladrao sabia disso.
Deus! O sol iluminava por demais aquele lugar.
O olhar foi rapido; estava aliviado por deixar aquele sitio. Ele chamou
o cao e pos-se a andar sem demora.
Cruzou Islington, galgou a colina de Highgate, tudo sem saber onde
estava e qual o caminho a seguir. Nos campos, tomou a direita ate chegar
OLIVER TWIST
ÇdÇdÇc
a Hampstead Health. Depois de cruzar o vale de Health, atingiu o lado
oposto e atravessou a estrada que leva Hampstead a Highgate.
Sikes seguiu pelo campo ate North End, onde se deitou sobre uma sebe
e dormiu.
Logo, porem, levantou-se e continuou a fuga, nao agora em direcao ao
interior, mas de volta a Londres; no caminho, retornou passando pelos mesmos
lugares onde estivera ha pouco. Vagou assim, sem qualquer direcao,
por muitas horas. Por vezes, deitava em algum canto, mas logo se erguia,
ansioso por encontrar outro local onde pudesse se esconder.
Precisava encontrar um local ermo onde houvesse o que comer e beber.
Hendon parecia-lhe um lugar bom, afastado do caminho das pessoas
e perto dali. Foi ate la, por vezes em desabalada corrida, em outros momentos
com muito vagar. Ao chegar, contudo, achou que todo o povo, ate
mesmo as criancas, olhavam-no desconfiado. Retornou para o mato, sem
a coragem de comprar qualquer alimento, apesar de nao comer ha horas,
e continuou vagabundeando.
Vagou milhas e milhas para sempre terminar no mesmo sitio. Depois,
resolveu afastar-se e tomar a direcao de Hatfield.
As nove horas, Sikes, extenuado, e o cao, ja com dificuldades para andar
atingiram a sossegada vila. Resolveram entrar em uma pequenina
estalagem cuja falta de luz os tinha guiado ate a porta. Os camponeses
que bebiam deram espaco para o recem-chegado, mas ele preferiu comer
e beber longe de todos; ou, melhor, na companhia apenas do cao, para
quem lancava uma porcao de comida de tempos em tempos.
Os homens falavam sobre a vida dificil no campo; quando o assunto se
esgotou, resolveram discutir a idade de um velho que morrera no domingo
anterior ¡X os jovens consideravam-no muito velho e os velhos, muito jovem.
Nada disso, porem, chamou a atencao do ladrao, que, pago o alimento,
continuou a descansar ate que a subita entrada de um estranho despertou-o.
Tratava-se de um sujeito esquisito, um tanto trapaceiro e outro tanto
desonesto, que cruzava o pais a pe a vender pedras de amolar, navalhas de
barbeiro, unguentos para caes e cavalos, cosmeticos, perfumes baratos e o
resto de tudo que levava em um pacote erguido as suas costas. Os homens
riram-se dele desde que entrou ate quando terminou de cear e abriu sua
caixa de quinquilharias.
¡X E isso aqui, Harry, pode-se comer? ¡X perguntou um campones enquanto
apontava para uns monticulos acumulados em um canto.
CHARLES DICKENS
ÇdÇdÇd
¡X Isto ¡X respondeu-lhe o comerciante ¡X e um composto infalivel
que faz sumir qualquer tipo de mancha; caso uma senhorita tenha manchado
sua propria honra, basta engolir uma dessas que estara limpa, pois o
preparado e venenoso; se, do mesmo jeito, um cavalheiro deseja provar-se
cheio de honra, uma dessas tera o mesmo efeito de uma bala de pistola; e
como o gosto e horrivel, mais honra ainda tera quem consumi-la; com
todas essas utilidades, vendo-a por um penny. Um penny!
Logo, dois compradores surgiram. No entanto, o resto do publico parecia
hesitar, o que aumentou a loquacidade do comerciante.
¡X E facil de vender ¡X continuou ¡X, passo todo o estoque logo que
recebo; as maquinas nao param de rodar e os trabalhadores esforcam-se
tanto que muitos chegam a morrer; as viuvas recebem a pensao de vinte
libras por filho, todos os anos, com um premio de cinquenta para os gemeos.
Um penny, apenas! Faz sair manchas de vinho, de lama e de sangue.
O chapeu daquele fidalgo, por exemplo, estara limpo antes que eu
possa tomar outro trago.
¡X Devolva-me ¡X gritou Sikes.
¡X Vou deixa-lo livre de todas as nodoas ¡X exclamou o caixeiro ¡X,
antes que o senhor me alcance para toma-lo; observem, cavalheiros, a
mancha escura no chapeu desse homem; e de vinho, de frutas, de cerveja,
de lama, de sangue...
O homem nao pode continuar porque Sikes, com uma enorme imprecacao,
virou a mesa, tomou-lhe o chapeu e desabalou para fora da casa.
Dominado pelos mesmos sentimentos que o perseguiam ate ali, o homem
notou que nao estava sendo seguido e que e provavel que o tenham
considerado, na estalagem, um bebado qualquer. Ao passar por um carro,
notou que se tratava da correspondencia para Londres. Mesmo sabendo o
que ouviria, resolveu estacar e espionar o coloquio.
O oficial estava em pe ao lado da porta a esperar a mala de correspondencia.
Um homem, cujo uniforme se parecia com o de um cacador, logo
apareceu e apanhou um cesto colocado na rua.
¡X Ajeite tudo direito ¡X disse o oficial.
¡X Ha alguma novidade para os lados de la, Ben? ¡X perguntou o cacador.
¡X Nada que eu saiba ¡X respondeu o outro. ¡X O trigo subiu um pouco
e falam de um assassinato na regiao de Spitalfields.
¡X Um assassinato?
¡X E verdade, um crime terrivel.
OLIVER TWIST
ÇdÇdÇe
¡X Homem ou mulher?
¡X Mulher, acredita-se que...
¡X Apresse-se, Ben ¡X gritou o cocheiro impaciente.
¡X Certo, vamos partir ¡X murmurou o oficial.
Um som alegrou o ambiente e o carro pos-se a roda.
Sikes permanecia imovel do outro lado da rua, aterrorizado pelo que
ouvira, mas sem ter ideia de onde ir; por fim, voltou-se e tomou o caminho
que vai de Hatfield a St. Albans.
Andou com coragem ate entrar na estrada; ali, a solidao e o breu fizeram
subir-lhe pelo corpo uma sensacao de temor. Tudo ao seu redor, movendo-
se ou nao, tomava uma aparencia temerosa. Horrorizava-lhe a ideia
de que aquela forma terrivel que abandonara pela manha o seguia; era
capaz de identifica-la, por tras de si, nos menores detalhes, e o vento trazia-
lhe ao ouvido o som do ultimo gemido. Parado ou a correr, aquela
imagem nao o deixava em paz.
Por vezes, resolvia espantar o fantasma, mas este sempre voltava as
suas costas. Pela manha, estava a frente, mas agora seguia-lhe. Sentado, o
espectro se colocava por tras dele. Andando na estrada, la estava o fantasma,
como se fosse uma sepultura viva e um epitafio feito de sangue.
Ninguem pode dizer que um assassino escapa da justica ou que a Providencia
dorme. Um minuto dessa agonia e pior do que uma duzia de
mortes violentas.
Encontrou, no campo, uma construcao que lhe podia abrigar durante a
noite. No entanto, o interior pareceu-lhe muito escuro e a ventania produzia
um ruido horripilante; nao teve coragem para entrar e passou a noite
encostado a uma das paredes, enquanto uma nova tortura o assaltava.
Desta vez, a visao aterrorizava-o de maneira mais forte que os olhos
palidos de antes. Agora, eram apenas dois pontos de luz, mas muito vermelhos
e vivos. Se fechasse os olhos, de imediato vinha-lhe a mente a
imagem do quarto, com todos os seus objetos, ate aqueles que, se nada
tivesse acontecido, certamente teria se esquecido deles. O corpo tambem
estava no lugar e aqueles olhos eram os mesmos que ele tinha visto ao
fugir do quarto. Nessa situacao, ergueu-se e pos-se a correr pelos campos.
O espectro foi atras. Entao, voltou ao abrigo e, de novo, antes de se deitar,
la estavam os olhos.
Ficou nesse lugar, assaltado por um terror dificil de ser descrito, suando
frio por cada poro do corpo e tremendo, ate que ouviu vozes distantes.
CHARLES DICKENS
ÇdÇdÇf
Mesmo que aquelas vozes pudessem significar uma ameaca, era-lhe um
alivio ouvi-las. Encheu-se, entao, de animo e energia e, outra vez, levantou-
se e deixou o local.
O ceu parecia tomado por fogo. As chamas, gigantescas, iluminavam
todo o campo. Ouvia, em vozes que pareciam cada vez mais fortes, gritos
de incendio! A bulha aumentava continuamente. Havia pessoas por ali,
homens e mulheres, uma nova vida para ele; o assassino avancou saltando
obstaculos e cortando os campos em linha reta.
No local, pessoas agitavam-se, umas tentando fazer sair os cavalos
dos estabulos, outras afastando o gado e ainda algumas carregando suas
coisas para fora da casa, tudo em meio a um inferno de faiscas e chamas.
O lugar onde antes estavam as portas e janelas agora era um mar
de fogo, paredes a queimar e ferro derretendo-se pelo chao. Enquanto
as mulheres e as criancas berravam, os homens tentavam encorajarse
com palavras de animo e forca. Sikes gritou, tambem, ate ficar rouco,
deixando para tras sua memoria e a si mesmo, enquanto mergulhava
na turba.
De um lado para outro, mexeu-se a noite inteira; ora nas bombas de
agua, ora perdendo-se em meio as chamas e a fumaca, sempre entrando
onde houvesse barulho e confusao. Corria entre as paredes e o chao, desviava-
se de pedras. Onde houvesse fogo, ali estava ele. Algo o protegia,
pois, quando nada mais restava alem das estruturas enegrecidas e cheias
de fumaca, nao tinha um arranhao ou queimadura sequer.
Quando toda a loucura cessou, a consciencia do crime que praticara
voltou a atormenta-lo com uma intensidade dez vezes maior. Ao redor,
suspeitava de que os homens conversassem, em cada grupo, a seu respeito.
Depois de gesticular ao cao, no que foi prontamente atendido,
ambos desapareceram. Passou perto de um carro onde homens o chamaram
para dividir a comida; aceitou um pedaco de pao e um trago de
cerveja e ficou a ouvir os bombeiros, que vinham de Londres, conversar
sobre o assassinato.
¡X O criminoso foi para Birmingham ¡X afirmou um deles ¡X, mas a
policia nao tardara a meter-lhe a mao; amanha a noite, o pais inteiro
estara alarmado.
Afastou-se apressado ate quase desmaiar no chao, entao deitou-se e
dormiu um sono pesado e agitado. Depois, colocou-se outra vez a vagabundear,
temeroso de outra noite solitaria e tortuosa.
OLIVER TWIST
ÇdÇdÇg
Subito, tomou a inesperada decisao de tornar a Londres.
La, ao menos, teria companhia. Alem disso, era um otimo lugar para
se esconder. Como estavam a vasculhar o interior, nao o encontrariam ali.
¡X Posso aguardar uma semana, extorquir Fagin e fugir para a Franca.
Dessa forma, obedeceu a seu impeto, e retornar por caminhos pouco
frequentados. Esperou oculto ate a noite, quando entraria na cidade.
E o cao?
Se alguem o descrevesse, certamente lembrar-se-ia de que o assassino
era dono de um cao, que deve te-lo acompanhado na fuga. Resolveu, entao,
afoga-lo. Enquanto procurava um poco, amarrou uma corda ao lenco.
O cao, um pouco por instinto e outro pouco por notar a expressao do
rosto do dono, distanciou-se enquanto Sikes fazia os preparativos.
Quando se aproximaram de um poco e o dono o chamou, o animal nao
se moveu.
¡X Nao me ouves? ¡X berrou Sikes.
