sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Oliver Twist, Capítulos 16 ao 30


Capitulo XVI
O que foi feito de Oliver depois de ser levado por Nancy.
Depois de haverem passado por muitas ruas estreitas, becos e passagens,
Sikes, Nancy e Oliver chegaram a um vasto espaco descoberto que
tinha sinais de ser um mercado de gado.
Ai Sikes afrouxou o passo, porque a moca ja nao podia correr como
corria; voltou-se para Oliver e deu-lhe ordem de que desse a mao a Nancy.
¡X Ouves? ¡X disse ele, vendo Oliver hesitar e olhar para todos os lados.
Estavam num lugar sombrio, longe de todos, e Oliver viu claramente
que nao havia resistencia possivel; estendeu a mao a Nancy, que a apertou
com forca.
¡X Da ca a outra ¡X disse Sikes. ¡X Aqui, Turco!
O cao levantou a cabeca roncando.
¡X Olha ¡X disse Sikes, pondo a mao no pescoco de Oliver e proferindo
uma praga horrivel ¡X, se ele disser palavra, atira-te a ele! Entendes?
O cao roncou de novo, lambeu o focinho e olhou para Oliver como se
tivesse vontade de lhe saltar em cima sem demora.
¡X Agira, ja sabes o que te espera, meu rapaz, grita, se quiseres; o cao se
encarrega de te fazer calar; anda, depressa!
Turco agitou a cauda para agradecer ao amo essas palavras de afago, a
que ele estava habituado; depois soltou um novo grunhido e pos-se a andar
na frente dos tres.
Atravessaram Smithfield; se fosse Grosvenor-Square era a mesma coisa
para Oliver, que nao conhecia um nem outro. A noite era sombria, os
bicos de gas das lojas mal se percebiam atraves do nevoeiro, que ia aumentando
e envolvendo de trevas as ruas e as casas; o aspecto desses lugares
era ainda mais estranho para Oliver e a sua ansiedade, maior.
Caminhavam apressadamente quando o relogio de uma igreja vizinha
bateu horas. A primeira badalada Sikes e Nancy pararam e prestaram
ouvidos.
OLIVER TWIST
ÇbÇbÇi
¡X Oito horas, Guilherme ¡X disse Nancy.
¡X Por que me dizes isso? ¡X respondeu Sikes. ¡X Eu bem ouvi as horas.
¡X E eles? Poderao eles ouvi-las? ¡X disse Nancy.
¡X Sem duvida que sim ¡X respondeu Sikes. ¡X Quando me prenderam,
foi no tempo de feira de S. Bartolomeu, e nao havia em toda a feira
uma trombeta que eu nao ouvisse; quando eu estava fechado de noite, o
tumulto de fora tornava tao horrivel o silencio da prisao que eu tentava
espedacar a cabeca contra a fechadura da porta.
¡X Pobres rapazes! ¡X disse Nancy com os olhos voltados para o ponto
donde se ouvira o relogio. ¡X Que pena! Eram tao bonitos!
¡X Ai esta o que sao mulheres!
Sikes parecia, ao mesmo tempo que dizia isto, reprimir um movimento
de ciume.
¡X Espera ¡X disse a rapariga. ¡X Eu nao passaria tao depressa neste
lugar se tu tivesses de morrer amanha enforcado, as oito horas; nao me
importaria a neve e, ainda que eu nao tivesse xale, demorar-me-ia na
praca ate tarde.
¡X E que me fazia isso? ¡X perguntou o brutal Sikes. ¡X Salvo se me
pudesses passar uma lima e vinte varas de boa corda; sem isso, quer andasses
cinquenta milhas, quer nao andasses nada, era para mim a mesma
coisa. Vamos, nao fiquemos aqui a dizer palavras sem sentido.
A rapariga deu uma gargalhada, puxou o xale e continuaram a andar;
mas Oliver sentia a mao de Nancy tremer; olhou para ela, quando passaram
por um bico de gas. Estava palida como uma defunta.
Caminharam durante meia hora, por umas ruas imundas e pouco frequentadas,
e os raros individuos que encontravam tinham ares de ocupar
na sociedade posicao identica a do Sr. Sikes. Finalmente entraram em
uma viela mais imunda que as outras e cheia de lojas de belchiores. O cao
correu a frente, como se compreendesse que a vigilancia era agora inutil,
e parou diante de uma loja fechada e aparentemente desocupada, porque
a casa caia em ruinas e um escrito pregado na porta anunciava que estava
para alugar.
¡X Tudo vai bem ¡X disse Sikes, depois de lancar a roda de si um olhar
indagador.
Nancy puxou por um cordao e Oliver ouviu o som de uma campainha.
Atravessaram a rua e esperaram alguns instantes debaixo de um lampiao;
ouviu-se dai a pouco abrir a porta vagarosamente.
CHARLES DICKENS
ÇbÇbÇj
Sem mais cerimonia, o Sr. Sikes segurou na gola da crianca aterrada, e
todos os tres entraram na casa.
A alameda estava completamente escura. Os tres esperaram que a pessoa
que os havia introduzido pusesse no seu lugar a barra de ferro que
prendia a porta.
¡X Nao ha ninguem? ¡X perguntou Sikes.
¡X Nao ¡X respondeu uma voz que Oliver pareceu conhecer.
¡X O velho esta ca?
¡X Esta e parecia triste enquanto esperava. Agora vai ficar contentissimo.
O estilo de resposta e a voz nao eram desconhecidos a Oliver; mas no
escuro era impossivel ver o interlocutor.
¡X Alumia ¡X disse Sikes ¡X, quando nao quebramos o nariz ou pisamos
o cao, o que e pior.
¡X Espera um instante que eu ja arranjo luz.
Ouviram-se passos de alguem que se afastava, e no cabo de um minuto
apareceu o Sr. Jack Dawkins, por alcunha o Matreiro, com uma vela metida
na ponta rachada de um pau.
O jovem ratoneiro fez uma careta a Oliver e disse aos outros que o
acompanhasse; atravessaram a casinha, onde so havia as quatro paredes,
e, abrindo a porta de uma sala baixa e umida, que dava para um patio
lamacento, foram recebidos com grandes gargalhadas.
¡X Oh! Que boa cara! ¡X exclamou mestre Carlinhos Bates rindo. ¡X
Ca vem ele! Olhem! Fagin, veja aquilo; que cara! Ja nao posso! Nao posso!
A alegria do mestre Bates ja nao tinha limites; deixou-se ele cair no chao,
agitando convulsivamente as pernas, e durante cinco minutos nao pode
moderar os seus transportes.
Afinal levantou-se, pegou na vela e, aproximando-a de Oliver, examinou-
o dos pes ate a cabeca, enquanto o judeu, tirando o bone, cumprimentava
repetidas vezes e com todo o respeito a pobre crianca
espantada.
Quanto ao Matreiro, sonso como era e pouco dado a riso quando podia
exercer os seus talentos, examinou as algibeiras de Oliver com apurada
minuciosidade.
¡X Veja, Fagin, como ele vem no trinque! ¡X disse Carlinhos, aproximando
a luz do vestuario novo de Oliver. ¡X Olha para isto.
¡X Fazenda numero um; e que belo corte! E livros! Olha, Fagin, e um
fidalguinho perfeito!
OLIVER TWIST
ÇbÇcÇa
¡X Tenho muito gosto em ve-lo assim ¡X disse o judeu cumprimentando
ironicamente Oliver. ¡X O Matreiro dar-lhe-a outra roupa, meu caro,
para que voce nao emporcalhe a roupa nova. Por que nao escreveu para
avisar-nos da sua chegada? Poderiamos oferecer-lhe uma ceia.
A estas palavras mestre Bates foi acometido de novo riso, que se comunicou
a Fagin e fez sorrir o Matreiro. Mas como este ultimo tirava ao
mesmo tempo do bolso de Oliver o bilhete de cinco guineus, nao se pode
saber se o sorriso teve origem na explosao de mestre Bates ou no achado
do bilhete.
¡X Oh! Oh! Que e isso? ¡X perguntou Sikes indo ao judeu, que metia
no bolso o bilhete. ¡X Isso me pertence, Fagin.
¡X Nao, meu amigo, nao ¡X disse o judeu. ¡X E meu; fique voce com os
livros.
¡X Se ousas dizer que isso nao e meu ¡X disse Sikes, pondo o chapeu
com resolucao ¡X isto e, a mim e a Nancy, levo o pequeno outra vez.
O judeu estremeceu, e Oliver tambem, posto fosse por diferente motivo;
esperava que a briga lhe desse a liberdade.
¡X Vejamos ¡X disse Sikes ¡X, quer dar-me isso?
¡X Nao e justo, Guilherme ¡X disse o judeu. ¡X Nao acha, Nancy? Nao
lhe parece que isto nao e justo?
¡X Seja ou nao justo ¡X respondeu Sikes ¡X, de-me ca isso. Entao voce
pensa que eu e Nancy nao temos mais nada que fazer do que perder o
nosso tempo a procurar um pequeno preso por sua causa? De ca isso, ladrao!
Anda!
Fazendo estas amigaveis observacoes, Sikes segurou o bilhete que o
judeu tinha na mao, depois olhou fixamente para Fagin, dobrou o bilhete
e meteu-o em um no que deu na gravata.
¡X Isto e a paga do nosso trabalho ¡X disse Sikes ¡X e nao paga metade
dele; fique voce com os livros se gosta de ler ou entao venda-os.
¡X E muito interessante ¡X disse Carlinhos Bates, fingindo ler um dos
volumes e fazendo mil caretas. ¡X Belo estilo, nao e, Oliver?
E vendo o ar triste de Oliver, mestre Bates, que tinha o dom de achar o
lado comico de todas as coisas, entregou-se outra vez a um transporte de
alegria mais ruidoso que o primeiro.
¡X Os livros sao do meu velho amigo ¡X disse Oliver, torcendo as maos.
¡X Sao do bom e generoso homem que me levou para casa e tratou de
mim quando eu estava doente; mande-os que lhe peco, mande os livros e
CHARLES DICKENS
ÇbÇcÇb
o dinheiro; eu fico aqui por toda a minha vida. Se nao forem os livros ele
pensa que eu os roubei. A velha e todos os que la me tratam tao bem
pensarao que sou um ladrao. Tenham pena de mim!
Falando assim com a energia de uma dor pungente, Oliver caiu de joelhos
aos pes do judeu, juntando as maos com ar suplicante e desesperado.
¡X Tem razao o rapaz ¡X observou Fagin, olhando a roda de si com ar
sonso. ¡X Tens razao, Oliver, tens razao. Hao de pensar que es um ladrao;
Ah! Ah! Tanto melhor!
E dizendo isto o judeu esfregou as maos.
¡X Sem duvida ¡X respondeu Sikes. ¡X Eu pensei nisso desde que o vi
entrar em Clerkenwell com os livros debaixo do braco. Era simples; aquela
gente por forca que ha de estar vestida e calcada no reino do ceu; se nao
fosse isso, nao teriam recebido o rapaz em casa. Nao o virao procurar,
acredite, por medo de serem obrigados a um processo para darem o pequeno
a prisao; o pequeno esta seguro.
Durante este dialogo, Oliver olhava ora para Fagin ora para Sikes, como
se nem tivesse consciencia do que se passava a roda dele; ouvindo as ultimas
palavras de Guilherme, Oliver levantou-se subitamente e, assustado,
correu para fora da sala, pedindo socorro, de maneira que despertava
todos os ecos da velha casa arruinada.
¡X Nao deixes sair o teu cao, Guilherme! ¡X exclamou Nancy precipitando-
se para a porta e fechando-a.
O judeu e os dois discipulos ja haviam saido a cata de Oliver.
¡X Nao deixes sair o teu cao ¡X repetiu a moca. ¡X Olha que ele vai
dilacerar o pequeno.
¡X Pois sera bem feito! ¡X disse Sikes lutando para se desvencilhar dos
bracos da moca. ¡X Deixa-me ou eu te esmago a cabeca contra a porta.
¡X E o mesmo, Guilherme, e o mesmo ¡X gritava a rapariga, lutando
energicamente com Sikes. ¡X A crianca nao sera mordida pelo cao ou tu
me mataras primeiro.
¡X Vais ver! ¡X respondeu Sikes rangendo os dentes. ¡X Sai dai ou morres!
O ladrao atirou a rapariga para o fundo do quarto... justamente quando
o judeu e os seus dois discipulos entraram trazendo Oliver.
¡X Entao, o que ha? ¡X perguntou o judeu.
¡X Creio que esta rapariga enlouqueceu ¡X disse Sikes com ar feroz.
¡X Nao, nao estou louca ¡X respondeu Nancy palida e ofegante. ¡X Afirmo-
lhe, Fagin, que nao estou louca.
OLIVER TWIST
ÇbÇcÇc
¡X Pois entao cale-se! ¡X disse o judeu com ar ameacador.
¡X Nao, nao me calarei ¡X respondeu Nancy. ¡X Tem alguma coisa
com isto?
O Sr. Fagin conhecia perfeitamente o carater das mulheres e sabia que
nao era prudente prolongar conversa.
Dirigiu-se a Oliver:
¡X Entao o amiguinho queria esquivar-se?
E dizendo isto lancou mao de um cacete.
Oliver nao respondeu, mas observou os movimentos do judeu, e o seu
coracao batia com forca.
¡X Pedia socorro, queria chamar a policia, nao? ¡X prosseguiu Fagin
com um riso zombeteiro e segurando no braco do menino. ¡X Ha de passar-
lhe esse desejo.
O judeu pespegou uma vigorosa cacetada nas espaduas de Oliver e levantou
o braco para repetir a dose, quando a moca correu a ele, tirou-lhe
o cacete das maos e atirou-o ao fogao com forca tal que algumas brasas
vieram rolar ate o meio do quarto.
¡X Nao tolero semelhante coisa ¡X disse Nancy. ¡X Apanhei a crianca
em caminho e trouxe-a outra vez para ca; que lhe quer mais? Deixe-a
sossegada ou eu farei com que me enforquem antes do tempo.
Proferindo estas ameacas, a moca batia com o pe no assoalho; palida de
colera, labios cerrados, punhos cerrados, ela olhava ora para o judeu, ora
para Sikes.
¡X Ora, vamos, Nancy ¡X disse o judeu com voz mais doce depois de
algum silencio, durante o qual trocara com Sikes olhares espantados.
¡X Voce esta hoje... mais admiravel que nunca; esta representando perfeitamente.
¡X Deveras? ¡X disse a rapariga. ¡X Peca a Deus que eu me nao exceda
a mim mesma; sera tanto pior para voce. Ande, saia dai.
Quando uma mulher se irrita, principalmente quando e infeliz; pode
chegar a um ponto tal que poucos homens se atrevam a provoca-la.
O judeu compreendeu que perderia tempo fingindo crer que a colera
de Nancy era brincadeira e, recuando involuntariamente alguns passos,
deitou a Sikes um olhar meio receoso, meio suplicante, como para lhe
dizer que devia continuar o dialogo.
Ouviu o Sr. Sikes aquele mudo apelo e, sentindo talvez que o seu orgulho
pessoal e a sua influencia tinham interesse em que Nancy fosse imediatamente
obrigada a ceder, proferiu duas ou tres duzias de maldicoes e
CHARLES DICKENS
ÇbÇcÇd
ameacas cuja rapidez e variedade muito honravam a fertilidade do seu
espirito inventivo.
Como isso nao produzisse efeito, recorreu a outros argumentos.
¡X Que queres dizer com isto? ¡X disse ele. ¡X Nao sabes quem es e o
que es?
¡X Oh! Bem sei ¡X replicou a rapariga com um riso nervoso, abanando
a cabeca e afetando um ar de indiferenca.
¡X Pois entao, deixa-te ficar em paz ¡X acrescentou Sikes rosnando como
quando falava ao cao. ¡X Ou eu te obrigarei a isso e por muito tempo.
A moca entrou a rir, e com mais despejo que dantes; depois, deitando um
olhar furtivo a Sikes, desviou a cabeca e mordeu os labios ate deitar sangue.
¡X Ficam-te muito bem ¡X disse Sikes ¡X estes ares de generosidade!
Deste ocasiao para este menino ficar sendo teu amigo.
¡X Sim, eu sou amiga dele ¡X disse a rapariga com raiva ¡X e agora
digo que preferia morrer na rua ou ocupar o lugar daqueles ao pe de
quem passamos hoje a ter trazido esta crianca para aqui. De hoje em
diante fica sendo um larapio, um ladrao, um malvado. E ainda em cima
ha de aquele velho dar-lhe pancadas?
¡X Esta bom, Sikes ¡X disse o judeu com ar de censura e mostrandolhe
os ratoneiros, que ouviam aquele dialogo com a maior atencao ¡X,
acalma-te, Guilherme! Faze as pazes.
¡X Fazer as pazes! ¡X exclamou Nancy exasperada! ¡X Malvado! Eu
ainda nao tinha metade da idade desta crianca e ja roubava para voce, e
ha doze anos estou neste oficio; roubo para voce. Nao e verdade?
¡X Esta bom ¡X respondeu o judeu, procurando acalmar Nancy. ¡X Mas
este oficio e o que te da de comer.
¡X Tem razao ¡X respondeu ela, com volubilidade. ¡X E essa a minha
vida, como as ruas sao a minha casa, apesar do frio, da chuva e da lama. E
foi voce, miseravel, que me deitou a perder e me conserva nestes crimes
ate que eu morra.
¡X Acontecer-te-a pior que isso ¡X interrompeu o judeu. ¡X Pior que
isso se continuas a falar.
Ela calou-se; mas em sua colera arrancava os cabelos e rasgava os vestidos.
Precipitou-se para o judeu e provavelmente lhe deixaria sinais de
vinganca, se Guilherme Sikes nao intervisse a tempo segurando-lhe as
maos; ela fez alguns esforcos para se desvencilhar e desmaiou.
¡X Prefiro isso ¡X disse Sikes, deitando-a a um canto do quarto. ¡X Ela
tem imensa forca nos bracos quando se irrita.
OLIVER TWIST
ÇbÇcÇe
O judeu enxugou a testa e sorriu; sentia-se aliviado vendo enfim esta
cena terminada; mas nem ele, nem Sikes, nem o cao, nem os discipulos
pareciam ver naquilo mais que um incidente ordinario do oficio.
¡X E o diabo ter-se de tratar com mulheres ¡X disse o judeu. ¡X Mas
elas sao muito espertas, e nada se consegue sem elas. Carlinhos, leva Oliver
para a cama.
¡X Suponho que ele nao vestira amanha a roupa nova ¡X disse Carlinhos
Bates rindo.
¡X Nao tenhas medo disso ¡X respondeu o judeu, rindo tambem.
Mestre Bates levou Oliver para uma cozinha ao pe de onde havia duas
ou tres camas semelhantes aquela em que Oliver dormira outrora.
Ai o Sr. Bates, depois de rir muito, deu a Oliver a mesma roupa que ele
tao contente despira em casa do Sr. Brownlow. Quis o acaso que Fagin a
reconhecesse na mao do judeu que a comprara, e essa circunstancia fez
com que se descobrisse a casa em que Oliver estava.
¡X Tira a roupa nova ¡X disse Carlinhos ¡X, eu a darei a Fagin. Ah!
que boa cacoada!
O pobre Oliver obedeceu contra a vontade; mestre Bates enrolou a roupa
nova, po-la embaixo do braco e saiu; fechou a porta a chave e deixou
Oliver em trevas.
As gargalhadas de Carlinhos e a voz de Miss Betty, que chegou a proposito
para borrifar com agua a cara da amiga desmaiada, bastariam para
impedir o sono a pessoas mais felizes que Oliver; mas ele sofria e estava
cansado e nao tardou que dormisse profundamente.
CHARLES DICKENS
ÇbÇcÇf
Capitulo XVII
A ma estrela de Oliver traz a Londres um grande
personagem expressamente para lhe marear a reputacao.
E uso, em melodramas que cheirem a sangue, alternar as cenas tragicas
e as cenas comicas. Ora, aparece jazendo em cama ruim o heroi acabrunhado
pelas desgracas e pelos grilhoes que lhe roxeam os pulsos; na
cena seguinte, o seu fiel escudeiro, ignorando tamanha desgraca, vem
alegrar o publico com uma cantiga de escangalhar as pedras.
Vemos a heroina a merce de um barao cruel e soberbo, exposta a perder
a honra ou a vida e arrancando um punhal para salvar uma a custa da
outra; e, no momento em que o interesse esta vivamente excitado, ouvese
o apito do contra-regra, que nos transporta a uma grande sala de um
castelo, onde um sujeito, de empoada cabeleira, canta uma cancao alegre.
Os vassalos fazem coro com ele; e saem todos cantando.
Parecem ridiculas estas mudancas de cena; contudo nao sao tao inverossimeis
como nos parecem a primeira vista. A vida apresenta destes
contrastes, festa e morte, luto e alegria, tristeza e folga.
Mas entao nos e que somos os atores, e isso faz grande diferenca.
As transicoes subitas, os acessos de dor, que na cena da vida nao nos
espantam, parecem ridiculos desde que nos convertemos em simples espectadores.
Parecera inutil este curto preambulo. A intencao do autor e prevenir
delicadamente o leitor de que vai agora a cidade natal de Oliver, para o
que tem boas razoes.
Um dia de manha, logo cedinho, saiu o Sr. Bumble, com a cabeca levantada,
do asilo da mendicidade, e subiu a rua com passo majestoso.
Estava com todo o esplendor da sua dignidade de bedel.
Os raios do sol nascente brincavam no seu chapeu de tres bicos e na
casaca, e ele empunhava a bengala com o ar resoluto que se adquire com
a saude e o poder.
OLIVER TWIST
ÇbÇcÇg
O Sr. Bumble sempre andara de cabeca alta, mas naquele dia levava-a
mais alta que nunca.
Havia no seu olhar uma tal ou qual profundidade, e no seu passo uma
altivez que anunciava grandes reflexoes.
O Sr. Bumble nao parava na rua para conversar com os lojistas ou outras
pessoas que lhe dirigiam respeitosamente a palavra; mal respondia
aos seus cumprimentos, com um gesto rapido. Conservou este ar imponente
ate chegar a casa da Sra. Mann, aquela que criou Oliver.
¡X Leve o diabo o bedel ¡X disse a Sra. Mann ouvindo o Sr. Bumble
sacudir com impaciencia a porta do jardim. ¡X Naturalmente e ele... Ah!
Sr. Bumble, eu bem sabia que era o senhor! Que prazer me da com a sua
visita! Entre, faca favor.
As primeiras palavras eram dirigidas a Suzanna e as exclamacoes de
alegria, ao Sr. Bumble, ao passo que a criada abria a porta do jardim e
fazia entrar o bedel com todo o respeito.
¡X Sra. Mann ¡X disse o Sr. Bumble, deixando-se cair lentamente em
uma poltrona. ¡X Deus lhe de muitos bons dias.
¡X Bom dia, Sr. Bumble ¡X respondeu a Sra. Mann sorrindo. ¡X Esta
bom, nao?
¡X Assim, assim ¡X respondeu o Sr. Bumble. ¡X A vida paroquial nao e
cama de rosas.
¡X A quem o diz o senhor!
Se as criancas do asilo os ouvissem fariam coro ambos.
¡X A vida paroquial ¡X continuou o Sr. Bumble, dando com a bengala
na mesa ¡X e uma vida fatigante e agitada; mas todos sabem que o destino
dos funcionarios publicos e estarem expostos a perseguicoes.
A Sra. Mann, sem compreender muito o que queria dizer o bedel, levantou
as maos ao ceu com ar de compaixao e suspirou.
¡X Tem razao para suspirar ¡X disse o bedel.
Vendo que tinha razao, a Sra. Mann soltou outro suspiro, com grande
satisfacao do funcionario, que, reprimindo um gracioso sorriso, olhou gravemente
para o chapeu de tres bicos e disse:
¡X Parto amanha para Londres.
¡X Como? ¡X disse a Sra. Mann, recuando dois passos.
¡X Sim, para Londres ¡X respondeu o inflexivel bedel. ¡X Vou na
diligencia e levo dois pobres do asilo. Querem po-los fora de la; e o
conselho encarregou-me de ir acompanhar o processo perante o tribuCHARLES
DICKENS
ÇbÇcÇh
nal de Clerkenwell. E eu quero ver se o tribunal de Clerkenwell pode
comigo.
¡X Nao seja severo com os pobres ¡X disse a Sra. Mann em tom adocicado.
¡X Sera por culpa do tribunal.
¡X E vai de diligencia; eu cuidava que os pobres iam em carroca.
¡X Sim, quando estao doentes ¡X disse o bedel. ¡X Vao em carroca
descoberta quando chove; e para os nao constipar.
¡X Oh!
¡X Quanto a estes, vao em diligencia, por preco modico. Estao num
triste estado e nos calculamos que as despesas de transporte custariam
duas libras esterlinas menos que as do enterro... com a condicao de que os
coloquemos em outra paroquia. Espero que o conseguiremos, salvo se
morrerem em caminho para fazer-nos pirraca.
O Sr. Bumble entrou a rir; mas os seus olhos encontraram o chapeu de
tres bicos, e imediatamente ficou serio.
¡X Nao esquecamos os negocios ¡X disse ele. ¡X Aqui esta o ordenado
mensal que a paroquia lhe da.
O Sr. Bumble tirou da carteira algumas moedas de prata enroladas em
papel e pediu recibo, ao que a Sra. Mann obedeceu logo.
¡X Sao garatujas ¡X disse ela ¡X, mas esta em regra; obrigada, Sr.
Bumble.
Este respondeu com um leve aceno de cabeca aos cumprimentos da
Sra. Mann e pediu noticias das criancas.
¡X Coitadinhos! Os meus anjinhos! ¡X respondeu ela. ¡X Gozam de
perfeita saude, exceto dois que morreram na semana passada e o pequeno
Ricardo, que esta doente.
¡X Nao vai melhor? ¡X perguntou o bedel.
A Sra. Mann abanou a cabeca.
¡X Tem mas disposicoes aquela crianca, carater rebelde, natureza viciosa
¡X acrescentou o bedel com ar irritado. ¡X Onde esta ele?
¡X Vou busca-lo ¡X disse a Sra. Mann. ¡X Ricardo! Vem ca!
Saiu a buscar o pequeno, encontrou-o, lavou-lhe a cara com agua fria e
enxugou-o com o seu vestido; depois compareceu o pequeno diante do
imponente Bumble.
Estava palido e magro; tinha as faces cavadas e grandes olhos brilhantes.
O miseravel uniforme da paroquia, essa libre da miseria, flutuava
naquele corpo debil, e o pequeno parecia um velho.
OLIVER TWIST
ÇbÇcÇi
Tal era o pobre menino que tremia em frente do Sr. Bumble, sem ousar
erguer os olhos e receando ouvir a voz dele.
¡X Olhe para este senhor, meu cabecudo ¡X disse a Sra. Mann.
A crianca levantou timidamente a cabeca, e os seus olhos encontraram
os do Sr. Bumble.
¡X Filho da paroquia, que manda V.S.? ¡X perguntou o Sr. Bumble com
ar de cacoada.
¡X Nada, senhor ¡X respondeu o pequeno com voz tremula.
¡X Bem sei que nada ¡X disse a Sra. Mann, depois de se rir da graca do
bedel. ¡X Tu nao precisas de nada.
¡X Eu queria... ¡X balbuciou a crianca.
¡X O que, miseravel? ¡X interrompeu a mulher. ¡X Vas dizer que precisas
alguma coisa?
¡X Espere! ¡X disse o Sr. Bumble, levantando a mao com autoridade.
¡X Que quer o senhor?