Pela forca do habito, o cao atendeu ao chamado, mas quando Sikes
tentou amarrar-lhe o lenco ao pescoco, grunhiu e distanciou-se de novo.
¡X Vem ca ¡X disse o homem.
O cao abanou o rabo, mas nao saiu do lugar. Sikes apertou o no e chamou-
o de novo.
O cao avancou, retornou, parou um instante e fugiu a toda brida.
O homem assobiou e sentou-se a espera do cao; como ele nao apareceu,
levantou-se e voltou ao caminho.
CHARLES DICKENS
ÇdÇdÇh
Capitulo XLIX
Que narra o encontro entre o Sr. Brownlow e Monks
e a noticia que o interrompe.
Quando o sr. Brownlow desceu do carro e bateu a porta, era quase noite.
Dois homens postaram-se ao lado da porta. A um sinal do cavalheiro,
trouxeram um terceiro homem em direcao a casa.
Era Monks.
Galgaram uma escada, com o Sr. Brownlow a frente, e foram ate um
aposento afastado. A porta, Monks, que ate ali fora carregado com visivel
relutancia, entrou. Os dois homens olharam para o cavalheiro como se
pedissem instrucoes.
¡X Ele sabe a alternativa ¡X disse Brownlow. ¡X Se fizer qualquer coisa
contra a vontade de voces, levem-no a rua e o entreguem a policia em
meu nome.
¡X Como ousas dizer isso? ¡X inquiriu Monks.
¡X Como e que te atreves a me perguntar isso, rapaz? ¡X retorquiu
Brownlow. ¡X Es doido o suficiente para desejar sair desta casa? A minha
decisao esta tomada; assim que puseres o pe na rua, seras preso por roubo.
¡X Com que autoridade estes caes me trazem ate aqui? ¡X perguntou
Monks.
¡X Com a minha autoridade ¡X voltou-lhe Brownlow. ¡X Eles agem
conforme lhes ordenei; devias ter reclamado a caminho; se tiveres coragem
de recuar, nao va depois pedir-me piedade frente a lei, pois iras afundar
no golfo onde tu mesmo te precipitaste.
Monks alarmou-se e hesitou.
¡X Decida logo ¡X continuou o firme Brownlow ¡X se queres ouvir em
publico as minhas acusacoes e sofrer a pena que, embora eu saiba muito
bem qual seja, nao posso evitar; ou se preferes a piedade daquele que
tanto prejudicaste; aquela cadeira te espera ha ja dois dias.
OLIVER TWIST
ÇdÇdÇi
Monks, ainda a vacilar, murmurou algumas palavras ininteligiveis.
¡X Vamos, diga ¡X exclamou Brownlow ¡X uma palavra minha e nao
teras mais escolha.
O homem continuava a hesitar.
¡X Nao estou disposto a discutir ¡X acrescentou o fidalgo ¡X e, como
advogo interesses alheios, nao me vejo com esse direito.
¡X Nao podemos ¡X disse Monks ¡X fazer um acordo que agrade a todos?
¡X Nao.
Monks olhou em direcao ao fidalgo e percebeu toda a sua severidade e
determinacao; assim, cruzou o aposento e sentou-se.
¡X Feche a porta pelo lado de fora ¡X ordenou o Sr. Brownlow ¡X e
voltem apenas quando eu der o sinal.
Os homens obedeceram e os dois ficaram sozinhos.
¡X Um belo tratamento ¡X disse Monks livrando-se do chapeu e da
capa ¡X para o mais antigo amigo de meu pai.
¡X E porque fui o mais velho amigo de teu pai, rapaz ¡X exclamou
Brownlow ¡X, e porque as minhas esperancas de juventude estao todas
presas aquela criatura que Deus levou tao nova e deixou-me aqui solitario;
e porque o vi de joelhos ao leito de morte de sua irma, aquela que
seria a minha jovem esposa (mas os ceus optaram por outro destino); e
porque meu coracao ficou sempre fiel a teu pai; e por tudo isso e por todas
as recordacoes que a tua presenca me traz que pretendo tratar-te com
piedade, Sr. Eduardo Leeford, e coro quando noto a indignidade que fizeste
com o teu proprio nome.
¡X Por que metes meu nome nisto? ¡X inquiriu o outro, um tanto irritado
e outro tanto surpreso com a agitacao do fidalgo.
¡X Nao te significas nada ¡X respondeu-lhe o fidalgo ¡X, mas era esse
o nome dela e, por isso, tranquilizo-me ao saber que mudaste o nome.
¡X Tudo isso e muito belo, disse Monks depois de uma pausa em que se
agitara na cadeira e Brownlow sentara cobrindo o rosto com as maos ¡X,
mas o que queres de mim?
¡X Tens um irmao ¡X continuou Brownlow ¡X cujo nome bastou-me murmura-
lo para que me acompanhasses ate aqui cheio de surpresa e alarme.
¡X Nao tenho irmao algum ¡X respondeu Monks ¡X, voce sabe que sou
filho unico; por que me falas de outro irmao?
¡X Preste atencao ao que vou dizer ¡X continuou Brownlow ¡X, conheco
a historia de teu pai e sei o desgracado matrimonio que ele foi obrigaCHARLES
DICKENS
ÇdÇdÇj
do a contrair; dessa uniao, feita por orgulho da familia, voce foi o unico e
miseravel filho.
¡X Teus xingamentos nao me ofendem ¡X exclamou Monks, com um
riso zombeteiro. ¡X Se sabes a verdade, fico satisfeito.
¡X E sei tambem o fardo que foi aquela maldita uniao ¡X continuou
Brownlow ¡X, o veneno que consumia os dois miseraveis; sei como a indiferenca
tornou-se odio e o odio fez roer os frageis lacos que os uniam; a
separacao condenou-os a carregar as marcas de que so a morte os livraria
e ambos foram viver ocultando-as da sociedade da melhor forma que
podiam; tua mae logo esqueceu o tormento, mas teu pai sofreu-o por
muito tempo ainda.
¡X Separaram-se ¡X disse Monks ¡X, e o que aconteceu depois?
¡X Depois que ja se tinham separado ha anos ¡X continuou o Sr.
Brownlow ¡X e que sua mae, entregue as frivolidades, esquecera do marido,
ele ligou-se a novos amigos; disso ja deves ter tido noticia.
¡X Nao tive ¡X exclamou Monks a esconder os olhos.
¡X O jeito como ages deixa claro que nunca deixaste de pensar nessas
coisas ¡X afirmou Brownlow. ¡X Disso tudo ja se passaram quinze anos;
contavas onze e teu pai, trinta e um, pois fora forcado a se casar muito
cedo; quer que eu lhe aclare a memoria ou iras confessar tudo logo?
¡X Nao tenho o que confessar ¡X afirmou Monks. ¡X Fala do que quiser.
¡X Entre os novos amigos, havia um oficial reformado da marinha
cuja esposa falecera e o deixara com um casal de filhos, uma bela jovem
de dezenove anos e um bebe de nao mais que dois ou tres.
¡X Isso nao me diz respeito ¡X afirmou Monks.
¡X Moravam eles ¡X continuou o Sr. Brownlow, sem fazer caso da interrupcao
¡X, no local onde teu pai, depois de muito vagar, resolvera viver;
relacoes, intimidade, amizade: logo estavam muito proximos; teu pai
era um homem como poucos; cada vez, o oficial o amava mais, e a sua
filha tambem comecou a ama-lo.
Ao perceber, durante uma pausa, que Monks mordia os labios e fitava
o chao, o cavalheiro prosseguiu.
¡X Ao cabo de um ano, os lacos com essa filha, a unica mulher que
realmente o amara, estavam atados.
¡X Tua historia e muito longa ¡X observou Monks, movendo-se inquieto
na poltrona.
¡X E uma autentica historia de sofrimento, rapaz ¡X respondeu o Sr.
OLIVER TWIST
ÇdÇeÇa
Brownlow ¡X, cumprida como o sao essas historias; por fim, um velho tio,
para reparar o erro que cometera com o sobrinho, morreu e deixou-lhe
como heranca algo que o pudesse ajudar, dinheiro; o teu pai precisou ir a
Roma, pois o velho tio la falecera, deixando seus pertences em grande
confusao; la, foi apanhado por uma doenca mortal, e tua mae partiu para
essa cidade; ao chegar contigo, assistiu a morte do infeliz companheiro e,
a falta de um testamento, herdou toda a fortuna.
A isso, Monks ouviu muito atento, apesar de nao olhar em direcao ao
interlocutor. Quando ele fez uma pausa, moveu-se um tanto aliviado e
enxugou as faces e as maos.
¡X Antes de partir a Roma ¡X continuou o Sr. Brownlow ¡X, ele veio a
Londres privar da minha companhia.
¡X Nunca ouvi falar disso ¡X exclamou Monks, em tom incredulo mas
revelador de surpresa.
¡X Encontramo-nos ¡X continuou o Sr. Brownlow ¡X e ele me trouxe
um retrato que pintara da pobre moca, que ele nao queria levar para a
viagem e nem deixar para tras; a ansiedade e a vergonha o tinham emagrecido;
falou de uma ruina de que ele seria a causa e de sua intencao de
deixar o pais depois de passar parte de seus bens para o teu nome e o de
tua mae; disse-me apenas isso, para mim, o teu velho amigo, e prometeu
contar tudo em uma carta; no entanto, nunca a recebi nem mais o vi; fui
ate o lugar do tal amor cheio de vergonha, para oferecer a crianca uma
casa que lhe pudesse dar amor, mas a familia partira uma semana antes;
resolveram seus negocios e desapareceram a noite, sem dizer para ninguem
por que e para onde iam.
Monks suspirou mais tranquilo e olhou a roda com uma expressao de
triunfo.
¡X O teu irmao ¡X continuou o Sr. Brownlow, enquanto aproximava a
poltrona da do outro ¡X foi colocado em meu caminho e salvo de uma
vida miseravel e criminosa.
¡X O que? ¡X exclamou Monks.
¡X Salvo por mim ¡X continuou o Sr. Brownlow. ¡X Eu sabia que logo
voce se interessaria pelo que tenho a dizer; percebo que o teu socio nao
lhe revelou o meu nome, pois devia pensar que nao me conhecesses; a
semelhanca dele com o retrato de que te falei e, ainda mais, a expressao
de generosidade parecia-se muito com a de um antigo amigo; essas foram
coisas que notei enquanto o tratava; nao e preciso dizer que ele me foi
raptado antes que eu pudesse conhecer sua historia.
CHARLES DICKENS
ÇdÇeÇb
¡X Por que nao? ¡X perguntou Monks cheio de pressa.
¡X Por que disso tu sabes bem.
¡X Eu?
¡X Nao negues ¡X retorquiu Brownlow ¡X, pois vou te mostrar que
ainda sei bem mais do que isso.
¡X Nao podes provar nada contra mim ¡X murmurou Monks.
¡X E o que veremos ¡X respondeu o velho fidalgo. ¡X Meus esforcos
para encontrar o garoto foram em vao; eu sabia que apenas tu me podias
esclarecer o caso e, como estavas refugiado em sua propriedade no estrangeiro,
para onde foste te esconder por conta de tuas mas atitudes por
aqui, resolvi viajar; disseram-me depois que tinhas voltado a Londres;
dessa maneira, retornei, mas ninguem sabia dizer-me a tua localizacao;
voce aparecias e desaparecias, em meio a gatunagem que foi a tua companhia
desde que eras um jovem; vaguei pelas ruas atras de voce, mas foi
apenas ha duas horas que te encontrei.
¡X E o que pretendes fazer? ¡X exclamou Monks, a se levantar desafiadoramente.
¡X Pensas que podes justificar uma fraude e um roubo apenas
por causa de um retrato grosseiro? Se aquela uniao gerou uma crianca,
nem o senhor sabe.