¡X Eu queria ¡X balbuciou a crianca ¡X que alguem me escrevesse
algumas palavras em um pedaco de papel, fechasse, colasse e guardasse
para quando eu estiver enterrado.
¡X Que quer dizer com isso? ¡X perguntou o Sr. Bumble, algum tanto
impressionado com o ar da crianca. ¡X Que quer dizer?
¡X Eu queria ¡X disse a crianca ¡X deixar algumas palavras de amizade
ao pobre Oliver Twist e dizer-lhe quanto chorei pensando que andava
a toa, sem ninguem que lhe desse a mao... E quisera dizer-lhe tambem
que estou contente por morrer crianca, porque se eu vivesse muito, minha
irma que esta no ceu talvez me nao conhecesse mais ou me esquecesse;
e melhor que nos encontremos la em cima.
O Sr. Bumble, admiradissimo, contemplou o pequeno orador dos pes
ate a cabeca e disse a Sra. Mann:
¡X Sao todos talhados pelo mesmo modelo; o descarado do Oliver os
desmoralizou a todos.
¡X Quem tal suporia! ¡X disse a Sra. Mann, erguendo as maos ao ceu.
¡X Nunca vi miseravel mais pervertido do que este!
¡X Leve-o, senhora! ¡X disse o Sr. Bumble com autoridade. ¡X Serei
obrigado a dar conta ao conselho de administracao.
¡X Espero que esses senhores me farao a justica de crer que eu nao
tenho culpa nisto ¡X disse a Sra. Mann choramingando.
¡X Fique tranquila, eles serao informados de tudo ¡X disse com enfase o
CHARLES DICKENS
ÇbÇcÇj
Sr. Bumble. ¡X Leve este pequeno, que me esta causando asco. Que carater!
Ricardo foi levado e fechado no deposito de carvao; alguns instantes
depois saiu o Sr. Bumble para fazer os preparativos de viagem.
No dia seguinte, as seis horas, o Sr. Bumble, depois de trocar o chapeu
de tres bicos por um chapeu redondo e vestir um paleto azul, subiu a
almofada da diligencia, em companhia de dois criminosos que a administracao
queria mandar embora.
Chegou a Londres sem outro incomodo mais que o procedimento
dos dois pobres, que teimavam em tiritar e dizer que sentiam frio, e
isto fez com que o Sr. Bumble dissesse que semelhante confissao da
parte deles e que lhe causava frio, apesar de vir com um grosso paleto
no corpo.
Depois de se ter livrado, por toda a noite, daquelas macantes criaturas,
o bedel alugou um quarto no hotel onde parara a diligencia e jantou
modestamente algumas talhadas de carne assada, com molho de ostras,
acompanhado de uma garrafa de Porter.
Acabado o jantar, aproximou a cadeira do fogao, pos sobre a chamine um
copo de grog e, depois de algumas reflexoes morais acerca da tendencia que
os homens tem para se queixarem sempre, dispos-se a ler um jornal.
O primeiro artigo que lhe caiu debaixo dos olhos foi o seguinte anuncio:
Cinco Guineus de Alvissaras
Desapareceu de casa, em Pentonville, quinta-feira, a noite, um rapaz chamado
Oliver Twist, e dai para ca nao se sabe o que e feito dele: dar-se-ao os cinco
guineus de alvissaras a quem ministrar informacoes tendentes a fazer encontrar
o dito Oliver Twist, ou esclarecer a sua historia, que o autor do presente
anuncio tem grande interesse em saber.
Vinham depois os sinais de Oliver, com todos pormenores do vestuario,
e afinal o nome e o numero da casa do Sr. Brownlow.
O bedel arregalou os olhos, leu e releu tres vezes este anuncio; cinco
minutos depois, dirigia-se a Pentonville sem engolir sequer o grog.
¡X O Sr. Brownlow esta em casa? ¡X perguntou ele a criada que viera
abrir a porta.
A esta pergunta, deu a criada a resposta evasiva de costume:
¡X Nao sei; da parte de quem vem?
O Sr. Bumble ainda nao tinha acabado de proferir o nome de Oliver e ja
a Sra. Bedwin, que escutava da porta da sala, correu e veio falar ao bedel.
OLIVER TWIST
ÇbÇdÇa
¡X Entre, entre ¡X disse ela. ¡X Eu bem sabia que teriamos noticias
dele; coitadinho! Eu estava certa disso! Eu bem o disse!
Falando assim, a boa velha entrou para a sala com precipitacao, atirou-se
a um sofa e entrou a chorar; enquanto a criada, que nao era tao dada a
sentimentos, foi prevenir o Sr. Brownlow e voltou para dizer ao Sr. Bumble
que a seguisse.
Levou-o a um pequeno gabinete onde se achavam o Sr. Brownlow e seu
amigo, o Sr. Grimwig, assentados a uma mesa, tendo alguns copos diante
de si.
¡X Um bedel! ¡X exclamou o Sr. Grimwig vendo o Sr. Bumble. ¡X E
um bedel de paroquia! Coma eu a minha cabeca...
¡X Tenha a bondade de nos nao interromper agora ¡X disse o Sr. Brownlow.
E dirigindo-se ao bedel:
¡X Queira assentar-se.
O Sr. Bumble obedeceu, nao pouco admirado das maneiras do Sr. Grimwig;
o Sr. Brownlow pos o lampiao de maneira que a luz batesse em cheio na
cara do bedel e disse com alguma impaciencia:
¡X O senhor leu naturalmente o meu anuncio?
¡X Sim, senhor.
¡X O senhor e bedel? ¡X perguntou o Sr. Grimwig.
¡X Sou bedel de paroquia ¡X respondeu o Sr. Bumble com certo orgulho.
¡X E isso ¡X disse o Sr. Grimwig ao ouvido do seu amigo. ¡X Eu estava
certo; aquele paleto cheira a paroquia; e um bedel escrito e escarrado.
O Sr. Brownlow fez um pequeno sinal de cabeca para impor silencio e
continuou:
¡X Sabe alguma coisa daquele pobre menino?
¡X Sei tanto como o senhor ¡X respondeu o Sr. Bumble.
¡X Mas diga sempre o que sabe. Que sabe a respeito dele?
¡X Naturalmente nao vem contar nada que seja bom ¡X observou o
Sr. Grimwig em ar de chalaca.
O Sr. Bumble abanou a cabeca com ar profundo.
¡X Que lhe dizia eu? ¡X exclamou o Sr. Grimwig, olhando para o amigo
com ar triunfante.
O Sr. Brownlow pediu que o bedel se explicasse.
O Sr. Bumble pos o chapeu no chao, desabotoou o paleto, cruzou os
bracos, deitou a cabeca para tras e, depois de alguns momentos de reflexao,
comecou a falar.
CHARLES DICKENS
ÇbÇdÇb
Seria superfluo transcrever aqui as proprias palavras do bedel, que levou
vinte minutos a discorrer. Em resumo, disse que Oliver era um enjeitado,
nascido de pais obscuros e perversos; que desde o seu nascimento
revelava hipocrisia, ingratidao e maldade; que terminara a sua curta estada
na cidade natal tentando assassinar covardemente um rapaz inofensivo
e fugindo de casa de seu amo. Em apoio destas assercoes, o Sr. Bumble
apresentou uns papeis; cruzou os bracos e esperou.
¡X Receio que tudo isso seja verdade ¡X disse o Sr. Brownlow com
tristeza, depois de examinar os papeis. ¡X Aqui estao cinco guineus pelas
suas informacoes; mas eu dava o triplo desta quantia se as informacoes
fossem favoraveis ao pequeno.
E provavel que, se o Sr. Bumble soubesse disso mais cedo, teria dado a
sua historia uma cor inteiramente diversa. Mas agora era tarde; cumprimentou
os dois velhos, meteu no bolso os cinco guineus e saiu.
Durante alguns minutos o Sr. Brownlow passeou com um ar tao triste
que o Sr. Grimwig desistiu de o contrariar. Afinal parou e tocou violentamente
a campainha.
¡X Sra. Bedwin ¡X disse ele, quando a velha apareceu ¡X, Oliver e um
impostor!
¡X Impossivel ¡X disse a velha energicamente.
¡X Repito que e um impostor. Acabamos de saber toda a sua historia.
Oliver e um peralta.
¡X Nunca acreditarei semelhante coisa ¡X disse a velha.
O Sr. Grimwig interveio dizendo que desde o principio os avisara dizendo
quem era o menino. A velha defendeu Oliver, mas o Sr. Brownlow
impos-lhe silencio e mandou-a embora.
Houve nessa noite muitos coracoes tristes em casa do Sr. Brownlow.
Quanto a Oliver, estava desesperado pensando nos seus amigos de
Pentonville; felizmente, para ele, ignorava o que lhes contara o bedel;
porque, se o soubesse, morreria de desespero.
Capitulo XVIII
Como Oliver passava o tempo na sociedade
de seus respeitaveis amigos.
No dia seguinte ao meio-dia, depois de sairem o Matreiro e o mestre
Bates para as suas ocupacoes ordinarias, o Sr. Fagin aproveitou o ensejo e
fez a Oliver um longo sermao a respeito do horrendo pecado da ingratidao,
no qual pecado Oliver caira, primeiramente deixando a sociedade
dos seus amigos, depois tentando fugir quando eles haviam gasto tanto
tempo e dinheiro para o reaver.
O judeu insistiu principalmente na hospitalidade que dera a Oliver e
na amizade que lhe manifestara; fez-lhe sentir que, se nao fora sua assistencia,
estaria provavelmente morto de fome.
Depois contou-lhe a historia horrivel de um rapaz a quem socorrera
por caridade, em circunstancias iguais, mas que se mostrara indigno da
sua confianca, manifestara o desejo de entreter relacoes com a policia e
acabara na forca.
Nao dissimulou a Oliver a parte que tivera nessa catastrofe; mas deplorou
com lagrimas nos olhos a cruel necessidade a que o rapaz o reduzira.
O judeu acabou a arenga descrevendo os inconvenientes de morrer
enforcado e, com um tom palido e afavel, declarou que esperava nao ser
obrigado a sujeitar Oliver Twist a esta operacao.
Ouvindo o discurso do judeu, tremia Oliver da cabeca aos pes, ainda
que mal compreendesse o sentido daquelas ameacas.
Sabia por experiencia propria que a justica podia confundir o inocente
com o culpado, quando por acaso os acha juntos; lembrando-se das
altercacoes de Fagin com Sikes, acreditou que o judeu mais de uma vez
executara aquele meio para reprimir as indiscricoes e fazer desaparecer
as pessoas muito comunicativas.
Levantou timidamente os olhos e encontrou o olhar penetrante do juOLIVER
TWIST
ÇbÇdÇe
deu; compreendeu que o seu medo nao havia escapado ao velho ladrao,
que ate parecia regozijar-se com isso.
Passou nos labios de Fagin um medonho sorriso; bateu ele com a mao
na cabeca de Oliver e disse-lhe que, se trabalhasse tranquilamente, viriam
a ser bons amigos; depois pegou no chapeu, vestiu um paleto remendado
e saiu, fechando a porta com a chave.
Durante esse dia, e nos dias seguintes, Oliver ficou so, desde a manha
ate a meia-noite.
Abandonado durante longas horas aos seus pensamentos, ele os dirigia
sempre para os seus amigos de Pentonville e pensava com tristeza na ma
opiniao que deviam ter dele.
Ao cabo de uma semana, o judeu deixou de fechar a porta do quarto, e
Oliver teve liberdade para andar na casa toda.
Era um triste predio. As salas de cima tinham muitas obras de talha,
grandes portas e cornijas, que, apesar de enegrecidas pelo tempo e cobertas
de po, mostravam ter esculturas variadas.
Oliver concluiu que outrora, muito antes do nascimento do judeu, aquela
casa devia ter pertencido a pessoas de classe elevada e que, talvez por
mais triste e estragada que agora estivesse, fosse em outro tempo morada
alegre e elegante.
As aranhas tinham estendido as suas teias em todos os angulos das
paredes e ao longo dos tetos; as vezes, quando Oliver andava devagar pelo
quarto, um camundongo entrava a passear pelo chao e fugia assustado
para o seu buraco. Eram os unicos entes vivos que ele podia ter ou ver.
Muitas vezes, quando a noite caia, e estava cansado de andar de quarto
em quarto, ia acocorar-se em um canto da alameda que dava para a
porta da rua, a fim de estar mais perto da sociedade dos vivos, e ai
ficava, com o ouvido alerta, a contar as horas ate que voltasse o judeu
com os seus discipulos.
Todos os quartos tinham as janelas trancadas; a luz penetrava por alguns
buracos apenas, o que dava aos quartos um aspecto ainda mais sinistro
e o povoava de sombras singulares.
Havia, e verdade, uma especie de sotao ao fundo da casa, com uma
janela gradeada; muitas vezes Oliver ia passar ali horas inteiras e olhava
para longe, com ar pensativo; mas apenas via uma massa confusa de tetos
e chamines negras; as vezes alguma cabeca branca lhe aparecia em uma
ou outra casa afastada; mas logo desaparecia. Demais, como a janela estaCHARLES
DICKENS
ÇbÇdÇf
va tapada por gradil de ferro e tinha os vidros sujos, ele mal podia perceber
os objetos externos.
Um dia, que o Matreiro e mestre Bates deviam passar a noite fora, o
primeiro destes jovens ratoneiros teve ideia de cuidar mais da toalete do
que costumava fazer; cumpre dizer que ele nao era dado a estas fraquezas;
chamou Oliver em seu auxilio.
Oliver tinha grande prazer em ser util; alegrava-se de ver caras humanas,
por piores que elas fossem.
Nao hesitou em servir o Matreiro.
Assentou-se este em cima da mesa, e Oliver, com um joelho em terra,
entrou a escovar as botas do Sr. Dawkins, o que este chamava: lustrar as
andarilhas.
Ou porque o Matreiro experimentasse o sentimento de liberdade e independencia
propria de todo animal racional quando esta assentado em
cima de uma mesa, fumando cachimbo, balancando uma perna, enquanto
se lhe escovam as botas que nem teve o trabalho de tirar; ou porque a
bondade do tabaco lhe despertasse a sensibilidade, ou porque a boa qualidade
da cerveja influisse em seu espirito, o certo e que o Matreiro revelou
um movimento de entusiasmo contrario ao seu habitual carater; com
ar pensativo abaixou os olhos para Oliver, depois levantou a cabeca e disse
com um suspiro, metade a si, metade a mestre Bates:
¡X E pena que ele nao seja do oficio!
¡X Ah! E verdade ¡X disse Carlinhos ¡X, ele recusa a sua felicidade.
O Matreiro soltou outro suspiro e pegou outra vez no cachimbo. Fez o
mesmo Carlinhos e ambos fumaram em silencio durante alguns instantes.
¡X Aposto que tu nem sabes o que e o nosso oficio. ¡X disse o Matreiro
com ar de compaixao.
¡X Creio que sei ¡X respondeu Oliver levantando a cabeca. ¡X Quer
dizer roub... Em suma, e o oficio dos senhores...
¡X Sim ¡X respondeu o Matreiro ¡X, e eu teria asco de mim se tivesse
outro oficio.
Ao mesmo tempo pos o chapeu na cabeca e convidou mestre Bates a
dizer o contrario, se ousasse.
¡X Sim, e o meu oficio; e e tambem o de Carlinhos, o de Fagin, o de
Sikes, o de Nancy e o de Betty, e o oficio de nos todos, comecando no
velho e acabando no cao.
¡X O qual e o menos disposto a trair os companheiros. ¡X acrescentou
Carlinhos Bates.
OLIVER TWIST
ÇbÇdÇg
¡X Nao seria ele que nos comprometesse ladrando no banco das testemunhas;
podia prende-lo la, quinze dias sem comer, que ele se nao
mexeria.
¡X Nao tenhas medo disso ¡X observou Carlinhos.
¡X E um cao esquisito! ¡X continuou o Matreiro. ¡X Nao gosta de ouvir
cantar ou rir e gosta de ouvir rabeca. Dos outros caes nao parece fazer caso.
¡X E um perfeito cristao ¡X disse Carlinhos.
Mestre Bates queria dizer com isto que era um cao dotado de todas as
qualidades e nao reparava que a sua frase tinha outro sentido igualmente
justo; porque ha homens e mulheres que se tem por verdadeiros cristaos
e nao se parecem com o cao do Sr. Sikes.
¡X Deste pateta nunca se ha de fazer nada ¡X disse o Matreiro.
¡X E verdade ¡X respondeu Bates. ¡X Oliver, por que nao te poes ao
servico do Sr. Fagin?
¡X Tinhas a fortuna feita ¡X disse o Matreiro.
¡X Viverias das tuas rendas como eu hei de viver das minhas.
¡X Nao me agrada isso ¡X respondeu timidamente Oliver. ¡X Prefiro
ir-me embora.
¡X E Fagin prefere que fiques ¡X replicou Carlinhos.
¡X Mas tu nao tens amor proprio? ¡X disse o Matreiro. ¡X Queres viver
a custa dos teus amigos?
¡X Oh! ¡X disse o Sr. Bates, tirando dois ou tres lencos do bolso e pondo-
os no armario. ¡X Seria infame viver assim!
¡X Isso nao impede que os senhores abandonem os seus amigos e os
deixem ir a policia ¡X disse Oliver.
¡X Foi simples consideracao para com Fagin ¡X respondeu o Matreiro
¡X, porque os policiais sabem que nos trabalhamos com ele e, se nao fugissemos,
ele estaria perdido. Nao foi assim, Carlinhos?
Carlinhos fez um gesto afirmativo; mas lembrando-se da fuga de Oliver,
deitou a rir, engoliu a fumaca e durante cinco minutos levou a tossir e a
bater com o pe.
¡X Olha para isto ¡X disse o Matreiro, tirando do bolso um punhado de
xelins e pence ¡X, isto e que se chama uma bela vida! E como se ganha
isto? Has de aprende-lo, se quiseres. A fonte donde tirei esta melgueira
ainda nao esta seca. E tu nao queres fazer o mesmo, idiota?
¡X E feio, nao te parece, Oliver? ¡X disse o Carlinhos. ¡X Ele acaba
esperneando do alto.
CHARLES DICKENS
ÇbÇdÇh
¡X Nao entendo ¡X disse Oliver.
¡X Aqui esta o que e ¡X respondeu Carlinhos.
E ao mesmo tempo segurando uma das pontas da gravata e puxando-a
para cima, inclinou a cabeca sobre o ombro e rangeu os dentes de um
modo significativo, como para exprimir que espernear do alto e morrer
na forca era a mesma coisa.
¡X Compreendes agora o que e ¡X disse Carlinhos. ¡X Olha, Matreiro,
como ele me olha espantado. Nunca vi inocencia semelhante! Ha de matar-
me este rapaz a forca de me fazer rir.
E mestre Bates, depois de rir as gargalhadas, continuou a cachimbar.
¡X Fagin ha de fazer de ti alguma coisa ¡X disse o Matreiro a Oliver.
Mestre Bates apoiou esta opiniao com muitas reflexoes morais; depois,
ele e o Matreiro travaram um dialogo a respeito da vida que levavam; insinuaram
a Oliver que procurasse quanto antes cair nas boas gracas de Fagin.
Pouco depois entrou o judeu em companhia de Miss Betty e de um
rapaz que Oliver nao conhecia, e a quem o Matreiro cumprimentou pelo
nome de Tom Chitling.
O Sr. Chitling era tres anos mais velho que o Matreiro; mas tratava o
seu jovem companheiro com uma deferencia que parecia indicar o reconhecimento
de que se dava por inferior em genio e habilidade no exercicio
da comum profissao.
Tinha olhos pequenos; piscava-os de continuo; o rosto estava lavrado
de bexigas. Trazia na cabeca um bone de lontra, uma jaqueta grossa,
calcas da mesma qualidade e um avental; Desculpou-se dizendo que
acabara o tempo uma hora antes e que, tendo usado seis semanas a
roupa do regulamento celular, nao lhe sobrara tempo para cuidar de melhores
adornos.
Acrescentou o Sr. Chitling, e com ar irritado, que la haviam adotado
um sistema de fumigacao para a roupa, sistema infernal e inconstitucional,
que queimava a roupa sem nenhum recurso; protestou contra o uso de se
cortar o cabelo a gente e declarou que era ilegal; concluiu dizendo que
durante quarenta e duas horas de trabalhos forcados nao engolira uma
gota d¡¦agua e tinha a goela tao seca como um forno.
¡X Oliver ¡X perguntou o judeu, enquanto os jovens ratoneiros punham
na mesa uma garrafa de aguardente ¡X, donde pensas tu que
vem este senhor?
¡X Nao... Nao sei ¡X respondeu o menino.
OLIVER TWIST
ÇbÇdÇi
¡X Quem e este? ¡X perguntou Tom Chitling, deitando a Oliver um
olhar de desdem.
¡X Um dos meus jovens amigos ¡X replicou o judeu.
¡X Tem boa cara ¡X disse o rapaz, olhando para Fagin com ar inteligente.
¡X Nao te importes donde eu venho, meu rapaz. Tu la iras ter.
Os jovens ratoneiros riram desta gracola e, depois de algumas outras
neste gosto, trocaram duas palavras em voz baixa com o judeu e sairam
do quarto.
O judeu, Chitling e Oliver foram sentar-se depois junto ao fogao, e ai
conversou longamente o judeu a respeito da habilidade do Matreiro, das
gracas de Bates e da liberdade dele.
Depois cada um foi para sua cama.
Desse dia em diante, nunca Oliver ficou so; estava sempre em comunicacao
com os dois ratoneiros, que ensaiavam de manha a cena do costume.
Seria para os fazer mais destros ou para educar pouco a pouco
Oliver? So o judeu podia responder cabalmente. As vezes o malvado
contava a Oliver historias de seus furtos de rapaz, tao originais e interessantes
que Oliver nao podia conter o riso.
Em uma palavra, o miseravel judeu apanhara na rede a crianca; depois
de a levar pela solidao e pela tristeza a preferir uma sociedade qualquer,
ia sentindo pouco a pouco em seu coracao o veneno com que contava para
o corromper e aviltar.
CHARLES DICKENS
ÇbÇdÇj
Capitulo XIX
Adocao de um plano de campanha.
Era noite escura, chuvosa e fria. O judeu, depois de abotoar ate o pescoco
o paleto e levantar a gola de maneira que lhe tapasse parte da cara, saiu do
seu covil. Parou um instante na soleira, enquanto por dentro fechavam
cuidadosamente a porta com a chave; e deitou a andar apressadamente.
A casa onde Oliver estava ficava na vizinhanca de Whitechapel. Chegando
a esquina da rua, o judeu parou outra vez, olhou desconfiado para
todos os lados, passou ao lado oposto e dirigiu-se para Spitafields.
Espessa lama cobria a calcada; o nevoeiro enchia as ruas; a chuva caia
lentamente; o ar estava frio; o chao, escorregadio. Numa palavra, era noite
propria para aquele judeu.
Enquanto caminhava mansamente, encostado as paredes, o velho parecia
um hediondo reptil saindo da lama e das trevas, resvalando nas
sombras, a busca de imundo alimento.
Percorreu grande numero de ruas estreitas e tortuosas, ate chegar a
Bethnal Green. Depois, voltando de repente para a esquerda, meteu-se
por um dedalo de ruas pequenas e sujas, como se encontravam muitas
naquele bairro populoso de Londres.
O judeu parecia conhecer perfeitamente aquele lugar que ia atravessando;
entrou por uma rua alumiada por um so lampiao, colocado no fim.
Bateu a porta de uma casa e, depois de trocar algumas palavras em voz
baixa com a pessoa que a abriu, subiu a escada.
No momento em que punha a mao no ferrolho, rosnou um cao e ouviu-
se um homem dizer:
¡X Quem e?
¡X Sou eu, Guilherme, sou eu ¡X disse o judeu abrindo a porta.
¡X Entre ¡X disse Sikes. ¡X Abaixo, cao! Nao reconhecer o diabo com
aquele grande paleto?
OLIVER TWIST
ÇbÇeÇa
Naturalmente o vestuario de Fagin tinha iludido o cao; mas desde que
o judeu desabotoou o paleto, o animal voltou para seu antro.
¡X Entao? ¡X disse Sikes.
¡X Entao, meu amigo? ¡X disse o judeu. ¡X Ah! Boa noite, Nancy.
O judeu dirigiu-se a rapariga com certo enleio e como se duvidasse do
recebimento que teria, porque era a primeira vez que a via depois que ela
defendera Oliver. Mas as suas duvidas, se as tinha, foram logo dissipadas
pela propria Nancy; ela tirou os pes do fogao, recuou a cadeira e disse ao
judeu que aproximasse a dele; a noite estava glacial.
¡X Da-lhe de beber, Nancy ¡X disse Sikes.
Nancy correu a tirar do armario uma garrafa. Sikes encheu um copo
de aguardente e convidou o judeu a beber.
¡X Basta ¡X disse o judeu, depois de torcer apenas os labios.
¡X Pois voce tem medo? ¡X disse Sikes.
E com ar de desprezo deitou fora o liquido, encheu outra vez o copo e
bebeu de um trago.
Durante esse tempo, Fagin olhava para todos os lados e recantos do
quarto, nao por curiosidade, pois que conhecia o lugar, mas com aquela
expressao de desconfianca que lhe era natural.
¡X Vamos ¡X disse Sikes, batendo com a lingua ¡X, o que me quer?
¡X Falemos de negocio, sim?
¡X Sim ¡X respondeu Sikes. ¡X Diga o que me quer?
¡X Venho falar daquela empresa a casa de Chertsey ¡X disse o judeu,
aproximando a cadeira e falando em voz baixa.
¡X Heim? O que? ¡X perguntou Sikes.
¡X Voce bem sabe o que eu quero dizer, meu caro ¡X disse o judeu.
¡X Nao e verdade, Nancy, que ele sabe o que eu quero dizer?
¡X Nao sabe, nao senhor ¡X disse Sikes ironicamente em terceira pessoa
¡X Nao sabe ou nao quer saber, o que e a mesma coisa; fale e chame
as coisas pelo seu nome. Nao me esteja ai a piscar o olho e a falar por
enigma, como se nao fosse voce o primeiro que teve a ideia desse roubo.
Explique-se!
¡X Esta bom, Guilherme ¡X disse o judeu, que tentara inutilmente
moderar a indignacao do Sr. Sikes. ¡X Podem ouvir-nos.
¡X Pois que nos oucam! ¡X disse Sikes. ¡X Importa-me pouco.
Sikes compreendia que o judeu tinha razao e proferiu as ultimas palavras
em voz baixa.
CHARLES DICKENS
ÇbÇeÇb
¡X Ora vamos ¡X disse o judeu com voz adocicada ¡X, eu falava assim
por prudencia... nada mais. Agora, meu caro, falemos da casa de Chertsey;
quando daremos o bote? Que prataria, meus amigos, que prataria! ¡X acrescentou
ele esfregando as maos e arregalando os olhos como se ja possuisse
o tesouro.
¡X Nao, por ora nao se faz nada ¡X disse Sikes.
¡X Entao e que andaram mal ¡X disse o judeu, palido de colera. ¡X Bem!
Nao falemos mais.
¡X Falemos sim ¡X respondeu Sikes. ¡X Quem e voce para me tapar a
boca? Digo-lhe que ha quinze dias Tobias Crackit anda rodeando a casa e
nao pode vencer um so criado.
¡X Querera voce dizer ¡X perguntou o judeu, que se ia amansando a
proporcao que Sikes se animava ¡X, querera voce dizer que nenhum dos
dois criados deu a lingua?
¡X Justo ¡X disse Sikes. ¡X Servem a velha ha vinte anos e nem por
quinhentas libras esterlinas sao capazes de se venderem.
¡X Mas, meu caro ¡X observou o judeu ¡X, e as mulheres? Nada se fez
por ai?