¡X Eu nao sabia ¡X retorquiu o Sr. Brownlow ¡X, mas agora estou a par
de tudo; tens um irmao e sabes disso; havia um testamento, mas tua mae
o destruiu, levando consigo o segredo; o testamento continha a mencao a
uma crianca, por certo o fruto daquela ligacao vergonhosa; um dia, tu te
impressionaste com a semelhanca, tendo encontrado-a na rua, e partiste
atras de onde ela tinha nascido; ali, encontraste algumas provas e as destruiu.
Como disseste ao judeu, ¡§as unicas provas da identidade do pequeno
estao no fundo do rio e a velha que a recebeu esta bem enterrada¡¨; es
um filho indigno, um covarde e um mentiroso; tens encontros com ladroes
na escuridao, es causa da morte de uma rapariga que tinha muito
valor tu es aquele que so trouxe desgraca para o teu pai, ¡§e ainda, Eduardo
Leeford atreveste a me desafiar?
¡X Nao, nao, nao ¡X negou o covarde, assustado com tantas acusacoes.
¡X Conheco cada palavra que disseste a esses pelintras; sombras na
parede contaram-me das tuas conversas; o olhar da crianca perseguida
encheu-se de virtude e, quanto ao assassinio, participaste dele, se nao
realmente, moralmente.
¡X Nao, nada tenho a ver com isso; ia a saber do crime quando o senhor
me interpelou na rua; achei que tudo nao passava de uma briga.
OLIVER TWIST
ÇdÇeÇc
¡X A causa do crime foi a revelacao parcial dos teus segredos ¡X afirmou
o Sr. Brownlow. ¡X iras revelar tudo?
¡X Sim.
¡X E diras a verdade perante testemunhas?
¡X Sim, prometo dize-la.
¡X E ficaras aqui para redigir um documento para que eu possa depois
autentica-lo?
¡X Se achas que essa e a melhor solucao.
¡X Deves ¡X continuou o Sr. Brownlow ¡X restituir o que tiraste de
uma crianca inocente; depois de dar ao teu irmao a parte que dele previa
o testamento, poderas ir a qualquer lugar sem precisares dar qualquer
outra justificativa.
Enquanto Monks passeava de um lado a outro do aposento, a meditar
com aparencia diabolica na proposta e na possibilidade de livrar-se dela,
pressionado de uma maneira pelo medo e de outra pela raiva, o Sr. Losborne
abriu a porta tomado de violenta agitacao.
¡X Vao meter as maos no homem esta noite ¡X gritou.
¡X O assassino? ¡X perguntou o Sr. Brownlow.
¡X O assassino! ¡X respondeu o outro. ¡X O cao foi visto a roda de uma
velha estalagem, o homem deve estar ali ou entao aproveitara a noite
para surgir; os espioes estao por todo lado; conversei com alguns dos homens
que correm a sua procura e eles me garantiram que nao ha escapatoria;
o governo ofereceu uma recompensa de cem libras para quem o
capturar.
¡X Oferecerei mais cinquenta ¡X disse o Sr. Brownlow ¡X e direi isso
com meus proprios labios, se eu conseguir chegar ao local da captura.
Onde esta o Sr. Maylie?
¡X Harry? Quando percebeu que este senhor estava em seguranca na
tua companhia, apressou-se a se meter em um dos grupos que esta a cacar
o assassino.
¡X E o judeu? ¡X perguntou o Sr. Brownlow.
¡X Na ultima vez que ouvi falar dele, ainda andava a solta, mas a esta
hora ja deve estar atras das grades.
¡X Ja estas resolvido? ¡X sussurrou o Sr. Brownlow a Monks.
¡X Sim ¡X respondeu ele. ¡X O senhor nao ira mesmo me entregar?
¡X Nao; fica aqui ate a minha volta; este e o unico lugar seguro para ti.
Eles sairam da sala e trancaram a porta.
CHARLES DICKENS
ÇdÇeÇd
¡X O que conseguiste? ¡X perguntou Losborne.
¡X Consegui alem do que eu esperava; levando em conta as informacoes
que nos dera a pobre rapariga e o que eu ja sabia, pude pressiona-lo,
e ele nao teve como esconder os crimes que praticara, que alias ja eram
muito claros; anote um encontro para depois de amanha as sete horas;
deveremos chegar um pouco antes, mas precisaremos de algum repouso,
pois a jovem senhora talvez tenha que despender muita energia; meu
sangue esta fervendo para meter as maos no assassino daquela pobre criatura;
que direcao eles tomaram?
¡X Se fores direto a policia, chegaras a tempo ¡X respondeu-lhe Losborne.
¡X Eu fico por aqui.
Os homens se despediram tomados por uma incontrolavel excitacao.
Capitulo L
A queda de Sikes.
Perto do local em que o Tamisa cruza a igreja de Rotherhithe, onde as
construcoes das margens e os barcos do rio sao mais sujos do que a poeira
das carvoarias, ergue-se a mais sombria e estranha das localidades de
Londres, desconhecida alias de quase todos os moradores da cidade.
Para chegar ate aquele local, e preciso cruzar um emaranhado de vielas
estreitas e cheias de lama, onde vive a miseravel populacao ribeirinha,
empenhada na unica atividade que lhes e adequada. As lojas vendem
os generos mais baratos e rudes e as roupas sao as mais grosseiras
que se pode ver.
O visitante deve caminhar entre os desempregados que se estendem a
cada canto, as criancas miseraveis, os carregadores e os vagabundos, perturbado
pelas esquinas que aparecem para todo lado e pelas carrocas que
esparramam a carga dos inumeros armazens do lugar. Quando atinge o
canto mais afastado e remoto, precisa desviar-se das fachadas que invadem
o caminho, das paredes que ameacam despencar e dos ferros que se
desprendem das construcoes inacabadas e de todas as outras marcas
imaginaveis de abandono e desolacao.
Na vizinhanca de tal lugar esta o ponto conhecido por ilha de Jaco,
rodeada por uma especie de fosso de seis a oito pes de profundidade e de
quinze a vinte de largura. Quando a mare cresce, essa especie de braco do
Tamisa enche-se, e a populacao que mora nos casebres vai ate a janela e
lanca seus baldes para levantar um pouco de agua; quando voltam os
olhos para as proprias casas, a surpresa aumenta pela imagem que encontram:
galerias de barracos amontoados, por cujos buracos pode-se ver a
agua turva do rio, janelas quebradas, quartos tao pequenos e abafados
que o ar parece ainda pior que a sujeira que eles acumulam, plataformas
de madeira que se equilibram sobre a lama e a todo instante ameacam
OLIVER TWIST
ÇdÇeÇg
despencar, como ja aconteceu; as marcas da mais miseravel pobreza, abandono
e sujeira sao os adornos desse miseravel sitio de Londres.
Na ilha de Jaco, um lugar que ja fora prospero mas que arruinou-se por
causa de uma disputa judicial, as casas sao destelhadas e vazias, as portas
despencam para as ruas e as negras chamines ja nao fazem fumaca. As
casas agora estao abandonadas e apenas as invadem aqueles que tem coragem
de viver e morrer ali; os que habitam a ilha de Jaco, ou tem motivos
muito fortes para la se esconder, ou estao relegados a condicao humana
a mais degradada que ha.
No aposento superior de um desses casebres, uma construcao arruinada
mas cujas portas e janelas eram fortemente resguardadas, encontravam-se
tres homens. Estavam sentados, mergulhados em um profundo silencio.
De quando em quando, trocavam olhares que denunciavam seu estado de
ansiedade. O primeiro homem era Tobias Crackit, o outro, o Sr. Chitling, e
o terceiro, um ladrao cujo nariz fora deformado por uma briga e uma cicatriz,
que deve ter sido arranjada na mesma ocasiao; seu nome era Kags.
Tratava-se de um degredado que ousara retornar.
¡X Acho ¡X disse Tobias Crackit para o Sr. Chitling ¡X que devias
ter procurado outro esconderijo quando percebeste o perigo e nao vir
para ca, meu caro.
¡X Por que nao fizeste desse jeito, sua besta? ¡X disse Kags.
¡X Achei que voces ficariam um pouco mais felizes por me ver ¡X disse
o Sr. Chitling um tanto melancolico.
¡X Entenda, meu rapaz ¡X disse Tobias Crackit ¡X, que quando um
homem procura a reclusao como eu, e-lhe desagradavel receber a visita
de um jovem na sua situacao, mesmo que ele seja gentil e um otimo
parceiro para o jogo de cartas.
¡X Demais, quando tal recluso tem por companhia um amigo que
acabou de cruzar os mares e nao esta em condicoes de enfrentar um juiz
¡X acrescentou Kags.
Depois de uma breve pausa, Tobias Crackit, dando mostras de que abandonava
a sua grosseria habitual, tornou para o Sr. Chitling e perguntou:
¡X Quando puseram as maos em Fagin?
¡X As duas horas da tarde; Bates e eu galgamos a chamine e escapamos.
Bolter teve a ideia de se esconder na caixa d¡¦agua, mas suas pernas
eram muito cumpridas e ele logo foi descoberto e levado preso tambem.
¡X E Betty?
CHARLES DICKENS
ÇdÇeÇh
¡X Pobre Betty! Ela foi ver o cadaver, ja com o rosto transtornado, e
saiu louca, a gritar pela rua; foi preciso que se lhe metessem a camisa de
forca para arrasta-la ao hospicio, onde ela esta agora.
¡X E onde esta o mestre Bates? ¡X perguntou Kags.
¡X Nao deve demorar a aparecer por aqui ¡X respondeu Chitling ¡X,
pois o bando dos Coxos foi todo preso e a estalagem esta apinhada de
policiais; nao ha outro lugar para se ir.
¡X Ainda podem prender algum outro ¡X observou Tobias. ¡X E a
desgraca.
¡X Os trabalhos ja comecaram ¡X disse Kags ¡X e andam rapido; caso
Bolter fale contra Fagin ¡X e e o que deve fazer, conforme ja declarou ¡X
ele deve ser condenado na sexta e, por Deus, enforcado seis dias depois.
¡X Nao viste o povo a berrar ¡X continua Chitling ¡X, enquanto a policia
tentava proteger Fagin, que, assustado, agarrava-se aos guardas como
se fossem eles os seus mais proximos amigos; parece que agora mesmo
vejo a multidao a gritar e a tentar jogar-se sobre ele, e ouco os gritos das
mulheres que tentam se aproximar para arrancar-lhe o coracao.
A testemunha horrorizada disso tudo pressionava as orelhas com as
maos, virava os olhos e erguia-se, a vagar de um lado para outro do lugar,
como um doido.
Em meio a isso, enquanto os dois homens permaneciam sentados em
silencio com os olhos presos ao chao, um ruido foi ouvido nas escadas e o
cao de Sikes pulou no quarto. Os homens foram a janela, desceram a
escada e sairam a rua, mas nao avistaram o dono do animal.
¡X O que e isso? ¡X gaguejou Tobias enquanto voltava para dentro do
casebre. ¡X Espero que ele nao esteja vindo para ca.
¡X Se ele quisesse vir aqui, acompanharia o cao ¡X disse Kags, enquanto
agachava para observar o animal. ¡X Vamos, tragam-lhe um pouco de
agua, pois ele deve ter feito uma longa jornada.
¡X Bebeu ate a ultima gota ¡X disse Chitling, depois de um instante de
silencio. ¡X Esta cheio de lama, coxeia e nao enxerga direito; deve ter
vindo de longe.
¡X Depois de ter encontrado gente estranha, correu para ca, onde ja
esteve tantas vezes ¡X disse Tobias ¡X, mas onde sera que esta o outro?
¡X Ele (ninguem mais pronunciava o seu nome) certamente nao tera
dado cabo da propria vida; o que voces pensam? ¡X perguntou Chitling.
Tobias balancou a cabeca.
OLIVER TWIST
ÇdÇeÇi
¡X Se fosse assim ¡X respondeu Kags ¡X, o cao nos levaria ate o cadaver;
deve ter partido para o estrangeiro e largado o animal ou te-lo lancado
fora.
Esta pareceu a solucao mais adequada e foi adotada pelo grupo. Debaixo
de uma cadeira, sem muito se preocupar com os outros, o cao se colocou
a dormir.
Fecharam a janela, ja que escurecia, e alumiaram o ambiente com
uma vela. Os acontecimentos dos ultimos dois dias e a incerteza do proprio
futuro perturbavam os tres. Aproximaram as cadeiras e, apavorados
a cada barulho, falavam pouco, assustados como se o corpo da rapariga
estivesse na sala ao lado.
Estavam assim quando ouviram o som de uma batida a porta.
¡X Deve ser o Bates ¡X disse Kags, enquanto procurava afastar o proprio
medo.
O barulho repetiu-se. Nao era Bates, pois ele nao chamava daquele jeito.
Crackit foi a janela e, tremulo, espiou a rua. O rosto do bandido empalideceu
e isso foi o suficiente para que os outros percebessem quem batia
a porta. O cao despertara e latia.
¡X Precisamos abrir a porta para ele ¡X disse Tobias, a apanhar o
candeeiro.
¡X Nao temos outra alternativa? ¡X murmurou o outro.
¡X Nao, ele entrara.
Crackit desceu as escadas e voltou acompanhado por um homem, cuja
parte inferior do rosto estava coberta por um lenco e a superior enterrada
dentro do chapeu. A palidez, os olhos fundos, a barba de tres dias e a
respiracao ofegante marcavam o fantasma de Sikes.
Quando ia sentar-se sobre uma cadeira em que meteu as maos, no centro
da sala, teve um calafrio, olhou de esguelha a roda, puxou-a ate a
parede e sentou-se a um canto.
Sem dizer qualquer coisa, passava os olhos pelos tres homens. Se um
deles o encarava, desviava de imediato o rosto. Quando por fim resolveu
falar, Sikes assustou os outros com um tom de voz que nao parecia o seu:
¡X Como o cao chegou aqui? ¡X perguntou.
¡X Sozinho; ha tres horas.
¡X E verdade, como o jornal esta dizendo, que Fagin foi preso?
¡X E verdade.
De novo, houve uma pausa.
CHARLES DICKENS
ÇdÇeÇj
¡X Que inferno! ¡X exclamou Sikes. ¡X Voces nao tem nada para me dizer?
Os tres se moveram, mas ninguem disse nada.
¡X Voce que e o proprietario do lugar ¡X voltou-se Sikes na direcao
de Crackit ¡X nao quer me vender a casa ou deixar-me ficar ate que a
perseguicao termine?
¡X Podes ficar aqui, se achas seguro ¡X respondeu o outro, depois de
hesitar um momento.
Sikes virou os olhos para a parede e, sem encarar os outros, perguntou
se o corpo ja estava enterrado. Os tres balancaram a cabeca.
¡X Por que nao? ¡X continuou, ainda com os olhos voltados a parede.
¡X Por que deixar algo tao feio a mostra? Quem esta a porta?
Crackit moveu os bracos, como se quisesse mostrar que nao havia
perigo, e voltou acompanhado pelo mestre Bates. Sikes estava sentado
bem a frente da porta e, assim que o rapaz entrou, deparou-se com ele.
¡X Tobias ¡X exclamou Bates ¡X por que nao me avisaste disso?
Os tres se retrairam tanto que o desgracado ladrao sentiu a necessidade
de aproximar-se. Acenou, entao, ao rapaz, e tentou cumprimenta-lo.
¡X Vou para o outro quarto ¡X exclamou Bates, distanciando-se ainda
mais.
¡X Carlos ¡X exclamou Sikes ¡X, nao me reconheces?
¡X Nao te aproximes de mim ¡X respondeu o rapaz a recuar, enquanto
encarava os olhos do assassino. ¡X Es um monstro.
Sikes estacou no meio do caminho e encarou-o, mas seus olhos voltaram-
se aos poucos para o chao.
¡X Sejam os tres testemunhas ¡X bradou o rapaz erguendo o punho
¡X, sejam testemunhas de que nao o temo; e se a turba chegar ate aqui,
vou entrega-lo; este monstro pode tentar me matar, se tiver ousadia,
mas se eu estiver vivo, vou entrega-lo; entrego-o nem que saiba que
esse assassino sera queimado. Monstro! Se houver um homem entre
voces, que me acompanhe; vamos agarra-lo!
Os tres nao tomaram parte na brigas e o rapaz, sozinho, fortalecido
pela energia e surpresa do golpe, lancou Sikes ao chao. A luta, contudo,
era muito desigual para continuar por muito tempo. Sikes ja o tinha agarrado
e metido o joelho em seu pescoco quando foi puxado por Crackit,
que apontava aterrorizado para a janela.
Havia luzes, vozes que vinham de conversas excitadas e uma multidao
que cruzava uma ponte de madeira muito proxima dali. Um homem viOLIVER
TWIST
ÇdÇfÇa
nha a cavalo entre a turba, pois ouvia-se a batida da ferradura no chao. O
ruido aumentava e as luzes brilhavam cada vez mais perto. Entao, ouviuse
o som de batidas a porta e o grito da multidao raivosa.
¡X Ajudem-me ¡X gritou o rapaz, com o pouco ar que ainda tinha. ¡X
Ele esta aqui! Derrubem a porta!
¡X Em nome do rei! ¡X bradava a multidao.
¡X Derrubem a porta ¡X gritava o rapaz. ¡X Eles nao vao abri-la; venham
para o quarto iluminado! Derrubem a porta!
Batidas pesadas faziam tremer as portas e a janela e, quando o rapaz se
calou, um imenso brado elevou-se da multidao e deu ideia da quantidade
de pessoas que se acumulavam por ali.
¡X Arranjem-me algum lugar onde eu possa esconder esse maldito
garoto ¡X gritou Sikes, indo de um lado a outro com Bates que, agora, nao
oferecia qualquer resistencia e parecia um saco vazio. O assassino empurrou
o rapaz para tras de uma porta e trancou-o; depois perguntou aos
outros se as entradas do casebre estavam bem cerradas.
¡X Passei duas vezes a chave e fechei a corrente ¡X respondeu-lhe
Crackit, que parecia tao assustado quanto os outros dois.
¡X O estofo e forte?
¡X Reforcado com ferro.
¡X As janelas tambem?
¡X Tambem.
¡X Vao para o inferno! ¡X gritou o desesperado ladrao para o povo que
se amontoava do lado de fora. ¡X Vou engana-los a todos!
De todos os terriveis ruidos que ja atingiram o ouvido humano, nenhum
excederia o grito daquela turba furiosa. Alguns pediam para os
que estavam mais perto atear fogo a casa; outros berravam aos policiais
para que o matassem. O mais furioso por certo era o homem que vinha a
cavalo. Saltando da cela, venceu a multidao como se estivesse atravessando
a agua e, ao pe da janela, ofereceu com um berro vinte guineus para
aquele que primeiro trouxesse uma escada.
O pedido ecoou na multidao. Alguns bradavam por uma escada, outros
queriam um martelo, muitos balancavam tochas, como se procurassem
por eles, mas logo voltavam ao meio da turba, onde a gente perdia energia
com imprecacoes e maldicoes.
¡X A mare ¡X gritou o ladrao ¡X, a mare estava baixa quando cheguei;
arranjem-me uma corda; estao todos aqui em frente, posso escaCHARLES
DICKENS
ÇdÇfÇb
par pelo fosso; arranjem-me uma corda, se nao faco mais tres mortes
e depois me mato.
Os homens em panico mostraram-lhe onde conseguir o que queria. O
assassino apanhou uma forte e longa corda e galgou ao topo da construcao.
As janelas do fundo da casa tinham sido todas fechadas com tijolos,
com excecao de um pequeno buraco no quarto onde Bates estava trancado.
O buraco era demasiado pequeno para permitir-lhe escapar, mas atraves
dele o rapaz pode gritar para que a multidao vigiasse tambem os
fundos da casa. Assim, quando o assassino atingiu o telhado por uma porta,
um grito denunciou-o e toda a multidao correu a cerca-lo. Sikes equilibrou-
se nas telhas e observou-os la de cima.
A mare tinha baixado e o fosso nada mais era do que uma poca de
lama.
A multidao permanecia silenciosa, a observar a intencao do criminoso,
mas, quando percebeu que a fuga era impossivel, bradou ainda com mais
furia. Aqueles que se encontravam a uma distancia maior repetiam os
brados. Toda a cidade parecia ecoar os gritos.
Os rostos cheios de furia continuavam a correr. As casas ao redor foram
tomadas pela gente, as portas e janelas destruidas e os telhados invadidos
pela populacao. As pontes continuavam a encher e mais e mais pessoas
procuravam um canto para gritar e amaldicoar o assassino.
¡X E ja que metem a mao nele ¡X gritou um homem da ponte mais
proxima. ¡X Viva!
A multidao outra vez se pos a bradar.
¡X Prometo cinquenta libras ¡X gritou um cavalheiro idoso ¡X para o
homem que prende-lo; ficarei aqui para recompensa-lo!
Outro brado ecoou da multidao. A noticia de que a porta fora finalmente
arrombada e de que aquele que tinha pedido uma escada ja saltara para o
quarto cortou os ouvidos. A multidao, entao, regressou para o lugar onde
estava antes, uns a acotovelar aos outros para encontrar a melhor vista para o
momento em que os guardas trouxessem o assassino para fora da casa.
Eram horriveis os gemidos dos homens que terminavam prensados ate
quase nao poder respirar e daqueles que caiam e eram pisoteados. As
vielas estreitas estavam completamente tomadas. A pressa com que uns
corriam e a forca que outros faziam para se livrar da multidao eram tao
grandes que, inclusive, o assassino terminou esquecido, muito embora a
ansiedade por agarra-lo se tornasse cada vez maior.
OLIVER TWIST
ÇdÇfÇc
Apavorado com a furia da multidao e acuado pela impossibilidade da
fuga, o homem recuara; mas, como percebera essa mudanca de atitude,
resolveu-se a tentar um ultimo lance pela sua vida e se atirou-se ao fosso,
desaparecendo por entre a escuridao e a bagunca.
Cheio de energia e estimulado pelo ruido que anunciava que a casa
fora por fim invadida, fixou o pe em uma chamine, prendeu uma das
pontas da corda e, com as maos e os dentes, fez um no na outra. A corda
era comprida o suficiente para que ele se aproximasse do chao e a faca em
suas maos serviria para corta-la.
Quando passava o no sobre a cabeca para pendura-lo debaixo dos bracos,
e quando o mesmo cavalheiro que oferecera a recompensa berrava
que o assassino estava prestes a descer, Sikes voltou os olhos para tras e
grunhiu aterrorizado.
¡X Os olhos, outra vez! ¡X gritou.
O homem, entao, tresandou como se estivesse perdendo o equilibrio e
caiu sobre a parede. Tinha o no a altura do pescoco e o peso do corpo
retesou-o. O assassino caiu de uma altura de trinta e cinco pes. O corpo
estremeceu e convulsionou, enforcado e com a faca presa as maos rigidas.
A velha chamine estremeceu, mas resistiu com bravura ao choque. O
corpo sem vida do assassino balancava na parede. Bates, por sua vez, afastava
o cadaver que lhe obscurecera a vista para pedir que alguem, pelo
amor de Deus, o tirasse dali.
Um cao, que ate ali estivera longe dos olhos de todos, saltou o parapeito
em direcao aos ombros do enforcado, mas errou o pulo e caiu no fosso.
Sua cabeca bateu em uma pedra e despedacou-se.
CHARLES DICKENS
ÇdÇfÇd
Capitulo LI
Em que alguns misterios sao solucionados e ha um pedido de casamento.