¡X Nada.
¡X Nem por intermedio do sedutor Tobias Crackit? ¡X perguntou o judeu,
com certo ar de incredulidade. ¡X Voce bem sabe o que sao mulheres.
¡X Nada, meu caro, o sedutor Tobias perdeu o tempo ¡X respondeu
Sikes. ¡X Nao lhe valeram as suicas posticas nem o colete de ganga.
¡X Devia ter posto bigodes ¡X disse o judeu, depois de alguns instantes
de reflexao.
¡X Pos os bigodes, mas nao arranjou nada.
Ouvindo isto, o judeu ficou desapontado e, depois de alguma reflexao,
levantou a cabeca e disse que, se a exposicao de Tobias era exata, o negocio
estava gorado.
¡X E contudo ¡X acrescentou ele pondo as maos nos joelhos ¡X e de
lastimar perdermos tantas riquezas que ja supunhamos em nossas maos.
¡X E verdade ¡X disse Sikes ¡X, so por grande caiporismo.
Longo silencio houve, durante o qual o judeu ficou mergulhado em
profunda meditacao; as suas feicoes tinham uma expressao verdadeiramente
diabolica. De quando em quando, Sikes o observava com o rabo do
olho e Nancy, receando irritar o bandido, ficava imovel, com os olhos pregados
na chamine, como se nao tivera ouvido uma palavra da conversa.
OLIVER TWIST
ÇbÇeÇc
¡X Fagin ¡X disse Sikes rompendo o silencio ¡X, ganharei eu de quebra
cinquenta soberanos, se pusermos a mao na melgueira?
¡X Sim ¡X disse o judeu como se saisse de um sonho.
¡X Esta dito ¡X repetiu o judeu, apertando as maos de Sikes.
Os olhos dele fuzilavam, e todos os musculos da cara traiam a comocao
que semelhante proposta lhe causava.
¡X Neste caso ¡X disse Sikes, repelindo a mao do judeu com desdem ¡X,
estara feito quando voce quiser. Anteontem de noite, eu e o Tobias escalamos
o muro do jardim e sondamos as portas. A casa de noite esta fechada como se
fosse uma prisao; mas ha um lugar que podemos romper sem bulha.
¡X Onde, Gilherme? ¡X perguntou o judeu.
¡X Apenas se atravessar...
¡X Sim, sim ¡X disse o judeu arregalando os olhos.
¡X Ole! ¡X disse Sikes parando de repente ao ver um sinal de cabeca
feito por Nancy que chamara a atencao dele para a cara do judeu. ¡X Que
lhe importa saber onde e? Bem sei que voce nada pode fazer sem mim!
Mas toda a cautela e pouca com um homem da sua laia.
¡X Como quiser, meu caro ¡X respondeu o judeu mordendo os beicos.
¡X E nao e preciso mais ninguem alem de voce e Tobias?
¡X Nao ¡X disse Sikes ¡X, isto e, precisamos de uma crianca.
¡X Uma crianca! ¡X disse o judeu. ¡X Oh! entao e preciso entrar por
algum buraco pequeno?
¡X Que lhe importa isso? ¡X replicou Sikes. ¡X Quero uma crianca e
nao gorda. Ah! Se eu tivesse o pequeno do Ned... Ele costumava aluga-lo
para estes e outros servicos; mas o pai deixou-se agravar e a sociedade dos
jovens delinquentes levou o pequeno para lhe ensinar um oficio. Ai esta
como eles procedem! Gracas a Deus que eles nao tem muito dinheiro;
senao, nem teriamos meia duzia de criancas por ano.
¡X E verdade ¡X observou o judeu. ¡X Guilherme?
¡X Que e?
O judeu fez um gesto de cabeca indicando Nancy, que estava imovel
diante do fogo; queria que ele a mandasse embora; Sikes levantou os ombros,
mas cedeu e disse a Nancy que fosse buscar uma garrafa de cerveja.
¡X Tu nao queres cerveja ¡X disse a rapariga.
¡X Quero ¡X disse Sikes.
¡X Qual! ¡X replicou ela com sangue frio. ¡X Continue, Fagin. Eu sei o
que ele vai dizer, Guilherme; nao precisa mandar-me embora.
CHARLES DICKENS
ÇbÇeÇd
O judeu hesitava, e Sikes olhou para ambos com alguma surpresa.
¡X Em que e que esta rapariga o pode incomodar, Fagin? ¡X perguntou
ele. ¡X Ha muito que voce a conhece, pode fiar-se nela. Ela nao e rapariga
de dar a lingua.
¡X Creio que nao ¡X disse Nancy, aproximando a cadeira e fincando na
mesa os cotovelos.
¡X Nao, nao, eu nao desconfio ¡X disse o judeu. ¡X Mas...
E parou.
¡X Mas o que? ¡X perguntou Sikes.
¡X Eu nao sabia se ela estava zangada comigo pelo que outro dia
aconteceu.
Nancy soltou uma gargalhada e, bebendo um calice de aguardente,
sacudiu a cabeca com ar de desafio e entrou a soltar exclamacoes incoerentes,
o que pareceu tranquilizar os dois homens.
O judeu abanou a cabeca com satisfacao e sentou-se. Sikes fez o mesmo.
¡X Agora, Fagin ¡X disse Nancy rindo ¡X, conte a Guilherme os seus
projetos acerca de Oliver.
¡X Ah! Tu es uma grande finoria, es a rapariga mais esperta que eu
conheco, disse o judeu, batendo-lhe no pescoco. ¡X Era justamente de
Oliver que ia falar.
¡X Para que? ¡X perguntou Sikes.
¡X E a crianca de quem voce precisa, meu caro ¡X respondeu o judeu
em voz baixa, pondo o dedo no nariz e fazendo uma atroz careta.
¡X Ele? ¡X disse Sikes.
¡X Leva-o, Guilherme ¡X disse Nancy. ¡X No teu lugar nao hesitava;
ele nao esta tao adestrado como os outros, mas que importa isso, se so se
trata de abrir uma porta? Podes contar com ele.
¡X E verdade ¡X respondeu o judeu. ¡X Ele precisa ganhar a vida.
Alem disso, os outros sao gordos demais para o caso.
¡X Oliver tem justamente as dimensoes que eu preciso ¡X disse Sikes.
¡X E fara tudo o que voce quiser, meu caro ¡X interrompeu o judeu
¡X Contanto que voce lhe meta medo.
¡X Meter-lhe medo! ¡X disse Sikes. ¡X Ele ha de ter medo naturalmente.
Se der com a lingua nos dentes, nao volta vivo. Fagin, reflita antes de
mandar o pequeno. Olhe que se ele nao portar bem, dou-lhe cabo do canastro.
¡X Ja refleti em tudo isso ¡X respondeu o judeu com energia. ¡X Eu o
tenho observado de perto; se ele se convencer de que e dos nossos, de
OLIVER TWIST
ÇbÇeÇe
que roubou... esta conosco por toda a sua vida. Oh! Nao podia vir mais a
proposito!
E o velho cruzou os bracos, enterrou a cabeca entre os ombros e estremeceu
de alegria.
¡X Nosso? ¡X perguntou Sikes. ¡X Diga seu. Oliver ficara sendo seu.
¡X Pois seja isso ¡X disse o judeu.
¡X Mas ¡X disse Sikes encarando o seu jovial amigo ¡X nao me diras
por que razao se interessa tanto por aquele fedelho, quando sabe que todas
as noites ha cinquenta como ele nos arredores de Comon-Garden,
entre os quais nao ha mais que escolher?
¡X Porque esses nao prestam para nada, meu caro ¡X respondeu o judeu
um pouco atrapalhado. ¡X Nao vale a pena educa-los; quando a policia
os fila ficam logo com uma cara de confissao e la os perco todos. Oliver
nao e assim; quando estiver bem educado posso fazer mais com ele que
com vinte. Depois, se ele nos fugir, estamos perdidos; e indispensavel
conserva-lo conosco. Basta que ele entre num roubo para ficar eternamente
conosco e e o que eu quero. Isto e melhor que desfazermos dele;
perderiamos com isso e correriamos perigo.
¡X Quando e a empresa? ¡X perguntou Nancy, no momento em que o Sr.
Sikes ia exprimir o profundo enojo que lhe inspirava a humanidade de Fagin.
¡X Ah! E verdade, quando e? ¡X disse o judeu.
¡X Depois de amanha ¡X respondeu Sikes com voz sombria. ¡X Esta
tratado com Tobias, a menos de lhe dar contra-ordem.
¡X Bom ¡X disse o judeu ¡X, nao ha luar.
¡X Nao ¡X disse Sikes.
¡X E tudo esta disposto para levar o pequeno? ¡X perguntou Fagin.
Sikes fez um sinal afirmativo.
¡X E ja se lembrou voce...
¡X Oh! Tudo esta previsto, basta de falar nisto. Traga o pequeno amanha
de noite; eu saio de madrugada e o roubo e de noite.
Depois de uma discussao em que os tres personagens entraram, ficou
assentado que no dia seguinte, de noite, Nancy iria a casa do judeu buscar
Oliver. Fagin observou com finura que, se o pequeno mostrasse repugnancia,
acompanharia mais depressa a Nancy que a qualquer outra pessoa,
pois que ela se interessava em favor dele.
Ficou estipulado formalmente que Oliver seria abandonado, sem reserva,
aos cuidados e guarda do Sr. Guilherme Sikes, e, alem disso, que o
dito Sikes trata-lo-ia conforme lhe aprouvesse, sem se responsabilizar com
CHARLES DICKENS
ÇbÇeÇf
o judeu do que acontecesse ao pequeno, nem do castigo que julgasse necessario
aplicar, com a condicao porem de que as assercoes de Sikes seriam
confirmadas em todos os pontos pelo testemunho do galante Tobias
Crackit.
Assentados todos estes pontos, Sikes entrou a beber aguardente, a cantar
e a praguejar. Num acesso de entusiasmo, quis examinar a sua caixa
da ferramentas; apenas a tinha aberto e ia explicar o uso dos varios instrumentos,
caiu no assoalho e dormiu imediatamente.
¡X Boa noite, Nancy ¡X disse o judeu, vestindo o sobretudo.
¡X Boa noite.
Os olhos de ambos se encontraram, e Fagin lancou a rapariga um olhar
penetrante e interrogativo. Ele afrontou o olhar. O judeu deu um pontape
no bebado e desceu as escadas as apalpadelas.
¡X Sempre a mesma coisa ¡X dizia o judeu entre dentes quando se
achou na rua. ¡X O que ha de pior nas mulheres e que um nada lhes
lembra um sentimento esquecido desde muito; mas o que vale e que isso
nao dura. Ah! Ah! O homem contra o menino, por um saco de ouro!
Distraindo-se com estas agradaveis reflexoes, o Sr. Fagin voltou para o
covil, onde o Matreiro ainda estava a pe, esperando com impaciencia a
volta do patrao.
¡X Oliver ja esta deitado? Preciso falar-lhe ¡X disse o judeu entrando.
¡X Ha muito tempo ¡X respondeu o Matreiro, abrindo uma porta.
¡X Esta ali.
A crianca dormia profundamente, deitada em um grosseiro colchao
estendido no assoalho. A inquietacao, a tristeza, o tedio do cativeiro, o tinham
feito palido como a morte, nao como ela se nos mostra com uma
mortalha e num feretro, mas tal qual se nos depara logo que a vida se
extingue, quando uma alma jovem e pura voa para o ceu, sem que o ar
grosseiro do mundo haja manchado o rosto que ela animava e santificava.
¡X Hoje, nao ¡X disse o judeu, afastando-se sem rumor. ¡X Amanha,
amanha.
Capitulo XX
Oliver e entregue ao Sr. Guilherme Sikes.
De manha quando acordou, teve Oliver a surpresa de achar ao pe da
cama, em vez dos sapatos velhos, um par de sapatos novos, com boas solas.
A descoberta o alegrou na esperanca de que era talvez o preludio de sua
liberdade, mas essa esperanca depressa desapareceu. Na ocasiao do almoco,
estando so com o judeu, este lhe disse, com um tom e um ar que lhe
aumentaram os receios, que nessa mesma noite iriam busca-lo para o
levar a casa de Guilherme Sikes.
¡X E para... para ficar la? ¡X perguntou Oliver com ansiedade.
¡X Nao, nao, meu amigo, nao e para ficar ¡X respondeu o judeu. ¡X Nao
queremos perder-te. Nao tenhas medo, has de voltar. Oh! Nao havemos de
ser tao crueis que te abandonemos. Oh! Nao!
O velho, zombando assim com o pequeno, estava sentado diante do
fogo, ocupado em torrar uma fatia de pao. Pos-se a rir para mostrar que
sabia perfeitamente ser do gosto do pequeno ver-se livre dele.
¡X Suponho ¡X disse ele olhando fixamente para Oliver ¡X, suponho
que desejes saber por que motivo vais a casa de Guilherme.
¡X Sim, senhor, desejava saber.
¡X Nao desconfias para o que sera? ¡X disse Fagin.
¡X Nao, senhor.
¡X Bem ¡X disse o judeu, voltando-se com ar desapontado depois de
ter examinado o rosto do pequeno ¡X, Guilherme te dira o que e.
O judeu pareceu zangar-se por nao ver mais curiosidade em Oliver;
mas a verdade e que o pequeno, posto estivesse devorado de inquietacao,
ficou tao perturbado com o olhar do judeu que nao ousou perguntar
mais nada.
O judeu ficou silencioso ate a noite.
Depois preparou-se para sair.
OLIVER TWIST
ÇbÇeÇi
¡X Podes acender uma vela ¡X disse o judeu ¡X e aqui tens um livro
para te distraires ate que eu venha buscar-te.
¡X Boa noite ¡X disse Oliver.
O judeu dirigiu-se ate a porta, olhando sempre para o pequeno as
furtadelas; depois parou repentinamente e disse:
¡X Oliver.
Oliver levantou a cabeca; o judeu mostrou-lhe a vela, fez-lhe sinal para
que o alumiasse. Ele obedeceu e, ao por a vela na mesa, viu que o judeu
olhava para ele com as sobrancelhas carregadas e o examinava atentamente.
¡X Toma cautela, Oliver! ¡X disse o velho com um gesto que dizia ainda
mais que as palavras. ¡X Ele e um brutamontes capaz de tudo. Aconteca
o que acontecer, nao digas nada e faze o que ele mandar. Reflete bem
no que te digo!
Carregou nestas ultimas palavras; passou-lhe pelos labios um terrivel
sorriso; fez um sinal de cabeca e saiu.
Apenas Oliver ficou so, pos a cabeca nas maos e refletiu com angustia
nas palavras que acabava de ouvir; quanto mais pensava na recomendacao
do judeu, mais se perdia em conjeturas acerca do alcance e do sentido
daquele conselho. Se havia a seu respeito intencoes criminosas, nao as
podiam executar em casa de Fagin como em casa de Sikes? Quando considerou
largamente, concluiu que ele era mandado para desempenhar em
casa de Sikes algumas funcoes domesticas, ate que se encontrasse criado.
Sofrera tanto que nao lhe doia uma mudanca, qualquer que fosse. Ficou
mergulhado nestes pensamentos, depois espevitou a vela suspirando
e, abrindo o livro que Fagin deixara, entrou a folhea-lo. Folheou-o a principio
com ar distraido; mas para logo deu com um trecho que lhe chamou
a atencao e acabou por ficar completamente absorvido na leitura.
Era a historia da vida e do processo dos grandes criminosos. O livro
servira tanto que as paginas estavam sujas e enegrecidas. Leu a narracao
de horriveis crimes, crimes de arrepiar os cabelos, assassinatos cometidos
secretamente de emboscada, historias de cadaveres lancados dentro de
pocos, que apesar de profundos nao os puderam guardar muito tempo; ao
cabo de alguns anos foram achados, e os assassinos, ao ve-los, confessaram
tudo e por isso foram ter a forca.
Adiante havia a historia de homens que pouco a pouco se haviam familiarizado
com a ideia do crime e acabavam cometendo horrores.
CHARLES DICKENS
ÇbÇeÇj
Todos esses quadros eram tracados com tal verdade que as paginas do
livro aos olhos de Oliver pareciam ter uma cor de sangue.
A crianca aterrada atirou o livro para longe; caiu de joelhos e pediu a
Deus que o deixasse puro de semelhantes crimes e lhe mandasse antes
a morte do que lhe permitisse ficar assassino.
Oliver foi se acalmando pouco a pouco e, com voz fraca, pediu ao ceu
que o socorresse no meio dos perigos que o ameacavam, que tivesse pena
de uma crianca enjeitada, que nunca conhecera a afeicao de um parente
nem de um amigo, e que lhe desse a mao no meio dos homens perversos
que o rodeavam.
Acabada esta rogativa, ainda Oliver estava ajoelhado, com a cabeca nas
maos, quando um rumor o veio despertar.
¡X Quem e? ¡X disse ele levantando-se e vendo alguem ao pe da porta.
¡X Sou eu, eu so ¡X respondeu uma voz tremula.
Oliver levantou a vela acima da cabeca e olhou para o lado da porta.
Era Nancy.
¡X Abaixa a vela que me faz mal aos olhos ¡X disse a moca, desviando
a cabeca.
Oliver viu que ela estava muito palida e perguntou afetuosamente se
estava doente. Nancy deixou-se cair em uma cadeira, voltando-lhe as costas
e torcendo as maos; mas nao respondeu.
¡X Deus me perdoe! ¡X disse ela depois de algum tempo ¡X Mas isto e
incrivel.
¡X Aconteceu-lhe alguma coisa? ¡X perguntou Oliver. ¡X Precisa de
mim? Fale.
Nancy agitou-se na cadeira, levou a mao a garganta, soltou um surdo
gemido e fez um esforco para respirar.
¡X Nancy! ¡X disse Oliver inquieto. ¡X Que tem?
A rapariga bateu com as maos nos joelhos e com os pes no assoalho;
depois envolveu-se no xale e tiritou de frio.
Oliver aticou o fogo; ela aproximou-se do fogao e ficou alguns minutos
sem dizer palavra; afinal levantou a cabeca e olhou a roda de si.
¡X Nao sei o que e isto que me da, de quando em quando ¡X disse ela,
procurando tranquilizar-se. ¡X Creio que e efeito deste quarto umido.
Estas pronto, Oliver?
¡X Eu vou com a senhora? ¡X perguntou o pequeno.
¡X Sim ¡X respondeu ela. ¡X Venho da parte de Guilherme; e necessario
que venhas comigo.
OLIVER TWIST
ÇbÇfÇa
¡X Para que? ¡X perguntou Oliver, recuando dois passos.
¡X Para que? ¡X repetiu Nancy, olhando para o menino, mas apenas
deu com os olhos dele, abaixou os seus. ¡X Oh! Nao e para nada de mal!
¡X Duvido ¡X disse Oliver, que a observava.
¡X Como quiseres ¡X disse Nancy com um riso afetado. ¡X Sera entao
para nada de bom.
Oliver percebeu que tinha alguma influencia na sensibilidade de Nancy
e teve a ideia de apelar para a sua comiseracao; mas lembrou-se de repente
que eram apenas onze horas e que na rua acharia alguem que desse fe
as suas palavras. Desde que esta reflexao se lhe apresentou ao espirito,
Oliver caminhou para a porta e disse que estava pronto.
Nem a reflexao, nem o projeto de Oliver deixaram de ser notados por
Nancy. Enquanto ele falava, ela o observava atentamente e deitou-lhe
um olhar que mostrava conhecer o que se passava dentro do pequeno.
¡X Silencio! ¡X disse ela, inclinando-se para Oliver e apontando-lhe para
a porta, enquanto olhava a roda de si com precaucao. ¡X Tu nao podes fugir.
Eu fiz em teu favor tudo o que pude, mas nao houve meio. Estas cercado
por todos os lados e se alguma vez puderes fugir, nao e agora.
Oliver olhou pasmado para a moca. Evidentemente ela falava serio.
Estava palida e agitada; tremia.
¡X Ja fiz com que cessassem os maus-tratos de que sofrias ¡X disse ela
¡X e o continuarei a fazer; e por isso que eu estou aqui; porque, se os
outros viessem buscar-te, tratar-te-iam com aspereza. Prometi que tu terias
juizo; se assim nao acontecer, padeceras tu, e eu tambem, e tu seras
causa talvez da minha morte. Olha o que eu ja sofri por tua causa!
Ao mesmo tempo ela mostrava a Oliver o pescoco e os bracos cobertos
de arranhoes e contusoes.
Nancy continuou:
¡X Nao esquecas isso e nao facas com que eu tenha agora novos padecimentos;
eu quisera ajudar-te nesta ocasiao, mas esta acima do meu poder.
Ninguem te quer fazer mal, e tu nao es responsavel pelo que exigirem de
ti. Cala-te! Cada palavra que proferires me fara mal. Da ca a mao. Anda
depressa!
Nancy pegou na mao que Oliver lhe estendeu maquinalmente, apagou
a vela e levou o pequeno para o alto da escada. A porta foi aberta por uma
pessoa escondida na escuridao e fechada apenas eles sairam. Esperava-os
um carro de aluguel; Nancy e Oliver entraram nele e fecharam as portiCHARLES
DICKENS
ÇbÇfÇb
nholas. O cocheiro nao perguntou para onde iam, e em menos de um
segundo o cavalo partiu como um raio.
Nancy apertava a mao de Oliver e lhe repetia em voz baixa as suas
recomendacoes.
Tudo isto foi objeto de um instante; e Oliver mal tinha tempo de pensar
onde se achava, quando o carro parou a porta da casa onde o judeu
fora na vespera.
Oliver lancou um olhar rapido para a rua deserta e esteve quase a gritar
por socorro. Mas a rapariga falava ao ouvido dele e pedia que a nao
comprometesse, com tal modo que Oliver perdeu o animo. Demais, passara
o tempo; estavam dentro de casa; fechara-se a porta.
¡X Por aqui! ¡X disse Nancy largando a mao de Oliver. ¡X Guilherme!
¡X La vou! ¡X respondeu Sikes, ajoelhando no alto da escada com uma
vela na mao. ¡X Tudo vai bem! Sobe!
Para um individuo da tempera de Sikes aquelas palavras eram de satisfacao
e singularmente cordiais.
Nancy pareceu muito sensivel a isso e deu amigavelmente as boas-noites.
¡X Mandei o cao com o Tomas ¡X observou Sikes, alumiando-os. ¡X
Podiam atrapalhar o negocio.
¡X Tens razao ¡X respondeu Nancy.
¡X Onde esta o pequeno? ¡X perguntou Sikes, fechando a porta.
¡X Aqui esta ¡X disse Nancy.
¡X Mostrou-se manso?
¡X Como um cordeiro.
¡X E bom sabe-lo ¡X disse Sikes, olhando para Oliver com ar feroz.
¡X Tanto melhor para ti; quando nao, dava-te cabo do canastro. Vem ca
e ouve bem. Melhor e que te diga tudo de uma vez.
Falando assim ao seu novo protegido, o Sr. Sikes tirou-lhe o bone e o
atirou para um canto; depois, puxando Oliver pelo ombro, sentou-se ao
pe da mesa e fe-lo conservar-se direito diante de si.
¡X Conheces isto? ¡X perguntou Sikes, tirando de cima da mesa uma
pistola de algibeira.
Oliver respondeu afirmativamente.
¡X Nesse caso, atencao! ¡X continuou Sikes. ¡X Aqui esta polvora, aqui
esta uma bala e um pedaco de chapeu velho para servir de bucha.
Oliver murmurou em voz baixa que conhecia aqueles varios objetos, e
o Sr. Sikes comecou a carregar a pistola com muito cuidado.
OLIVER TWIST
ÇbÇfÇc
¡X Esta carregada ¡X disse ele.
¡X Sim, senhor, estou vendo ¡X disse Oliver, tremulo.
¡X Pois bem ¡X disse o bandido, apertando o pulso de Oliver e aplicando-
lhe o cano da pistola a uma das fontes e tao perto que a crianca nao
pode reter um grito. ¡X Se, depois que sairmos de casa, tiveres a desgraca
de dizer uma so palavra sem que eu te fale antes, meto-te uma bala na
cabeca, sem mais preambulo. Ora, pois, se for de teu capricho falar sem
licenca minha, encomenda a alma a Deus.
Para dar mais forca as suas palavras, o Sr. Sikes proferiu uma horrivel
praga e continuou:
¡X Pelo que me consta, se eu te mandasse para o outro mundo, ninguem
viria saber noticias tuas; portanto, so em teu beneficio e que eu te
dei estas explicacoes. Entendes?
¡X Isto significa simplesmente ¡X disse Nancy, carregando em cada
palavra para despertar a atencao de Oliver ¡X que se ele te resistir no
negocio que vais tratar, tu lhe taparas a boca para sempre metendo uma
bala nos miolos e corres o risco de ser enforcado por isso, como te expoes
a cada instante no teu oficio.
¡X Justo! ¡X observou Sikes com ar de aprovacao. ¡X As mulheres sabem
sempre dizer as coisas em poucas palavras, exceto quando se enfurecem...
porque entao nao acabam mais. Agora que o fedelho esta instruido,
vamos cear e dormir um pouco antes de partir.
Imediatamente, Nancy estendeu a toalha na mesa e, depois de sair
alguns instantes, voltou com um canjirao de cerveja e um prato de cabeca
de carneiro, o qual inspirou ao Sr. Sikes alguns ditos picantes. Aquele
honestissimo sujeito, estimulado talvez com a perspectiva de uma imediata
expedicao, mostrou-se alegre e folgazao. Por exemplo, achou que era muito
engracado beber toda a cerveja de um trago e praguejou mais de cem
vezes durante a ceia.
Acabada a ceia (compreende-se facilmente que Oliver nao tivesse muita
fome), o Sr. Sikes rebateu a comida com dois calices de aguardente e
deitou-se na cama, ordenando a Nancy, com ameaca, que o acordasse as
cinco horas em ponto. Intimou a Oliver que se deitasse vestido no colchao.
A rapariga aticou o fogo e sentou-se diante da lareira para acordar
o ladrao a hora marcada.
Oliver esteve muito tempo acordado; pensava talvez que Nancy procuraria
ensejo de lhe dar algum conselho em voz baixa; mas ela ficou imoCHARLES
DICKENS
ÇbÇfÇd
vel diante do fogo. Exausto de fadiga e de medo, o menino adormeceu
profundamente.
Quando acordou, o bule do cha estava na mesa, e Sikes metia varios
objetos na algibeira de um grande paleto, estendido nas costas de uma
cadeira, enquanto Nancy arranjava o almoco apressadamente. Ainda nao
era dia; a vela estava acesa, e fora tudo parecia escuro. Violenta chuva
batia nos vidros, e o ceu estava alastrado de nuvens.
¡X Vamos! Vamos! ¡X resmungava Sikes enquanto Oliver se levantava
¡X Sao cinco horas e meia! Anda ou nao tens tempo de almocar; precisamos
sair quanto antes.
Oliver nao gastou muito tempo em aperfeicoar a toalete; comeu um
bocadinho e disse que estava pronto.
Nancy, sem olhar para ele, atirou-lhe um lenco para enrolar no pescoco
por causa do frio; das maos de Sikes recebeu um grande colete de pano
grosso para cobrir os ombros.
Assim arranjado, o menino deu a mao ao salteador, que parou um instante
para lhe mostrar, com gesto de ameaca, a pistola que tinha na
algibeira do paleto; depois apertou a mao de Oliver, disse adeus a Nancy
e saiu.
Quando transpunham a soleira da porta, Oliver voltou a cabeca, na
esperanca de encontrar o olhar de Nancy; mas ela voltara ao seu lugar
diante da lareira e parecia completamente imovel.
Capitulo XXI
A expedicao.
Era triste a madrugada em que eles sairam; o vento soprava com forca
e a chuva caia a cantaros; nuvens sombrias e espessas velavam o ceu; a
noite toda fora chuvosa, porque grandes correntes de agua sulcavam a
rua. Tenue clarao anunciava a proximidade do dia, entristecendo ainda
mais a cena; a palida luz da aurora enfraquecia a luz dos lampioes, sem
clarear os tetos sombrios e as ruas solitarias; nao havia sinal de vida no
bairro; todas as janelas estavam cuidadosamente fechadas e as ruas que
eles iam atravessando, desertas e silenciosas.
Quando atravessaram Bethnal Green, era ja dia claro. Muitos lampioes
estavam apagados; algumas carrocas se dirigiam lentamente para Londres;
de quando em quando, passava uma diligencia coberta de lama, e o cocheiro,
por divertimento, dava uma lambada no carroceiro, que, nao tendo tomado
a direita da rua, expunha a diligencia a chegar meio minuto mais tarde.
Os botequins, interiormente iluminados a gas, ja estavam abertos. Pouco
a pouco, se foram abrindo outras lojas, e algumas pessoas passavam na
rua; grupos de operarios iam para o seu trabalho; homens e mulheres
levavam a cabeca cestos de peixe; carrocas de legumes puxadas por burros;
carrinhos a mao cheios de carne; mulheres leiteiras com as celhas nos
bracos; em suma, uma fila continua de gente que se dirigia com a sua
mercadoria para os arrabaldes a leste da capital.
A proporcao que se aproximavam da City, o rumor e o movimento iam
aumentando, e quando enfiaram pelas ruas situadas entre Sboreditch e
Smithfield, atiraram-se no meio de um verdadeiro tumulto de gente; era
dia claro, tanto quanto pode ser claro em Londres um dia de inverno, e ja
metade da populacao estava entregue aos seus negocios matutinos.
Depois de deixarem Sun-Street e Crown-Street e atravessarem Finsburg
Square, o Sr. Sikes entrou em Christwellt-Square, Barbican e Long-Lane,
OLIVER TWIST
ÇbÇfÇg
e chegaram a Smithfield, donde saiu um sussurro tal que surpreendeu a
Oliver.
Era dia de mercado; a lama dava pelos tornozelos; espesso vapor saia do
corpo dos animais e se confundia com o nevoeiro em que desapareciam as
chamines. Todos os parques no meio daquele vasto recinto estavam cheios
de carneiros; havia ate alguns parques provisorios, e uma multidao de
bois e animais de toda a especie estavam presos, em filas interminaveis, a
umas estacas fincadas no chao; camponios, carniceiros, mercadores ambulantes,
criancas, ladroes, vadios, vagabundos de toda a especie, misturados
e confundidos, formavam uma massa confusa.
O latir dos caes, o balir dos carneiros, o grunhir dos porcos, os gritos dos
mascates, as exclamacoes, as pragas, as rusgas, os sinos e as conversas que
se ouviam de todas as tavernas, o rumor da gente que ia e vinha, o movimento
de tantos homens de aspecto repelente e barba inculta, andando
de um lado para outro, acotovelando-se, esbarrando-se, tudo contribuia
para ensurdecer e tontear um espectador.
O Sr. Sikes, arrastando Oliver consigo, abria caminho por meio da
chusma compacta e dava pouca atencao ao tumulto, que era para a crianca
coisa nova e surpreendente. Duas ou tres vezes fez um sinal de cabeca
a amigos que encontrava, mas de cada vez recusava matar o bicho e continuava
a andar o mais depressa que podia, ate que saiu do mercado e
entrou em Hovier-Lane e Holburn.
¡X Anda, pequeno! ¡X disse ele, olhando para o relogio da igreja de
Santo Andre. ¡X Sao quase sete horas! Da sebo nas canelas; nao fiques
atras, preguicoso!
Dizendo isto, o Sr. Sikes sacudiu rudemente o braco de Oliver, e este,
apressando o passo, regulou como pode o seu andar pelas grandes pernadas
do salteador.
Conservaram este passo rapido ate alem de Hyde Park, no caminho de
Kensington.
Sikes afrouxou o passo e esperou que uma carroca vazia que vinha
atras deles os alcancasse; vendo escrito na carroca: Hounslow, perguntou
ao carroceiro, com toda a polidez de que era capaz, se os podia levar ate
Isleworth.
¡X Suba ¡X disse o homem. ¡X Este pequeno e seu?
¡X E ¡X respondeu Sikes, olhando para Oliver e pondo a mao no bolso
onde tinha a pistola.
CHARLES DICKENS
ÇbÇfÇh
¡X Teu pai anda muito depressa, nao? ¡X perguntou o carroceiro, vendo
Oliver ofegante.
¡XQual! ¡X respondeu Sikes. ¡X Ele ja esta acostumado. Da ca a mao,
Eduardo, sobe depressa.
Ao mesmo tempo fez com que o pequeno subisse para a carroca; o
carroceiro apontou para um monte de sacos e disse ao pequeno que se
deitasse neles.
Vendo passar, uns apos outros, na estrada, os marcos que indicavam as
milhas, Oliver perguntava a si mesmo, e com pasmo, onde e que o seu
companheiro o ia levar. Ja eles haviam passado Kensington, Hammersmith,
Chiswick, Kew-Bripge, Brentford, e iam sempre para diante. Afinal
chegaram a uma hospedaria cuja tabuleta dizia: ¡§Diligencia de quatro
cavalos¡¨; um pouco adiante a estrada era cortada por um caminho transversal.
A carroca parou.
Sikes desceu com precipitacao, sem largar a mao de Oliver; depois ajudou-
o a descer, lancando-lhe um olhar furioso e levando a mao a algibeira
onde tinha a pistola.
¡X Ate mais ver, meu menino ¡X disse o homem.
¡X Nao repare ¡X disse Sikes ¡X, meu filho e muito vexado.
¡X Qual reparar! ¡X disse o homem. ¡X Olhe, vamos ter um bonito dia.
O ceu esta limpando.
Chicoteou o cavalo e continuou viagem.
Sikes esperou que ele estivesse longe e continuaram os dois a andar.
A pouca distancia da hospedaria voltaram a esquerda, depois a direita,
e andaram muito tempo. A estrada era orlada de bonitas casas e jardins
elegantes. La pararam para tomar um pouco de cerveja e chegaram enfim
a uma cidade onde Oliver leu em grandes letras pintadas em um
muro: ¡§Hampton¡¨. Andaram nos campos algumas horas; afinal voltaram
a cidade, entraram em uma hospedaria e foram jantar a cozinha.
Era uma especie de sala baixa, com uma grande trave no meio do teto,
e diante da lareira bancos com costas altas, nos quais estavam assentados
muitos homens vestidos de blusa, bebendo e fumando; olharam rapidamente
para Sikes e nem deram fe de Oliver.
Sikes nenhuma atencao lhes prestou e foi assentar-se num canto com o
seu companheiro.
Foram servidos de carne fria. Depois do jantar, o Sr. Sikes fumou tres
ou quatro cachimbos e acreditou que nao iriam mais longe.
OLIVER TWIST
ÇbÇfÇi
Cansado de tamanha viagem e atordoado com o fumo, Oliver adormeceu
profundamente.
Era noite fechada quando Sikes o acordou. Abrindo os olhos, Oliver
viu o seu companheiro em conferencia intima com um camponio.
¡X Voce vai portanto ao Baixo Halliford, nao? ¡X perguntou Sikes.
¡X Sim ¡X respondeu o homem, que parecia um pouco aquecido pelo
licor que bebia em companhia de Sikes. ¡X Nao e longe. O meu cavalo
nao leva tanta carga como trouxe e fara a viagem rapidamente. E um
soberbo animal.
¡X Pode levar-me ate la e bem assim o meu pequeno?
¡X Sim ¡X se forem ja; vao a Halliford?
¡X Vou a Sheperton.
¡X Ira comigo ate onde eu for ¡X disse o homem. ¡X Tudo esta pago,
Rebecca?
¡X Este senhor pagou tudo.
¡X Ora vamos! ¡X disse ele. ¡X Isto nao pode ser assim.
¡X Por que? ¡X disse Sikes. ¡X Voce faz-nos um obsequio; nao vale isto
um ou dois tragos?
O estrangeiro pesou maduramente o valor deste argumento, depois
apertou a mao de Sikes, declarando que era um homem digno. Sikes respondeu
modestamente que o elogio era brincadeira, o que seria facil de
crer, se o homem estivesse em seu juizo.
Depois de trocarem algumas cortesias, deram as boas noites e sairam,
enquanto a criada arranjava os canjiroes e os copos e, com as maos cheias,
ia ve-los passar pela porta.
O cavalo, a cuja saude haviam bebido, estava diante da porta, atrelado a
carroca. Oliver e Sikes subiram sem mais cerimonia, o camponio, depois de
ter elogiado outra vez o cavalo, subiu tambem a carroca. O criado da hospedaria
segurou na arreata do cavalo e o levou para o meio da estrada; mas
apenas o animal se viu solto entrou a fazer um mau uso da liberdade, dando
saltos mortais, ate que disparou a galope.
A noite estava escura; do rio e das lagoas proximas subia um espesso
nevoeiro que se espalhava pelos campos. O frio era intenso. Tudo era sinistro;
os viajantes nao trocaram uma palavra, o condutor adormeceu e
Sikes nao tinha vontade de comecar nenhuma conversa; Oliver, encolhido
em um canto, cuidava ver nas arvores, cujos galhos se balancavam
tristemente, outros tantos fantasmas no meio daquela natureza triste.
CHARLES DICKENS
ÇbÇfÇj
Quando passaram pela igreja de Lumbury, o relogio bateu sete horas.
Brilhava a alguma distancia uma casa, uma luzinha que se projetava na
estrada, quanto bastava para alumiar uma arvore que cobrira uma sepultura.
Ouvia-se perto o rumor monstruoso de uma cascata, e a folhagem
da arvore balancava docemente ao vento da noite. Disse-se uma musica
para descanso dos mortos.
Depois de atravessarem Sunburg, acharam-se na estrada solitaria. Duas
ou tres milhas adiante parou a carroca. Sikes desceu, levando Oliver pela
mao, e comecaram a andar.
Em Sheperton, nao pararam em nenhuma parte, como desejava a crianca,
exausta de fadiga; mas continuaram a andar por maus caminhos, no
meio da lama e das trevas, ate que viu que o rio corria ao pe deles e que
eles se iam aproximando de uma ponte.
No momento em que iam atravessar a ponte, Sikes voltou repentinamente
a esquerda e desceu para o rio.
¡X O rio! ¡X pensou Oliver meio morto de medo. ¡X Trouxe-me aqui
para me atirar ao rio!
Ia atirar-se ao chao e tentar um supremo esforco para salvar a vida,
quando viu que paravam diante de uma casa isolada e arruinada. Havia
uma janela de cada lado da porta e um so andar por cima; nenhuma
aparencia de luz; a casa tinha ares de nao ser habitada por ninguem.
Sikes, segurando sempre a mao de Oliver, dirigiu-se lentamente para a
porta e empurrou a tronqueira, a porta cedeu e entraram ambos.
Capitulo XXII
Arrombar para roubar.
¡X Quem vem la? ¡X perguntou uma voz grossa apenas eles entraram
na casa.
¡X Nao facas bulha ¡X disse Sikes, correndo o ferrolho da porta. ¡X Acende
uma vela, Tobias.
¡X Ah! Es tu, camarada ¡X disse a mesma voz. ¡X Traze luz, Barney.
Mostra o caminho ao senhor; e trata de acordar, se te for possivel.
A pessoa que falava atirou provavelmente uma descalcadeira, ou qualquer
outro objeto semelhante, contra a pessoa a quem falava, para
arranca-la do sono em que jazia. Ouviu-se o som de um pedaco de pau
com forca no chao e o resmungar de um sujeito meio acordado.
¡X Ouves? ¡X disse a mesma voz. ¡X Guilherme Sikes esta no corredor,
sem ninguem para o receber; e tu esta ai a dormir, como se houvesse
bebido laudanum! Tens os olhos abertos, ou sera preciso que eu te deite
aos olhos o castical de ferro?
Ouviu-se um rumor de tamancos no assoalho, depois uma vela acesa
nesse momento apareceu numa porta da direita, e por fim apareceu um
individuo, que ja apresentamos endefluxado e empregado como caixeiro
na taverna de Saffron-Hill.
¡X O Sr. Sikes! ¡X exclamou Barney com uma alegria real ou fingida.
¡X Entre, entre!
¡X Passa para a frente ¡X disse Sikes, empurrando Oliver ¡X, vamos
ligeiro!
Praguejando contra a lentidao do menino, o Sr. Sikes empurrou-o para
a porta, e entraram ambos numa sala baixa, sombria e enfumada, ornada
com duas ou tres cadeiras quebradas, uma mesa e um velho canape, no
qual um individuo, com os pes muito mais altos que a cabeca, estava fumando
um comprido cachimbo.
OLIVER TWIST
ÇbÇgÇc
Vestia o tal sujeito uma casaca cor de castanha, cortada a ultima moda,
com grandes botoes luzidios, gravata cor de laranja, colete de rebuco de
cor muito vistosa e calcas pardas. O Sr. Tobias Crackit (era ele) tinha
poucos cabelos; mas os poucos que tinha eram ruivos e encaracolados a
maneira de saca-rolhas, e ele metia-lhes muitas vezes as maos sujas e
ornadas de grossos aneis. Era acima de meao e parecia ter as pernas fracas;
o que lhe nao impedia de admirar as botas.
¡X Muito estimo ver-te, meu Guilherme ¡X disse ele, voltando a cabeca
para a porta. ¡X Eu receava quase que renunciasses a expedicao e nesse
caso arriscar-me-ia so... Que e isto?
Fez esta pergunta de surpresa ao ver Oliver; sentou-se e esperou
resposta.
¡X E o pequeno ¡X respondeu Sikes, aproximando a cadeira do fogo.
¡X Um dos aprendizes do Sr. Fagin ¡X disse Barney rindo.
¡X De Fagin? ¡X disse Tobias, contemplando Oliver. ¡X Ha de ser um
rapagao sem rival para limpar as algibeiras de velhos na igreja; tem pinta
de ir longe.
¡X Basta... Basta... ¡X interrompeu Sikes com impaciencia. E inclinando-
se para o seu amigo, disse-lhe algumas palavras que fizeram rir o Sr.
Crackit, que ao mesmo tempo olhava admirado para Oliver.
¡X Agora ¡X disse Sikes, sentando-se ¡X, se puderes dar alguma coisa
que se beba e coma, nao sera mau; senta-te ai perto do fogo, pequeno, e
descansa; hoje sairas conosco, mas nao para longe.
Oliver olhou timidamente para Sikes com ar de surpresa, mas nao disse
palavra. Aproximou a sua cadeira do fogo, pos a cabeca nas maos e
ficou imovel, sem reparar no que se passava a roda dele.
¡X Vamos ¡X disse Tobias, enquanto o jovem judeu punha na mesa
uma garrafa e alguma comida ¡X, bebamos ao bom sucesso da empresa!
Levantou-se para fazer honra ao brinde, pos a um lado o cachimbo,
aproximou-se da mesa, encheu um copo de aguardente e o esvaziou de
um trago.
Sikes fez outro tanto.
¡X Um trago para o pequeno ¡X disse Tobias, enchendo um copo ate a
metade. ¡X Engole isto, simplorio!
¡X Na verdade, eu... ¡X disse Oliver olhando para Tobias.
¡X Bebe ¡X repetiu Tobias. ¡X Pensas que eu nao sei o que te faz bem?
dize-lhe que beba, Guilherme.
CHARLES DICKENS
ÇbÇgÇd
¡X Melhor sera que ele nao faca cerimonias ¡X disse Sikes, levando a
mao a algibeira. ¡X Com os diabos, so este diabrete e mais dificil de governar
que um grupo de Matreiros. Anda, bebe, pelintra!
Assustando com os gestos ameacadores dos dois homens, Oliver bebeu
de um trago a aguardente contida no copo e entrou a tossir, o que divertiu
muito a Tobias e Barney e fez sorrir o feroz Sikes.
Feito isto, e tendo o Sr. Sikes morto a fome (Oliver apenas comeu um
pedaco de pao), os dois sujeitos trataram de dormir um pouco nas cadeiras.
Oliver ficou ao pe do fogo e Barney, envolvido em uma coberta, estendeu-
se no chao.
Dormiram ou fingiram dormir; so Barney, se levantou duas vezes para
por carvao no fogo.
Oliver caiu em profundo abatimento e sono; imaginava que ainda percorria
as ruas escuras, ou errava no cemiterio; foi acordado repentinamente
pelo Sr. Tobias Crackit, que se levantou dizendo que era hora e meia.
Num instante, os outros dois estavam de pe e todos trataram de fazer
os preparativos.
Sikes e seu companheiro enrolaram no pescoco grossas gravatas e vestiram
os sobretudos, enquanto Barney, abrindo um armario, tirava varios
objetos que metia no bolso.
¡X Da ca as berradeiras, Barney ¡X disse Tobias.
¡X Aqui estao ¡X respondeu Barney, dando-lhe um par de pistolas.
¡X Carregou-as o senhor mesmo.
¡X Bom! ¡X disse Tobias, pondo as pistolas no bolso. ¡X E as persuadeiras?
¡X Ja as tenho ¡X disse Sikes.
¡X E as gazuas, as lanternas surdas, nada se esqueceu? ¡X perguntou
Tobias, metendo uma pinca dentro do paleto.
¡X Tudo esta em regra ¡X respondeu o companheiro. ¡X So nos faltam
os cacetes.
Dizendo isto tirou um cacete das maos de Barney; Tobias fez o mesmo.
¡X Vamos! ¡X disse Sikes, estendendo a mao a Oliver.
Este, abatido pela fadiga da jornada, aturdido pelo ar livre e o licor que
tomara, pos maquinalmente a mao na que Sikes lhe estendera.
¡X Segura-lhe a outra mao, Tobias ¡X disse Sikes. ¡X Da uma olhadela
ai fora, Barney.
Barney foi a porta e veio anunciar que tudo estava quieto.
Os dois ladroes sairam com Oliver; e Barney, depois de fechar cuidadosamente
a porta, enrolou-se no cobertor e continuou a dormir.
OLIVER TWIST
ÇbÇgÇe
A obscuridade era profunda, o nevoeiro muito mais espesso que no
comeco da noite, e a atmosfera tao umida que, posto nao chovesse, os
cabelos de Oliver ficaram cheios de agua dentro de pouco tempo.
Galgaram a ponte e dirigiram-se na direcao das luzes que precedentemente
tinham visto; nao estavam longe e, como andavam depressa, chegaram
a Chertsey.
¡X Atravessemos a aldeia ¡X disse Sikes em voz baixa ¡X, nao havera
viva alma que nos veja passar.
Tobias nao fez objecao nenhuma e os tres enfiaram precipitadamente
pela grande rua da aldeia, completamente deserta aquela hora da noite.
De quando em quando aparecia uma fraca luz na janela de um quarto de
dormir, e as vezes o ladrar dos caes vinha perturbar o silencio da noite;
mas nao havia ninguem fora.
Ao sairem da aldeia, bateram duas horas na igreja.
Apressaram o passo e entraram por um atalho a esquerda.
Depois de terem andado mais ou menos um quarto de milha, pararam
diante de uma casa isolada, cujo jardim era cercado de muros.
Sem tomar folego, Tobias Crackit escalou o muro em um abrir e fechar
de olhos.
¡X Da ca o pequeno ¡X disse ele a Sikes.
Antes que Oliver tivesse tempo de fazer um movimento qualquer, sentiu-
se agarrado pelos bracos.
Dentro de um segundo, estava ele com Tobias sobre a relva, do outro
lado do muro.
Sikes pulou e foi ter com eles imediatamente.
Dirigiram-se devagarinho para a casa.
Foi entao que, pela primeira vez, Oliver, desvairado de dor e de medo,
compreendeu que o arrombamento, o roubo e talvez o assassinato eram o
fim da expedicao.
Torceu as maos e deixou escapar involutariamente um grito de dor.
Passou-lhe pelos olhos uma nuvem, um suor frio lhe cobriu o rosto, as
pernas lhe enfraqueceram e ele caiu de joelhos.
¡X De pe! Levanta-te! ¡X murmurou Sikes, tremendo de colera e
puxando a pistola da algibeira. ¡X Levanta-te ou eu te faco saltar os
miolos fora.
¡X Oh! Pelo amor de Deus! Deixe-me ir embora! ¡X disse Oliver. ¡X Deixe-
me ir para bem longe, morrer no meio dos campos; nao voltarei para
CHARLES DICKENS
ÇbÇgÇf
Londres; nunca! Nunca! Tenham piedade de mim! Nao facam de mim
um ladrao; por todos os anjos do ceu, tenham pena de mim!
O homem a quem estas palavras eram ditas proferiu uma horrivel praga
e ja havia engatilhado a pistola, quando Tobias lhe arrancou a arma da
mao, tapou a boca da crianca e arrastou-a para a casa.
¡X Silencio! ¡X disse ele. ¡X Isto e nada. Dize ainda uma palavra e eu
quebro-te a cabeca com este cacete; nao faz bulha e o efeito e o mesmo.
¡X Basta, basta, Guilherme ¡X disse Tobias. ¡X Ja vi outros mais velhos
que ele terem medo em uma noite destas.
Praguejando contra o judeu que tivera a ideia de mandar Oliver com
ele, Sikes pos o pau por baixo da porta de uma janela, carregou vigorosamente
sobre ele, mas sem fazer bulha; foi ajudado por Tobias na operacao,
a porta cedeu.
Era uma pequena janela colocada atras da casa, a cinco pes acima do
solo e dando para um celeiro no fim da alameda.
A abertura era tao estreita que os donos da casa tinham julgado inutil
por-lhe traves de ferro; nao obstante, um menino do tamanho de Oliver
podia passar por ela.
Sikes fez saltar o ferrolho que prendia a janela.
¡X Agora, meu peralta, atende bem ao que te vou dizer ¡X murmurou
ele em voz baixa, tirando da algibeira uma lanterna surda, cuja luz dirigiu
para a cara de Oliver. ¡X Vou fazer-te passar por esta janela; tu pegas
na lanterna, sobes devagarinho os degraus que ali estao, atravessas o vestibulo
e vais abrir-nos a porta de entrada.
¡X Ha la um ferrolho onde nao podes chegar ¡X observou Tobias. ¡X
Subiras a uma cadeira; ha tres cadeiras no vestibulo, com os brasoes da
velha.
¡X Cala-te ¡X disse Sikes com ar ameacador. ¡X A porta do quarto esta
aberta, nao?
¡X Escancarada ¡X respondeu Tobias, depois de lancar um olhar pela
janela para verificar. ¡X O que ha de bom e que essa porta sempre fica
aberta para que o cao possa andar a seu gosto quando nao durma. Ah! Ah!
Barney ja nos livrou do cao!
Posto que o Sr. Crackit risse baixinho e pronunciasse estas palavras em
tom quase ininteligivel, Sikes ordenou-lhe imperiosamente que se calasse
e trabalhasse.
Tobias obedeceu.
OLIVER TWIST
ÇbÇgÇg
Pos a lanterna no chao; depois, encostou-se a parede, debaixo da janela,
com as maos apoiadas nos joelhos, de maneira que as suas costas lhe
servissem de escada.
Imediatamente Sikes trepou em cima dele, fez passar Oliver pela janela
e so o largou quando ele tomou pe no inferior.
¡X Toma esta lanterna ¡X disse-lhe, lancando um olhar para o quarto.
¡X Ves a escada na frente?
Sikes designou-lhe a porta de entrada com o cano da pistola e advertiu-
o de que pensasse em que ficava ao alcance da arma e poderia cair
morto.
¡X E negocio de um minuto ¡X disse Sikes, sempre em voz baixa ¡X e
vou largar-te; vai direito; atencao!
¡X O que e? ¡X perguntou Tobias.
Escutaram atentamente.
¡X Nao e nada ¡X disse Sikes. ¡X Vamos! a obra!
No pouco tempo que tivera para reunir as suas ideias, o menino tomara
a resolucao. Sim, ainda que lhe custasse a vida, iria subir a escada e dar
alarma a gente da casa.
Com esta ideia, dirigiu-se para os degraus, mas devagarinho.
¡X Aqui! ¡X disse de repente Sikes. ¡X Vem ca!
Esta subita exclamacao e um grito agudo que se lhe seguiu, assustaram
Oliver a ponto de deixar cair a lanterna e nao saber se devia continuar
ou recuar.
Ouviu-se outro grito.
Apareceu uma luz no alto da escada.
Dois homens aterrados apareceram em cima meio vestidos.
A crianca viu uma luz... fumo... uma detonacao... depois vacilou e caiu
para tras.
Sikes tinha desaparecido um instante; mas tinha se levantado e antes
que o fumo se houvesse dissipado segurou Oliver pela gola.
Descarregou a pistola nos dois homens, que ja batiam em retirada, e
carregou Oliver.
¡X Aperta-me ¡X disse Sikes passando pela janela. ¡X Da ca um xale,
Tobias. Eles feriram o pequeno. Depressa! esta deitando sangue!
O ruido de uma sineta veio juntar-se ao das armas de fogo e aos gritos
da gente da casa. Oliver sentiu que o levavam rapidamente. Pouco a pouco
o ruido esmoreceu; o pequeno desmaiou.
CHARLES DICKENS
ÇbÇgÇh
Capitulo XXIII
De como um bedel pode ter bom sentimentos.
Curiosa conversa do Sr. Bumble e uma senhora.
A noite era glacial; cobria a terra uma espessa camada de neve; o vento
que soprava de rijo ia arrojando os bocados da mesma neve acumulada
nos cantos das ruas ou ao longo das casas.
Era uma dessas noites sombrias, em que a gente que tem de seu vai
colocar-se a roda de um bom fogo e da gracas a Deus nao estar fora; em
que os desgracados sem abrigo e sem pao adormecem para nunca mais
acordar; em que mais de um paria das nossas cidades, magros de fome,
fecham os olhos na calcada da rua para so os abrir em um mundo que nao
lhes pode ser pior, quaisquer que sejam os crimes que cometeram neste.
Tal era a situacao da rua, quando a Sra. Corney, a matrona do asilo de
mendicidade onde ja levamos o leitor, foi sentar-se ao pe de um bom
fogao no seu quarto e entrou a contemplar uma bandeja com todos os
objetos necessarios a mais agradavel colacao que pode fazer uma matrona.
Efetivamente, a Sra. Corney estava prestes a confortar-se com uma
xicara de cha; olhava para a mesa, depois para o fogo, onde a agua chiava
em uma pequena chaleira, e tinha a cara cada vez mais satisfeita.
Em suma, a Sra. Barney chegou a sorrir com aquele espetaculo.
¡X Na verdade ¡X disse ela, pondo o cotovelo na mesa ¡X, ninguem
neste mundo pode deixar de abencoar a providencia se refletir nos beneficios
que ela faz. Ai! Ai!
A Sra. Corney abanou a cabeca, e este gesto, como o suspiro que soltara,
era prova de que ela deplorava a cegueira dos pobres que desconhecem
os beneficios da providencia.
Depois, introduzindo uma colher de prata (que era dela) em uma
latinha de cha, continuou os seus preparativos.
¡X Bem pouco e necessario para perturbar a serenidade da nossa alma!
OLIVER TWIST
ÇbÇgÇi
A chaleira, que era muito pequena, entrou a ferver e transbordou, quando
a Sra. Corney estava fazendo as suas reflexoes morais, e algumas gotas
de agua fervendo cairam na mao da matrona.
¡X Leve o diabo a chaleira! ¡X disse ela, pondo-a depois sobre a chamine.
¡X Que tola invencao foi esta das chaleiras pequenas para uma
ou duas xicaras somente! A quem podem servir senao a uma desgracada
como eu?
A estas palavras, a matrona deixou-se cair na cadeira, tornou a por o
cotovelo na mesa e pensou na sua existencia solitaria.
A chaleira lhe despertou a lembranca do defunto Sr. Corney, que ela
teria enterrado vinte e cinco anos atras.
Caiu em profunda melancolia.
¡X Nao hei de ter igual ¡X dizia ela. ¡X Nao! Nunca mais hei de ter
coisa semelhante.
Nao se pode dizer se a exclamacao da Sra. Corney era feita ao marido
ou a chaleira; talvez fosse a chaleira, porque, depois de a contemplar um
instante, trouxe-a para a mesa.
Ao aproximar a xicara dos labios, ouviu bater a porta.
¡X Entre! ¡X disse ela zangada. ¡X Ha de ser alguma velha que esta a
expirar; morrem todos quando eu estou a mesa; entre e feche a porta
para que nao entre o ar frio. Entao?
¡X Nao e nada ¡X disse uma voz de homem.
¡X Santo Deus! ¡X disse a matrona, com voz muito mais doce. ¡X E o
Sr. Bumble?
¡X Um seu criado ¡X respondeu o Sr. Bumble que ficara fora a enxugar
os pes no capacho e a sacudir a neve que lhe cobria a casaca, mas que
neste momento fazia a sua entrada, trazendo em uma mao o chapeu de
tres bicos e na outra um embrulho. ¡X Devo fechar a porta?
A dama hesitou modestamente em responder com o receio de que houvesse
alguma inconveniencia em conversar fechada com o Sr. Bumble.
Este aproveitou a hesitacao e, como estava gelado, fechou a porta sem
esperar a licenca.
¡X Que terrivel tempo, Sr. Bumble!
¡X Horrivel, na verdade ¡X respondeu o bedel. ¡X E um tempo
antiparoquial. Acredita que hoje, neste abencoado dia, distribuimos vinte
e cinco paes de quatro libras e um queijo e meio? E os mendigos nao
estao contentes.
CHARLES DICKENS
ÇbÇgÇj
¡X Grande admiracao! Os mendigos nunca estao contentes! ¡X disse a
matrona, saboreando o cha.
¡X E verdade, minha senhora ¡X continuou Bumble. ¡X Olhe, ha um
individuo a quem em consideracao da sua numerosa familia foi concedido
um pao de quatro libras e meia libra de queijo, bem pesado; acredita
que esse homem e grato? Espere por isso! Sabe o que ele fez? Pediu
um pouco de carvao, ainda que fosse um pouco dentro de um lenco.
Carvao! Para que quer ele carvao? Queria talvez assar o queijo para
depois pedir mais. Estes mendigos sao todos os mesmos; da-se-lhe hoje
um avental de carvao; dai a dois dias vem pedir outro tanto; sao descarados
como macacos!
A matrona aprovou esta bela comparacao.
O bedel continuou:
¡X Nao se pode calcular ate onde chega a insolencia deles; ainda anteontem,
um homem... a senhora foi casada, posso exprimir-me assim, um
homem levemente vestido (a Sra. Corney abaixou os olhos) com alguns
farrapos apresentou-se a porta de um de nossos funcionarios e pediu alguns
socorros. Como recusasse ir-se embora, e estivesse num traje que
ofendia a reuniao, o funcionario mandou que se lhe desse uma libra de
batatas e um pouco de mingau.
¡§Meu Deus! (exclamou aquele monstro de ingratidao) O que querem
que eu faca com isso?¡¨ ¡X ¡§Pois bem¡¨, disse o funcionario, tirando-lhe as
provisoes, ¡§nao tera nada¡¨. ¡X ¡§Devo entao morrer na rua?¡¨, perguntou
o vagabundo. ¡X ¡§Oh! Nao, nao ha de morrer!¡¨, disse o funcionario.
¡X Ah! Ah! Soberbo! ¡X interrompeu a matrona. ¡X Esse foi naturalmente
com o Sr. Grannet. E depois?
¡X Depois ¡X disse o bedel ¡X saiu e morreu na rua. Veja que teimoso!
¡X Isto e incrivel ¡X observou a matrona com dignidade. ¡X Mas nao
lhe parece, Sr. Bumble, que os auxilios dados fora do asilo dos mendigos
nao tem bom resultado? O senhor e homem de experiencia e pode decidir
a este respeito.
¡X Sra. Corney ¡X disse o bedel, sorrindo como um homem que tem
consciencia da sua superioridade ¡X, os socorros distribuidos fora do asilo,
quando sao dados com discernimento, sao a defesa natural da paroquia.
O principio fundamental dos socorros dados fora do asilo e ministrar
aos pobres unicamente aquilo que lhes nao pode servir de nada, e entao,
cansados com isso, cessam as importunacoes.
OLIVER TWIST
ÇbÇhÇa
¡X Tens razao ¡X disse a Sra. Corney ¡X, a ideia e luminosa.
¡X Sim. Seja dito entre nos, e esse o grande principio da coisa ¡X continuou
o Sr. Bumble. ¡X Em virtude desse principio e que se socorrem as
familias doentes, fazendo-lhes uma distribuicao de queijo, como dizem
os imprudentes jornalistas que metem o bedelho onde nao sao chamados.
Este principio esta agora em vigor no Reino. Entretanto ¡X acrescentou
ele, abrindo o embrulho que trazia na mao ¡X, ha segredos administrativos,
a cujo respeito nao devemos piar, exceto entre colegas de paroquia,
como nos, por exemplo. Aqui esta o Porto que a administracao destina a
enfermaria; e excelente, puro, metido de fresco na garrafa.
Depois de ter aproximado uma das duas garrafas da luz e te-la agitado
para mostrar a boa qualidade do vinho, o Sr. Bumble levou-as ambas para
a comoda, dobrou o lenco que as envolvia, po-lo na algibeira e pegou no
chapeu como para se ir embora.
¡X O senhor vai sentir frio ¡X disse a matrona.
¡X Esta um vento de cortar a cara ¡X respondeu o Sr. Bumble, levantando
a gola da casaca.
A Sra. Corney olhou para a chaleira, depois para o bedel que se dirigia
para a porta; e, como este tossisse e estivesse para dar-lhe as boas-noites,
ela perguntou timidamente... se ele aceitaria uma xicara de cha.
Imediatamente o Sr. Bumble dobrou a gola, pos o chapeu e a bengala
em uma cadeira e aproximou outra cadeira da mesa, assentou-se lentamente,
contemplando a matrona, que abaixou os olhos.
O Sr. Bumble tossiu outra vez e sorriu.
A Sra. Corney levantou-se para tirar do armario uma xicara e um pires.
Ao sentar-se encontraram os seus olhos com os do bedel; corou e comecou
a preparar o cha.
Sr. Bumble tossiu pela terceira vez e mais forte do que das outras.
¡X Gosta de muito acucar? ¡X disse a matrona, pegando no acucareiro.
¡X Sim, muito acucar ¡X respondeu o Sr. Bumble com os olhos sempre,
cravados na Sra. Corney.
Se jamais houve bedel que parecesse terno, esse foi o Sr. Bumble naquele
instante.
Fez-se o cha.
¡X O Sr. Bumble pos um lenco nos joelhos, para que as migalhas de
pao nao lhe emporcalhassem as calcas, e comecou a beber e a comer. No
meio desse exercicio, soltava as vezes um profundo suspiro que nao lhe
CHARLES DICKENS
ÇbÇhÇb
impedia as dentadas que dava no pao; pelo contrario, parecia destinado a
facilitar-lhe as funcoes digestivas.
¡X A senhora tem uma gata, creio eu ¡X disse o Sr. Bumble, vendo
uma gata rodeada de gatinhos diante do fogao ¡X, e gatinhos tambem, se
nao me engano.
¡X Gosto tanto desses animais ¡X respondeu a matrona ¡X, nao pode
fazer ideia. Sao tao ageis, tao divertidos! E uma verdadeira sociedade
para mim.
¡X Sao excelentes animais ¡X disse o Sr. Bumble com um tom aprovador.
Ficam muito amigos da casa.
¡X Oh! Sim! ¡X disse a Sra. Corney com entusiasmo. ¡X Gostam do
que e seu.
¡X Sra. Corney ¡X disse o bedel, batendo o compasso com a colher ¡X,
ouso dizer que se um gato, ou qualquer outro animal que pudesse viver com
a senhora, nao tomasse amor a casa, necessariamente seria um burro.
¡X Oh! Sr. Bumble! ¡X disse a Sra. Corney.
¡X Nao ocultemos a verdade ¡X continuou o Sr. Bumble, balancando a
colher, com um ar ao mesmo tempo digno e terno que dava mais peso as
suas palavras. ¡X Um animal que se mostrasse tao ingrato seria esmagado
por mim.
¡X O senhor e cruel ¡X disse vivamente a matrona, estendendo o braco
para pegar na xicara do bedel. ¡X Deve ter um coracao de pedra.
¡X Coracao de pedra, senhora, coracao de pedra!
Estendeu a xicara a Sra. Corney e aproveitou o momento em que
ela a recebia para apertar-lhe o dedo minimo; depois pondo a mao no
colete agaloado, soltou um profundo suspiro e afastou um pouco a
cadeira do fogao.
A mesa era redonda, e como a Sra. Corney e o Sr. Bumble estavam
sentados diante do fogo, em frente um do outro e assaz proximos, facilmente
se compreende que o Sr. Bumble, afastando-se da lareira, separava-
se mais da Sra. Corney.
Este ato do bedel excitara a admiracao do leitor, que vera nele um
ato de heroismo da parte do Sr. Bumble; a hora, o lugar, a ocasiao poderiam
leva-lo a conversar de amor, posto que as expressoes namoradas,
proprias na boca de um estouvado, estao acima da dignidade de um
magistrado, de um membro do parlamento, de um ministro de estado,
de um lord-mayor e, com maior razao, sao indignas de um bedel, que
OLIVER TWIST
ÇbÇhÇc
(ninguem o ignora) de todos os magistrados deve ser o mais severo e
inflexivel.
Quaisquer que fossem as intencoes do Sr. Bumble (e sem duvida eram
excelentes), quis a desgraca que a mesa fosse redonda, como dissemos.
Deste modo, aproximando pouco a pouco a cadeira, o Sr. Bumble diminuiu
sensivelmente a distancia que o separava da matrona e, a forca de
viajar a roda da mesa, chegou a ficar juntinho da cadeira da Sra. Corney.
Ai parou o Sr. Bumble.
Nesta situacao, se a matrona recuasse a cadeira para a direita, caia no
fogo; se fizesse um movimento para a esquerda, caia nos bracos do Sr.
Bumble.
Nao escapou esta alternativa a sua perspicacia e, como mulher de juizo,
nao se mexeu e ofereceu ao Sr. Bumble outra xicara de cha.
¡X Coracao de pedra! ¡X repetiu o bedel, olhando para a matrona. ¡X
E a senhora tera coracao de pedra?
¡X Oh! Meu Deus! ¡X disse ela, que simples pergunta na boca de um
celibatario! ¡X Que lhe importa isso, Sr. Bumble?
Este, sem responder, bebeu o cha todo da xicara, engoliu uma torrada,
enxugou a boca... e deu um beijo na matrona.
¡X Sr. Bumble ¡X disse baixinho a discreta dama, porque o medo lhe
embargara a voz ¡X, olhe que eu grito!
O bedel nao respondeu e, com lentidao e dignidade, passou o braco a
roda da cintura da matrona.
Ia sem duvida a boa senhora executar a ameaca do grito, quando ouviu
bater na porta; num fechar de olhos o Sr. Bumble correu as garrafas e
comecou a sacudi-las enquanto a matrona perguntava secamente:
¡X Quem esta ai?
E de notar que sua voz adquiriu subitamente a habitual aspereza.
Respondeu uma velha mendiga metendo a cabeca pela porta:
¡X E a velha Sally que vai bater a bota.
¡X Que quer que lhe faca? ¡X perguntou a matrona. ¡X Posso eu evitar
que morra?
¡X Nao ¡X respondeu a velha ¡X, ninguem o pode; ja nao ha remedio.
Tenho visto morrer muita gente e bem sei quando a morte e infalivel.
Mas ela esta agitada; quando os acessos lhe deixam algum descanso, diz
que tem uma coisa para lhe contar. Nao morre tranquila enquanto a senhora
nao for la.
CHARLES DICKENS
ÇbÇhÇd
A digna Sra. Corney proferiu algumas invectivas contra as velhas que
podem morrer sem incomodar as superioras, pos um xale aos ombros,
pediu ao Sr. Bumble que a esperasse ate a volta e, intimando a velha
mensageira que andasse depressa, saiu de ma vontade e foi ao quarto da
moribunda.
Ficando so, teve o Sr. Bumble um procedimento singular. Abriu o armario,
contou as colheres do cha, sopesou a pinca do acucar, examinou
uma grande colher de prata para ver a qualidade do metal; depois de
satisfazer a sua curiosidade neste ponto, pos o chapeu de tres bicos com a
frente para tras e andou muitas vezes a roda da mesa, dancando na ponta
dos pes. Depois deste extravagante exercicio, tirou o chapeu de tres bicos
e sentou-se com as costas para a lareira, com ar de um homem que estivesse
ocupado em inventariar a mobilia.
OLIVER TWIST
ÇbÇhÇe
CHARLES DICKENS
ÇbÇhÇf
Capitulo XXIV
Pormenores dolorosos, mas curtos, cujo conhecimento
e necessario para a inteligencia desta historia.
Era uma real mensageira da morte a que fora perturbar os amaveis
coloquios da matrona. Estava curvada pelos anos; continuo tremor lhe
agitava os membros, e o rosto, contraido por movimentos convulsivos,
parecia antes uma caricatura que um rosto humano.
Quao poucas fisionomias conservam o primeiro encanto! Os pesares,
os cuidados, os sofrimentos laceram as feicoes ao mesmo tempo que
mudam o coracao; e so quando as paixoes dormitam e perdem para
sempre a sua forca e que a nuvem se dissipa e restitui a fronte a sua
serenidade celeste. Tal e muita vez o conceito da morte: frio e gelado, o
rosto encontra a expressao serena e placida que tinha na manha da vida.
O homem fica tao calmo entao que aqueles que o conheceram na sua
infancia se ajoelham ao pe do tumulo, cheios de respeito pelo anjo que
acreditam ver na terra.
A velha subiu a escada vacilando e, caminhando ao longo dos corredores,
resmungava algumas palavras ininteligiveis, em resposta as censuras
que a sua companheira lhe fazia. Afinal, foi obrigada a parar para tomar
folego e entregou a luz a matrona, que rapidamente se dirigiu para o
quarto onde jazia a moribunda.
O quarto era iluminado por um pessimo candieiro. Outra velha vigiava
perto da cama, enquanto o aprendiz do boticario da paroquia, ao pe da
lareira, aparava um palito.
¡X Que noite glacial! ¡X disse o rapaz, vendo entrar a matrona.
¡X Glacial, na verdade ¡X respondeu a dama, com a sua voz mais benevola
e fazendo uma cortesia.
¡X A senhora devia exigir dos seus fornecedores melhor carvao ¡X disse
o aprendiz, aticando o fogo. ¡X Este nao convem ao frio que esta fazendo.
OLIVER TWIST
ÇbÇhÇg
¡X A administracao e que o escolhe ¡X respondeu a matrona. ¡X Pois
devia dar-nos melhor carvao; basta ja o trabalho que temos.
Aqui foi a conversa interrompida por um gemido de moribundo.
¡X Oh! ¡X disse o rapaz, olhando para a cama, como se o grito lhe
lembrasse que ali havia uma doente. ¡X Esta a expirar.
¡X Parece-lhe? ¡X perguntou a matrona.
¡X Muito me admirara se isto durar algumas horas ¡X disse o rapaz,
afinando a ponta do palito. Toda ela esta por um triz. Ola, velha, a doente
dorme?
A enfermeira inclinou-se para o leito e disse que sim.
¡X Pois se nao fizerem bulha, ela morre assim desse modo ¡X disse o
rapaz. ¡X Ponham a luz no chao a fim de que ela nao veja.
A velha obedeceu, sacudindo a cabeca como para dizer que a doente
nao morreria tao tranquilamente; depois foi sentar-se ao pe da outra velha
que acabava de entrar.
A matrona, com ar de impaciencia, embrulhou-se no xale e sentou-se
ao pe da cama.
O aprendiz de boticario, depois de aparar o palito, sentou-se diante do
fogao; mas ao fim de dez minutos ficou aborrecido, deu boas noites a Sra.
Corney e saiu na ponta dos pes.
As duas velhas, depois de ficarem algum tempo imoveis, afastaram-se
da cama e foram para o fogao, pondo as maos perto das brasas.
A chama projetava um clarao sinistro nos seus rostos lividos e parecia
aumentar-lhes a hediondez; entraram a conversar em voz baixa.
¡X Disse ela alguma palavra enquanto eu estava fora? ¡X perguntou a
mensageira.
¡X Nem palavra ¡X respondeu a outra. ¡X Torceu os bracos, mas eu
segurei-lhe as maos, e ela tranquilizou-se logo; nao e dificil conserva-la
sossegada; faltam-lhe forcas. E eu, apesar de velha e do passadio ca do
asilo, ainda tenho pulsos.
¡X Bebeu ela o vinho quente que o medico mandou?
¡X Tentei fazer com que o bebesse, mas ela tinha os dentes tao cerrados
que nao consegui nada. De maneira que eu bebi o vinho, o que me fez bem.
Depois de olhar a roda de si com precaucao para ver se nao as ouviam,
as duas velhas aproximaram-se ainda mais do fogo e continuaram a falar.
¡X Lembra-me de um tempo ¡X disse a primeira ¡X em que ela faria o
mesmo e riria do caso.
CHARLES DICKENS
ÇbÇhÇh
¡X Sem duvida ¡X disse a outra. ¡X Ela era muito alegre. Quantos
cadaveres ela amortalhou! E todos brancos como cera! Quantas vezes
ajudei nesse trabalho!
Dizendo isto, a velha tirou da algibeira uma velha boceta de estanho,
ofereceu uma pitada a outra e tomou outra.
Nesse momento, a matrona, que ate entao esperava impacientemente
que a moribunda saisse do letargo em que estava, aproximou-se do fogo e
perguntou com voz aspera se era preciso esperar.
¡X Nao muito tempo ¡X respondeu a segunda mulher, levantando os
olhos. ¡X A morte nunca deixa esperar muito tempo uma de nos.
¡X Cale-se, velha rabugenta ¡X disse a matrona com tom severo. ¡X Digame,
Marta, ela ja esteve neste estado?
¡X Muitas vezes.
¡X Mas esta e a ultima ¡X disse a outra velha. ¡X Agora so acordara
uma vez; e isto nao tarda muito.
¡X Muito ou pouco ¡X disse a matrona ¡X, nao me achara aqui quando
acordar, e tomem cuidado, nao me vao incomodar outra vez por coisas
que nao valem a pena. Nao e da minha obrigacao ver morrer todas as
velhas da casa; realmente, e demais. Lembrem-se bem do que lhes digo;
se me fizerem outra, eu lhes darei o pago.
A Sra. Corney ia a sair quando um grito das duas velhas chamou a
atencao dela.
A moribunda estava sentada na cama e estendia os bracos para ela.
¡X Que e? ¡X disse a matrona com voz sepulcral.
¡X Deite-se, deite-se ¡X disse uma das velhas inclinando-se sobre o leito.
¡X So me deitarei quando expirar ¡X disse a doente. ¡X Preciso falar-lhe.
Aproxime-se... mais perto, quero falar-lhe ao ouvido.
Separou o braco da matrona e fe-la sentar na cadeira ao pe da cama. Ia
falar quando viu as duas velhas de pe junto dela, com o corpo inclinado
na atitude de mulheres que escutam com todos os ouvidos.
¡X Mande-as sair ¡X disse a moribunda com voz fraca.
As duas velhas comecaram a lamentar que a pobre doente ja nao conhecesse
as suas melhores amigas e a protestar que nao a abandonariam;
mas a matrona fe-las sair, fechou a porta e voltou para junto da cama.
Apenas se viram fora do quarto, as duas velhas mudaram o tom e gritaram
pelo buraco da fechadura que a velha Sally estava bebada; o que
na realidade nao era impossivel; porque, alem de uma fraca dose de opio,
OLIVER TWIST
ÇbÇhÇi
receitado pelo boticario, ela tinha de lutar contra os efeitos de um grog,
que as velhas, por bondade d¡¦alma, e de autoridade propria, pespegaramlhe
no bucho.
¡X Agora ouca ¡X disse a moribunda.
A velha fez um grande esforco.
¡X Neste mesmo quarto ¡X disse ela ¡X, nesta mesma cama... velei
outrora por uma bela moca, que fora trazia ao asilo com os pes dilacerados
pela fadiga de uma longa caminhada e toda manchada de sangue e
coberta de poeira... Ela deu a luz uma crianca e correu. Deixe-me ver se
me lembro em que ano foi...
¡X Pouco importa o ano ¡X disse a impaciente matrona. ¡X Que me
quer dizer?
¡X Ah! Sim ¡X murmurou a doente caindo na sua sonolencia. ¡X Eu
queria dizer... Ah! Lembra-me!
E levantou-se convulsivamente. Tinha o rosto animado e os olhos pareciam
sair das orbitas.
¡X Roubei-a! Sim! Roubei-a! Ela ainda nao estava fria. Nao, nao estava
fria, quando eu a roubei.
¡X Roubou o que? Fale, pelo amor de Deus ¡X disse a matrona, fazendo
um gesto como para chamar socorro.
¡X A unica coisa ¡X disse a moribunda ¡X, a unica coisa que ela possuia.
Nao tinha roupa contra o frio, nem pao para comer; e conservava
aquilo sobre o coracao; era ouro, ouro verdadeiro, que podia ter-lhe salvado
a vida dando-lhe com que comer.
¡X Ouro! ¡X repetiu a matrona, inclinando-se vivamente para a moribunda
que caira no leito... ¡X Continue... continue... E depois? Quem era
essa moca? Quando foi isso?
¡X Ela tinha pedido que eu lhe guardasse aquilo precisamente ¡X continuou
a velha em tom lamentoso. ¡X Confiara a mim porque nao tinha
mais ninguem ao pe de si. Mas eu ja o tinha roubado na intencao, desde
que o vi no pescoco dela. E da morte da crianca... Fui eu talvez a causa.
Trata-lo-iam melhor, se soubessem de tudo.
¡X Soubessem o que? Fala!
¡X O menino era tao parecido com a mae ¡X continuou a moribunda
sem fazer caso da pergunta ¡X que eu nao podia olhar para ele sem pensar
na pobre mae! Pobre mulher! Tao meiga! Tao moca! Espere, ainda
nao acabei. Nao e verdade que eu ainda nao acabei?
CHARLES DICKENS
ÇbÇhÇj
¡X Nao ¡X disse a matrona, prestando ouvidos para apanhar todas as
palavras da doente. ¡X Anda depressa ou nao poderas falar mais.
¡X A mae ¡X disse a mulher, fazendo um esforco mais violento que os
outros ¡X, a mae, quando sentiu que ia morrer, me disse ao ouvido que, se
o filho vivesse, se o pudessem educar, viria um dia, em que ele poderia
ouvir sem corar o nome de sua pobre mae. ¡§Oh! meu Deus!¡¨ dizia ela
pondo as maos, ¡§dai-lhe alguns amigos neste mundo de miseria e tende
compaixao de uma crianca que nao tem ninguem por si!¡¨
¡X O nome do menino? ¡X perguntou a matrona.
¡X O nome era Oliver... ¡X respondeu a moribunda. ¡X O ouro que eu
roubei era...
¡X Sim, sim, o que era?
A matrona inclinou-se para a moribunda a fim de ouvir a resposta,
mas recuou logo instintivamente vendo-a levantar-se ainda uma vez, lentamente,
e apertar com as maos o cobertor, murmurar alguns sons
inarticulados e cair morta na cama.
..................................................................................................................................................................................
¡X Morta! ¡X disse uma das velhas precipitando-se no quarto desde
que a porta foi aberta.
¡X E tudo isto para nao dizer nada ¡X disse a matrona, afastando-se.
As duas feiticeiras estavam provavelmente muito ocupadas com os seus
deveres e ficaram sos ao pe do cadaver.
Capitulo XXV
Encontramos outra vez Fagin e a sua troca.
Enquanto estes acontecimentos se passavam no asilo de mendicidade,
o Sr. Fagin estava no seu covil (o mesmo onde Nancy fora buscar Oliver).
Estava sentado diante da lareira e tinha nos joelhos um fole com o
qual se servira naturalmente para ativar o fogo; mas caira em um profundo
devaneio e parecia distraido.
Atras dele, o Matreiro, o mestre Carlinhos Bates e o Sr. Chitling, sentados
diante de uma mesa, jogavam atentamente o whist; o Matreiro fazia
o morto contra o Sr. Bates e o Sr. Chitling.
A sua fisionomia, sempre inteligente, estava mais interessante que
nunca, por causa da atencao que ele dava ao jogo e do cuidado de regular
o seu jogo pelas observacoes que fazia.
Como estivesse frio, o Matreiro conservou o chapeu na cabeca, costume
que, alias, era-lhe familiar; tinha na boca um cachimbo de barro, que
tirava quando bebia um trago de gim misturado com agua, liquido posto
num canjirao e no meio da mesa para refrescar a sociedade.
Tambem o Carlinhos estava muito atento ao jogo, mas, como ele era
mais agitado que o seu amigo, recorria mais vezes ao canjirao e soltava de
quando em quando uma gracola, indigna de um jogador de whist que se
respeite.
Prevalecendo-se da estreita amizade que os ligava, o Matreiro tomava
a liberdade de repreender o amigo a este respeito; repreensao que mestre
Bates ouvia com a melhor cara deste mundo, limitando-se a dizer que o
seu amigo fosse bugiar ou pentear monos.
O cabimento destas e outras respostas espirituosas excitava vivamente
a admiracao do Sr. Chitling.
E de notar que este e seu parceiro perdiam invariavelmente; esta circunstancia,
longe de fazer zangar o mestre Bates, parecia diverti-lo muito;
OLIVER TWIST
ÇbÇiÇc
no fim de cada partida ria mais forte que de costume e declarou que
nunca jogara com tanto prazer.
¡X Perdemos a partida dupla ¡X disse o Sr. Chitling um tanto enfiado
e tirando do bolso do colete uma meia coroa. ¡X Nunca vi fortuna como a
tua de hoje, Jack; ganhas sempre; qualquer que sejam as minhas cartas e
as de Carlinhos, ganhas sempre.
Esta observacao, ou talvez o tom em que foi feita, excitou o entusiasmo
de Carlinhos Bates, que entrou a rir as gargalhadas, a ponto de despertar
o judeu, que perguntou o que havia.
¡X Ah! Fagin! ¡X disse o Carlinhos. ¡X Se voce visse a partida! Tom
Chitling nao fez um ponto e eu era seu parceiro contra o Matreiro e o
morto.
¡X Ah! Ah! ¡X disse o judeu, com um sorriso que mostrava conhecer a
razao daquilo. ¡X Meta-se com eles, Chitling, meta-se com eles!
¡X Basta ¡X respondeu Chitling. ¡X Ja perdi bastante. O Matreiro tem
uma veia diabolica.
¡X Ah! Ah! ¡X disse o judeu. ¡X E preciso acordar muito cedo para
ganhar ao Matreiro.
¡X Cedo! ¡X disse Carlinhos Bates. ¡X E preciso calcar as botas na vespera,
por um telescopio em cada olho, para ganhar ao Matreiro.
O Matreiro recebeu estes cumprimentos com muita modestia e ofereceu-
se para tirar do baralho de cartas a figura que se lhe pedisse, a um
xelim por cada vez.
Como ninguem lhe aceitasse o desafio, e o cachimbo estava acabado, o
Matreiro divertiu-se em desenhar na mesa um plano da prisao de Newgate
com um pedaco de giz com que se servira para marcar os pontos; e, desenhando,
assobiava como uma cobra.
¡X Tu es aborrecido como a chuva, Tom ¡X disse ele, dirigindo-se ao
Sr. Chitling. ¡X Sabes em que pensa ele, Fagin?
¡X Como hei de sabe-lo? ¡X respondeu o judeu, pondo de lado o fole.
¡X Pensa no que perdeu, talvez, ou na chacara donde ha pouco saiu. Ah!
Ah! Sera isso?
¡X Qual! ¡X disse o Matreiro sem deixar que o Sr. Chitling respondesse.
¡X E tu, que dizes, Carlinhos?
¡X Eu digo ¡X respondeu mestre Bates rindo ¡X que ele anda simplesmente
terno com Betsy; olhem como ficou vermelho! Pois sera possivel!
Tom Chitling apaixonado! Fagin! Fagin! Veja!
CHARLES DICKENS
ÇbÇiÇd
Sufocado a forca de rir, o Sr. Carlinhos Bates caiu da cadeira abaixo
sem que o acidente lhe interrompesse o riso. Quando se levantou ria como
um doido.
¡X Nao facas caso do que eles dizem ¡X observou o judeu, deitando um
olhar no Matreiro e batendo com o foles, no jovem Bates ¡X Betsy e uma
rapariga bonita; namora, Tom, namora.
¡X So uma coisa direi, Fagin ¡X disse o Sr. Chitling, corando. ¡X E que
isso nao e da conta de ninguem.
¡X Esta claro ¡X disse o judeu ¡X, o Carlinhos e um tagarela, nao te
importes com o que ele diz; Betsy e uma rapariga bonita; faze o que ela te
disser e seras feliz.
¡X A prova de que eu faco tudo o que ela quer ¡X respondeu o Sr.
Chitling ¡X e que foi por obedecer aos seus conselhos que eu me deixei
filar; e bom negocio foi para voce, Fagin. E, demais, que sao seis semanas
na cadeia? La havemos de ir mais tarde ou mais cedo; melhor e que seja
no inverno, quando voce tem menos ocasiao de sair a passeio.
¡X Sem duvida ¡X disse o judeu.
¡X E nao te importaras se la fores outra vez, nao e ¡X perguntou o
Matreiro fazendo um sinal ao judeu e ao Carlinhos ¡X, contanto que estejas
as boas com Betsy?
¡X Sim, pouco me importara isso ¡X respondeu Tom encolerizado.
¡X Eu quisera saber quem e que pode dizer o mesmo.
¡X Ninguem, meu caro ¡X respondeu o judeu ¡X, nenhum deles e capaz;
tu es o unico.
¡X Nao e verdade que se eu quisesse falar dela sairia bem do negocio
¡X continuou o pobre joguete. ¡X Bastava dizer uma sua palavra, nao e,
Fagin?
¡X E, e, meu caro ¡X disse o judeu.
¡X Mas eu nao disse palavra, nao e, Fagin? ¡X perguntou Tom, acumulando
pergunta sobre pergunta.
¡X Nao, nao, tu tens alma para fazer essas coisas; tens alma demais.
¡X Talvez ¡X disse Tom olhando a roda de si ¡X e, se eu tenho alma
para isso, nao sei por que se ha de rir de mim, nao acha, Fagin?
O judeu, reparando que o mostarda ia subindo ao nariz de Chitling,
apressou-se a afirmar que ninguem estava cacoando com ele, e como prova
disso apelava para o testemunho de mestre Bates, o principal agressor;
mas desgracadamente, no momento em que Carlinhos abria a boca para
OLIVER TWIST
ÇbÇiÇe
declarar que nunca estivera disposto a rir de Chitling, foi acometido de um
frouxo de riso, por modo que Chitling, julgando-se injuriado, abotoou sem
cerimonia nenhuma o alegre rapaz e pespegou-lhe um soco, que este teve
o talento de evitar, indo o soco parar em cheio no peito do velho judeu,
que foi parar a parede, onde ficou algum tempo a tomar folego, enquanto
Chitling aparentava a cara mais triste deste mundo.
¡X Atencao! ¡X disse de repente o Matreiro. ¡X Ouvi o guiso.
Pegou na vela e subiu vagarosamente a escada. A campainha foi agitada
outra vez por uma mao impaciente. Dai a pouco o Matreiro entrou e,
com ar misterioso, disse algumas palavras ao ouvido do judeu.
¡X Como! ¡X exclamou Fagin. ¡X Vem so?
O Matreiro fez sinal que sim e, pondo a mao diante da vela, avisou a
Carlinhos Bates que era tempo de por termo as suas gargalhadas.
Depois de executar este dever de amigo, cravou os olhos no judeu e
esperou as suas ordens.
O velho ficou alguns instantes a morder os dentes com ar pensativo. A
agitacao do rosto anunciava que ele temia alguma noticia ma.
Enfim, levantou a cabeca.
¡X Onde esta ele? ¡X perguntou.
O Matreiro levantou o dedo para o teto e tratou de afastar-se.
¡X Sim ¡X disse o judeu, como respondendo a uma pergunta subentendida.
¡X Manda-o ca para baixo. Silencio! Carlinhos, Chitling, saiam
devagarinho.
O Carlinhos Bates e o seu recente antagonista obedeceram imediatamente
a intimacao. Tudo estava silencioso quando o Matreiro desceu a
escada com uma vela na mao, acompanhado por um homem vestido de
blusa, que, depois de lancar um olhar assustado a roda do quarto, tirou
uma grande gravata que lhe escondia a parte superior da cara e mostrou
as feicoes do flamejante Tobias Crackit, mas palido, desfigurado, barba
comprida e cabelos em desordem.
¡X Como estas, Fagin? ¡X disse o formoso Tobias, fazendo um sinal
de cabeca ao judeu. ¡X Olha, Matreiro, mete esta manta dentro do meu
chapeu, a fim de que eu saiba onde esta quando me for embora. Bem!
Tu has de ser um mestre da arte, has de meter num chinelo todos os
mestres.
Falando assim, levantou a blusa, meteu as maos na algibeira, aproximou
uma cadeira do fogo e pos os pes na grade para aquecer-se.
CHARLES DICKENS
ÇbÇiÇf
¡X Veja la, Fagin ¡X disse ele, mostrando tristemente as botas ¡X, nem
uma gota de graxa desde... voce sabe quando... Mas nao me olhe assim,
tudo vira a seu tempo; nao posso falar do negocio sem ter bebido e comido.
De-me alguma coisa.
O judeu fez sinal ao Matreiro para que pusesse alguns viveres na mesa;
depois, sentando-se diante do ladrao, esperou que este comecasse a conversa.
Julgando pelas aparencias, Tobias nao estava disposto a comeca-la. O
judeu contentou-se com observar pacientemente a sua fisionomia, na esperanca
de descobrir nela alguma noticia; foi em vao.
Tobias parecia estar fatigado, mas o rosto estava tao calmo como era de
costume e, apesar da desordem do vestuario, parecia estar contente. O
judeu ardia por saber alguma coisa e passeava de um lado para outro; mas
Tobias continuava a comer sem lhe prestar atencao.
Quando acabou, fez sair o Matreiro, fechou a porta, deitou um pouco
de grog e tratou de comecar a narracao.
¡X Comecando pelo principio ¡X disse ele.
¡X Sim, sim ¡X interrompeu o judeu, sentando-se perto dele.
O Sr. Crackit fez uma pausa, bebeu o grog e declarou que o gin era
excelente; depois, pondo os pes na chamine, de maneira que as botas
ficassem ao nivel dos os olhos, disse tranquilamente:
¡X Comecando pelo principio, como esta Guilherme?
¡X O que? ¡X disse o judeu, dando um pulo da cadeira.
¡X Nao tem entao noticias dele? ¡X disse Tobias,s empalidecendo.
¡X Noticias! ¡X disse o judeu batendo o pe no chao com furor... ¡X
Onde estao eles? Sikes e o menino? Por que nao vieram? Onde estao? Que
e feito deles?
¡X O negocio falhou ¡X disse timidamente Tobias.
¡X Bem sei ¡X respondeu o judeu, tirando um jornal do bolso. ¡X E
depois?
¡X Fizeram fogo e feriram o pequeno; fugimos pelo campo afora, indo
o pequeno conosco... vinhamos pulando cercas e valados. Corriam atras
de nos. Misericordia! Toda a gente do lugar estava fora, e os caes ladravam
em busca dos fugitivos.
¡X E o pequeno? ¡X disse o judeu com voz abafada.
¡X Guilherme po-lo as costas, e voava como o vento. Paramos para por o
pequeno entre nos; tinha a cabeca pendente a um lado e estava gelado. Os
nossos perseguidores estavam perto de nos. Cada qual por si, quando se trata
OLIVER TWIST
ÇbÇiÇg
da forca; fugimos e deixamos o pequeno num fosso; se morto ou vivo, nao sei.
O judeu nao ouviu mais nem uma palavra; soltou urro tremendo, puxou
pelos cabelos e de um salto estava na rua.
CHARLES DICKENS
ÇbÇiÇh
Capitulo XXVI
Entra em cena um personagem misterioso.
Importantes pormenores estreitamente ligados com esta historia.
O amavel anciao chegou a esquina da rua antes que lhe houvesse passado
a comocao produzida pelas noticias trazidas por Tobias Crackit.
Nao so deixara de demorar o passo ordinario, como ate o apressara
mais que de costume, com ar de homem assustado e dominado por violenta
agitacao; um carro que vinha a galope quase o derrubou, e os gritos
da gente que passava, a vista do perigo que ele corria, fizeram com que
ele passasse a calcada.
Depois de ter evitado quanto possivel as grandes ruas, e caminhando
por vielas e passagens obscuras, chegou a Snow-Hill.
Ai entrou a caminhar ainda mais depressa que dantes e nao afrouxou o
passo senao depois que entrou em uma passagem, onde, como se enfim
estivesse no seu elemento, readquiriu o seu passo ordinario e pareceu
respirar mais livremente.
No ponto de juncao entre Snow-Hill e Holborn Hill, a mao direita saindo
da City, ha uma passagem estreita e suja que vai ter a Saffron Hill.
Ali, em miseraveis casinholas, pode-se ver enormes montes de lencos
de todas as cores e tamanhos. Moram ali os sujeitos que os compram aos
ratoneiros. Centenas desses lencos ali estao as janelas e portas; no interior
estao em pilhas. Essa passagem, ou antes essa colonia comercial,
tem uma existencia que lhe e propria, o seu barbeiro, o seu botequim, a
sua taverna. Para todos os larapios de baixa escala, e um verdadeiro
mercado, visitado de manha, ou a noite, por mercadores silenciosos, que
tratam os seus negocios em obscuros recantos e vao embora, como vieram,
as escondidas.
Nessa passagem entrara o judeu; ele era conhecido da imunda gente
do lugar, porque todos os que estavam a porta, vendedores ou mercadoOLIVER
TWIST
ÇbÇiÇi
res, o cumprimentaram familiarmente com um sinal de cabeca quando
ele passou. Respondeu ele do mesmo modo, mas nao parou senao no fim,
para dirigir a palavra a um sujeito de baixa estatura, que estava sentado
como podia em uma cadeira de crianca e fumava um cachimbo diante da
sua loja.
¡X Na verdade, Sr. Fagin, basta ve-lo para sarar da oftalmia ¡X respondeu
o respeitavel negociante ao judeu, que lhe pedia noticias da saude.
¡X A vizinhanca estava um pouco quente ¡X disse Fagin, levantando as
sobrancelhas e cruzando os bracos.
¡X E verdade! Tenho ouvido muita gente queixar-se ¡X respondeu o
sujeito ¡X, mas isto ha de refrescar, nao lhe parece?
Fagin fez um sinal de cabeca e, estendendo a mao na direcao de Saffron
Hill, disse:
¡X Ha alguem la hoje?
¡X Nos Tres-Coxos?
O judeu fez um sinal afirmativo.
¡X Ora, espere ¡X continuou o mercador, procurando lembrar-se. ¡X
Estao la uns seis, creio eu, e nao penso que o seu amigo tambem esteja.
¡X Sikes estara? ¡X perguntou o judeu.
¡X Non est ventus, nao veio, como dizem os homens da lei ¡X respondeu
o sujeito, sacudindo a cabeca e com ar singularmente velhaco. ¡X Tem alguma
hoje que me sirva?
¡X Nao ¡X respondeu o judeu, afastando-se.
¡X Vai aos Tres-Coxos? ¡X disse o homem. ¡X Espere, tenho vontade
de ir com o senhor.
O judeu voltou a cara e fez um gesto de quem desejava ir so; e demais,
como o sujeito nao podia facilmente sair da cadeira, a tabuleta dos Tres-
Coxos ficou dessa vez privada da presenca do Sr. Lively; enquanto ele se
levantou, o judeu havia desaparecido.
O Sr. Lively, depois de se ter levantado inutilmente na ponta dos pes,
tornou a sentar-se na cadeira e, apos trocar com uma dama que morava
na loja fronteira um olhar de duvida e desconfianca, tornou a por o cachimbo
na boca.
Os Tres-Coxos, ou antes os Coxos, tabuleta bem conhecida de todos os
frequentadores do lugar, era aquela mesma taverna em que ja figuraram
o Sr. Sikes e o seu cao. Fagin fez um sinal rapido a um homem sentado no
balcao, subiu a escada, abriu uma porta, entrou na sala e deitou um olhar
CHARLES DICKENS
ÇbÇiÇj
inquieto a roda de si, pondo a mao por cima dos olhos, como se procurasse
alguem.
A sala era iluminada por dois bicos de gas, cuja luz nao se podia ver de
fora, gracas as portas fechadas e cortinas cuidadosamente corridas as janelas.
A sala estava cheia de uma nuvem de tabaco tao espesso que, ao entrar,
quase se nao podia distinguir nada. Quando a porta se abria e saia um
pouco de fumaca, podia ver-se uma extravagante reuniao de cabecas, tao
confusa como o som que chegava aos ouvidos.
Pouco a pouco, iam-se os olhos acostumando aquele espetaculo e acabavam
distinguindo uma numerosa sociedade de homens e mulheres,
aglomerados a roda de uma grande mesa, em cuja extremidade estava o
presidente, com um martelo na mao, insignia de suas funcoes.
Num canto, defronte a um piano, estava uma especie de artista, de
nariz vermelho, com o rosto todo coberto por causa do defluxo.
Na ocasiao em que Fagin entrava na sala, o artista, passando os dedos
pelo teclado a modo de preludio, deu lugar a um rumor geral. Todos
pediam uma cancao; quando o barulho cessou, uma rapariga veio divertir
o publico cantando uma balada em quatro coplas, entre as quais o
acompanhador repetia o estribilho com toda a forca.
Quando isto acabou, o presidente fez um sinal de aprovacao; depois os
artistas, colocados a direita e a esquerda, comecaram um dueto que foi
aplaudido por toda a reuniao.
Era curioso observar algumas das caras daquele grupo.
O presidente, que era o dono da locanda, era sujeito de formas atleticas,
que acompanhava o canto com um movimento de tijolos em todos os
sentidos, e, parecendo estar enlevado na musica, vigiava tudo o que se
passava a roda dele e prestava ouvidos ao que se dizia. Tinha ouvido fino
e olhar sagaz.
Ao pe dele estavam os cantores, recebendo com indiferenca os elogios e
bebendo uma duzia de grogs que os seus admiradores mais veementes
lhes iam passando.
As outras caras tinham o cunho dos mais abjetos vicios e chamavam a
atencao a forca de serem repelentes.
A astucia, a ferocidade, a embriaguez em todos os sentidos, ali se mostravam
em seu mais hediondo aspecto. Mulheres, mocas na flor da idade,
mas ja secas pelo vicio, manchadas de crimes e devassidoes, formavam a
parte mais triste e sombria do quadro.
OLIVER TWIST
ÇbÇjÇa
Fagin, a quem nada disto admirava nem comovia, passava todas as
caras em revista, sem achar a que procurava. Atraiu a atencao do sujeito
que presidia, fez-lhe um sinal com a mao e saiu da sala devagar como
entrara.
O homem foi atras dele.
¡X Que quer, Sr. Fagin? ¡X perguntou o homem. ¡X Nao quer ficar em
nossa companhia?
O judeu sacudiu a cabeca com ar de impaciencia e disse em voz baixa:
¡X Ele esta ca?
¡X Nao.
¡X E nao ha noticias de Barney?
¡X Nenhuma ¡X respondeu o dono da taverna dos Tres-Coxos. ¡X Ele
nao dara sinal de si, senao depois que tudo estiver calmo. Andam em
busca dele, e se ele aparecesse seria logo engaiolado. Barney esta livre; se
assim nao fosse, ja eu teria ouvido falar dele; sou capaz de jura-lo.
¡X Vira ele esta noite? ¡X perguntou o judeu, insistindo particularmente
na palavra dele.
¡X Monks? ¡X perguntou o homem.
¡X Caluda! ¡X disse o judeu. ¡X Ele mesmo, sim.
¡X Sem duvida ¡X respondeu o homem, tirando do bolso um relogio
de ouro. ¡X Eu ate pensava que viria mais cedo; se quiser esperar dez
minutos, ele ca estara...
¡X Nao, nao ¡X disse o judeu, como se, apesar do seu desejo de ver a
pessoa em questao, sentisse algum alivio em nao encontra-la. ¡X Digalhe
que o vim ver e que ele va hoje a minha casa. Nao, amanha e melhor.
¡X Bem; isso so?
¡X So, por enquanto.
E o judeu desceu a escada.
¡X E verdade ¡X disse o outro em voz baixa e inclinando a cabeca ¡X,
que boa ocasiao para essa venda! Philipe Barker esta ca e tao bebado que
uma crianca pode com ele...
¡X Ah! Ah! ¡X disse o judeu. Mas nao e ocasiao de acabar com ele
agora, deve fazer ainda alguma coisa antes que lhe tiremos as contas a
limpo; va ter com os seus amigos e diga-lhes que se alegrem enquanto
estao neste mundo.
O judeu soltou uma risada, e o dono da taverna o imitou, e foi ter com
os seus amigos.
CHARLES DICKENS
ÇbÇjÇb
Fagin apenas ficou so readquiriu a fisionomia inquieta e agitada. Depois
de um instante de reflexao, meteu-se num cabriole e mandou tocar
para o lado de Bethnal Green.
Desceu a um quarto de milha da casa do Sr. Sikes e fez a pe o resto do
trajeto.
¡X Agora ¡X murmurou ele, batendo na porta ¡X, agora nos, minha filha,
e se ca se trama alguma conspiracao tenebrosa, saberei obrigar-te a falar.
Disseram a Fagin que Nancy estava no seu quarto; o judeu subiu a
escada e entrou sem falar; a rapariga estava so, com a cabeca apoiada na
mesa e os cabelos esparsos.
¡X Esta bebada ou triste ¡X disse o judeu.
Fazendo esta reflexao, voltou-se o judeu para fechar a porta, e esse
rumor despertou a moca. Esta olhou para ele, perguntou-lhe se havia
novidade e ouviu a narracao que ele lhe fez das aventuras de Tobias
Crackit; quando ele acabou, Nancy voltou a sua primeira posicao e nao
deu palavra.
Durante esse silencio, o judeu olhava a roda do quarto, como para assegurar-
se de que Sikes nao voltaria as escondidas.
Satisfeito do exame, tossiu duas ou tres vezes e procurou comecar a
conversacao; mas Nancy nao lhe prestou atencao nenhuma.
Era como se ele ali nao estivesse.
Fagin tentou um ultimo esforco.
Esfregou as maos e disse em tom ameno:
¡X Onde cres tu que esteja o Guilherme a esta hora?
A moca murmurou em voz lamentosa e quase ininteligivel que nao
sabia; parecia solucar.
¡X E o menino? ¡X Disse o judeu, fixando os olhos nela como para lhe ler
no rosto. ¡X Coitadinho! Abandonado num fosso! Nancy, que dizes disto?
¡X O menino! ¡X disse ela, levantando vivamente a cabeca. ¡X Esse
esta melhor onde esta do que entre nos; e contanto que Guilherme escape
a policia, desejo que o menino la tenha morrido no fosso, e ali alvejem os
seus pobres ossos.
¡X Que dizes?
¡X Digo isto mesmo ¡X repetiu a moca, olhando fixamente para o
judeu. Estimo que o nao veja mais ¡X e que as suas provancas neste mundo
estejam acabadas. Nao posso ve-lo entre nos; quando o vejo fico com
odio de mim e de todos voces.
OLIVER TWIST
ÇbÇjÇc
¡X Estas bebada!
¡X Eu! ¡X disse ela com amargura. ¡X Nao e culpa sua, se o nao estou;
sua vontade e que eu sempre estivesse ebria, exceto talvez agora. Parece
que lhe nao agrada muito este meu ar de hoje?
¡X Nao, nada.
¡X Pois que lhe hei de eu fazer? ¡X disse ela rindo.
¡X Que lhe ha de fazer? ¡X disse o judeu exasperado, com a obstinacao
da moca. ¡X Vais sabe-lo. Ouve-me bem, a mim que em tres palavras
posso fazer estrangular Sikes com tanta certeza como se tivesse agora
entre as minhas maos o seu pescoco de touro. Se ele vier e nao trouxer o
pequeno, se o deixou escapar, se o nao trouxer morto ou vivo, assassina-o
tu mesma, se queres que ele escape a forca, e isso apenas ele aqui entrar;
do contrario sera tarde!
¡X Que quer dizer isso? disse Nancy.
¡X O que quer dizer? ¡X continuou Fagin, encolerizado. ¡X Ouve. Quando
essa crianca pode valer-me centenas de libras esterlinas, devo eu perder
uma ocasiao de felicidade, um proveito seguro, por culpa de um
punhado de bebados a quem podia cortar o gasnete, e por-me a merce de
um bandido a quem so falta a vontade... mas que tem poder de... de...
O velho estava ofegante e balbuciava.
De repente cessou o acesso de colera; o seu aspecto mudou completamente.
Pouco antes torcia as maos, respirava a custo, tinha os olhos desvairados,
o rosto palido, e ja agora se deixava cair em uma cadeira, tremendo
com a ideia de se haver traido.
Depois de um curto silencio, arriscou-se a deitar um olhar sobre a sua
companheira e pareceu um pouco mais tranquilo, quando a viu na posicao
em que a viera achar.
¡X Nancy, meu anjinho ¡X disse ele. ¡X Deste atencao ao que eu
disse?
¡X Nao me fatigue, Fagin ¡X respondeu a rapariga levantando a cabeca.
¡X Se Guilherme nao obtiver nada desta vez, alcancara tudo em outra
ocasiao; tem feito bons servicos, e ainda os fara quando puder. Ninguem
e obrigado a fazer o impossivel; assim, pois, nao fale mais.
¡X E aquele menino?
¡X O menino deve correr os mesmos riscos que os outros ¡X disse Nancy.
¡X Eu espero que esteja morto ou ao abrigo de todos os males... Contanto
CHARLES DICKENS
ÇbÇjÇd
que nada aconteca a Guilherme! Mas visto que Tobias esta salvo, tambem
ele ha de estar. Ele vale por dois Tobias.
¡X E aquilo que eu dizia ainda agora? ¡X perguntou o judeu, cravando
na rapariga o seu olhar penetrante.
¡X Se e alguma coisa que eu devo fazer ¡X disse ela ¡X entao repita;
que eu nao ouvi nada; e ainda assim, ha de esperar ate amanha, porque
eu estou estupida.
Fagin fez ainda outra pergunta para ter certeza de que ela nao se ia
aproveitar de suas imprudentes insinuacoes.
Mas Nancy respondeu com tanta naturalidade e suportou tao impassivelmente
os seus olhos que o judeu voltou a sua primeira opiniao e disse
consigo que Nancy estava embriagada.
Nancy nao era isenta desse defeito, assaz comum entre os discipulos de
Fagin.
A desordem de sua roupa e um forte cheiro de genebra que havia no
quarto apoiavam esta suposicao; e quando, apos um momento de energia,
ela caiu outra vez no estado de torpor, derramou lagrimas, soltou palavras
incoerentes, Fagin ficou convencido plenamente de que ela estava a
cem leguas daquilo que ele receava.
A descoberta sossegou-o e, cumpridos seus dois objetivos, o de contar a
rapariga o que tinha havido naquela noite e o de ter certeza de que Sikes
nao retornara, Fagin tomou o caminho de casa, deixando a moca a dormir,
com a cabeca repousada a mesa.
Era quase meia-noite. O breu e o frio espantavam a gente da rua e nao
encorajavam o passeio. O vento magoava as costas do judeu e fazia-lhe
tremer todo.
Na esquina de casa, enquanto metia a mao na algibeira para alcancar
as chaves, um negro surgiu de alguma sombra, cruzou a rua e acercouse
dele.
¡X Fagin ¡X a voz sussurrou-lhe aos ouvidos.
¡X Ah! ¡X murmurou o judeu, voltando-se. ¡X Voce que...
¡X Sim ¡X interrompeu-lhe o tipo asperamente ¡X, estou a te esperar
por quase duas horas. Onde diabos te meteste?
¡X Ate estas horas cuidando das tuas coisas ¡X exclamou exasperado o
judeu.
¡X Claro ¡X respondeu-lhe o outro, com maneiras zombeteiras. ¡X E o
que me dizes?
OLIVER TWIST
ÇbÇjÇe
¡X Nao ha boas noticias.
¡X Nem mas, espero.
O judeu lhe responderia, mas o estranho o interrompeu e propos que
continuassem a alegre palestra dentro da casa, pois a espera quase lhe
congelara o sangue.
Nao parecia a Fagin que fosse aquela uma hora conveniente para visitas,
o que o encorajou a dizer que nao havia luz. Mas como o visitante insistisse
gravemente, empurrou a porta e saiu atras de uma vela.
Pouco depois, retornou com um candelabro e com a certeza de que
Tobias Crackit dormia no comodo diante das escadas e os outros rapazes,
no comodo junto ao que ocupavam.
¡X Podemos trocar algumas palavras aqui ¡X disse o judeu a entrada
de uma pequena camara ¡X, mas deixo a vela na escada, nao e bom que a
vizinhanca nos veja pelas frestas da parede.
Fatigado, o visitante ajeitou-se em um dos poucos moveis da ante-sala,
e o judeu postou-se a sua frente. Como a porta ficara entreaberta, uma
centelha de luz alumiava o lugar.
Posto que cochichassem, um ouvido atento notaria que o judeu empreendeu
seu esforco para defender-se das acusacoes que o estranho lhe
lancava com ares irritados. Ja falavam ha algum tempo quando Monks,
era por essa alcunha que Fagin o tratava, ergueu a voz:
¡X Eu lhe disse que a ideia era pessima. Por que nao conservaste o
pequeno para torna-lo um gatuno?
¡X Devias te-lo visto ¡X respondeu o judeu, meio encolhido.
¡X Qual! ¡X exclamou Monks, com aspereza. ¡X Ja nao fizeste isso com
outros diabretes? Um pouco de paciencia e conseguirias manda-lo ao degredo.
¡X E a quem isso interessaria? ¡X redarguiu o judeu com maneiras
humildes.
¡X A mim.
¡X Mas nao a mim ¡X disse Fagin, sem deixar escapar a submissao.
¡XEle me era util. Se ha duas partes em uma negociata, nao e justo que
ambas sejam contempladas, meu velho?
¡X O que me dizes? ¡X inquiriu Monks de pessimo humor.
¡X Ele nao parecia disposto a aprender, como o eram os outros ¡X respondeu
o judeu.
¡X Certamente nao! ¡X murmurou o outro. ¡X Se fosse, logo se tinha
feito um ladraozinho.
CHARLES DICKENS
ÇbÇjÇf
¡X Nao consegui degenera-lo demais ¡X disse o judeu observando cheio
de ansiedade a face do companheiro de oficio. ¡X Ele nao nasceu para o
negocio. O que eu poderia ter feito? Largado-o em companhia de Carlos e
do Matreiro? Eu tentei, a principio, e ainda agora me pelo por causa das
consequencias que se abateriam a nos todos.
¡X Nao me meti nisso ¡X respondeu Monks.
¡X Do que nao me arrependo ¡X voltou-lhe o judeu. ¡X Nunca deitarias
os olhos no pequeno nem poderias saber se ele e de fato quem procuravas.
Foi uma rapariga que mo trouxe, mas depois colocou-se a favorece-lo.
¡X Enforque-a! ¡X exclamou Monks sem paciencia.
¡X Nao e, neste momento, de bom alvitre ¡X disse o judeu ¡X, nem e
oficio que nos pertenca. Demais, conheco essas raparigas: quando o
pequeno se tornar um ladrao, logo nao lhe dao mais importancia. Voce
o quer um gatuno; se ele estiver vivo, torna-lo-ei um. Mas, se estiver
morto...
¡X Ninguem me podera culpar ¡X respondeu o outro terrificado, enquanto
agarrava o braco do judeu. ¡X Nao participei disso, pedi-lhe tudo
menos a morte. Ao diabo este maldito lugar! O que e aquilo?
¡X O que? ¡X perguntou o judeu, passando o braco na cintura do covarde.
¡X Onde?
Apavorado, o estranho apontou para a parede, garantindo que vira o
vulto fantasmagorico de uma mulher.
O judeu largou-lhe o pescoco e correu alarmado. A chama da vela,
estatica, refletia apenas as expressoes apavoradas dos ladroes e o vazio a
roda deles. Apuraram os ouvidos, mas apenas o profundo silencio reinava
no ambiente.
¡X Estas a delirar ¡X disse o judeu, enquanto tratava de alcancar a
vela.
¡X Vi-a inclinando-se ¡X afirmou o outro tremendo. ¡X Quando exclamei,
fugiu.
O judeu olhou-o com desprezo, e ambos percorreram todos os aposentos
da cave. Nada encontraram, porem.
¡X O que me dizes? ¡X exclamou o judeu. ¡X Alem de Tobias e dos
rapazes que estao trancafiados, nao ha ninguem na casa.
Para assegura-lo disso, o judeu apanhou duas chaves a algibeira e mostroulhe
que os trancara, pois nao queria que ouvissem do que tratavam.
Monks tranquilizou-se um pouco. Enquanto prosseguiam a busca, as
exclamacoes diminuiram ate que ele, com um sorriso cheio de vergonha,
OLIVER TWIST
ÇbÇjÇg
admitiu que sua imaginacao o traira. Como passava de uma hora, declinou
da conversa por aquela noite.
Entao, os dois fraternais amigos se separaram.
CHARLES DICKENS
ÇbÇjÇh
Capitulo XXVII
Para reparar uma descortesia de outro capitulo em que se
abandonou sem mais cerimonia uma senhora.
Nao sendo por nenhum modo conveniente a um humilde autor fazer
esperar um personagem tao importante como e um bedel, com as costas
voltadas a lareira e as abas da casaca nos bracos, e sendo assaz descortes e
indigno da polidez de um escritor tratar com a mesma negligencia uma
dama a quem o dito bedel deitou um olhar afetuoso e terno, e a cujos
ouvidos murmurou doces expressoes que, vindas de semelhante personagem,
deviam comover agradavelmente o coracao de uma senhora de
qualquer condicao que fosse, o historiador consciencioso que estas linhas
escreve, fiel aos seus sentimentos de respeito e de veneracao para com aqueles
que exercem neste mundo uma grande e importante autoridade, vem fazer
completa confissao do erro, prestar-lhes a homenagem que a posicao
dessas pessoas reclama e trata-las com todos os respeitos que a sua elevadissima
posicao e grandes qualidades pessoais estao a exigir.
Para isto era intencao do autor fazer aqui uma dissertacao a respeito
do direito divino dos bedeis e demonstrar que um bedel nunca pode fazer
mal, tudo isto para recreio e utilidade do leitor consciencioso; mas infelizmente,
por falta de tempo e de lugar, o autor e obrigado a adiar este
projeto para melhor ocasiao.
Quando essa ocasiao aparecer, o autor demonstrara que um bedel, na
plenitude de suas funcoes, isto e um bedel paroquial, empregado num
asilo de mendicidade paroquial e numa igreja paroquial, possui todas as
qualidades, ou antes todas as perfeicoes da natureza humana, e que os
bedeis empregados nas administracoes, nos tribunais e outros estao a cem
leguas dessas perfeicoes.
O Sr. Bumble tinha contado e recontado as colheres de cha, pesado e
repesado a pinca de acucar, examinado escrupulosamente a leiteira e proOLIVER
TWIST
ÇbÇjÇi
cedido a inspecao minuciosa da mobilia, ao a ponto de examinar de que
eram estofadas as cadeiras.
Renovara esse exame cinco ou seis vezes antes de pensar que a Sra.
Corney devia voltar.
Uma ideia traz outra; e, como nenhum rumor indicava a volta da Sra.
Corney, o Sr. Bumble imaginou que nao podia melhor passar o tempo do
que satisfazer completamente a sua curiosidade e lancar um olhar ao conteudo
da comoda da Sra. Corney.
Aproximou o ouvido do buraco da fechadura para ter a certeza de que
ninguem vinha e comecou a visita de tres grandes gavetas, cheias de roupa
em bom estado, cuidadosamente cobertas de uma camada de jornais.
Vendo isto, o Sr. Bumble pareceu contentissimo.
No curso de suas indagacoes, chegou a gaveta de cima, a mao direita,
onde estava a chave, e viu uma caixinha fechada; sacudiu-a e ouviu um
som metalico assaz agradavel; feito isto, o Sr. Bumble voltou para a lareira,
sentou-se e disse com ar grave e resoluto:
¡X Minha resolucao esta tomada!
Depois desta notavel exclamacao, entrou a balancar a cabeca como um
homem contente de si e a contemplar as pernas, de perfil, com ar extremamente
alegre.
Ainda ele se estava a admirar, quando a Sra. Corney entrou precipitadamente
no quarto e caiu em uma cadeira perto da lareira, pos uma mao
nos olhos e a outra no coracao, como uma mulher que estava sufocada.
¡X Que tem? ¡X perguntou o Sr. Bumble, inclinando-se para a matrona.
¡X Aconteceu-lhe alguma coisa? Responda-me; veja que estou sobre...
sobre... sobre...
Na sua perturbacao, o Sr. Bumble, nao se lembrou da palavra ¡§brasas¡¨
e disse:
¡X Estou sobre garrafas quebradas.
¡X Oh! Sr. Bumble ¡X disse a dama ¡X, fiquei pasmada!
¡X Pasmada! ¡X exclamou o Sr. Bumble. ¡X Quem ousaria, quem teria
a audacia... Compreendo! Foram essas endiabradas mendigas.
¡X Faz horror pensar nisso! ¡X disse a dama.
¡X Pois nao pense mais.
¡X Nao posso deixar de pensar ¡X disse a dama choramingando.
¡X Nesse caso tome alguma coisa ¡X disse o Sr. Bumble com a sua voz
mais doce. ¡X Um pouco de vinho?
CHARLES DICKENS
ÇbÇjÇj
¡X Isso nunca! Nunca! ¡X respondeu a Sra. Corney. ¡X Impossivel...
Oh! Na prateleira de cima.
Ao mesmo tempo a boa senhora apontava para o armario e caia em
espasmos.
O Sr. Bumble correu ao armario, tirou uma garrafa verde da prateleira
indicada, encheu uma xicara com o conteudo da garrafa e levou-a aos
labios da matrona.
¡X Estou melhor ¡X disse a Sra. Corney, tornando a cair na cadeira,
depois de ter bebido metade da xicara.
O Sr. Bumble levantou os olhos para o teto em sinal de acao de gracas,
olhou depois para a xicara e cheirou o licor.
¡X Prove ¡X disse a Sra. Corney.
O Sr. Bumble provou o licor com ar indeciso, deu um estalo com a
lingua, tornou a provar e esgotou a xicara.
¡X Conforta muito ¡X disse a matrona.
¡X Muito, na verdade ¡X disse o bedel ¡X, aproximando a sua cadeira
da cadeira da matrona.
Depois perguntou com voz terna se alguma coisa lhe havia acontecido.
¡X Nada ¡X respondeu a Sra. Corney. ¡X E que eu sou uma criatura tao
imprevisivel, tao insensivel, tao fraca!
¡X Oh! Nao, fraca nao! ¡X disse o Sr. Bumble, aproximando a sua cadeira.
¡X Pois a senhora sera fraca criatura, Sra. Corney?
¡X Todos nos somos fracas criaturas ¡X disse a Sra. Corney, emitindo
um principio geral.
¡X Tens razao ¡X disse o bedel.
Durante um ou dois minutos houve silencio de parte a parte, e ao cabo
desse tempo o Sr. Bumble deu razao ao principio mudando o braco esquerdo
das costas da cadeira para a cintura da matrona.
¡X Somos todos fracas criaturas ¡X disse o Sr. Bumble.
A Sra. Corney suspirou.
¡X Nao suspire ¡X disse o Sr. Bumble.
¡X Nao posso resistir ¡X disse a Sra. Corney, e soltou novo suspiro.
¡X Este quarto e assaz confortavel ¡X disse o Sr. Bumble, olhando a
roda de si. ¡X Se tivesse outro quarto ao pe seria excelente.
¡X Seria demais para uma pessoa ¡X murmurou a dama.
¡X Sim, mas nao para duas ¡X disse o Sr. Bumble com voz terna.
¡X Que diz?
OLIVER TWIST
ÇcÇaÇa
A estas palavras a Sra. Corney abaixou a cabeca e o bedel abaixou tambem
a sua para ver a da matrona. Esta, com muita presenca de espirito desviou a
cabeca e tirou a mao para procurar o lenco e depois tornou a po-la na do Sr.
Bumble.
¡X A administracao da-lhe o carvao necessario ¡X disse o Sr. Bumble
apertando afetuosamente a mao da Sra. Corney.
¡X E velas ¡X disse a Sra. Corney, respondendo levemente ao aperto de
mao.
¡X Carvao, velas e casa ¡X disse o Sr. Bumble. ¡X Oh! A senhora e um anjo!
A dama nao pode resistir. Caiu nos bracos do bedel, e este depos um
apaixonado beijo no nariz da matrona.
¡X Que perfeicao paroquial! ¡X exclamou o Sr. Bumble!
O Sr. Bumble continuou:
¡X Sabe, minha querida, que o Sr. Slout esta pior?
¡X Sei ¡X respondeu tristemente a Sra. Corney.
¡X Pelo que diz o medico ¡X continuou o Sr. Bumble ¡X, espicha a
canela nesta semana. Ele esta a testa desta casa; a sua morte produzira
uma vaga e sera necessario preenche-la. Oh! Sra. Corney! Que perspectiva!
Que ensejo para unir dois coracoes e fazer uma so familia!
A Sra. Corney solucava.
¡X Diga essa doce palavra ¡X continuou o Sr. Bumble inclinando-se para
aquela beleza timida. ¡X Pronuncie essa doce palavrinha, minha bela
Corney!
¡X S... i... m... ¡X suspirou a matrona.
¡X Outra vez ¡X disse o bedel.
¡X Sim...
¡X Outra pergunta ¡X disse o Sr. Bumble. ¡X Venca a sua comocao e
responda: quando serao as bodas?
Duas vezes a Sra. Corney tentou falar e duas vezes lhe faltou a voz.
Afinal, reunindo toda a sua coragem, lancou os bracos a roda do pescoco
do Sr. Bumble, dizendo-lhe:
¡X Quando quiser, porque e impossivel resistir-lhe.
Regulados assim amigavelmente os negocios, e para satisfacao de ambas
as partes contratantes, ratificou-se solenemente a convencao esvaziandose
uma nova taca de licor, que nao podia vir mais a proposito no estado de
agitacao em que se achava a dama.
A Sra. Corney informou o noivo da morte da velha.
CHARLES DICKENS
ÇcÇaÇb
¡X Muito bem ¡X disse o bedel, saboreando o liquido ¡X, vou passar
por casa de Sowerberry para encomendar o caixao. Foi isso que lhe meteu
medo, meu amor?
¡X Nao foi bem isso ¡X respondeu evasivamente a matrona.
¡X Mas alguma foi decerto ¡X disse o Sr. Bumble insistindo. ¡X Nao o
quer dizer ao seu Bumble?
¡X Agora nao ¡X respondeu ela. ¡X Um destes dias; depois que nos
casarmos.
¡X Quando nos casarmos! ¡X disse o Sr. Bumble. ¡X Dar-se-a acaso que
algum desses mendigos ousasse...
¡X Nao, nao ¡X disse a matrona.
¡X Se eu pudesse acreditar nisso ¡X disse o Sr. Bumble ¡X, se eu pudesse
supor que um desses miseraveis teve a audacia de lancar um olhar
atrevido para este amavel rosto...
¡X Nao ousariam isso! ¡X disse a dama.
¡X E fazem bem ¡X disse o Sr. Bumble, mostrando o punho fechado.
¡XTomara eu que qualquer individuo, paroquial ou extraparoquial, tivesse
semelhante liberdade! Ouso dizer que o nao faria segunda vez.
Se estas palavras nao fossem acompanhadas de gestos violentos, a dama
poderia acha-las pouco lisonjeiras; mas, como o Sr. Bumble proferia esta
ameaca com ar belicoso, ficou vivamente impressionada com tamanha
prova de dedicacao.
O Sr. Bumble levantou a gola da casaca, pos o chapeu de tres bicos, deu
na sua futura metade um longo e terno beijo e saiu para ir afrontar segunda
vez o vento glacial da noite. Apenas se demorou alguns instantes
na sala dos indigentes para os maltratar um pouco, a fim de ver se tinha
toda a rudeza necessaria ao cargo de diretor de um asilo de mendicidade.
Convencido de possuir essa aptidao, o Sr. Bumble saiu do asilo com o
coracao leve e todo ocupado com a brilhante perspectiva de uma promocao
proxima; outra ideia nao teve em todo o caminho que ia do asilo a
casa do empresario de enterros.
O Sr. e a Sra. Sowerberry tinham ido tomar cha fora de casa e, como o
Sr. Noe Claypole nunca se agitava mais do que era preciso para desempenhar
as suas funcoes digestivas, a loja ainda nao estava fechada, posto que
a hora ordinaria de se fechar ja houvesse passado.
O bedel bateu muitas vezes com a bengala no balcao, mas ninguem
veio; descobriu uma pequena luz por tras da porta de vidro do fundo e
resolveu ir ver o que la se passava.
OLIVER TWIST
ÇcÇaÇc
Quando o viu, ficou admiradissimo.
A mesa tinha toalha, e sobre a toalha havia pao, manteiga, pratos, copos,
cerveja e vinho.
Na cabeceira da mesa estava o Sr. Noe Claypole sentado molemente
em uma cadeira de bracos, com as pernas pendentes em um dos bracos da
cadeira, uma faca na mao e uma longa fatia na outra.
Ao pe dele estava Carlota, ocupada em abrir ostras que o Sr. Claypole
lhe fazia o obsequio de engolir rapidamente.
Tinha ele o nariz mais vermelho que de costume e um certo piscar dos
olhos mostrava que ele estava um pouco alegrete. Engoliu as ostras com
pressa tal que bem indicava conhecer as suas propriedades refrigerantes
no caso de inflamacao interna.
¡X Olhe, Noe ¡X disse Carlota ¡X, esta e boa, esta gorda. Coma esta; ande.
¡X Deliciosa coisa e a ostra! ¡X observou o Sr. Claypole depois de a ter
engolido. ¡X E pena que se nao possam comer muitas sem fazer mal! Nao
e, Carlota?
¡X E uma crueldade que nao possa ser assim ¡X disse Carlota.
¡X Tem razao! ¡X continuou o Sr. Claypole. ¡X Nao gostas de ostras?
¡X Nao, muito ¡X disse Carlota. ¡X Prefiro ve-las comer.
¡X E singular!
¡X Mais esta ¡X disse Carlota. ¡X Olhe como e bonita!
¡X Nao, senhora ¡X disse Noe. ¡X E impossivel e tenho pena Carlota,
deixas dar-te um beijo!
¡X Que e isto? ¡X disse o Sr. Bumble entrando na saleta. ¡X Repita isso!
Carlota soltou um grito e escondeu a cara no avental, enquanto o Sr.
Claypole, tendo-se posto em pe, contemplava o bedel com ar de bebado
assustado.
¡X Repita isso, miseravel, atrevido! ¡X disse o Sr. Bumble. ¡X Ousas tu
dizer semelhante coisa! E tu atreves-te a anima-lo? Mulher! Dar-lhe um
beijo! Que tal!
¡X Eu nao tencionava faze-lo ¡X disse Noe, com lagrimas nos olhos. ¡X E
ela quem quer sempre dar-me um beijo.
¡X Oh! Noe! ¡X disse Carlota, em tom de exprobacao.
¡X Voce bem sabe que e assim ¡X disse Noe ¡X, e ela quem me faz
sempre muitos afagos, Sr. Bumble.
¡X Silencio! ¡X disse severamente o bedel. ¡X Va para a cozinha, Carlota.
E voce, Noe, feche a loja e nao me resmungue. Quando o patrao entrar,
CHARLES DICKENS
ÇcÇaÇd
diga-lhe que veio ca o Sr. Bumble preveni-lo de que amanha de manha,
depois de almocar, deve mandar um caixao para uma velha, ouviu? Um
beijo! ¡X acrescentou ele erguendo as maos. ¡X A perversidade, a imoralidade
das classes baixas e horrivel neste distrito paroquial. Se o parlamento
nao tomar em consideracao estes horrores, o pais esta perdido e os
antigos costumes desaparecem.
Dizendo isto, saiu o bedel com ar sombrio e majestoso.
E agora que o acompanhamos quase ate a porta e fizemos os preparativos
para o enterro da velha, vamos ver o que aconteceu ao jovem Oliver
Twist e saber se ainda esta no fosso onde Tobias Crackit o deixou.
Capitulo XXVIII
Prosseguem as aventuras de Oliver.
¡X Que o diabo os leve! ¡X murmurou Sikes, rangendo os dentes. ¡X Oxala
que eu os pudesse ter, uns ou outros; fa-los-ia gritar ainda mais.
Proferindo estas imprecacoes com todo o furor que comportava a sua
natureza feroz, pos no joelho o menino ferido e voltou a cabeca para ver
se descobria as pessoas que iam em perseguicao dele.
Nao era possivel ve-los no meio das trevas e do nevoeiro; mas de todos
os lados soavam gritos de homens, latidos de caes, toques de rebate:
¡X Para, medroso! ¡X disse o salteador apontando a arma contra Tobias
Crackit, que, tirando vantagem das longas pernas, ja estava adiante.
Tobias parou; nao estava fora do alcance da pistola, e Sikes nao estava
em mare de brincar.
¡X Anda dar a mao ao pequeno ¡X gritou Sikes, fazendo um gesto
furioso ao seu cumplice ¡X, anda depressa!
Tobias obedeceu, mas resmungando e sem muita pressa.
¡X Mais depressa! ¡X disse Sikes, pondo o menino num fosso sem agua
e apontando a pistola. ¡X Nao te facas de tolo comigo!
Nesse momento o rumor era mais forte, e Sikes, deitando os olhos a
roda de si, pode entrever que os que o perseguiam ja haviam entrado no
campo em que ele se achava, e deitaram dois caes contra ele.
¡X Salve-se quem puder ¡X disse Tobias. ¡X Deixa ai o pequeno e mostra-
lhe os calcanhares.
Ao mesmo tempo o Sr. Crackit, preferindo a hipotese de ser morto pelo
amigo a certeza de ser apanhado pelos inimigos, voltou as costas e disparou
pelo campo afora.
Sikes, rangendo os dentes, lancou um rapido olhar a roda de si, atirou
sobre Oliver inanimado o pano em que o envolvera, correu ao longo
da cerca, como para desviar a atencao daqueles que o perseguiam do
OLIVER TWIST
ÇcÇaÇg
lugar onde jazia a crianca, parou um segundo diante de outra cerca, que
prendia com a primeira em angulo reto, descarregou a pistola no ar e
fugiu.
¡X Ola, ola ¡X gritou ao longe uma voz tremula. ¡X Netuno! Aqui!
Os caes, que nao pareciam ter mais gosto do que os homens nesta corrida,
obedeceram logo e tres homens pararam para deliberar.
¡X Minha opiniao, ou antes a minha ordem ¡X disse o mais gordo dos
tres ¡X, e que voltemos para casa imediatamente.
¡X Tudo o que convir ao Sr. Giles e o que me convem ¡X respondeu um
sujeitinho repolhudo, muito palido e tambem muito cortes, como sao em
geral as pessoas medrosas.
¡X Nao serei tao grosseiro que me oponha aos senhores ¡X disse o terceiro,
que tinha chamado os caes. ¡X O Sr. Giles sabe o que faz.
¡X Sem duvida ¡X disse o sujeitinho ¡X, e nao devemos contradizer o
Sr. Giles; nao, nao; eu, gracas a Deus, conheco a minha posicao.
A falar verdade, o sujeitinho parecia conhecer bem a sua posicao e
saber perfeitamente que nao era invejavel, porque o medo fazia com que
lhe rangessem os dentes.
¡X Voce esta com medo, Brittles ¡X disse o Sr. Giles.
¡X Nao ¡X disse Brittles.
¡X Esta ¡X disse Giles.
¡X E falso, Sr. Giles ¡X disse Brittles.
¡X Mente voce, Brittles ¡X disse o Sr. Giles.
Foi a observacao zombeteira do Sr. Giles que lhe atraiu estas respostas
azedas, e, se o Sr. Giles zombou de Brittles, foi por ver que atiravam para
cima dele, em forma de cumprimento, a responsabilidade da retirada.
O terceiro individuo pos termo a discussao com uma observacao filosofica:
¡X Querem que lhes diga uma coisa? Todos nos estamos com medo.
¡X Fale por si ¡X disse o Sr. Giles, que era o mais palido dos tres.
¡X E o que eu faco ¡X disse ele. ¡X Nada mais simples do que ter medo
em circunstancias tais; eu tenho medo.
¡X E eu tambem ¡X disse Brittles. ¡X Mas isso nao se deve dizer na cara
da gente.
Estas confissoes francas aplacaram a colera do Sr. Giles, que reconheceu
estar com medo igual ao dos outros.
Imediatamente todos os tres deram as costas e entraram a fugir, com a
mais comovente unanimidade, ate que o Sr. Giles, que tinha a respiracao
CHARLES DICKENS
ÇcÇaÇh
curta e que nao podia correr bem por causa de um forcado que levava,
pediu polidamente um momento de demora para pedir desculpa das palavras
azedas que dissera.
¡X Faz admirar ¡X disse ele, depois que lhe aceitaram as explicacoes ¡X,
faz admirar de quanto a gente e capaz quando lhe sobe a mostarda ao
nariz; eu era capaz de matar um daqueles pelintras, se o apanhasse.
Como os outros dois companheiros eram da mesma opiniao e estavam
como o Sr. Giles completamente acalmados, entraram a indagar qual a
causa que tao depressa lhes mudara o temperamento.
¡X Eu sei o que foi ¡X disse o Sr. Giles ¡X, foi a cerca.
¡X Nao me admira ¡X disse Brittles, aceitando a ideia.
¡X Fiquem certos ¡X disse Giles ¡X de que a barreira e que refreou o
nosso ardor; eu sentia que perdia o meu quando transpus a cerca.
Por uma coincidencia digna de nota, os outros dois tinham sentido uma
impressao desagradavel na mesma ocasiao. Para todos eles era pois evidente
que a cerca foi a causa do esfriamento; tanto mais que nenhum deles tinha
duvida acerca do instante preciso em que tal mudanca se produziu; todos os
tres se lembravam que fora ao saltarem a cerca que viram os ladroes.
Travava-se este dialogo entre os dois homens que tinham surpreendido
os ladroes e um caldeireiro que dormia debaixo de um telheiro e fora
despertado para tomar parte na perseguicao.
O Sr. Giles era intendente na casa da velha proprietaria onde o roubo
se ia dar, e Brittles nao tinha funcoes definidas; como entrara muito crianca
para la, era tratado como um rapaz que prometia, posto ja contasse
trinta anos passados.
Conversavam pois, como vimos, para criar coragem; mas caminhavam
juntinhos uns dos outros e lancavam a roda de si um olhar inquieto, apenas
o vento agitara as folhas; precipitaram-se para uma arvore ao pe da
qual haviam deixado a lanterna, a qual levaram consigo.
Depois continuaram a andar, ou antes a correr na direcao da casa, e,
neste tempo, depois ainda a sua sombra mobil se agitava e dancava ao
longe, semelhante a um vapor que sobe do solo umido.
O ar ficava mais frio a proporcao que o dia se aproximava lentamente,
e o nevoeiro cobriu a terra de uma espessa camada de fumo. A relva estava
umida, os caminhos, lamacentos; soprava um vento frio de chuva.
Oliver continuava imovel e privado da vida, no lugar em que Sikes o
deixara.
OLIVER TWIST
ÇcÇaÇi
Levantava-se lentamente o dia; palido clarao iluminava o ceu, marcando
antes o fim da noite que o comeco da manha. Os objetos que, na
escuridao, pareciam medonhos e terriveis tornavam-se cada vez mais distintos
e reassumiam pouco a pouco o seu aspecto habitual. Um forte chuvisco
banhava as arvores sem folhas; mas Oliver nao o sentia e continuava
a estar sem sentidos e longe de todo o auxilio na sua cama de argila.
Afinal, um fraco grito de dor rompeu aquele longo silencio e, ao solta-lo
acordou a crianca.
O seu braco esquerdo, grosseiramente envolvido em um xale, pendia
sem forca e estava coberto de sangue. O menino estava tao fraco que mal
se pode sentar, e, quando o conseguiu fazer, olhou languidamente a volta
de si como para procurar socorro.
A dor fe-lo gemer.
Tremendo de frio e de fraqueza, fez um esforco para se levantar; mas
entrou a tiritar da cabeca ate os pes e caiu no chao.
Depois de ter voltado alguns instantes ao estado em que estivera tanto
tempo, Oliver, sentindo uma horrivel impressao, pressagio de uma morte
certa se ficasse onde estava, conseguiu erguer-se e procurou andar.
Tinha a cabeca abrasada e cambaleava como um homem ebrio; conseguiu
nao obstante ter-se em pe e, com a cabeca pendente sobre o peito,
caminhou com passo incerto, sem saber aonde ia.
Conservavam-se-lhe no espirito uma multidao de ideias singulares e
confusas. Parecia-lhe que ainda estava entre Sikes e Crackit, que discutiam
violentamente, e que as palavras deles lhes feriam aos ouvidos.
Se no seu delirio fazia um violento esforco para nao cair, achava-se de
repente em conversa com eles; depois, estava so, com Sikes, caminhando
como fizera na vespera, e parecia-lhe sentir o aperto do ladrao quando
alguem passava por eles.
De repente estremeceu ao rumor de uma detonacao de arma de fogo e
ouviu grandes gritos; viu luzes diante de si; tudo era rumor e tumulto;
parecia-lhe estar preso por uma forca invisivel.
A essas visoes rapidas vinha juntar-se um sentimento vago e penoso do
sofrimento que o atormentava sem cessar.
Caminhou assim cambaleando, abrindo maquinalmente por entre as
cercas que encontrava, ate que chegou a uma estrada; ai comecou a chuva
a engrossar tanto que Oliver voltou a si.
Olhou a roda e viu a pouca distancia uma casa, ate a qual podia ir.
CHARLES DICKENS
ÇcÇaÇj
Vendo o seu estado teriam pena dele e, no caso contrario, mais valia
(pensava Oliver) morrer ao pe de um teto habitado por criaturas humanas
que na solidao dos campos.
Reuniu as poucas forcas que lhe restavam para esta ultima tentativa e
caminhou para casa.
Ao aproximar-se da casa, parecia-lhe vagamente que ja a tinha visto;
nao se lembrava de nenhuma circunstancia, mas a forma e o aspecto da
casa nao lhe eram desconhecidos.
Aquele muro do jardim! Na relva, do outro lado, caira ele de joelhos,
na porta interior, e implorava a dois salteadores; era aquela a casa que
eles tentaram roubar.
Reconhecendo onde estava, Oliver sentiu um receio tal que esqueceu
por alguns instantes as dores e so pensou em fugir.
Fugir! Ele mal se podia ter em pe; e quanto tivesse toda a agilidade da
mocidade, para onde fugiria? Empurrou portanto a porta do jardim; nao
estava fechada a chave e abriu facilmente; caminhou, subiu os degraus,
bateu devagar a porta e, faltando-lhe as forcas, encostou-se a um dos pilares
da entrada.
Nessa ocasiao, o Sr. Giles, Brittles e o caldeireiro estavam na cozinha,
restaurando-se das fadigas e terrores da noite passada, com cha e doces;
nao que estivesse nos habitos do Sr. Giles de entrar em grande familiaridade
com os criados inferiores, para os quais ele mostrava antes uma benevolencia
altiva, de maneira a nao lhes deixar esquecer a superioridade
da sua posicao social; mas diante da morte, incendios e ataques a mao
armada, todos os homens sao iguais.
Estava pois o Sr. Giles sentado na cozinha, com as pernas cruzadas diante
do fogao, o braco esquerdo apoiado na mesa, ao passo que gesticulava
com o braco direito e fazia do ataque noturno uma narracao minuciosa,
que todos os seus auditores, e principalmente a cozinheira e a criada,
ouviam com avidez.
¡X Eram pouco mais ou menos duas horas e meia ¡X disse o Sr. Giles
¡X, e eu nao juraria que fossem tres, quando eu acordei, e voltando-me na
cama assim (o Sr. Giles voltou-se na cadeira puxando a ponta da toalha
para simular os lencois), parecia-me que ouvia certo barulho.
Neste ponto da narracao, a cozinheira empalideceu e pediu a criada
que fosse fechar a porta; a criada dirigiu-se a Brittles, e este ao caldeireiro,
que fingiu nao ouvir.
OLIVER TWIST
ÇcÇbÇa
¡X Pareceu-me que ouvia certo barulho ¡X continuou o Sr. Giles. ¡X E
ilusao, disse eu ao principio. ¡X E ia continuar a dormir, quando ouvi
outra vez o barulho, e de uma maneira distinta.
¡X Que rumor era? ¡X perguntou a cozinheira.
¡X Uma especie de rumor surdo ¡X respondeu o Sr. Giles olhando para
todo o auditorio.
¡X Ou antes o som de alguma coisa em uma barra de ferro ¡X disse Brittles.
¡X Talvez, no momento em que voce ouviu ¡X disse o Sr. Giles. ¡X Mas
quando eu ouvi era um rumor surdo; lancei de mim os lencois (e o Sr.
Giles empurrou a toalha), sentei-me na cama e prestei ouvidos.
A cozinheira e a criada exclamaram ao mesmo tempo:
¡X Meu Deus!
E aproximaram as suas cadeiras.
¡X Entao ouvi a ponto de nao poder duvidar ¡X continuou o Sr. Giles.
¡X Disse comigo que estavam forcando alguma porta ou janela; que fazer?
Fui prevenir aquele pobre Brittles para que ele nao se deixasse assassinar
na cama; e se nao o avisar, disse eu comigo, podem cortar-lhe o
pescoco sem que ele o perceba.
Aqui todos os olhos se voltaram para Brittles, que tinha os seus pregados
no narrador e o contemplava boquiaberto e espantado.
¡X Empurrei os lencois, disse Giles, olhando para a cozinheira e a criada,
pulei da cama, calcei um par de...
¡X Aqui ha senhoras ¡X murmurou o caldeireiro.
¡X Um par de sapatos, disse Giles voltando-se para o caldeireiro e
apoiando na palavra. ¡X Lancei mao da pistola carregada que esta sempre
na escada perto da porta e dirigi-me para o quarto de Brittles. ¡X
¡§Brittles¡¨, disse-lhe eu, depois de o acordar, ¡§nao tenha medo.¡¨
¡X E exato ¡X observou Brittles a meia-voz.
¡X Estamos todos mortos, pelo que me parece, Brittles, mas nao tenha
medo.
¡X Ele teve medo? ¡X perguntou a cozinheira.
¡X Nao ¡X disse o Sr. Giles ¡X mostrou-se firme... tao firme como eu.
¡X Pois eu ca morrerei imediatamente ¡X disse a criada.
¡X E que voce e mulher ¡X replicou Brittles.
¡X Brittles tem razao ¡X disse o Sr. Giles, aprovando com um gesto o
que ele acabava de dizer. ¡X Da parte de uma mulher nao se deve esperar
outra coisa; mas nos, que somos homens, pegamos numa lanterna surda
CHARLES DICKENS
ÇcÇbÇb
que estava na chamine de Brittles e descemos a escada as apalpadelas, no
escuro, assim.
O Sr. Giles levantou-se e comecou a dar alguns passos para juntar o
gesto a palavra, quando de repente estremeceu, como todos, e voltou depressa
para a cadeira. A cozinheira e a criada soltaram um grito.
¡X Bateram na porta ¡X disse o Sr. Giles afetando uma perfeita serenidade.
¡X Va abrir alguem.
Ninguem se mexeu.
¡X E singular que venham bater a porta tao cedo ¡X disse o Sr. Giles
considerando as caras palidas das pessoas que o cercavam e empalidecendo
tambem. ¡X Mas e preciso abrir a porta; alguem deve ir abrir a porta.
O Sr. Giles disse estas palavras com os olhos em Brittles; mas este mancebo,
sendo naturalmente modesto, nao pensava que fosse alguem e persuadiu-
se que a intimacao nao era com ele; em todo o caso nao respondeu.
O Sr. Giles fez sinal ao caldeireiro, mas este adormecera repentinamente.
As mulheres.... nem pensar nisso.
¡X Va ver quem esta a porta, Brittles, disse o Sr. Giles apos um momento
de silencio, que te acompanho.
¡X Eu tambem ¡X exclamou o caldeireiro, despertando tao repentinamente
quanto adormecera.
Feito o acordo, o bando tranquilizou-se ao descobrir, atraves das janelas,
que era ja dia feito e desceu as escadas. A frente deles, os caes; atras, as
mulheres.
O Sr. Giles aconselhou-as a falar alto, assim um mal intencionado
perceberia que estavam em bom numero. Ainda, a mesma mente assaz
habilidosa propos que beliscassem o rabo dos caes, para que os deixassem
aticados.
Enquanto segurava o braco do caldeireiro, precavendo-se de uma
possivel fuga, o Sr. Giles finalmente ordenou que a porta fosse aberta.
Brittles cumpriu a ordem.
Uns amontoados nos outros, nao encontraram nada alem do pequeno
Oliver, mudo e exausto, a pedir com os olhos assustados um pouco de
compaixao.
¡X Um pequeno! ¡X exclamou Giles, empurrando cheio de valentia o
caldeireiro a um canto. ¡X Que e... ¡X balbuciou ¡X Estas vendo, Brittles?
Brittles, que se ocultara por tras da porta, assim que viu Oliver meteuse
a gritar. O Sr. Giles agarrou o pobrezito por uma perna e um braco
OLIVER TWIST
ÇcÇbÇc
(felizmente nao o que se quebrara) e arrastou-o ate o vestibulo, largando-o
estendido no chao.
¡X Ca esta! ¡X exclamou Giles em larga excitacao, galgando a escadaria.
¡X Ca esta um dos gatunos, madame, eu mesmo atirei nele; Brittles
acendeu a candeia.
Enquanto o corajoso homem gritava, as duas criadas correram a dar a
noticia de que ele havia capturado um dos pelintras. De sua parte, o
caldeireiro tentava garantir que Oliver nao morresse ali, longe da forca.
No meio da bulha, ouviu-se a doce voz de uma mulher e, no mesmo
instante, todos se calaram.
¡X Sr. Giles ¡X sussurrou a voz no topo da escadaria.
¡X Ca estou ¡X respondeu o Sr. Giles. ¡X Nao te assustes, nao me feri; o
gatuno nao opos resistencia, nao demorei a lho capturar.
¡X Cale-se! ¡X exclamou a senhorita. ¡X Minha tia pensara que es um
dos ladroes; o desgracado esta muito ferido?
¡X Terrivelmente, madame ¡X respondeu o Sr. Giles satisfeitissimo.
¡X Parece que vai espichar as canelas ¡X exclamou Brittles, com a
mesma excitacao. ¡X A madame nao quer ve-lo expirar?
¡X Tenham piedade! ¡X disse a senhorita. ¡X Tentem fazer silencio
enquanto falo a minha tia.
A donzela, cujo olhar era tao docil quanto a voz, voltou aos aposentos da
tia. Logo, anunciou que o ferido deveria ser cuidadosamente transportado
para as dependencias do Sr. Giles. Ordenou ainda que Brittles tomasse o
cavalo e fosse rapidamente ate Chertsey a procura do oficial de policia e
do medico.
¡X A madame nao quer ve-lo antes? ¡X perguntou o Sr. Giles, como se
Oliver fosse uma ave rara que ele houvesse terminado de abater. ¡X Nem
uma olhadela, madame?
¡X Por nada no mundo eu o visitaria agora ¡X respondeu a senhorita.
Faca o melhor que puder pelo infeliz, peco-te de coracao.
O criado olhou para a moca com o orgulho e a admiracao que dispensaria
a uma filha. Em seguida, carregou maternalmente Oliver pelas escadas.
CHARLES DICKENS
ÇcÇbÇd
Capitulo XXIX
Em que se apresentam os habitantes da casa que recolhera Oliver
Duas senhoras tomavam o desjejum em uma farta mesa disposta entre
a mobilia de ares antiquados em uma majestosa saleta. Elegantemente
vestido de preto, o Sr. Giles postava-se ao lado, pronto para atende-las.
Ereto, com a cabeca levemente curvada para tras, a perna esquerda adiante,
a mao direita metida no colete e a esquerda a amparar uma bandeja,
mostrava que tinha plena consciencia de toda a sua importancia.
Uma das senhoras avancava em idade. Suas costas, porem, eram tao
eretas quanto o carvalho em que se assentava. A roupa mesclava a tons
modernos um estilo passadico, deixando um conjunto de rara beleza. Com
as maos cruzadas sobre a mesa, respirava ares nobres. Os olhos, por sua
vez, deitavam-se sobre a jovem que a acompanhava.
O frescor nas faces da rapariga era tal que a fazia semelhante, se for
isso de facil suposicao, a um anjo.
Se muito, contava dezessete anos. Por ser tao fina e delicada, tao meiga
e gentil, tao imaculada e bela, nao encontrava par que pudesse fazer-lhe
companhia. Dos olhos, brilhava uma inteligencia que nao parecia
combinar nem com sua idade, nem com o mundo. Alternando candura e
graca, as infinitas luzes que iluminavam sua face deixavam claro que
tinha nascido para a paz e a felicidade caseira.
Ocupava-se dos talheres; tendo visto os olhos da senhora sobre si, jogou
infantilmente os cabelos para tras e sorriu, tomada de afeto e carinho.
¡X Ja deu uma hora que Britles saiu, nao? ¡X perguntou a senhora.
¡X Uma hora e doze minutos ¡X respondeu o Sr. Giles, diligente.
¡X Vai sempre lerdo ¡X observou a madame.
¡X Brittles foi sempre vagaroso ¡X concordou o criado. ¡X Tendo sido
ele lerdo por trinta anos, nao vai agora tornar-se mais ligeiro.
OLIVER TWIST
ÇcÇbÇe
¡X Esta sempre a piorar ¡X murmurou a senhora.
¡X A toda hora, estaciona para trocar uma palavra com os pedestres ¡X
disse a rapariga sorridente.
Quando o criado considerava a possibilidade de ser o proximo a sorrir,
um carro estacou a frente do jardim e dele saltou um fidalgo rolico. As
estribeiras, entrou na sala sabe-se la como e quase tresandou ao ver o Sr.
Giles e a mesa de almoco.
¡X Nunca me deparei com tal coisa ¡X disse o cavalheiro. ¡X Sra. Maylie,
nem nas trevas noturnas vi algo como o que aconteceu as senhoras.
Condoido, o cavalheiro rolico cumprimentou as madames e, procurando
assentar-se, quis saber como se sentiam.
¡X Se me houvessem chamado ¡X exclamou o cavalheiro meio gordo ¡X,
vinhamos eu e mais alguns; por Deus, no escuro da noite ainda!
O doutor espantava-se sobretudo com o roubo ter-se dado durante a
noite, como se fosse regra dos profissionais da gatunagem agir a luz do
dia e apenas depois de postar um ou dois avisos.
¡X E a senhorita ¡X disse o cavalheiro, voltando os olhos na direcao da
rapariga ¡X, eu...
¡X Muito bem ¡X disse Rosa, interrompendo-o ¡X, mas ha la em cima
um pobre coitado que minha tia gostaria que visse.
¡X E certo ¡X respondeu o doutor. ¡X E foi o Sr. Giles que o deixou em
tal estado?
O Sr. Giles, que nervosamente ajeitava os talheres, respondeu que tivera
a honra.
¡X Honra ¡X repetiu o doutor. ¡X Sim, talvez seja valoroso surrar um
ladrao caido a cozinha ou acreditar que se afrontou em duelo o pobre que
atirou ao ceu, Sr. Giles.
Giles, sentindo que sua gloria diminuiria se as coisas fossem tratadas
com tal despeito, respondeu, humilde, que nao lhe cabia julgar, mas que
achava que assunto tao serio nao podia servir de troca.
¡X E verdade ¡X condescendeu o doutor. ¡X Vou ve-lo e logo venho terlhe,
Sra. Maylie. Foi por aquela janela que o gatuno saltou? Nao posso acreditar!
Talvez agrade ao leitor saber que o Sr. Losborne, alcunhado em toda a
vizinhanca de doutor, crescera em banhas mais pelo humor que propriamente
pela mesa farta; e que, a distancia de cinco vezes aquele espaco, nao se
encontrava alguem tao excentrico, amoroso e afavel. Falando pelos
cotovelos, o doutor acompanhou Giles pelas escadarias.
Losborne mandou trazer do carro uma enorme caixa-preta e varias
CHARLES DICKENS
ÇcÇbÇf
vezes fez os criados subir e descer as escadas, deixando claro que algo
importante se passava. Quando por fim livrou as duas mulheres da
angustiosa espera, cerrou a porta antes de dizer qualquer palavra.
¡X E extraordinario, Sra. Maylie ¡X disse o doutor, enquanto se
certificava de que a porta estava mesmo fechada.
¡X Esforce-se para que o pobre sobreviva ¡X disse a senhora.
¡X Acredito que ainda tenhamos momentos dificeis ¡X respondeu-lhe
o doutor ¡X, mas julgo que ele ficara bem; a senhora ja o visitou?
¡X Nao ¡X respondeu a Sra. Maylie.
¡X Ouviu algo acerca dele?
¡X Nada.
¡X Perdoe-me, madame ¡X adiantou-se o Sr. Giles, mas eu pretendia
falar a senhora sobre o gatuno quando o Dr. Losborne apareceu.
A verdade e que o Sr. Giles, orgulhoso com a reputacao de homem
destemido, preferira nao revelar que o perigoso bandido era apenas uma
crianca.
¡X Rosa disse-me que gostaria de ver o homem ¡X continuou a Sra.
Maylie ¡X, mas achei melhor que ela nao o visitasse.
¡X Qual! ¡X exclamou o doutor. ¡X Nao ameaca em nada! Quer a
senhora ve-lo na minha companhia?
¡X Se nao for absolutamente necessario ¡X respondeu a Sra. Maylie ¡X,
prefiro nao ve-lo.
¡X Penso que seja ¡X disse o doutor. ¡X A senhora se arrependera se
nao visita-lo. Ele parece muito sossegado. Venha conosco, Srta. Rosa, e a
minha palavra de honra que nao ha perigo.
Capitulo XXX
Narra o que os visitantes pensaram acerca de Oliver.
Enquanto prometia, loquaz, que as senhoras teriam uma surpresa ao
contemplar o ladrao, o doutor amparou a senhorita com o braco e ofereceu
o outro a Sra. Maylie.
Cheios de gravidade e cerimonia, subiram as escadas.
¡X Vejamos ¡X disse o doutor ¡X a impressao que ele lhes causa; posto
nao ter-se barbeado ultimamente, nao esta de ma aparencia; deixai-me,
antes, ver se pode receber visitas.
Ao dizer isso, o doutor deitou uma rapida olhadela ao redor; quando as
senhoras entraram, encostou a porta e livrou o leito das cortinas.
Em lugar do assustador rufiao que tinham a expectativa de encontrar,
viram uma pobre crianca, vencida pela dor e pelo cansaco, a dormir
profundamente. Envolto em ataduras, o braco ferido jazia sobre o peito.
O outro braco, meio oculto pela cabeleira, servia-lhe de encosto para a
cabeca.
O cavalheiro observou-o por um instante em silencio. Enquanto isso, a
senhorita assentou-se a roda do leito e afastou os cabelos do pequeno.
Quando se inclinou sobre a face de Oliver, deixou rolar uma lagrima que
correu toda a testa da crianca.
Mesmo dormindo, Oliver sorriu, como se aqueles gestos de piedade e
compaixao fossem parte de um sonho cheio de amor e afeto que ele nunca
tivera. O som de uma musica agradavel, o correr de um riacho, o odor de
uma rosa ou uma palavra carinhosa eram para ele coisas estranhas a sua
memoria.
¡X O que e isto? ¡X perguntou a senhora. ¡X Este pequeno nao pode ser
cumplice de ladroes!
¡X Quem dira ¡X respondeu o doutor ¡X que o vicio nao ocupe o interior
de templos cheios de aparente beleza?
OLIVER TWIST
ÇcÇbÇi
¡X Mas em tao pouca idade? ¡X espantou-se Rosa.
¡X Minha jovem ¡X observou o cirurgiao balancando a cabeca com ar
de sabedoria ¡X, o crime nao e oficio apenas de velhos, os mais jovens e
formosos sao tambem vitimas de suas garras.
¡X Cres realmente que um pequeno tao delicado ajuntar-se-ia por
vontade propria a um bando de facinoras? ¡X perguntou Rosa.
O cirurgiao fez que sim com a cabeca e sugeriu que fossem todos para
o aposento ao lado, a fim de nao perturbar o sono do doente.
¡X Mesmo culpado ¡X prosseguiu Rosa ¡X, pode ele gozar de uma
familia amorosa ou do calor de um lar? Nao terao sido as mas companhias
que o levaram a esses costumes? Por piedade, minha tia, pense nisso antes
de entrega-lo ao calabouco!
¡X Acredita, querida ¡X respondeu a senhora, ao amparar as lagrimas
da moca ¡X, que eu seria capaz de tocar em um fio de cabelo dessa pobre
crianca?
¡X Ah! Nao, claro que nao ¡X respondeu Rosa imediatamente.
¡X Como posso livra-lo da prisao? ¡X perguntou a senhora ao doutor.
¡X Deixe-me pensar, respondeu Losborne.
O cavalheiro meteu as maos nas algibeiras do casaco e pos-se a andar
de um lado a outro, mexendo a cabeca e, de tempos em tempos,
exclamando: ¡§Devo fazer isso, nao, nao devo¡¨. Finalmente, depois de muito
matutar, o homem exclamou:
¡X Se me deixares encher o Sr. Giles e aquele tal de Brittles de temor,
acredito que o pequeno se desembarace. O Sr. Giles e um criado antigo,
aceitara uma recompensa por conta de suas habilidades como atirador.
¡X Se for esta a unica maneira de salvar a crianca... ¡X concordou a senhora.
¡X Nao ha outra ¡X respondeu o doutor. ¡X Tenha a minha palavra.
¡X Nao va, com todo esse poder ¡X observou Rosa ¡X ser cruel demais
com o pobre criado.
¡X Parece que a senhorita pensa ¡X replicou o cavalheiro ¡X que e a
unica aqui com modos gentis e coracao generoso; espero que quando for
se enamorar, esteja tao vulneravel quanto hoje e que eu tenha a sorte de
estar proximo para aproveitar de oportunidade tao favoravel.
¡X Es tao desajuizado quanto Brittles ¡X respondeu Rosa, corando-se.
¡X Talvez ¡X assentiu rindo o doutor ¡X, mas vamos tratar do pequeno,
o momento mais delicado esta por vir; ele ainda dormira por uma hora
ou mais. Como eu disse para aquele oficial cabecudo que o menino nao
CHARLES DICKENS
ÇcÇbÇj
pode nem mexer-se, nem falar sem correr riscos, creio que podemos
conversar com ele sem problemas. Se for confirmado que e um perdido
(o que acredito ser quase certo), deixa-lo-emos cuidar de seu proprio
destino.
¡X Ah, isso nao, tia! ¡X exclamou Rosa.
¡X Ah, isso sim, tia! ¡X ecoou o doutor.
¡X Nao e possivel ¡X continuou Rosa ¡X que ja esteja lancado ao vicio.
¡X Muito bem ¡X redarguiu o cavalheiro ¡X, entao nao ha motivo para
recusares a minha proposta.
Acordados, os lados interessados foram se assentar ate que Oliver
despertasse.
A paciencia das duas senhoras foi posta a prova por um tempo maior
do que calculara o doutor, porquanto Oliver dormiu por horas a fio. No
comeco da noite, o cavalheiro contou-lhes que, mesmo fraco por ter perdido
tanto sangue, o pequeno parecia ansioso por falar e nao havia razao para
estender aquela angustia ate a manha seguinte.
A palestra foi longa.
Oliver narrou-lhes, com comovente simplicidade, descansando de
tempos em tempos por causa da dor, todas as mas aventuras por que passara
levado pelas maos de homens ruins e sem piedade. Ah! Como o mundo
seria melhor se pudesse ouvir o testemunho dos que sucumbiram vitimas
de amargas e crueis atrocidades!
Naquela noite, Oliver foi pajeado por maos afetuosas e gentis. Morreria
sem um lamento.
Quando enfim concluiu sua narrativa, quis outra vez descansar. O doutor
enxugou emocionado os olhos e desceu as escadas a procura do Sr. Giles.
Como nao encontrou ninguem na sala de jantar, resolveu dirigir-se a
cozinha para dar inicio a seus planos.
Estavam reunidos em uma pequena saleta as criadas, o Sr. Giles, Brittles,
o caldeireiro (convidado a regalar-se por conta dos seus indispensaveis
auxilios durante o episodio) e o oficial. Este ultimo, alias, carregando
uma imensa bengala, parecia ter tomado uma larga dose de genebra.
Estavam a discutir as peripecias e bravuras da noite anterior. O Sr. Giles
justamente destacava o quanto fora esperto quando entrou o doutor; Brittles,
balancando uma caneca de cerveja, confirmava todas as palavras do chefe.
¡X Assentem-se ¡X disse o doutor, chacoalhando as maos.
OLIVER TWIST
ÇcÇcÇa
¡X Agradecido, cavalheiro ¡X respondeu-lhe Giles. ¡X A senhorita
pediu-me que distribuisse bebida a todos, e, como nao me dispunha a
terminar sozinho a noite, resolvi juntar-me a conversa.
Brittles murmurou em agradecimento e o Sr. Giles, com um majestoso
lance de olhos, deu garantias de que, enquanto soubessem se portar,
poderiam gozar de sua companhia.
¡X Como esta o paciente agora, senhor? ¡X perguntou o Sr. Giles.
¡X Vai indo ¡X respondeu o doutor. ¡X Temo que voce esteja com
problemas, Sr. Giles.
¡X Nao va o senhor me dizer que ele esta a espirar; se isso ocorrer,
jamais voltarei a ser feliz, nem eu nem o sr. Brittles.
¡X Es protestante, Sr. Giles?
¡X Certamente, senhor ¡X respondeu o palido Giles.
¡X E voce, rapaz? ¡X perguntou o doutor asperamente a Brittles.
¡X Por Deus, senhor, sou o mesmo que o Sr. Giles.
¡X Entao diga-me algo ¡X continuou o doutor. ¡X Aquele e o mesmo
pequeno que voces dois encontraram escalando a janela a noite passada?
Vamos la, digam-me!
Sempre bonachao e calmo, o doutor perguntou tal coisa com maneiras
tao rudes que o sr. Giles e Brittles, antes cheios do animo que lhes dera a
cerveja, quedaram imoveis e estupefatos.
¡X Vejam la o que vao me dizer ¡X brandiu o doutor, apontando o dedo
ao oficial, de maneiras a convida-lo a agir. ¡X Esta noite nao terminara
antes que possamos descobrir algo.
Agarrando a bengala, o oficial procurou mostrar-se pensativo.
¡X Dira o senhor que e simples materia de identidade ¡X continuou o
doutor.
¡X Deve ser isso ¡X respondeu o oficial a tossir, engasgando-se com a
genebra que engolira cheio de pressa.
¡X Ha uma casa furtada ¡X disse o doutor ¡X e ha dois homens cheios
de medo que encontram, no meio do fogo cruzado e da morte, um pequeno;
ha, na manha seguinte, uma crianca que vem a porta dessa mesma casa e,
apenas por estar com o braco ferido, e carregada aos trancos por aqueles
dois homens que, desta maneira, colocam a vida desta crianca em grande
perigo, apenas porque o imaginam um gatuno; minha pergunta e: como
ficarao esses dois homens se nao conseguirem se explicar?
O oficial assentiu com a cabeca e declarou que, nao fosse aquela a lei,
nao saberia dizer qual era.
CHARLES DICKENS
ÇcÇcÇb
¡X Entao eu repito ¡X continuou o doutor ¡X, os senhores estao prontos
para identificar o pequeno?
Os olhos indecisos de Brittles e do Sr. Giles se encontraram enquanto
o oficial levava a mao ao ouvido para escutar melhor. As duas criadas e o
caldeireiro inclinaram-se para escutar, e o doutor olhou-os seriamente.
Neste instante, todos ouviram o som de rodas se aproximando do portao.
¡X Sao os guardas ¡X gritou Brittles aliviado.
¡X Quem? ¡X exclamou o doutor.
¡X Sao os guardas que eu e o Sr. Giles mandamos chamar, respondeu
Brittles enquanto acendia uma vela.
¡X O que? ¡X repetiu o doutor.
¡X Sim ¡X disse Brittles ¡X, enviei uma mensagem pelo cocheiro.
¡X O senhor fez isso? Pois que va ao inferno ¡X gritou o doutor, enquanto
saia bufando e lancando imprecacoes.

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