Oliver, dois dias depois dos acontecimentos descritos no capitulo anterior,
achava-se, as tres horas da tarde, em um carro rumo a sua cidade
natal. Com ele, iam a Sra. Maylie, a Srta. Rosa, a Sra. Bedwin e o bom
doutor. Em uma carruagem ao lado, seguiam o Sr. Brownlow e um homem
cujo nome nao havia sido pronunciado.
Viajavam todos tomados por tal estado de incerteza e agitacao que mal
conseguiam ordenar os pensamentos e falar; por isso pouco conversaram
durante o percurso. Oliver e as duas senhoras tinham ouvido as revelacoes
que, com todo o cuidado, o Sr. Brownlow transmitiu-lhes da boca de
Monks; o assunto, posto que todos soubessem que o motivo da viagem era
a conclusao da investigacao tao bem iniciada, ainda estava envolto em
misterio.
Um bom amigo, com a ajuda do Sr. Losborne, tinha conseguido evitar
que Oliver e as duas senhoras soubessem do que acontecera naqueles dias.
¡§E certo¡¨, exclamou ele, ¡§que nao se demorarao a saber de tudo, mas o
momento sera melhor que este, que nao pode ser mais inadequado.¡¨
Viajavam, desta forma, mudos, cada um a refletir por que estava ali
sentado ao lado dos outros, todos, contudo, sem coragem para revelar seus
pensamentos.
Muito embora viajasse calado rumo a sua cidade natal por uma estrada
desconhecida, nao pode Oliver conter a emocao quando a carruagem
entrou em um caminho familiar e ele, comovido, lembrou-se dos tempos
em que vagava por ali, sem um amigo para lhe socorrer ou um abrigo
para cobrir-se.
¡X Olhem ¡X gritou Oliver enquanto apanhava as maos de Rosa e apontava
para fora do carro ¡X, saltei aquela cerca e me ocultei naqueles arbustos,
cheio de medo de que alguem me encontrasse e me fizesse retornar.
OLIVER TWIST
ÇdÇfÇe
Esse campo leva a casa onde morei em pequeno; oh! Ricardo, se eu te
pudesse rever, meu querido amigo!
¡X Logo iras encontra-lo ¡X respondeu Rosa, apertando as maos de
Oliver entre as suas. ¡X Voce podera contar-lhe o quanto esta feliz, que se
tornou rico, que cresceu e que sua maior felicidade e poder vir busca-lo e
faze-lo feliz tambem.
¡X Sim, sim ¡X disse Oliver ¡X, vamos leva-lo daqui, vesti-lo com roupas
melhores e educa-lo, vamos arranjar-lhe um lugar sossegado onde ele
possa se recuperar e se fortalecer, nao?
Rosa fez um gesto positivo com a cabeca, posto que a imagem do menino
a chorar de alegria nao a deixava falar.
¡X Seras gentil e bondosa com ele, pois es assim com todos ¡X disse
Oliver. ¡X Quando ele contar sua vida, a senhorita ira chorar; mas isso
tambem vai passar e voltaras a sorrir ao ver como ele mudou; quando
fugi, ele desejou que Deus me abencoasse ¡X revelou o rapaz bastante
emocionado. ¡X Agora, vou desejar que Deus o abencoe tambem e ele
sabera o quanto o estimo.
Foi dificil controlar a agitacao do pequeno quando o carro entrou a
contornar as ruas estreitas da cidade. A casa do agente funerario era apenas
um pouco menor do que imaginava a sua lembranca; as bem conhecidas
lojas, das quais tinha ele recordacoes de um pequeno incidente, nao
tinham mudado; a carroca de Gamfield estava parada a frente do mesmo
estabelecimento; viu o asilo que o prendera nos dias de infancia, assustou-
se ao enxergar o porteiro, depois chorou e riu outra vez; tudo estava
do mesmo jeito que quando ele partira, como se os acontecimentos recentes
de sua vida nao passassem de um sonho.
Mas era a pura e feliz realidade. Estacaram a frente do velho hotel
(que antes Oliver olhava como se fosse um palacio, mas que agora perdera-
lhe um pouco da sua imponencia); e quem lhes surgiu foi o Sr. Grimwig,
todo faceiro para lhes receber, beijando a Srta. Rosa e depois a Sra. Maylie,
sorrindo e fazendo mesuras para todos, sem ameacar devorar a cabeca de
ninguem nem uma vez, nem mesmo quando discutiam que caminho mais
curto para Londres, questao que ele dizia conhecer bem. O jantar estava
pronto, as camas feitas e tudo estava preparado como se fosse magica.
No entanto, depois de meia hora, o mesmo silencio que tomara conta
da viagem caiu sobre o grupo. O Sr. Brownlow nao veio ao jantar e ficou
em um quarto separado. Os outros dois cavalheiros agitavam-se e converCHARLES
DICKENS
ÇdÇfÇf
savam a parte. A Sra. Maylie, em certo instante, foi chamada e, quando
voltou, tinha os olhos vermelhos e marejados. Tudo isso deixava Rosa e
Oliver, que nao tinham qualquer informacao, nervosos e perturbados; ficavam
em silencio ou, quando trocavam poucas palavras, faziam-no aos
sussurros, como se tivessem receio de ouvir a propria voz.
As nove horas, quando os dois ja pensavam que nao descobririam nada
aquela noite, entraram na sala o Dr. Losborne e o Sr. Grimwig, seguidos
pelo Sr. Brownlow e por um homem cuja visao quase fez Oliver gritar de
surpresa; ainda mais quando lhe contaram que o estranho, que ele tinha
visto no mercado e depois em companhia de Fagin, era seu irmao. Monks
nao conseguiu disfarcar o olhar de odio que dirigiu a Oliver e sentou-se
proximo a porta. O Sr. Brownlow, com alguns papeis a mao, aproximouse
da mesa onde estavam Rosa e Oliver.
¡X E um trabalho dificil ¡X comecou o Sr. Brownlow ¡X, mas essas
declaracoes, que foram redigidas em Londres as vistas de muitos cavalheiros,
precisam ser repetidas aqui, antes que possas desaparecer pelo
mundo e sabes muito bem por que.
¡X Continue ¡X disse o interessado ¡X, sei como me devo comportar,
nao me prenda aqui por mais tempo.
¡X Esta crianca ¡X disse o Sr. Brownlow a aproximar Oliver de si com
um gesto ¡X e seu meio-irmao, filho ilegitimo de seu pai, o meu amigo
Edwin Leeford, com a pobre rapariga Agnes Fleming, que morreu durante
o parto?
¡X Sim ¡X respondeu Monks a olhar para o assustado pequeno, cujo
coracao ate ele podia ouvir. ¡X E ele o filho bastardo.
¡X O termo que usas ¡X disse o Sr. Brownlow nervoso ¡X nao causa
vergonha a ninguem ou apenas a quem o emprega, mas vamos continuar;
o pequeno nasceu a esta cidade?
¡X No asilo de mendicidade ¡X foi a resposta. ¡X A historia toda esta ai
¡X disse Monks ao apontar para os papeis.
¡X Mas ela precisa ser repetida aqui ¡X disse o Sr. Brownlow, ao mesmo
tempo que olhava para os cavalheiros que os ouviam.
¡X Entao, escutem todos ¡X exclamou Monks. ¡X Teu pai, tomado por
uma grave molestia em Roma, chamou minha mae que estava em Paris
e que foi ao encontro, levando-me consigo, atras, pelo que eu saiba, de
suas posses, pois nunca sentira grande afeto por ele; ele porem nao pode
perceber nossa presenca, pois ja estava sem sentidos quando chegamos e
OLIVER TWIST
ÇdÇfÇg
assim ficou ate o dia seguinte, quando faleceu; entre os papeis que estavam
em sua mesa, havia dois enderecados a ti ¡X disse virando-se em
direcao ao Sr. Brownlow ¡X, datados da noite em que a molestia o tomara,
com a instrucao de que fossem enviados apenas depois de sua morte; um
dos papeis era uma carta para essa rapariga, Agnes, o outro, um testamento.
¡X E como era a carta? ¡X perguntou o Sr. Brownlow.
¡X A carta? Uma folha dobrada uma vez e outra, com penitencias de
um temente a Deus e preces pedindo protecao a rapariga; ele dissera a
rapariga que um acontecimento secreto, que um dia lhe revelaria, impedia
o casamento de ambos; a pobre depositou sua confianca nele, cada vez
mais, ate que lhe entregou aquilo que ninguem pode trazer de volta; faltavam
entao poucos meses para que ela desse a luz; ele revelou o que
pretendia fazer para salva-la da vergonha, se ele vivesse; e suplicou para
que ela nao o amaldicoasse e nem acreditasse que a ma fortuna cairia
sobre ela e sobre o filho, pois o unico pecador da historia era ele mesmo;
ressaltava o dia em que dera-lhe o broche e o anel com o seu nome e o
espaco em branco que um dia seria preenchido, e pedia que ela o carregasse
sempre consigo; no final, as palavras ja nao tinham muito sentido,
como se saissem da mao de um perturbado, e creio que o estava mesmo.
¡X E o testamento? ¡X perguntou o Sr. Brownlow, quando as lagrimas
de Oliver ja eram copiosas.
Monks nao respondeu.
¡X O testamento ¡X disse o Sr. Brownlow para Monks ¡X era do mesmo
teor que a carta; falava de sua esposa que tanto sofrimento lhe trouxera,
do temperamento rebelde e vicioso que legara a seu unico filho,
que aprendera da mae a odiar o pai; e deixava, para ti e para a tua mae, a
cada um a anuidade de oitocentas libras; a parte grande de sua fortuna
fora dividida em duas partes: uma ficaria para Agnes Fleming e a outra
para seu filho, se ele chegasse a maioridade; caso a crianca nascesse uma
menina, receberia a heranca sem outras condicoes; mas, se o mundo visse
um menino, o pequeno teria acesso ao dinheiro se nunca desonrasse seu
pai com atitudes desonestas, covardes ou vis; fizera isso por conta da profunda
confianca em que a crianca herdaria o mesmo bom coracao e natureza
nobre da mae; se a sua expectativa falhasse, entao o dinheiro reverteria
para ti, pois, dado que as duas criancas eram iguais, ele reconhecia a
prioridade para aquele que nunca tivera acesso a seu coracao, pois desde
a infancia tratava o pai com frieza e aversao.
CHARLES DICKENS
ÇdÇfÇh
¡X Minha mae ¡X continuou Monks em voz alta ¡X fez o que qualquer
mulher teria feito: ateou fogo ao testamento. A carta nunca chegou ao
seu destinatario; mas nao foi apenas essa a prova que ela conservou da
vergonha de Agnes Fleming; foi pelos seus labios ¡X e isso me faz ama-la
ainda mais ¡X que o pai soube da desonra da filha; cheio de vergonha,
tomou a familia e mudou-se para um local afastado em Gales e trocou o
nome, para que os amigos nao o pudessem encontrar; nesse lugar, caiu
morto; a filha desaparecera pouco tempo antes; ele cruzara cidades e campos
atras dela; foi na noite em que voltou para casa, certo de que ela tirara
a propria vida para salvar-se da vergonha, que seu coracao nao suportou e
ele morreu.
Depois de uma curta pausa, o Sr. Brownlow continuou a narrativa.
¡X Anos depois, a mae desse homem, Eduardo Leeford ¡X disse o Sr.
Brownlow a apontar para Monks ¡X, procurou-me; ele tinha abandonado-
a ao fazer dezoito anos, roubado-lhe as joias e o dinheiro, feito as piores
vilanias e depois fugido a Londres, onde se juntara as piores companhias;
ela sofria de um terrivel mal e, cheia de dor, desejava ve-lo antes
de morrer; as primeiras investigacoes nao deram resultado, mas por fim
foram felizes e eles voltaram juntos para a Franca.
¡X La ¡X Monks tomou a palavra ¡X ela morreu; um pouco antes,
transmitira-me a mim os segredos que acabamos de contar e o seu odio
por todos aqueles que estavam envolvidos na historia, se bem que nao
precisasse, pois eu ja os odiava antes; nao acreditava que a rapariga tivesse
se matado e assim tirado a vida de seu proprio filho, mas desconfiava
de que ela dera a luz a um menino que estava vivo; prometi-lhe que, se
um dia encontrasse o pequeno, persegui-lo-ia com todo o meu odio e nao
o deixaria livre para gozar daquele insultante testamento; ela estava certa
e ele cruzou o meu caminho; cumpri bem a primeira parte da promessa
e, se nao fosse a traicao de uma maldita vagabunda, teria terminado-a
da mesma forma que comecei...
Enquanto o ladrao lancava pragas a si mesmo e mexia os bracos nervoso,
o Sr. Brownlow revelou ao aterrorizado grupo de ouvintes que o
judeu recebera uma boa quantidade de dinheiro para tomar o pequeno
para si, da qual deveria devolver depois uma parte e que, apos uma
disputa sobre o assunto, os dois foram ate a casa da Sra. Maylie para
identifica-lo.
¡X E o broche e o anel? ¡X voltou-se o Sr. Brownlow para Monks.
OLIVER TWIST
ÇdÇfÇi
¡X O homem e a mulher que os roubaram do corpo da enfermeira ¡X
respondeu Monks com os olhos baixos ¡X, o senhor bem sabe o que foi
feito deles.
Apenas a um gesto do Sr. Brownlow, Grimwig saiu de imediato da sala
e retornou logo, a empurrar a Sra. Bumble e o nobre marido.
¡X Se meus olhos nao me enganam ¡X exclamou o fingido Bumble
¡X, e este o pequeno Oliver; Oh! Oliver, como eu me preocupei por tua
causa!
¡X Dobra a lingua, imbecil ¡X murmurou a Sra. Bumble.
¡X E natural ¡X exclamou o inspetor do asilo ¡X que eu me comova,
Sra. Bumble; vi crescer esse menino que agora aparece-me cercado de
pessoas nobres; oh! Oliver, lembras-te daquele bom homem de colete branco?
foi para o ceu semana passada.
¡X Nao se afete, senhor ¡X interrompeu-lhe Grimwig.
¡X Perdoa-me, cavalheiro ¡X respondeu o Sr. Bumble. ¡X Como tem
passado? Espero que bem!
A saudacao fora dirigida ao Sr. Brownlow, que se aproximara do nobre
casal e apontava em direcao a Monks:
¡X Conheceis aquele homem?
¡X Nao ¡X respondeu com enfase a Sra. Bumble.
¡X E o senhor? ¡X disse o Sr. Brownlow para o marido.
¡X Nunca o vi antes ¡X respondeu o Sr. Bumble.
¡X Nem nunca lhe venderam nada?
¡X Nao ¡X respondeu a Sra. Bumble.
¡X Nunca tiveste um broche de ouro e um anel? ¡X perguntou o Sr.
Brownlow.
¡X E certo que nao ¡X respondeu a matrona. ¡X Porque nos arrastaram
ate aqui para nos perguntar coisas tao sem sentido?
Outra vez o Sr. Brownlow fez um gesto para Grimwig e outra vez ele
saiu apressado da sala. Mas desta vez nao retornou empurrando um casal,
mas sim surgiu ao lado de duas senhoras que mal conseguiam se manter
sobre as proprias pernas.
¡X A senhora cerrou a porta no dia em que a velha Sally morrera ¡X
disse a primeira ¡X mas nao pode com isso calar o ruido ou cobrir os
buracos.
¡X Nao ¡X confirmou a outra, a olhar a roda e tremer as gengivas sem
dentes ¡X, nao, nao, nao!
CHARLES DICKENS
ÇdÇfÇj
¡X Ouvimos a senhora tentando faze-la contar o que tinha feito e, depois,
vimos a senhora tomar um papel das maos dela; no dia seguinte, a
senhora saiu daqui direto a casa de penhores ¡X, disse a primeira.
¡X Foi ¡X acrescentou a segunda ¡X e a senhora carregava um broche
de ouro e um anel; nos vimos!
¡X E sabemos mais ¡X continuou a primeira ¡X, pois a velha Sally
nos revelou muitas vezes o que a jovem mae, que sentia que nao sobreviveria
e tinha fugido para morrer ao lado da sepultura do pai da crianca,
dissera-lhe.
¡X A senhora quer ver o penhorista? ¡X perguntou o Sr. Grimwig a
ameacar sair outra vez.
¡X Nao ¡X respondeu a matrona ¡X e se ele ¡X apontou para Monks ¡X
foi covarde o suficiente para confessar, como vejo que foi, e o senhor foi
atras dessas bruxas, nao tenho mais o que dizer; vendi-os e eles estao
agora onde ninguem mais podera encontra-los; ainda algo?
¡X Nada ¡X respondeu o Sr. Brownlow ¡X a nao ser a recomendacao de
que ninguem mais confie na palavra de voces; podem sair agora.
¡X Espero ¡X disse o Sr. Bumble, enquanto Grimwig saia da sala com
as duas senhoras ¡X que este pequeno incidente nao me faca perder o
meu cargo.
¡X Certamente o fara ¡X respondeu-lhe o Sr. Brownlow. ¡X Alias o
senhor tem sorte por nao fazermos nada pior.
¡X Quem fez toda a empresa foi a Sra. Bumble ¡X exclamou o homem,
depois de se certificar que a esposa saira da sala.
¡X O que nao o livra de nada ¡X asseverou Brownlow ¡X, pois assististe
a destruicao dos objetos, e a lei acredita que a mulher age segundo a
determinacao do marido.
¡X Se a lei assim supoe ¡X respondeu o Sr. Bumble, enquanto apertava o
chapeu com as maos ¡X, a lei e idiota; se a lei assim pensa, ela e solteira e o
pior que posso deseja-la e que conheca a verdade atraves da experiencia.
Depois de enfatizar essa ultima frase, o Sr. Bumble enterrou o chapeu
a cabeca e saiu atras de sua nobre esposa.
¡X Senhorita ¡X dirigiu-se o Sr. Brownlow a Rosa ¡X, nao tenha medo
de ouvir as poucas palavras que ainda restam.
¡X Se tais palavras dizem respeito a mim ¡X disse Rosa ¡X, peco-te que
as guarde para outra ocasiao, pois agora nao tenho condicoes de ouvir
mais nada.
OLIVER TWIST
ÇdÇgÇa
¡X Senhorita ¡X disse Brownlow a agarrar-lhe o braco ¡X, es muito forte.
¡X O senhor conhece esta jovem? ¡X perguntou a Monks.
¡X Sim ¡X respondeu ele.
¡X Nunca o vi antes ¡X afirmou Rosa com enfase.
¡X Vi a senhorita muitas vezes ¡X respondeu Monks.
¡X O pai da pobre Agnes teve duas filhas ¡X disse o Sr. Brownlow. ¡X
O que foi feito da mais moca?
¡X A mais moca, diante da morte do pai e do fato de que nao houvesse
uma carta, um livro ou um documento que pudesse identificar seus parentes,
foi adotada por uma familia de camponeses que a criou como se
fosse parte da familia.
¡X Continue ¡X exclamou o Sr. Brownlow, puxando Rosa para mais
perto ¡X, continue.
¡X Nao era facil achar o sitio onde essa gente se escondera ¡X disse
Monks ¡X, mas quando a amizade falha, o odio faz o seu papel e a minha
mae, depois de um ano de pesquisas, encontrou a crianca.
¡X E carregou-a consigo?
¡X Nao, era uma gente pobre, para quem o nobre gesto estava comecando
a pesar, e a minha mae deixou-lhes uma pequena quantidade de
dinheiro e prometeu-lhes, sem a menor intencao de cumprir, mandarlhes
mais; a minha mae, porem, nao acreditando que a miseria fosse suficiente
para fazer a crianca mais infeliz, contou-lhes a desonra praticada
pela irma, com todos os aumentos que lhe eram interessantes, e recomendou-
lhes cuidado com a menina, pois era ela parte daquele mesmo
sangue cheio de vergonha e nao tardaria a cometer vilezas; a familia acreditou
naquilo e a menina levou a vida miseravel que desejavamos ate que
um dia uma senhora viuva apiedou-se de sua situacao e resolveu leva-la
consigo; alguma magica maldita parecia ir contra os nossos esforcos, ja
que a menina passou a viver com alegria; ha dois ou tres anos, perdi-a de
vista e so a reencontrei ha alguns meses.
¡X Estas vendo-a nesse momento?
¡X Sim, nos teus bracos.
¡X Mas isso nao a faz deixar de ser a minha sobrinha ¡X disse a Sra.
Maylie abracando-a ¡X por todos os tesouros desse mundo, nao quero
perder a minha doce companhia.
¡X A unica amiga que tive ¡X exclamou Rosa a Sra. Maylie ¡X, a mais
carinhosa e amavel das companhias; ah! Meu coracao nao pode aguentar
tudo isso.
CHARLES DICKENS
ÇdÇgÇb
¡X Voce tem aguentado muito mais para fazer a vossa familia feliz ¡X
disse a Sra. Maylie cheia de ternura; va, minha querida, va aos bracos de
quem tanto te quer ao lado.
¡X Nunca vou te chamar de tia ¡X disse Oliver tomando-a nos bracos ¡X
mas sim irma, a irma que me ensinou a amar, a minha querida Rosa!
As lagrimas que escorreram e as palavras que foram ditas no estreito
abraco dos dois orfaos tornaram-se, daquele momento em diante, sagradas.
Um pai, uma irma e a mae foram perdidos e ganhos naquele momento
unico. A alegria e a dor misturaram-se, mas as lagrimas tornavam-se
cada vez menos amargas, pois as recordacoes daquele momento convertia
quase tudo em felicidade.
Passaram muito, muito tempo sozinhos. Ate que uma pancada na porta
anunciou alguem que desejava entrar. Oliver abriu-a e cumprimentou
Harry Maylie.
¡X Eu soube de tudo ¡X exclamou ele enquanto se aproximava ¡X,
soube de tudo, Rosa.
¡X Nao e coincidencia que ca estou ¡X continuou ele ¡X e nao foi hoje
que descobri tudo, mas sim ontem a noite; estou aqui para te lembrar de
uma promessa.
¡X Espera ¡X disse Rosa. ¡X Sabes de tudo?
¡X De tudo; lembras-te de que me prometeste dar-me licenca para, em
um ano, retomar o assunto da nossa ultima conversa?
¡X Sim.
¡X Nao para faze-la mudar ¡X continuou o rapaz ¡X, mas apenas para
ouvir dos teus labios a confirmacao de tua resposta; se continuasses firme
em tua decisao, eu nao mais a procuraria.
¡X As mesmas razoes que me influenciaram outrora me influenciam
hoje ¡X respondeu Rosa com firmeza. ¡X Nunca os lacos que me ligam
aquela que sempre foi bondosa comigo estiveram mais atados. E uma
luta, mas uma luta que me orgulho de participar.
¡X As novidades desta noite... ¡X comecou Harry.
¡X As novidades desta noite ¡X interrompeu-lhe Rosa docilmente ¡X
colocam-me na mesma posicao com relacao a voce em que eu estava antes.
¡X Colocaste o teu coracao contra mim ¡X disse Harry.
¡X Oh! Harry, Harry ¡X exclamou a senhorita em lagrimas ¡X, como
eu gostaria de poupar-te esse sofrimento.
¡X Entao, por que separa-o para si mesmo? ¡X respondeu-lhe Harry a
tomar-lhe os bracos. ¡X Pensa em tudo que foi dito esta noite.
OLIVER TWIST
ÇdÇgÇc
¡X E o que foi dito? ¡X exclamou Rosa. ¡X O que foi dito? Que a dor de
meu pai foi demasiado grande para faze-lo desistir de tudo! Ah! Chega,
nao aguento mais.
¡X Ainda nao ¡X agarrou-lhe o jovem quando ela se ergueu ¡X, minhas
esperancas, minhas vontades, meus desejos e meus sentimentos, tudo
em minha vida mudou com excecao do amor que sinto por ti; nao te
ofereco uma posicao em um mundo agitado nem a companhia de pessoas
maldosas, mas sim um coracao; um coracao e um lar e tudo que posso
oferecer-te.
¡X O que estas dizendo? ¡X perguntou Rosa.
¡X Digo ¡X continuou Harry ¡X que parti da nossa ultima conversa
determinado a destruir todas as barreiras que nos separavam; se o meu
mundo nao pode ser o teu, entao que o teu seja o meu; parti decidido a
romper com aqueles que, cheios de orgulho por conta de um nobre nascimento,
desdenhassem do vosso, e foi o que fiz; os parentes influentes e
poderosos que antes sorriam para mim, agora apenas me dirigem olhares
frios; mas ainda me resta um campo florido e cheio de arvores em um dos
mais ricos recantos da Inglaterra e, atras da igreja do vilarejo, o meu
vilarejo, ha uma cabana rustica que me orgulha mais do que todas as
outras posses a que deitei fora; e e a que te entrego agora.
¡X Custa para que os amantes venham a ceia! ¡X exclamou o Sr. Grimwig.
A verdade e que a ceia esperou ainda bastante tempo; nem a Sra. Maylie,
nem Rosa ou Harry tinham qualquer explicacao para o atraso.
¡X Achei que teria mesmo que devorar minha cabeca ¡X exclamou o
Sr. Grimwig ¡X por falta de outra coisa para comer; tomo a liberdade de
saudar os noivos.
Grimwig nao perdeu tempo a dar a noticia e cumprimentar a vermelha
Rosa, no que foi seguido pelo doutor e pelo Sr. Brownlow.
¡X Oliver, meu filho ¡X disse a Sra. Maylie ¡X, por onde andaste e por
que estas tao triste?
O mundo, muitas vezes, e um lugar de decepcao para as esperancas
que fazem a natureza humana encher-se de honra; o pobre Ricardo estava
morto.
CHARLES DICKENS
ÇdÇgÇd
Capitulo LII
A ultima noite da vida do judeu.
A corte estava cheia, do chao ao teto, de faces humanas com olhares
inquisidores. Da plataforma ate o mais remoto canto, todos os olhares se
voltavam para apenas um homem: Fagin. De um lado e de outro, de cima
a baixo, todo ele estava rodeado por um mar de olhos.
Com uma das maos apoiadas na barra de madeira a sua frente e a
outra em forma de concha ao ouvido, inclinava a cabeca a fim de poder
ouvir todas as palavras da acusacao que o juiz comecara a ler. Por vezes,
voltava os olhos em direcao aos jurados, a procurar saber como reagiam
diante de um sinal de algo que pudesse diminuir sua pena. Quando as
acusacoes contra ele eram muito claras, dirigia os olhos ao advogado, como
se pedisse uma manifestacao de auxilio. Alem dessas provas de ansiedade,
nao movia um musculo sequer.
Desde o julgamento, permanecera estatico e, agora que o juiz findara
a leitura de suas acusacoes, continuava com a mesma atitude de extremada
atencao, como se ainda estivesse ouvindo as palavras do magistrado.
Uma agitacao na sala despertou-o. Ele observou, entao, que os jurados
se reuniam para discutir o veredito. Nas galerias, a gente procurava erguer-
se para observar seu rosto, uns olhando-o por tras dos oculos e outros
manifestando a sua reprovacao. Alguns davam mostras de nao dar conta
dele, olhando apenas para o juri, cheios de impaciencia com a demora;
mas em rosto algum, e nem mesmo no das mulheres, ele conseguia identificar
qualquer sinal de simpatia ou piedade, ou ainda qualquer outro
sentimento que nao fosse o profundo desejo pela sua condenacao.
Enquanto observava tudo isso, novamente o silencio mais aterrador
tomou conta da sala e, virando-se, ele notou que os jurados caminhavam
em direcao ao juiz.
OLIVER TWIST
ÇdÇgÇe
Eles apenas queriam uma permissao para se retirar.
Enquanto saiam, Fagin observou os rostos, um por um, para ver se
descobria suas inclinacoes, mas nao conseguiu perceber nada. O carcereiro
fez-lhe um sinal ao ombro e ele dirigiu-se a uma cadeira em uma das
laterais, que, se nao lhe tivesse sido apontada, nao a teria visto.
Outra vez dirigiu os olhos para a galeria; alguns comiam e outros abanavam
o rosto com um lenco, pois o calor na sala estava quase insuportavel.
Um rapaz desenhava o rosto do judeu em um pequeno bloco de anotacoes
de papel. Curioso, como se fosse ele mesmo alguem da plateia,
acenou para o rapaz quando a ponta do lapis se quebrou.
Do mesmo jeito, quando outra vez olhou para o juiz, pos-se a imaginar
qual o preco da roupa que ele trajava e onde teria sido ela feita. As mesas,
havia um cavalheiro idoso e gordo que, ha meia hora, se tinha retirado e
agora voltava ao seu lugar. Tentava imaginar se ele havia saido para jantar,
o que e onde havia comido; e continuou nesse mar de imaginacao
conforme seus olhos encontravam objetos diferentes.
Nem por um instante, contudo, livrou-se ele do pensamento da sepultura
que se lhe abria aos pes. Estava ela plantada em sua imaginacao, voltando
a todo momento. Desta forma, mesmo quando tremia a lembranca da
morte terrivel que lhe aguardava, ele pos a contar os ferros que apareciam
no telhado e, ato continuo, imaginou a forca que o aguardava, mas logo
desviou o pensamento para observar um homem que jogava agua ao chao.
Houve, entao, um pedido de silencio e toda a multidao olhou a porta.
O juri atravessou o salao a sua frente. Nada podia ser visto naqueles rostos;
eram como feitos de pedra; nem um murmurio, nem um suspiro.
Culpado!
O predio tremeu ao ouvir um clamor, depois outro e mais um, como se
fosse o estrondo de um trovao. Eram os clamores de festa da gente que, do
lado de fora, pos-se a comemorar quando soube que ele seria executado
na segunda-feira.
Quando o barulho diminuiu, perguntaram a Fagin se ele declarava
algo contra a sua pena; o judeu voltou a posicao anterior, de extremada
atencao e imobilidade; olhava atentamente para o juiz quando ele lhe fez
essa pergunta, mas ela precisou ser repetida duas vezes ate que o condenado
desse mostras de te-la ouvido e murmurasse apenas que era um
velho e caisse em profundo silencio.
O juiz vestiu a toga negra, mas o condenado permaneceu imovel na
CHARLES DICKENS
ÇdÇgÇf
mesma posicao. A sentenca era violenta, mas o judeu parecia uma estatua
de marmore, sem que um nervo se movesse; estava ainda dessa forma,
com a rosto endurecido, quando o carcereiro tocou-lhe e pediu que o
seguisse. Ele olhou a roda e obedeceu.
Fagin foi levado por um corredor onde alguns prisioneiros aguardavam
o momento de seu julgamento e outros conversavam entre si em
torno de uma grade que ia ate o pavimento de entrada. Ninguem lhe
falava, mas, a sua passagem, os presos se encolhiam para que as pessoas
que se acumulavam por tras das grades pudessem ve-lo e o provocar com
bulhas e assobios; ele quis reagir, mas os guardas o empurraram na direcao
de um corredor escuro que dava ao calabouco.
Neste lugar, tiraram-lhe as maneiras de que ele poderia se servir para
antecipar-se a justica e o deixaram sozinho.
O judeu sentou-se a um banco em frente a porta e, com os olhos sanguinolentos
voltados ao chao, tentou ordenar os pensamentos; comecou a
recuperar partes da fala do juiz, muito embora parecesse que ele nao
ouvira uma palavra sequer. Aos poucos, os fragmentos se iam juntando e
cada bloco da sentenca o fazia recordar de outro ate que, por fim, o discurso
inteiro foi construido em sua cabeca; seria enforcado ate a morte ¡X
essa era a conclusao! ¡X, ate a morte.
Quando escureceu, pos-se a lembrar de todos os conhecidos que estrebucharam
na forca, alguns, inclusive, por obra de suas intrigas. Passavam
por sua cabeca tao rapidamente que sequer os podia contabilizar. Rira de
alguns que, a morte, puseram-se a orar. Com um ruido incomodo, a corda
baixava, e homens que outrora eram fortes e cheios de vigor, transformavam-
se em trapos baloicantes.
Alguns talvez houvessem ficado naquela mesma cela e se sentado naquele
local. O breu era enorme; por que nao lhe traziam uma vela? A cela
fora construida ha muitos anos; muitos homens deviam ter vivido suas ultimas
horas ali. Era como estar sobre a sepultura; o capuz, o no, os bracos.
Luz! Luz!
Quando suas maos estavam em carne viva por bater tanto as paredes e
a porta, dois homens apareceram, um trazendo um candeeiro e o outro
arrastando um colchao onde passaria a noite, pois o prisioneiro nao devia
mais continuar sozinho.
Entao, veio a noite, a escura, triste e silenciosa noite. Havia quem ficasse
feliz por ouvir o sino da igreja soar, pois indicava vida e um novo dia
OLIVER TWIST
ÇdÇgÇg
surgindo. Para o judeu, trazia-lhe desespero. Cada badalada transmitialhe
apenas um som, profundo e oco: o som da morte!
O dia transcorreu. Dia? Nao houve dia. Foi tao rapido quanto o anterior,
e a noite caiu novamente, noite tao longa e tao curta ao mesmo tempo;
longa em seu profundo silencio e curta em suas rapidas horas. Por
vezes, delirava e dizia blasfemias, ou entao arrancava os proprios cabelos.
Homens de fe vieram orar a seu lado, mas ele os expulsou; tentaram
outra vez e ele lhes quis bater.
Sabado a noite.
Havia-lhe apenas mais uma noite de vida. Quando ele se apercebeu
disso, surgiu o domingo.
Foi nesta ultima noite que sua alma por fim deu-se conta do estado de
profundo desespero em que se encontrava; e certo que nunca houvesse
tido ele a menor esperanca de perdao, mas tambem nao notara quao proximo
estava o dia de sua morte. Dirigira poucas palavras aos homens que
lhe davam guarda; e eles, por sua vez, pouco esforco haviam feito para
conseguir-lhe atencao; tinha estado desperto, mas sonhava. Agora, erguiase
a todo instante, com a boca seca e quente de febre, em tal estado de
raiva e odio que os dois, mesmo acostumados a esse tipo de atitude, afastaram-
se cheios de horror; havia se tornado tao terrivel, perseguido por
torturas tao diabolicas, que um homem apenas nao suportaria a cena e
ambos tiveram que permanecer de guarda.
O condenado deitou-se a sua cama de madeira e colocou-se a pensar no
que vivera; havia sido ferido por alguns objetos que a populacao lhe arremessara
no dia de sua captura e tinha a cabeca coberta por uma atadura.
O cabelo deitava-lhe ao rosto, a parte da barba que nao arrancara embaracava-
se toda e a febre queimava-lhe a pele encardida.
As paredes escuras de Newgate, que tanta miseria e angustia arrancaram
nao apenas dos olhos, mas tambem do pensamento dos homens, jamais
assistiram a um espetaculo tao horripilante. As poucas pessoas que
se aventurassem a pensar no que estaria fazendo o homem que seria enforcado
no dia seguinte perderiam o sono se pudessem ve-lo.
Desde o fim da tarde ate as altas horas da noite, pequenos grupos juntavam-
se a frente da cadeia para indagar, com rostos ansiosos, se a execucao
fora adiada. Diante da negativa, passavam alegres a resposta para
outros grupos, que apontavam a porta por onde o condenado deveria sair,
o caminho que seguiria e o local onde erguer-se-ia a forca; depois, imagiCHARLES
DICKENS
ÇdÇgÇh
nada toda a solenidade, iam-se. Aos poucos, desapareceram todos e a rua
tomou-se de breu e silencio.
O espaco ao redor da prisao estava livre e linhas negras haviam sido
pintadas no chao para conter a multidao no momento em que Oliver e
o Sr. Brownlow surgiram a frente da cadeia com uma ordem para entrar
e ver o prisioneiro. Foram imediatamente conduzidos ao interior
do predio.
¡X O pequeno tambem vai, senhor? ¡X perguntou o oficial, cujo dever
era guia-los. ¡X Nao e um lugar adequado para criancas.
¡X E certo que nao ¡X respondeu o Sr. Brownlow ¡X, mas o que tenho
a tratar diz respeito ao pequeno e, tendo ele tomado contato com as atitudes
desonestas do prisioneiro, e melhor que ele, mesmo que tenha que
sofrer, esteja presente.
Estas poucas palavras foram ditas a parte, longe de Oliver. O homem
tocou em seu chapeu e olhou cheio de curiosidade para o menino. Depois,
abriu um portao em frente aquele por onde tinham passado e conduziu
os dois pelo corredor que terminaria nas celas.
¡X Por aqui ¡X disse o oficial, a observar o trabalho silencioso de dois
homens ¡X o condenado devera passar; se seguirem adiante, encontrarao
a porta por onde ele vai sair.
Atravessaram a cozinha, cheia de mantimentos e utensilios para o preparo
da comida dos prisioneiros; havia uma abertura, por sobre uma porta,
de onde podiam ouvir vozes e o som do martelo trabalhando na construcao
da forca.
Depois, atravessaram pesados portoes, abertos ao lado de dentro pelos
guardas, ate alcancarem um corredor cheio de portas. O oficial, entao,
gesticulou para que eles aguardassem e entrou a falar com dois homens.
Eles pareceram se alegrar com esse pequeno descanso e pediram para
que os visitantes os seguissem.
O condenado estava sentado ao leito, a mexer-se para todo lado, com a
aparencia mais de um animal que de um homem. Seus pensamentos deviam
estar a perder-se entre os acontecimentos de sua vida, pois ele sequer deu
mostras de ter notado a visita, a menos que fizesse ela parte de suas visoes.
¡X Bom garoto, Bates! Otimo servico ¡X murmurou. ¡X Oliver! Ah!
Pareces um fidalgo agora; vai para a cama.
O carcereiro segurou a mao de Oliver e disse-lhe para nao ter medo e,
em silencio, ficaram a observar.
OLIVER TWIST
ÇdÇgÇi
¡X Levem-no para a cama ¡X berrou o judeu ¡X, nao me ouvem? Ele
e a causa disso tudo, mas, pelo dinheiro, vale a pena dar cuidados ao
pequeno; Sikes, deixe a rapariga em paz, corte a garganta de Bolter, de
Bolter, Sikes!
¡X Fagin ¡X disse o carcereiro.
¡X Sou eu ¡X respondeu o judeu, a assumir logo a posicao com que
ouvira a sentenca ¡X, sou um velho, senhor juiz, apenas um velho.
¡X Veja ¡X disse o carcereiro tentando acalma-lo ¡X, aqui estao duas
pessoas que, suponho, desejam fazer-lhe algumas perguntas; es ou nao
um homem?
¡X Em pouco tempo, deixarei de se-lo, respondeu com uma face que
nao tinha nada de humano e demonstrava apenas terror e raiva; com que
direito pretendem matar-me?
Dito isto, percebeu a presenca do Sr. Brownlow e de Oliver; encolhendo-
se, perguntou o que queriam ali.
¡X Sossega ¡X disse-lhe o carcereiro. ¡X Agora, cavalheiro, diga-lhe o
que desejas mas sejas rapido, pois conforme passa o tempo, ele vai mais
perdendo a cabeca.
¡X Voce esta em posse de alguns papeis ¡X adiantou-se o Sr. Brownlow
¡X que lhe foram confiados por um homem chamado Monks.
¡X E mentira ¡X respondeu Fagin ¡X, nao tenho papel algum.
¡X Tenha piedade de Deus ¡X disse com toda solenidade o Sr. Brownlow.
¡X Voce bem sabe que Sikes esta morto, que Monks confessou e que nao
ha esperanca para a sua situacao; onde estao os papeis?
¡X Oliver ¡X exclamou Fagin ¡X, aproxime-se que vou dize-lo ao teu
ouvido.
¡X Nao tenha medo ¡X balbuciou Oliver, a livrar-se das maos do Sr.
Brownlow.
¡X Os papeis ¡X disse o judeu, achegando-se dele ¡X estao em um saco
de pano, em um buraco um pouco acima da chamine na parte superior
da casa; quero falar-lhe, meu pequeno, quero falar-lhe.
¡X Sim, sim ¡X respondeu-lhe Oliver ¡X, permita-me fazer uma oracao
por ti, peco por ti de joelhos e depois falamos ate de manha.
¡X Saia! Saia! ¡X respondeu o judeu, empurrando o garoto em direcao
a porta. ¡X Diga-lhes que dormi e me leve daqui.
¡X Oh, Deus! Perdoe esse homem ¡X exclamou Oliver cheio de lagrimas.
¡X Certo, certo ¡X disse Fagin ¡X, isso ira me ajudar; se eu fraquejar ou
CHARLES DICKENS
ÇdÇgÇj
tremer ao passar diante da forca, nao faca caso e continue no caminho;
apressa-te; agora, agora.
¡X O senhor quer fazer mais alguma pergunta? ¡X inquiriu o carcereiro
ao Sr. Brownlow.
¡X Nenhuma ¡X respondeu o Sr. Brownlow. ¡X Se eu pudesse trazerlhe
a realidade...
¡X Nao ha nada que possamos fazer com relacao a isso ¡X respondeu o
homem ¡X, o melhor e deixa-lo.
¡X Apressa-te, apressa-te ¡X exclamou Fagin ¡X, com calma, mas sem
vagar! Sem vagar!
Os homens livraram Oliver, empurrando o bandido para tras; ele ainda
lutou com a forca do desespero e depois gritou. Os gritos eram tao altos
que incomodaram os visitantes enquanto eles atingiam o patio.
Os dois ainda se demoraram no predio. Oliver ficou tao fraco com a cena
que precisou de mais de uma hora para recobrar as energias e levantar.
Quando sairam, amanhecia. Ja uma multidao acumulava-se a porta, as
janelas estavam tomadas pela gente que fumava e jogava cartas para fazer
o tempo passar; era tudo muito animado e cheio de vida, com excecao
dos objetos no centro do passeio: a plataforma negra, a forca, a corda e
todo o pavoroso espetaculo da morte.
Capitulo LIII
O ultimo.
A historia daqueles que apareceram neste relato esta quase toda contada.
O que resta ao narrador pode ser dito em poucas palavras.
Antes mesmo que tres meses houvessem passado, Rosa Fleming e Harry
Maylie casaram-se na igreja da aldeia, que, a partir de entao, seria o lugar
dos trabalhos do jovem pastor, e no mesmo dia tomaram posse de sua
nova e feliz habitacao.
A Sra. Maylie mudou-se para a casa do jovem casal para viver o resto
de seus dias e gozar da maior felicidade que a idade pode oferecer: a contemplacao
da alegria daqueles a quem dedicamos durante toda a vida os
mais atentos e caros cuidados.
Depois de lenta e profunda investigacao, verificou-se que a fortuna
que estava aos cuidados de Monks (e que nunca, seja por ele ou por sua
mae, fora administrada de maneira adequada), caso dividida entre os
irmaos, resultaria em pouco mais de tres mil libras para cada um deles.
Conforme o testamento do pai, contudo, a Oliver caberia todo o dinheiro,
mas o Sr. Brownlow, para dar uma chance de recuperacao ao outro, propos
essa divisao, a que aceitou Oliver com prazer.
Sempre usando esse nome, Monks tomou sua parte e fugiu para algum
canto do novo mundo, onde, depois de perder o dinheiro com gastos
futeis, empenhou-se outra vez em seus velhos vicios e, apos uma longa
estada na prisao, foi tomado pelo seu antigo mal e morreu de ataque.
Tambem os outros da quadrilha de seu amigo Fagin morreram longe de
sua terra natal.
O Sr. Brownlow adotou Oliver como filho. Mudaram-se, eles e a
governanta, para uma casa que nao distava mais de uma milha da paroquia
para onde tinham ido viver seus queridos amigos. Assim formou-se
a pequena comunidade tao desejada por Oliver.
OLIVER TWIST
ÇdÇhÇc
Logo apos o casamento, o Dr. Losborne voltou para Chertsey, onde terse-
ia tornado um homem triste, pela ausencia dos amigos, se tivesse um
temperamento inclinado a tanto. Passou algum tempo a dizer que ainda
nao se acostumara com o clima, para, depois, acertar os negocios e
passar a clinica a seu assistente; mudou-se para a aldeia onde seu amigo
fora ser pastor e em pouco tempo recobrou-se. Dedicou-se a jardinagem,
a pesca e a carpintaria, exercendo essas atividades com seu habitual
impeto e logo tornando-se uma autoridade para a vizinhanca em
todas elas.
Antes da mudanca, fez-se amigo do Sr. Grimwig, que o visita varias
vezes durante o ano. Nestes dias, o Sr. Grimwig planta, pesca e pratica a
carpintaria, atividades que exerce com modos particulares e ineditos e,
como e de seu costume, garante que sao os melhores. Aos domingos, nunca
deixa de criticar o sermao ao pastor; depois, afirma em particular ao
Sr. Losborne que o considera um brilhante orador, mas nao acha adequado
dize-lo.
O Sr. Noe Claypole, perdoado pelo rei depois de ter deposto contra
Fagin, concluiu que a antiga profissao nao era tao livre de perigo e passou
um longo tempo a matutar uma maneira de viver que nao lhe exigisse
muito esforco. Percebeu, entao, que tinha chances de ganhar boas somas
caso se ocupasse de espiao do fisco, trabalho que consistia em fazer a esposa
desmaiar a frente de alguma taberna, justo aos domingos a hora do
servico religioso e, assim, conseguir tres pence em aguardente que algum
comerciante caridoso oferecia para restabelece-la. No dia seguinte,
Claypole o denunciava e recebia metade da multa; por vezes, ele mesmo
desmaiava, obtendo o mesmo resultado.
O Sr. e a Sra. Bumble, tendo sido privados do que tinham, foram pouco
a pouco caindo na miseria ate tornarem-se indigentes por completo e se
internarem naquele mesmo asilo em que, antes, eram autoridade.
No que diz respeito ao Sr. Giles e a Brittles, ambos ainda exercem as
mesmas funcoes, mas o primeiro perdeu todos os cabelos e o segundo
tornou-se calvo. Pousam a casa do pastor, mas trabalham igualmente para
Oliver e o Sr. Brownlow e tambem para o Dr. Losborne, de tal modo que
ninguem na aldeia sabe exatamente a que casa pertencem.
Mestre Carlos Bates, chocado com o crime de Sikes, pos-se a refletir se
a opcao pela vida honesta nao seria a mais adequada. Tendo chegado a
conclusao que sim, deitou fora as antigas atividades e empenhou-se em
uma nova esfera de acao. A principio, enfrentou inumeras dificuldades e
sofreu, mas, gracas a seu espirito jovem e brincalhao, empregou-se como
ajudante de lavoura, depois como carroceiro e hoje e o mais jovem criador
de gado de toda Northamptonshire.
Agora que a narrativa esta a se aproximar do seu final, a mao que a
escreve hesita, pois desejaria contar ainda a continuacao destas aventuras;
descrever os amores de Rosa a seu jovem esposo; as alegrias com que
todos assistiam ao crescimento de Oliver; enfim, descrever as acoes
caridosas que os dois orfaos, sem se esquecer do passado de miserias, realizam
e, assim, repartem a felicidade que o espirito de Agnes, se passeia
ele por aquele sitio, testemunha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário