sábado, 19 de fevereiro de 2011

Coração de Tinta - Capítulos 37 a 42

37. Imprudência
— Você acha então que é uma armadilha? — perguntou o conde.
— Sempre acho que tudo é uma armadilha até provarem o contrário — respondeu o príncipe. — Por isso ainda estou vivo.
William Goldman, O noivo da princesa

O ar continuou quente depois que o sol se pôs. Nem mesmo uma brisa soprava na escuridão, e os vaga-lumes dan-çavam sobre a relva seca quando Dedo Empoeirado se pôs mais uma vez a caminho da aldeia de Capricórnio.
Naquela noite, duas sentinelas rondavam o estaciona-mento, e nenhuma delas usava fones de ouvido, por isso De-do Empoeirado resolveu aproximar-se da casa de Capricórnio por um novo caminho. Do outro lado da aldeia, as vielas ha-viam sido gravemente destruídas pelo terremoto que também expulsara os últimos moradores, havia mais de cem anos. O estrago fora tamanho que Capricórnio não tinha se preocu-pado em mandar executar ali nenhuma obra de reconstrução. Essas vielas estavam bloqueadas pelos escombros de paredes desmoronadas, e escalar esses escombros era de fato perigoso. Quase sempre alguma coisa desabava, mesmo depois de tan-tos anos, e os homens de Capricórnio evitavam essa parte da aldeia onde, atrás de portas apodrecidas, ainda se podia ver em algumas mesas a louça suja de habitantes desaparecidos. Não havia holofotes, e mesmo as sentinelas andavam por ali só
muito raramente.
Na viela em que Dedo Empoeirado entrou, as telhas e pedras quebradas amontoavam-se em pilhas mais altas do que seu joelho e escorregavam sob seus passos. Temeroso de que o barulho tivesse chamado a atenção de alguém, ele parou pa-ra escutar os sons da noite, e viu uma sentinela entre as casas em ruínas. Sua boca ficou seca de medo, enquanto ele se a-baixava atrás da parede mais próxima. Ela estava cheia de ni-nhos de andorinhas, um ao lado do outro. A sentinela apro-ximou-se assobiando. Dedo Empoeirado conhecia aquele ca-saco-preto, que já estava com Capricórnio havia anos. Basta o recrutara numa outra aldeia, num outro país. Capricórnio não vivera sempre naquelas colinas. Houve outros lugares, outras aldeias isoladas como aquela, uma vez até mesmo um castelo. Mas sempre chegava o dia em que se rompia a rede de medo que Capricórnio sabia tecer tão bem, e a polícia ficava alerta. Em algum momento isso aconteceria ali também.
A sentinela parou e acendeu um cigarro. A fumaça en-trou no nariz de Dedo Empoeirado. Ele virou a cabeça e viu um gato, um bichano magro e branco sentado entre as pedras. Como que petrificado, ele o encarava com seus olhos verdes. “Psiu!”, Dedo Empoeirado teve vontade de sussurrar. “Por acaso eu pareço perigoso? Não, mas aquele ali do outro lado vai atirar em você, e depois vai ser a minha vez.” Os olhos verdes continuavam a fitá-lo. O rabo branco começou a osci-lar para lá e para cá. Dedo Empoeirado olhou para suas botas cheias de pó, para um pedaço de ferro escondido entre as pe-dras, não só para o gato. Animais não gostam que olhem em seus olhos. Gwin arreganhava seus dentes afiados sempre que ele fazia isso.
A sentinela começou a assobiar novamente, o cigarro entre os lábios. Então, finalmente, quando Dedo Empoeirado já estava pensando que teria de ficar o resto da vida agachado atrás de uma parede em ruínas, o casaco-preto deu meia-volta e começou a andar. Dedo Empoeirado não ousou se mexer
até que os passos tivessem silenciado. Quando ele se ergueu com as pernas duras, o gato saltou dali com um rosnado, e ele ficou por um bom tempo entre as casas mortas esperando que seu coração voltasse a bater devagar.
Dedo Empoeirado não encontrou mais sentinelas até pular o muro da casa de Capricórnio. O cheiro de tomilho penetrou em seu nariz, forte como se espalhava apenas du-rante o dia. Tudo parecia perfumado naquela noite quente, até mesmo os tomateiros e os pés de alface. No canteiro perto da casa, cresciam as plantas venenosas. A gralha as cultivava pessoalmente. Alguns casos de morte na aldeia haviam chei-rado a espirradeira e a meimendro negro.
A janela do quarto em que Resa dormia estava aberta, como sempre. Quando Dedo Empoeirado imitou o rosnado raivoso de Gwin, uma mão acenou para ele da janela e desa-pareceu depressa novamente. Ele se encostou na porta grade-ada e ficou esperando. O céu estava salpicado de estrelas, quase não parecia haver lugar para a noite. “Ela deve ter des-coberto alguma coisa”, ele pensou. “Mas e se ela me contar que Capricórnio trancou o livro no seu cofre?”
A porta atrás das grades se abriu. Ela sempre rangia, como que se queixando da perturbação noturna. Dedo Em-poeirado virou-se e viu um rosto estranho. Era uma garota de quinze, talvez dezesseis anos. As maçãs do seu rosto ainda eram rechonchudas como as de uma criança.
— Onde está Resa? — Dedo Empoeirado agarrou as barras de metal. — O que aconteceu com ela?
A garota parecia paralisada de medo. Olhava para as cicatrizes de Dedo Empoeirado como se nunca tivesse visto um rosto marcado antes.
— Ela pediu a você que viesse? — Dedo Empoeirado sentiu vontade de enfiar as mãos pela grade para sacudir a-quela pateta. — Diga logo, eu não tenho a noite toda.
Ele não podia ter pedido a Resa que o ajudasse. Devia ter procurado por conta própria. Como tinha sido capaz de
colocá-la em perigo?
— Eles a prenderam? Fale de uma vez!
A garota olhou por cima dos ombros dele e deu um passo para trás. Dedo Empoeirado virou-se para ver o que ela tinha visto... e deu de cara com Basta.
Onde é que haviam estado seus ouvidos? Basta era fa-moso por seus passos silenciosos, mas Nariz Chato, que esta-va ao lado dele, não era nenhum mestre em se aproximar fur-tivamente. E Basta tinha mais companhia: Mortola estava ao seu lado. Portanto, na noite anterior ela não pusera a cabeça para fora da janela apenas para tomar ar fresco. Ou será que Resa o havia traído? Pensar nisso lhe doía.
— Realmente não achei que você tivesse coragem de voltar aqui! — rosnou Basta enquanto o empurrava contra a grade com a mão aberta.
Dedo Empoeirado sentiu as barras pressionarem suas costas.
Nariz Chato sorria de orelha a orelha, como uma cri-ança na noite de Natal. Ele sempre sorria dessa maneira quando conseguia meter medo em alguém.
— O que você quer com a nossa bela Resa?
Basta abriu a navalha, e o sorriso de Nariz Chato ficou ainda mais largo quando ele viu as gotas de suor que o medo provocava no rosto de Dedo Empoeirado.
— Bem, é o que eu sempre digo — continuou Basta enquanto dirigia lentamente a ponta da faca para o peito de Dedo Empoeirado. — O devorador de fogo é apaixonado por Resa, ele a engoliria com os olhos se pudesse, mas ninguém quer acreditar em mim. Mesmo assim, para se atrever a vir aqui, sendo um medroso renomado como é...
— É que ele está apaixonado — disse Nariz Chato rindo. Mas Basta sacudiu a cabeça.
— Não, Dedo Podre não viria aqui por amor, ele tem um coração duro demais para isso. Foi por causa do livro, não é? Você ainda tem saudade das fadas de asinhas e dos duendes
fedorentos.
Basta passou a navalha quase com carinho no pescoço de Dedo Empoeirado, que esqueceu como se respirava. Ele simplesmente não se lembrava.
— Volte para o seu quarto! — a gralha ralhou com a garota atrás dele. — O que você ainda está fazendo aí?
Dedo Empoeirado ouviu o rumorejar de um vestido, e então a porta atrás dele se trancou.
A faca de Basta ainda estava em seu pescoço, mas, quando ele ia fazer a ponta subir mais um pouco, a gralha se-gurou o braço dele.
— Agora chega! — ela disse rudemente. — Acabou a brincadeira, Basta.
— Isso mesmo, o chefe disse que queria ele inteiro! — podia-se perceber na voz de Nariz Chato como ele desgostava dessa ordem.
Basta passou mais uma vez a navalha pelo pescoço de Dedo Empoeirado. Então fechou-a com um movimento brusco.
— É realmente uma pena! — disse Basta.
Dedo Empoeirado sentiu o bafo de Basta em sua pele. Tinha cheiro de menta, fresca e forte. Parece que uma garota que ele queria beijar lhe dissera que ele tinha mau hálito. Não era o que a garota pretendia, mas desde então Basta mascava folhas de menta de manhã à noite.
— Com você a gente sempre pode brincar, Dedo Em-poeirado — ele disse enquanto recuava, com a navalha fecha-da ainda na mão.
— Leve-o para a igreja! — ordenou Mortola. — Vou informar Capricórnio.
— Sabia que o chefe está furioso com a sua amiguinha muda? — Nariz Chato sussurrou para Dedo Empoeirado, enquanto o escoltava junto com Basta. — Ela sempre foi uma espécie de favorita.
Por um breve instante, Dedo Empoeirado sentiu-se quase bem.
Resa não o traíra.
Assim mesmo, ele não devia ter pedido a ajuda dela. Nunca.

38. Palavras sussurradas

Ela gostava das lágrimas dele, e estendia seus belos dedos fazendo-as rolar por eles. Sua voz era tão baixa que no começo ele não conseguia entender o que ela dizia. Então ele entendeu. Ela disse que pensava que poderia sarar se as crian-ças acreditassem em fadas.
James M. Barrie, Peter Pan

Meggie tentou mesmo.
Assim que escureceu, ela começou a martelar com os punhos na porta. Fenoglio acordou sobressaltado, mas antes que ele pudesse detê-la Meggie já havia gritado para o vigia do outro lado da porta que precisava ir ao banheiro. O homem que substituíra Nariz Chato era um sujeito de pernas curtas com orelhas de abano, que espantava o tédio matando mari-posas perdidas pela casa com um jornal. Já havia mais de uma dúzia grudada na parede branca quando ele deixou Meggie sair do quarto.
— Eu também preciso ir! — exclamou Fenoglio, cer-tamente com a pretensão de demover Meggie de seu propósi-to, mas o vigia fechou a porta na cara dele.
— Um de cada vez — ele grunhiu para o velho escri-tor. — E, se não conseguir segurar, pode fazer pela janela.
Ele pegou o jornal quando levou Meggie até o banhei-ro. No caminho, matou mais três mariposas e uma borboleta que revoava agitada entre as paredes nuas. Finalmente ele a-
briu uma porta, a última antes da escada que levava para bai-xo. “Só alguns passos!”, pensou Meggie. Com certeza, ela seria mais rápida do que ele para pular os degraus.
— Por favor, Meggie, você tem que esquecer essa idéia de fugir! — repetira Fenoglio várias vezes em seu ouvido. — Você vai se perder. Lá fora são quilômetros e quilômetros sem um só povoado! O seu pai a colocaria de castigo se soubesse o que você pretende fazer.
“Ele não faria isso”, pensou Meggie. Porém quando ela estava naquele cubículo, onde não havia nada além de um va-so sanitário e um balde, ela quase perdeu a coragem. Estava tão escuro lá fora, terrivelmente escuro. E era um longo ca-minho até a porta de entrada da casa de Capricórnio.
— Eu preciso tentar! — ela sussurrou antes de abrir a porta. — Eu preciso!
O vigia apanhou-a já no quinto degrau. Ele a carregou de volta como um saco.
— Da próxima vez, vou levá-la para o chefe — ele dis-se enquanto a empurrava de volta para dentro do quarto. — Ele deve conhecer um bom castigo para você.
Meggie chorou baixinho por quase meia hora, e Feno-glio ficou sentado ao lado dela, olhando para a frente com uma expressão infeliz.
— Já está tudo bem — ele murmurava de vez em quando, mas não estava nada bem, absolutamente nada.
— Nem ao menos temos uma lâmpada! — ela disse entre soluços em algum momento. — E eles também levaram os meus livros.
Então Fenoglio enfiou a mão debaixo de seu travessei-ro e pôs uma lanterna no colo dela.
— Achei debaixo do meu colchão — ele sussurrou. — Junto com alguns livros. Tenho a impressão de que alguém os escondeu ali.
Darius, o leitor. Meggie ainda se lembrava bem de co-mo aquele homenzinho magro havia entrado afoito na igreja
de Capricórnio. A lanterna devia pertencer a ele. Quanto tempo Capricórnio o teria mantido preso naquele quartinho frio?
— No armário também havia um cobertor, eu o deixei na cama de cima para você — sussurrou Fenoglio. — Não consigo subir. Quando tentei, a cama sacudiu como um barco em alto-mar.
— Tudo bem, prefiro ficar em cima mesmo.
Meggie enxugou o rosto com a manga. Ela não estava mais com vontade de chorar. Não adiantava nada mesmo.
Em cima do colchão, junto com o cobertor, Fenoglio deixara alguns livros de Darius para ela. Cuidadosamente, Meggie colocou-os lado a lado. Eram quase todos livros para adultos: um romance policial que parecia lido e relido diversas vezes, um livro sobre serpentes, um sobre Alexandre, o Grande, e a Odisséia. Um livro de contos de fadas e Peter Pan eram os únicos livros infantis — e Peter Pan ela já lera pelo menos meia dúzia de vezes.
Lá fora o vigia continuava a investir com o jornal e, debaixo dela, Fenoglio mexia-se inquieto na cama estreita. Meggie sabia que não conseguiria dormir. Nem ao menos pre-cisava tentar. Ela olhou mais uma vez para os livros desco-nhecidos. Um monte de portas fechadas. Por qual ela deveria entrar? Atrás de qual delas ela se esqueceria de tudo, de Basta e Capricórnio, de Coração de tinta, de si mesma, de tudo mes-mo? Ela pôs de lado o romance policial, depois o livro sobre Alexandre, o Grande, hesitou um pouco e pegou a Odisséia. O pequeno volume parecia ter sido lido muitas vezes. Darius devia gostar muito dele. Ele até mesmo sublinhara algumas linhas, uma delas com tanta força que o lápis quase rasgara o papel: “Mas os amigos não o salvaram, por mais que ele o desejasse com fervor”. Meggie continuou a folhear indecisa as páginas gastas, mas então fechou o livro e o pôs de lado também. Não. Co-nhecia aquela história o bastante para saber que tinha quase tanto medo daqueles heróis quanto dos homens de Capricór-
nio. Ela enxugou uma lágrima que ainda restara em sua bo-checha, e passou a mão em cima dos outros livros. Contos de fadas. Não gostava particularmente de contos de fadas, mas o livro era muito bonito. Suas páginas crepitaram quando Meg-gie começou a folheá-las. Eram finas como papel de seda, co-bertas por letras miúdas. Havia figuras magníficas de anões e fadas, e as histórias contavam sobre criaturas poderosas, gi-gantescas, com forças colossais, até mesmo imortais, mas to-das pérfidas: os gigantes devoravam gente, os anões eram ga-nanciosos, e as fadas eram rancorosas e vingativas. Não. Meg-gie dirigiu o foco da lanterna para o último livro. Peter Pan.
Ali a fada também não era lá muito simpática, mas o mundo que a esperava entre as duas capas lhe era familiar. Talvez fosse exatamente o adequado para uma noite tão escu-ra. Lá fora uma coruja piou, de resto a aldeia de Capricórnio estava em silêncio. Fenoglio murmurou algo durante o sono e começou a roncar. Meggie enfiou-se debaixo do cobertor ás-pero, tirou da mochila o pulôver de Mo e usou-o como tra-vesseiro.
— Por favor! — ela sussurrou enquanto abria o livro. — Por favor, leve-me para longe daqui, apenas por uma ou duas horas, mas por favor leve-me para longe, muito longe.
No corredor, o vigia resmungou alguma coisa com seus botões. Provavelmente estava entediado. O assoalho rangia sob seus passos enquanto ele andava para lá e para cá, para lá e para cá, sem parar, na frente da porta trancada.
— Para longe! — sussurrou Meggie. — Leve-me para longe! Por favor!
Ela passou o dedo pelas linhas no papel áspero como areia, enquanto seus olhos seguiam as letras que a levavam para um outro lugar, mais frio, num outro tempo, numa casa sem portas trancadas ou homens vestidos de preto. “Mal a fada entrara, a janela se abriu’, sussurrou Meggie. Ela podia ou-vi-la ranger. “As estrelinhas desapareceram e Peter caiu no chão. Ele havia carregado Sininho por uma parte do caminho, e suas mãos ainda
estavam cheias de pó de pirlimpimpim.” “Fadas”, pensou Meggie, “entendo que Dedo Empoeirado sinta falta delas.” Mas agora esse era um pensamento proibido. Ela não queria pensar em Dedo Empoeirado, apenas na fada Sininho, em Peter Pan e em Wendy, que estava dormindo e não fazia idéia que o es-tranho garoto, vestido com folhas e teias de aranha, havia en-trado voando em seu quarto. “— Sininho — ele chamou baixinho depois de se assegurar que as crianças dormiam. — Sininho, onde você está? — Sininho havia entrado numa jarra e estava adorando, ela nunca estivera dentro de uma jarra antes.” Sininho. Meggie sussurrou o nome duas vezes, sempre gostara de pronunciá-lo, com o sussurro do s e a agradável sonoridade do diminutivo. “— Venha logo, venha aqui e me diga se você sabe onde eles puseram a mi-nha sombra. — Um adorável tilintar, como se saído de um sino doura-do, foi a resposta. Essa é a linguagem das fadas. Vocês, crianças nor-mais, não podem ouvi-la, mas se pudessem saberiam que a conhecem de longa data.” “Se eu pudesse voar como a fada Sininho”, pensou Meggie, “então eu poderia simplesmente subir ali no peitoril da janela e sair voando. Não teria que me preocupar com as cobras e encontraria Mo antes que ele chegasse aqui. Ele deve ter se perdido no caminho. Sim. Isso mesmo. Mas e se acon-teceu alguma coisa com ele...” Meggie sacudiu a cabeça, como se dessa maneira pudesse espantar os pensamentos que co-meçavam a voltar sorrateiramente. “Sininho disse que a sombra de Peter Pan se encontrava no grande baú” — Meggie sussurrou. — “Ela se referia à cômoda, e Peter pulou até lá, abriu as gavetas e, com as duas mãos, esparramou seu conteúdo no...”
Meggie parou. Havia uma claridade no quarto. Ela des-ligou a lanterna, mas a luz continuava lá... “mil vezes mais clara do que as lamparinas”.
— “E se ela ficasse quieta por um segundo” — Meggie sus-surrou — “você veria:era uma...”
Ela não pronunciou a palavra, apenas seguiu com os olhos a luz que oscilava para lá e para cá, agitada, mais rápida do que um vaga-lume e muito maior.
— Fenoglio!
O vigia no corredor não dera mais sinal de vida. Talvez ele tivesse pegado no sono. Meggie debruçou-se para fora da cama, até alcançar os ombros de Fenoglio com os dedos.
— Fenoglio, veja!
Ela o sacudiu até ele finalmente abrir os olhos. E se ela voasse pela janela?
Meggie desceu da cama. Fechou a janela tão depressa, que quase prensou nela uma das asas brilhantes. Assustada, a fada chispou dali. Meggie ouviu um zunido que soou como um xingamento.
Fenoglio olhou com sono para a criatura cintilante.
— O que é isso? — ele perguntou com a voz rouca. — Um vaga-lume mutante?
Meggie voltou para a cama sem tirar os olhos da fada. Ela voava cada vez mais depressa pelo quarto estreito, como uma borboleta extraviada, subia até o teto, voltava para a por-ta, ia de novo até a janela. Sempre voltava para a janela. Meg-gie pôs o livro no colo de Fenoglio.
— Peter Pan.
Ele olhou para o livro, depois para a fada, depois de novo para o livro.
— Foi sem querer! — sussurrou Meggie. — Verdade.
A fada voou mais uma vez para a janela, inquieta.
— Não! — Meggie foi até ela. — Você não pode sair! Você não entende.
Era uma fada. Não era maior do que a sua mão, mas ainda não terminara de crescer. Era uma menina, que se chamava Sininho, e estava vestida elegantemente com uma folha plissada.
— Está vindo alguém! — Fenoglio ergueu-se tão de-pressa que bateu a cabeça na cama de cima. Ele tinha razão. Lá fora no corredor, passos se aproximavam, passos rápidos e decididos. Meggie recuou em direção à janela. O que seria a-quilo? Era de madrugada. “Mo chegou!”, ela pensou. “Ele está aqui.” E seu coração pulou de alegria, embora ela não quisesse
se alegrar.
— Esconda-a! — sussurrou Fenoglio. — Depressa, esconda-a! Meggie olhou para ele confusa. “É claro! A fada.” Eles não podiam descobri-la. Meggie tentou pegá-la, mas ela escapou de seus dedos e voou para o teto. Ali ela ficou, como uma lâmpada de vidro invisível. Os passos agora estavam muito próximos.
— É isso que você chama de montar guarda? — era a voz de Basta. Meggie ouviu um gemido abafado, provavel-mente ele acordara o guarda com um chute. — Vamos, abra, não tenho todo o tempo do mundo.
Alguém enfiou a chave na fechadura.
— Não é esta a chave, seu preguiçoso idiota! Capricór-nio está esperando a menina, e eu direi a ele por que teve que esperar tanto.
Meggie subiu em sua cama, que chacoalhou perigosa-mente quando ela ficou de pé.
— Sininho! — ela sussurrou. — Por favor! Venha aqui!
Mas, mesmo que Meggie estendesse a mão com todo o cuidado, a fada voou de volta para a janela. E Basta abriu a porta.
— Ei, de onde é que ela veio? — ele perguntou, pa-rando na porta aberta. — Fazia muitos anos que eu não via uma dessas criaturas com asas.
Meggie e Fenoglio ficaram calados. E o que deveriam dizer?
— Não pensem que vão se safar desta!
Basta tirou seu paletó, segurou-o com a mão esquerda e foi andando devagar em direção à janela.
— Fique na porta para o caso de ela escapar! — ele or-denou ao guarda. — Se a deixar passar, eu corto as suas ore-lhas.
— Deixe-a! — disse Meggie.
Ela desceu depressa da cama, mas Basta foi mais rápi-do. Jogou o paletó no ar, e a luz de Sininho se apagou como
uma vela assoprada. Sob o tecido preto, ainda se viu um brilho suave quando o casaco caiu no chão. Basta recolheu-o com cuidado, fechou-o como um saco e parou com ele diante de Meggie.
— Vamos lá, meu amor, desembuche! — ele ordenou com voz calma. — De onde veio a fada?
— Eu não sei! — exclamou Meggie sem olhar para ele. — Ela... apareceu de repente.
Basta olhou para o vigia.
— Você já viu uma fada ou coisa parecida aqui na re-gião? — ele perguntou.
O vigia ergueu o jornal, onde ainda estavam grudadas algumas asas de mariposas, e com um sorriso largo bateu-o contra o batente da porta.
— Não, mas se visse saberia o que fazer com ela! — ele disse.
— É, essas criaturinhas são incômodas como perni-longos. Mas dizem que dão sorte.
Basta virou-se para Meggie novamente.
— Portanto, desembuche de uma vez! Como ela veio parar aqui? Não vou perguntar de novo.
Meggie não conseguiu evitar, seus olhos voltaram-se para o livro que Fenoglio deixara cair. Basta seguiu o olhar dela e apanhou o livro.
— Ora, vejam só — ele murmurou enquanto examina-va a ilustração da capa.
O ilustrador retratara Sininho muito bem. Na realidade ela era um pouco mais pálida do que na figura, e também um pouquinho menor, mas Basta naturalmente a reconheceu a-pesar disso. Ele soltou um assobio e depois segurou o livro bem perto do rosto de Meggie.
— Não vai querer me dizer que foi o velho! — ele dis-se. — Foi você. Aposto a minha navalha. Foi o seu pai que a ensinou a ler assim ou você herdou isso dele? Bem, tanto faz.
Ele enfiou o livro no cós da calça e puxou Meggie pelo
braço.
— Venha, vamos contar isso para Capricórnio. Na verdade, eu deveria levá-la apenas para que você se reencontre com um velho conhecido seu, mas com certeza Capricórnio não terá nada contra uma novidade tão interessante.
— O meu pai chegou? — Meggie deixou-se levar sem resistir. Basta sacudiu a cabeça e olhou para ela com ar de de-boche.
— Não, ele ainda não deu as caras! — disse. — Pelo jeito, ele preza mais a própria pele do que a sua. Se eu fosse você, ficaria muito zangada com ele.
Meggie sentiu duas coisas ao mesmo tempo: decepção aguda e também alívio.
— Confesso que também estou bastante decepcionado com ele — prosseguiu Basta. — Afinal de contas, apostei a minha cabeça que ele viria, mas agora não precisamos mais dele, não é mesmo?
Ele sacudiu o paletó, e Meggie acreditou ter ouvido, bem baixinho, um tilintar desesperado.
— Tranque o velho de novo! — ordenou Basta para o vigia. — E ai de você se estiver cochilando outra vez quando eu voltar.
Então ele arrastou Meggie pelo corredor.

39. Punição para os traidores

— E você? — perguntou Lobosh. — Você, Krabat, não tem medo?
— Mais do que você pode imaginar — disse Krabat.
— E não apenas por mim.
Otfried Preussler, Krabat

A própria sombra de Meggie seguiu-a como um espírito mau quando ela atravessou com Basta a praça na frente da igreja. A luz ofuscante dos holofotes fazia a lua parecer um lampião obsoleto.
Já dentro da igreja não estava tão claro. A estátua de Capricórnio olhava empalidecida do alto da escuridão, meio engolida pelas sombras, e entre as colunas estava tudo tão ne-gro que parecia que a noite se refugiara ali da luz dos holofo-tes. Apenas sobre Capricórnio pendia uma lâmpada solitária. Ele parecia entediado, sentado na poltrona com seu roupão de seda, brilhante como as penas de um pavão. Também dessa vez a gralha estava atrás dele, na luz escassa ela não era mais do que um rosto pálido em cima de um vestido preto. Num dos tonéis ao pé da escada, ardia um fogo. A fumaça queima-va os olhos de Meggie, e a luz bruxuleante que vinha do tonel dançava pelas paredes e colunas, como se toda a igreja esti-vesse em chamas.
— Ponha o trapo diante da janela dos filhos dele, como última advertência! — a voz de Capricórnio ecoou até Meggie,
embora ele não tivesse falado alto. Então ele ordenou a Coc-kerell, que estava ao pé da escada junto com dois outros ho-mens: — Embeba em gasolina até pingar. Quando o cheiro penetrar no nariz desse cabeça-dura logo de manhã, ele final-mente vai entender que a minha paciência tem limite.
Cockerell acatou a ordem inclinando ligeiramente a ca-beça, depois girou nos calcanhares e fez um sinal para os ou-tros dois o seguirem. Seus rostos estavam enegrecidos com fuligem, e os três levavam uma pena de galinha na lapela.
— Ah, a filha de Língua Encantada! — grunhiu Coc-kerell em tom de zombaria, quando passou por Meggie com seu passo manco. — Ora, ora, o papai ainda não veio bus-cá-la? Parece que ele não está com muita saudade.
Os outros dois riram, e Meggie não pôde evitar que o sangue lhe subisse à face.
— Finalmente! — exclamou Capricórnio quando Basta parou com ela diante da escada. — Por que demorou tanto?
No rosto da gralha, desenhou-se um sorriso furtivo. Ela ergueu ligeiramente o lábio inferior, o que dava ao seu rosto magro a expressão de grande satisfação. Essa satisfação inqui-etava Meggie muito mais do que a cara fechada que normal-mente se via na mãe de Capricórnio.
— O vigia não acertava a chave! — retrucou Basta, ir-ritado. — E depois eu tive que pegar isto aqui.
A fada começou a se mexer novamente, quando ele er-gueu o paletó, formando uma barriga no tecido com suas ten-tativas desesperadas de se libertar.
— Mas o que é isso? — a voz de Capricórnio soou impaciente. — Agora você deu para caçar morcegos?
Basta apertou os lábios contrariado, mas guardou a resposta e pôs a mão embaixo do tecido preto sem dizer uma palavra. Ele xingou em voz baixa quando tirou a fada dali.
— Essas criaturinhas infernais! — ele esbravejou. — Eu tinha me esquecido de como elas mordem!
Sininho batia desesperadamente uma asa, a outra estava
presa entre os dedos de Basta. Meggie não conseguiu olhar. Estava envergonhada por ter tirado a frágil fadinha de seu li-vro. Muito envergonhada.
Capricórnio examinou a fada com cara de nojo.
— De onde ela veio afinal? E que espécie é essa? Eu nunca vi uma com asas desse tipo.
Basta tirou Peter Pan da cintura e pôs o livro nos de-graus.
— Acho que ela veio daqui — ele disse. — Veja a fi-gura na capa, e dentro também tem retratos dela. E agora adi-vinha quem a tirou daí?
Ele apertou Sininho tão firme que ela começou a ofegar sem voz, e então pôs a outra mão no ombro de Meggie. Ela tentou se livrar dos dedos de Basta, mas ele apertou mais forte ainda.
— A menina? — a voz de Capricórnio soou incrédula.
— Sim, parece que ela é tão boa nisso quanto o seu pai. Veja só a fada! — Basta segurou Sininho pelas pernas fininhas e a ergueu. — Ela está totalmente em ordem, não acha? Con-segue voar, tilintar e xingar, ou seja, tudo o que essas criaturas idiotas fazem.
— Interessante. Aliás, interessantíssimo.
Capricórnio levantou-se da poltrona, apertou o cinto do roupão e começou a descer. Ele parou ao lado do livro que Basta deixara nos degraus.
— Então é de família! — ele murmurou, enquanto se curvava e recolhia o livro. Com o cenho franzido, ele exami-nou a capa. — Peter Pan. Mas este é um dos livros que o meu antigo leitor apreciava muito. Sim, eu me lembro, ele já leu para mim. Ele ia extrair um daqueles piratas, mas foi um fias-co completo. Ele me trouxe peixes fedidos e um gancho en-ferrujado. Não foi dessa vez que ele teve que comer os peixes de castigo?
Basta deu uma gargalhada.
— Foi, mas ele não reclamou tanto quanto no dia em
que você mandou tirar os livros dele. Ele deve ter escondido este aqui.
— Sim, deve ter sido isso — disse Capricórnio, e foi andando até Meggie com um ar pensativo.
Ela sentiu vontade de morder os dedos dele quando ele pôs a mão em seu queixo e virou o rosto dela para que olhasse diretamente em seus olhos pálidos.
— Está vendo como ela olha para mim, Basta? — ele observou em tom de zombaria. — O mesmo olhar teimoso do pai. É melhor guardar esse olhar para ele, menina. Você deve estar muito zangada com seu pai, não é? Bem, a partir de agora não preciso mais me interessar pelo paradeiro dele. De hoje em diante você será a minha nova, a minha talentosíssima leitora. Mas você... você deve odiá-lo por tê-la abandonado, não é? Não se envergonhe disso. O ódio pode ser edificante. Eu também nunca gostei do meu pai.
Meggie virou a cabeça para o lado quando Capricórnio finalmente soltou seu queixo. Seu rosto ardia de raiva e de vergonha, e ela ainda sentia os dedos dele na pele, como se tivessem deixado manchas.
— Basta lhe contou por que outra razão teve que tra-zê-la aqui a esta hora da noite?
— Para encontrar alguém.
Meggie tentou falar com voz firme e sem medo, mas não conseguiu. O choro que estava preso em sua garganta e-xalou apenas um sussurro.
— Certo!
Capricórnio fez um sinal para a gralha, que acatou com um aceno de cabeça. Então ela desceu a escada e desapareceu no breu atrás das colunas. Pouco depois, Meggie ouviu um rangido sobre a cabeça e, quando olhou para o teto assustada, viu alguma coisa descendo da escuridão: uma rede, não, eram duas redes, como as que ela já vira nos barcos de pesca. Elas pararam a cerca de cinco metros do chão e ficaram ali sus-pensas, bem em cima da cabeça de Meggie. Só então ela per-
cebeu que havia pessoas dentro da malha grosseira, como pássaros enroscados na rede de proteção de uma árvore frutí-fera. Meggie teve vertigens de olhar para o alto e imaginar a sensação de estar lá em cima suspensa apenas por algumas cordas.
— E então, não está reconhecendo o seu velho amigo? — Capricórnio pôs as mãos no bolso do roupão.
Sininho ainda estava presa nos dedos de Basta como uma boneca quebrada. Seu tilintar hesitante era o único ruído que se ouvia.
— Está, sim! — a satisfação na voz de Capricórnio era evidente. — É isso que acontece com traidores sujos que roubam chaves e libertam prisioneiros.
Meggie não se dignou a olhar para ele. Ela só tinha o-lhos para Dedo Empoeirado. Sim, claro. Era Dedo Empoei-rado.
— Olá, Meggie — ele exclamou. — Você parece páli-da.
Ele realmente se esforçava para soar despreocupado, mas Meggie ouviu o medo em sua voz. De vozes ela entendia.
— Seu pai mandou um grande abraço para você! Ele me pediu que lhe dissesse que logo virá buscá-la. E que não virá sozinho.
— Você vai virar um verdadeiro contador de histórias se continuar assim, devorador de fogo! — Basta exclamou para o alto. — Mas nem mesmo a menina acredita nas suas histórias. Você deveria pensar em algo melhor!
Meggie ficou olhando para Dedo Empoeirado. Ela gostaria tanto de acreditar nele.
— Ei, Basta, solte de uma vez essa pobre fada! — De-do Empoeirado gritou para seu velho inimigo. — Mande-a aqui para cima, faz muito tempo que não vejo uma.
— Bem que você gostaria. Mas não, ficarei com esta para mim! — respondeu Basta, e cutucou o minúsculo nariz de Sininho com a ponta do dedo. — Ouvi falar que as fadas
afastam o azar se a gente as deixar no quarto. Talvez eu a guarde num desses garrafões de vinho. Você, que foi sempre um grande amigo das fadas, deve saber o que elas comem. Devo alimentá-las com moscas?
Sininho deu uma cotovelada no dedo de Basta e tentou desesperadamente libertar sua segunda asa. Ela conseguiu, mas Basta continuou segurando firme suas pernas e, por mais que ela batesse as asas, não conseguiu soltar-se dele, até que finalmente desistiu com um tilintar quase sumido. Seu brilho estava fraco como o de uma vela no final do pavio.
— Sabe por que mandei trazer a menina, Dedo Empo-eirado? — exclamou Capricórnio para o seu prisioneiro. — Para que ela convencesse você a nos contar alguma coisa so-bre o pai dela e o paradeiro dele. Caso você realmente saiba, e já estou começando a duvidar disso. Mas agora não preciso mais dessa informação. A filha assumirá o lugar do pai, e isso bem na hora certa! Sim, pois decidi que temos que pensar em algo muito especial para punir você! Algo impressionante, i-nesquecível! Afinal, é o que um traidor merece, não é? Já faz uma idéia de onde quero chegar? Não? Vou dar uma dica. Em sua homenagem, a minha nova leitora lerá algo de Coração de tinta para nós. Afinal de contas, é o seu livro favorito, ainda que talvez você não goste do ser que ela vai trazer para o lado de cá. O pai dela já deveria ter trazido esse meu amigo há muito tempo, se você não o tivesse ajudado a fugir. Mas agora quem vai fazer isso é a filha. Você consegue imaginar de que amigo estou falando?
Dedo Empoeirado encostou na rede o rosto marcado por cicatrizes.
— Oh, sim, consigo, sim. Nunca me esqueceria dele — Dedo Empoeirado disse com voz tão baixa que Meggie teve que fazer um esforço para entender.
— Por que é que vocês estão falando só da punição do cuspidor de fogo? — A gralha reaparecera entre as colunas. — Vocês se esqueceram da nossa pombinha muda? A traição
dela foi no mínimo tão ruim quanto a dele.
Ela lançou um olhar cheio de desprezo para a segunda rede.
— Sim, sim, é claro! — a voz de Capricórnio soou quase como um lamento. — Um grande desperdício, mas não podemos fazer nada.
Meggie não conseguiu distinguir o rosto da mulher que estava suspensa no alto, numa segunda rede, atrás de Dedo Empoeirado. Viu apenas os cabelos loiros escuros, o tecido de um vestido azul e as mãos pequenas segurando as cordas.
Capricórnio deu um suspiro profundo.
— Ah, é mesmo vergonhoso! — ele disse, voltando-se para Dedo Empoeirado. — Você tinha que escolher justa-mente essa? Não podia convencer uma outra qualquer a bis-bilhotar por aí para você? Eu realmente tenho uma queda por ela, desde que Darius, aquele incompetente, a tirou do livro para mim. Nunca me incomodei por ela ter perdido a voz no caminho. Não, não mesmo, e ingenuamente pensei que por causa disso poderia confiar mais nela. Sabia que antes os ca-belos dela eram como fios de ouro?
— Sim, eu me lembro — respondeu Dedo Empoeira-do com voz rouca. — Mas na sua presença eles escureceram.
— Que absurdo! — Capricórnio franziu o cenho, irri-tado. — Talvez devêssemos fazer uma tentativa com pó de fada. Espalhando um pouco de pó por cima, até mesmo o la-tão fica parecendo ouro. Quem sabe também funcione com cabelos de mulher.
— Já não vale mais a pena! — disse a gralha com es-cárnio. — A não ser que você queira que ela fique bonita para ser executada.
— Bom, tanto faz — Capricórnio virou-se bruscamen-te e voltou para a escada.
Meggie mal reparou. Estava olhando para a desconhe-cida. As palavras de Capricórnio ardiam como febre na sua testa: cabelos como fios de ouro... o leitor incompetente...
Não, não podia ser. Ela olhou para cima, apertou os olhos para distinguir melhor o rosto atrás das cordas, mas as som-bras que o escondiam eram escuras demais.
— Muito bem. — Capricórnio sentou-se em sua pol-trona com mais um suspiro profundo. — De quanto tempo precisaremos para os preparativos? Afinal de contas, tudo tem que acontecer como manda o figurino.
— Dois dias. — A gralha subiu os degraus e ocupou novamente o lugar atrás dele. — Caso você queira convidar também os homens das outras bases.
Capricórnio franziu a testa.
— Sim, por que não? Já está em tempo de instituir um novo exemplo. Nos últimos tempos, a disciplina tem deixado muito a desejar.
Ele disse essas palavras olhando para Basta, que abai-xou a cabeça, como se todas as falhas dos últimos dias pesas-sem como chumbo em suas costas.
— Então depois de amanhã — prosseguiu Capricórnio. — Assim que escurecer. Antes disso, Darius deve fazer mais um teste com a menina. Faça-a ler uma coisa qualquer, eu a-penas quero ter certeza de que a aparição da fada não foi um acaso.
Basta havia embrulhado Sininho em seu casaco nova-mente. Meggie sentiu vontade de tapar os ouvidos para não ouvir o tilintar desesperado da fada. Apertou os lábios para que eles parassem de tremer, e olhou para Capricórnio.
— Só que eu não vou ler para você! — ela disse. Sua voz ecoou na igreja como a voz de uma pessoa estranha. — Nem uma única palavra! Não vou trazer ouro para você e muito menos um... carrasco!
Ela cuspiu essas palavras no rosto de Capricórnio, mas ele apenas continuou brincando entediado com o cinto do seu roupão.
— Leve-a de volta! — ele ordenou a Basta. — É tarde. A menina precisa dormir.
Basta deu um cutucão nas costas de Meggie.
— Vamos, você ouviu. Mexa-se.
Meggie olhou uma última vez para Dedo Empoeirado, então começou a andar, hesitante, na frente de Basta. Quando estavam de novo sob a segunda rede, ela olhou mais uma vez para cima. O rosto da mulher desconhecida ainda estava no escuro, mas ela acreditou ter reconhecido os olhos, o nariz estreito... e se ela imaginasse os cabelos mais claros...
— Vamos, ande — rosnou Basta.
Meggie obedeceu, mas olhou de novo para trás várias vezes.
— Não vou ler! — ela exclamou quando já estavam quase no portal. — Eu juro! Não vou ler ninguém para ele! Nunca!
— Não jure o que você não pode cumprir! — sussur-rou Basta enquanto abria o portal.
Então ele a arrastou de volta para a praça iluminada.

40. O cavalo negro da noite

Ele se abaixou e tirou Sofia do bolso do colete. Ela estava apenas de camisola, os pés descalços. Ela tremia, olhando para as nuvens rodopiantes e as ondas de vapores fantasmagóricos ao seu re-dor.
— Onde estamos, afinal? — ela perguntou.
— Na Terra dos Sonhos — disse o BGA. — Estamos no lugar de onde vêm os sonhos.
Roald Dahl, O BGA

Fenoglio estava deitado na cama quando Basta despe-jou Meggie dentro do quarto.
— O que vocês fizeram com ela? — ele disse zangado enquanto se punha de pé rapidamente. — Ela está branca como a parede!
Mas Basta já havia fechado a porta atrás de si.
— O seu substituto virá daqui a duas horas! — Meggie o ouviu dizer ao vigia. Então ele se foi.
Fenoglio pôs as mãos nos ombros de Meggie e olhou preocupado para o rosto dela.
— E então? Conte! O que eles queriam com você? O seu pai está aqui?
Meggie fez que não com a cabeça.
— Eles prenderam Dedo Empoeirado — ela respon-deu. — E uma mulher.
— Que mulher? Céus, você não está bem.
Fenoglio puxou-a para perto de si. Meggie sentou-se ao seu lado na cama.
— Acho que ela é a minha mãe — ela sussurrou.
— Sua mãe? — Fenoglio olhou para ela espantado, seus olhos estavam vermelhos por causa da noite passada em claro.
Meggie começou a alisar o vestido com uma expressão ausente. O tecido estava sujo e amassado. Também pudera, fazia dias que ela dormia com ele.
— Os cabelos dela estão mais escuros — ela balbuciou. — E a foto que Mo tem dela tem mais de nove anos... Capricórnio mandou pendurá-la numa rede, ao lado de Dedo Empoeirado. Ele pretende executar os dois daqui a dois dias, e quer que eu leia Coração de tinta para trazer esse amigo, como Capricórnio o chama, esse que eu contei para você! É o mesmo que ele queria que Mo trouxesse, você não quis me contar quem é, mas agora eu preciso saber!
Ela olhou suplicante para Fenoglio. O velho escritor fechou os olhos.
— Meu Deus! — ele murmurou.
Lá fora ainda estava escuro. A lua pairava diante da ja-nela. Uma nuvem passou na frente dela como um vestido rasgado.
— Amanhã contarei tudo — disse Fenoglio. — Pro-meto.
— Não! Conte agora.
Ele olhou para ela pensativo.
— Não é uma história para contar à noite. Você terá pesadelos depois.
— Conte agora! — repetiu Meggie. Fenoglio suspirou.
— Oh, meu Deus! Esse olhar eu conheço dos meus netos — ele disse. — Está bem.
Ele a ajudou a subir na cama, pôs o pulôver de Mo de-baixo da cabeça dela e esticou o cobertor.
— Vou lhe contar com as palavras que estão em Cora-
ção de tinta — ele disse baixinho. — Sei esse trecho quase de cor, na época eu estava muito orgulhoso dele...
Fenoglio pigarreou antes de sussurrar as palavras na noite: — “Mas havia alguém que era mais temido do que todos os ho-mens de Capricórnio. Eles o chamavam de Sombra. Ele só aparecia quando Capricórnio o evocava. Ora ele era vermelho como o Jogo, ora da cor das cinzas em que transformava tudo o que devorava. Como as cha-mas de uma fogueira, ele se erguia da terra em labaredas. Seus dedos, e até mesmo o seu hálito, traziam a morte. Ele se erguia dos pés do senhor dele,furtivo e sem rosto como um cão farejador, esperando que sua vítima fosse apontada.”
Fenoglio passou a mão na testa e olhou para a janela. Demorou um tempo até ele continuar, como se precisasse evocar na memória cada palavra de muitos anos já passados.
— “Dizia-se”— ele finalmente retomou a narrativa — “que Capricórnio mandara que um duende (ou um dos anões que enten-diam de tudo o que o fogo e a fumaça são capazes de produzir) criasse Sombra a partir das cinzas de suas vítimas. Ninguém sabia ao certo, pois dizia-se que Capricórnio mandara matar aquele que havia dado vida a Sombra. Apenas uma coisa se sabia: que ele era imortal e invul-nerável, e cruel como seu senhor.” Fenoglio calou-se.
E Meggie olhou para a noite com o coração palpitante.
— Sim, Meggie — disse Fenoglio finalmente com voz baixa. — Acho que ele quer que você traga Sombra. E que Deus nos proteja se você conseguir. Existem muitos monstros neste mundo, quase todos são humanos, e todos são mortais. Eu não gostaria de ser culpado de que no futuro mais um monstro imortal venha a espalhar medo e terror neste planeta. O seu pai teve uma idéia quando me procurou, eu já disse uma vez a você. Talvez seja a nossa única chance, mas ainda não sei se vai funcionar. Preciso pensar, não temos muito tempo, e agora você deveria dormir. O que você disse? Que tudo deve acontecer depois de amanhã?
Meggie confirmou com a cabeça.
— Assim que escurecer! — ela sussurrou. Fenoglio
passou a mão no rosto com um ar cansado.
— Quanto à mulher, você não deveria se preocupar — ele disse. — Não sei se você vai gostar de ouvir isto, mas acho impossível que seja a sua mãe, por mais que talvez você deseje que sim. Como ela teria vindo parar aqui?
— Darius! — Meggie enfiou o rosto no pulôver de Mo. — O leitor ruim. Capricórnio disse que foi ele quem a trouxe, e que ela perdeu a voz no caminho. Ela voltou, tenho certeza, e Mo não sabe disso! Ele ainda acha que ela está no livro e...
— Bem, se você tiver razão, então seria muito melhor que ela ainda estivesse lá no livro — disse Fenoglio enquanto cobria Meggie mais uma vez com o cobertor. — Ainda acho que você está enganada, mas acredite no que quiser. E agora durma.
Meggie não conseguiu dormir. Com o rosto voltado para a parede, ela ficou ali deitada escutando dentro de si mesma. Preocupação e alegria misturavam-se em seu coração, como duas tintas escorrendo no mesmo sentido. Toda vez que ela fechava os olhos, via as redes e os dois rostos presos atrás delas, Dedo Empoeirado e o outro, apagado como numa velha foto. Por mais que ela se esforçasse em ver melhor, ele sempre desaparecia.
Lá fora o dia já começava a raiar quando ela finalmente adormeceu, mas a noite não levou consigo os sonhos ruins. No lusco-fusco da madrugada, eles cresceram ainda mais rá-pido, e de segundos teceram uma eternidade. Gigantes de um olho só e aranhas gigantescas invadiram os sonhos de Meggie, cães do inferno, bruxas devoradoras de crianças, todas as fi-guras terríveis que ela já encontrara no reino das letras. Elas rastejavam do baú que Mo construíra e abriam caminho entre as páginas de seus livros favoritos. Brotavam monstros até mesmo dos livros de figuras que Mo lhe dera quando as letras ainda não faziam sentido para ela. Com suas cores berrantes e suas cabeleiras desgrenhadas, eles dançavam, sorriam com su-as bocarras e arreganhavam os dentes pontudos. Ali estava o
gato de Alice, do qual ela sempre sentira medo, e os monstros de Maurice Sendak, de quem Mo gostava tanto que chegara a pendurar um pôster na oficina dele. Como seus dentes eram grandes! Dedo Empoeirado ia sumir no meio deles como um pãozinho. Mas justamente quando um deles, aquele de olhos grandes e esbugalhados, estendia suas garras, na noite escura surgiu uma nova figura, crepitante como uma labareda, cin-zenta e sem rosto, que pegou o monstro e o despedaçou co-mo papel.
— Meggie!
Os monstros fugiram correndo, o sol bateu no rosto de Meggie. Fenoglio estava ao seu lado na cama.
— Você estava sonhando.
Meggie sentou-se e olhou para o rosto dele. Parecia que ele não havia pregado o olho a noite inteira, e com isso tinha adquirido mais algumas rugas.
— Onde está meu pai, Fenoglio? — ela perguntou. — Por que ele não vem?

41. Farid

Aqueles ladrões costumavam ficar à espreita nas estradas, atacar aldeias e cidades e atormentar os moradores. E sempre que pilhavam uma carava-na ou saqueavam uma aldeia, levavam seus bu-tins para lugares afastados e escondidos, longe da vista das pessoas.
A história de Ali Babá e os quarenta ladrões

Farid fitou a noite até doerem os olhos, mas Dedo Empoeirado não veio. Às vezes Farid pensava ver o rosto do companheiro entre os galhos das árvores. Às vezes acreditava ouvir o ruído mínimo dos passos dele nas folhas secas, mas era sempre ilusão. Farid estava habituado a espreitar a noite. Passara muitas e incontáveis noites fazendo isso, e aprendera a confiar mais em seus ouvidos do que nos olhos. Antes, na ou-tra vida, quando o mundo ao seu redor não era verde, e sim amarelo e marrom, seus olhos o haviam deixado em apuros algumas vezes, mas nos ouvidos ele sempre pudera confiar.
Apesar disso, naquela noite, a mais longa de todas as noites, Farid espreitou em vão. Dedo Empoeirado não voltou. Quando o sol raiou sobre as colinas, Farid andou até os dois prisioneiros, deu-lhes água, um pouco do pão seco que ainda havia e algumas azeitonas.
— Seja sensato, Farid, solte-nos! — disse Língua En-cantada quando ele pôs o pão em sua boca. — Dedo Empo-eirado já deveria ter voltado, você sabe disso.
Farid não disse nada. Seus ouvidos amavam a voz de Língua Encantada. Ela o tirara de sua vida miserável, mas ele gostava ainda mais de Dedo Empoeirado. Ele mesmo não sabia por quê. E Dedo Empoeirado lhe dissera para vigiar os prisioneiros. Não dissera nada sobre soltá-los.
— Escute aqui, você é um rapaz inteligente — disse a mulher. — Portanto, use a cabeça por um momento, está bem? Você quer ficar sentado aqui até que os homens de Ca-pricórnio venham e nos encontrem?
Será um espetáculo e tanto, um garoto vigiando duas pessoas amarradas que não podem mexer um dedo para aju-dá-lo. Eles vão morrer de rir.
Como era mesmo que ela se chamava? Elinor. Farid tinha dificuldade em gravar esse nome, que pesava como uma pedra em sua língua. Soava como o nome de uma feiticeira de terras muito distantes. Ele tinha um certo medo dela, ela o-lhava para ele como um homem, sem vergonha, sem medo, e a voz dela podia se elevar, furiosa como a de um leão...
— Precisamos ir até a aldeia, Farid! — disse Língua Encantada. — Temos que descobrir o que aconteceu com Dedo Empoeirado e onde está a minha filha.
Sim, a garota... a garota de olhos claros, dois pequenos pedaços de céu, que caíram e foram apanhados por cílios es-curos. Farid cavoucava a terra com um pau. Uma formiga passou na frente de seus pés carregando uma migalha de pão que era maior do que ela mesma.
— Talvez ele não entenda o que estamos falando! — disse Elinor.
Farid ergueu a cabeça e olhou irritado para ela.
— Eu entendo tudo!
Desde o primeiro instante, ele entendera tudo, como se nunca tivesse ouvido outra língua. Ele se lembrou da igreja vermelha. Dedo Empoeirado lhe explicara que era uma igreja, Farid nunca tinha visto um edifício daquele tipo antes. Ele também se lembrou do homem com a navalha. Em sua antiga
vida, havia muitos homens como aquele. Eles adoravam suas armas e faziam coisas terríveis com elas.
— Você vai fugir se eu te soltar. — Farid olhou inse-guro para Língua Encantada.
— Não vou. Ou você acha que eu vou deixar a minha filha lá embaixo, com Basta e Capricórnio?
Basta e Capricórnio. Sim, eram esses os nomes. O ho-mem da navalha e o homem com os olhos claros como água. Um bandido, um assassino... Farid sabia tudo sobre eles. De-do Empoeirado contara muitas coisas quando os dois se sen-tavam diante da fogueira à noite. Eles haviam trocado histó-rias escabrosas, embora ambos ansiassem por uma história feliz.
E aquela estava ficando mais escabrosa a cada dia.
— É melhor eu ir sozinho.
Farid fincou o pau na terra com tanta força que ele se partiu.
— Tenho prática de entrar escondido em aldeias estra-nhas, em palácios, casas... era o meu trabalho, antigamente. Você sabe. Língua Encantada fez que sim.
— Eles sempre me mandavam — continuou Farid. — Quem teria medo de um garoto magro? Eu podia bisbilhotar por toda parte sem despertar suspeitas. Quando será a troca da guarda? Qual o melhor caminho para a fuga? Onde mora o homem mais rico do lugar? Se tudo dava certo, eles me davam bastante comida. Se as coisas davam errado, me batiam como se eu fosse um cachorro.
— Eles? — perguntou Elinor.
— Os ladrões — respondeu Farid.
Os dois adultos se calaram. E Dedo Empoeirado ainda não voltara. Farid olhou para a aldeia e viu como os primeiros raios de sol começavam a brilhar sobre os telhados.
— Está bem. Talvez você tenha razão — disse Língua Encantada. — Você entra na aldeia sozinho e tenta descobrir o que precisamos saber, mas antes nos solta. Só assim pode-
remos ajudá-lo se eles o apanharem. Além disso, eu não gos-taria de estar aqui amarrado deste jeito quando passar a pri-meira cobra.
A mulher olhou assustada ao redor, como se já tivesse ouvido um farfalhar entre as folhas secas. Mas Farid olhou pensativo para o rosto de Língua Encantada. Tentava desco-brir se seus olhos também podiam confiar em Língua Encan-tada, como seus ouvidos já confiavam. Finalmente, ele se le-vantou sem dizer uma palavra, tirou do cinto a navalha que Dedo Empoeirado lhe dera e cortou a corda que prendia os dois.
— Oh, meu Deus, nunca mais vou deixar que me a-marrem! — exclamou Elinor, esfregando os braços e as per-nas. — Está tudo formigando, como se eu tivesse me trans-formado numa boneca de pano. Como você está, Mortimer? Você ainda sente os pés?
Farid examinou-a curioso.
— Você... não parece a mulher dele. Você é a mãe de-le? — ele perguntou, apontando para Língua Encantada com a cabeça. Elinor ficou vermelha como um pimentão.
— Meu Deus do céu, não! Como você teve essa idéia? Eu pareço tão velha assim? — Ela olhou para si mesma e fez que sim com a cabeça. — Sim, provavelmente. Mesmo assim, eu não sou a mãe dele. E também não sou a mãe de Meggie, caso essa seja a sua próxima hipótese. Meus filhos eram todos de papel e tinta, e aquela criatura — ela apontou para os te-lhados da aldeia de Capricórnio, que brilhavam entre as fo-lhagens — mandou matar muitos deles. Ele vai se arrepender, pode acreditar em mim.
Farid olhou para ela com uma expressão de dúvida. Não podia imaginar Capricórnio com medo de uma mulher, muito menos de uma que ficava quase sem fôlego para subir um morro e tinha medo de cobras. Não, se o homem de olhos pálidos tivesse medo de alguma coisa, era apenas daquilo que todo mundo tem: da morte. E Elinor não parecia alguém que
soubesse matar. Língua Encantada também não.
— A menina... — perguntou Farid hesitante. — Onde está a mãe dela?
Língua Encantada andou até os restos da fogueira e pegou mais um pedaço do pão que estava entre as pedras e-negrecidas.
— Ela se foi há muito tempo — ele disse. — Meggie tinha acabado de fazer três anos. E a sua mãe?
Farid sacudiu os ombros e olhou para o céu. Ele estava completamente azul, como se nunca houvesse existido noite.
— Estou melhor agora — ele disse, guardou de novo a navalha e pegou a mochila de Dedo Empoeirado. Gwin estava dormindo a apenas alguns passos, encolhido entre as raízes de uma árvore. Farid ergueu o animal e o enfiou na mochila. A marta protestou sonolenta, mas Farid enfiou a cabeça dela para dentro e fechou as fivelas.
— Por que você está levando a marta? — perguntou Elinor espantada. — Só o cheiro dela já pode denunciar você.
— Gwin pode ser útil — respondeu Farid, e enfiou também na mochila a ponta de seu rabo peludo. — Ele é inte-ligente. Mais inteligente até do que um cão ou um camelo. Ele entende o que a gente diz para ele, e talvez encontre Dedo Empoeirado.
Língua Encantada procurou em seu bolso até encontrar um pedaço de papel.
— Farid? Não sei se você vai conseguir descobrir onde eles prenderam Meggie — ele disse enquanto rabiscava algo às pressas com um toco de lápis — mas, se for possível, você poderia tentar fazer com que ela receba este bilhete?
Farid pegou o pedaço de papel e o examinou.
— O que está escrito? — ele perguntou.
Elinor tirou o bilhete de seus dedos.
— Com os diabos, Mortimer, o que é isso? — ela per-guntou. Língua Encantada sorriu.
— Meggie e eu já trocamos muitas mensagens com essa
escrita, ela domina o código muito melhor do que eu. Não está reconhecendo? Vem de um livro. “Estamos por perto”, está escrito. “Não se preocupe. Logo iremos buscá-la. Mo, Elinor e Farid.” Só Meggie conseguirá ler o bilhete, mais ninguém.
— Ah! — murmurou Elinor enquanto devolvia o bi-lhete para Farid. — Certo. Caso o bilhete caia em mãos erra-das, é muito melhor assim, pois talvez alguns desses incendiá-rios saibam ler.
Farid dobrou o papel até ele ficar quase do tamanho de uma moeda, e o enfiou no bolso da calça.
— O mais tardar quando o sol estiver em cima daquela colina ali, estarei de volta — ele disse. — Se eu não voltar...
— ...irei procurá-lo — Língua Encantada terminou a frase.
— E eu também, é claro — acrescentou Elinor. Farid não achou uma boa idéia, mas não disse nada.
Ele foi pelo mesmo caminho por onde Dedo Empoeirado descera na noite anterior, quando desaparecera como se os espíritos que espreitavam na escuridão o tivessem devorado.

42. Pelo na janela

Só a linguagem nos protege do horror das coisas indizíveis.
Toni Morrison, discurso de recebimento do Prêmio Nobel de 1993

Naquela manhã, Nariz Chato levou para Meggie e Fe-noglio um café-da-manhã que não consistia apenas em pão e azeitonas. Ele também pôs sobre a mesa uma cesta com frutas e um prato cheio de bolinhos doces. O sorriso que ele serviu de lambuja, porém, não agradou a Meggie nem um pouco.
— Tudo para você, princesinha! — ele grunhiu, e deu um beliscão na bochecha dela. — Para a sua vozinha ficar um pouco mais forte. Está o maior rebuliço desde que Basta es-palhou a notícia da execução. Pois é, é o que eu sempre digo: tem que haver algo mais na vida além de pendurar galos mor-tos e atirar em gatos.
Fenoglio olhou enojado para Nariz Chato, como se fosse quase impossível acreditar que tal criatura tivesse saído da pena dele.
— Sim, pois é. Faz muito tempo que não temos uma bela execução! — prosseguiu Nariz Chato enquanto voltava para a porta com seus passos pesados. — Chama muito a a-tenção, é a desculpa de sempre. E quando alguém tem que desaparecer: “Cuidado, cuidado! Faça parecer um acidente”. Tem alguma graça nisso? Não. Nunca mais aconteceu como antigamente, quando tinha comida, bebida, dança e música,
assim é que deve ser. Desta vez, finalmente vamos voltar aos velhos tempos.
Fenoglio bebeu um gole do café preto que Nariz Chato trouxera e engasgou.
— O que foi? Você não acha divertido, meu velho? — Nariz Chato o encarou com um olhar debochado. — Acredi-te, as execuções de Capricórnio são eventos muito especiais!
— E você acha que eu não sei? — murmurou Fenoglio, infeliz. Nesse momento alguém bateu na porta. Nariz Chato havia deixado uma fresta aberta, pela qual Darius, o leitor, en-fiou a cabeça.
— Desculpe! — ele disse baixinho, e olhou para Nariz Chato preocupado como um passarinho que precisa se apro-ximar de um gato faminto. — Eu... hum... vim para fazer a menina ler alguma coisa. Ordem de Capricórnio.
— Ah, é? Bem, tomara que desta vez ela leia algo útil. Basta me mostrou a fada. Ela nem ao menos tem pó de fada, por mais que a gente sacuda. — No olhar que Nariz Chato lançou para Meggie misturavam-se repulsa e veneração. Tal-vez ele a considerasse uma espécie de feiticeira. Ao passar por Darius, ele rosnou: — Bata quando quiser sair!
Darius assentiu e ficou ali um instante, imóvel, antes de se sentar constrangido à mesa com Meggie e Fenoglio. Ele lançou olhares cobiçosos para as frutas, até que Fenoglio lhe estendeu a cesta. Hesitante, ele pegou um damasco. Levou embevecido a pequena fruta à boca, como se esperasse nunca mais na vida ter algo tão delicioso entre os lábios.
— Céus, isto é um damasco! — zombou Fenoglio. — Não é exatamente uma fruta rara nesta região.
Darius cuspiu o caroço na mão com uma cara encabu-lada.
— Quando eu ficava trancado neste quarto — ele de-clarou timidamente —, eles me davam apenas pão seco. Também levaram os meus livros, mas eu consegui esconder alguns, e quando a fome era grande demais, eu ficava olhando
para as figuras. A mais bonita delas era uma com damascos, às vezes eu ficava horas olhando para as frutas pintadas enquan-to minha boca se enchia de água. Desde então, não consigo me controlar quando vejo damascos.
Meggie pegou mais um damasco da cesta e o colocou na mão magra de Darius.
— Eles trancavam você muitas vezes? — ela pergun-tou. O homenzinho magro sacudiu os ombros.
— Todas as vezes que eu lia e alguma coisa não dava muito certo — ele respondeu evasivamente. — Bem, na ver-dade sempre. Eles acabaram desistindo, pois notaram que a minha leitura não ficava muito melhor com o medo que eles punham em mim. Ao contrário... Nariz Chato, por exemplo — ele baixou a voz e lançou um olhar nervoso em direção à porta —, eu li Nariz Chato com Basta ao meu lado me amea-çando com a navalha. Bem, fazer o quê...
Ele ergueu os ombros estreitos, resignado. Meggie o-lhou para ele com compaixão. Então perguntou com voz he-sitante:
— Você também leu mulheres do livro?
— É claro — respondeu Darius. — Eu li Mortola! Ela afirma que eu a deixei mais velha, e desconjuntada como uma cadeira bamba, mas acho que no caso dela não errei muito. Por sorte, Capricórnio também foi dessa opinião.
— E mulheres mais jovens? — Meggie não olhou para Darius nem para Fenoglio ao perguntar. — Você também leu mulheres mais jovens?
— Oh, eu me lembro! — Darius suspirou. — Foi no mesmo dia em que li Mortola. Naquela época Capricórnio vi-via mais ao norte, num sítio isolado e meio arruinado nas montanhas, e não havia muitas garotas na região. Eu morava com a minha irmã, não muito longe dali, e trabalhava como professor. Nas minhas horas vagas eu fazia leituras em livrari-as e escolas, em festas de crianças e, de vez em quando, nas tardes quentes de verão, até mesmo numa praça ou num café.
Eu amava ler em voz alta.
Seu olhar voltou-se para a janela, como se ali pudesse ver um pouco dos dias felizes já esquecidos.
— Basta reparou em mim quando eu estava lendo nu-ma festa da aldeia, acho que era Doutor Dolittle, e de repente surgiu um pássaro. Quando eu estava indo para casa, Basta me pegou como se eu fosse um cão sem dono e me levou para Capricórnio. Primeiro ele me fez ler ouro, como fez com seu pai — Darius deu um sorriso triste para Meggie —, depois tive que lhe trazer Mortola, e então ele me ordenou que lesse as suas criadas. Foi terrível. — Ele ergueu os óculos com a voz trêmula. — Eu estava com um medo danado. Como é que eu podia ler direito? Ele me deixou tentar três vezes. Ah, eu tive tanta pena delas, não quero mais falar sobre isso!
Ele escondeu o rosto com as mãos, seus dedos eram magros como os de um homem velho. Meggie pensou ouvi-lo chorar e, por um instante, hesitou em fazer sua próxima per-gunta, mas acabou por fazê-la.
— A criada que eles chamam de Resa — ela perguntou enquanto o seu coração parecia querer sair pela boca — tam-bém é uma delas?
Darius tirou as mãos do rosto.
— Sim, ela veio totalmente por acaso, seu nome nem estava escrito — ele respondeu com a voz sumida. — Na verdade, Capricórnio me pedira uma outra, mas de repente Resa estava lá. Primeiro eu pensei: “Desta vez eu não fiz nada errado”. Ela era tão bonita, de uma beleza quase irreal, com cabelos dourados e olhos tristes. Mas então percebemos que ela não falava. Mas Capricórnio não se incomodou, acho que isso até mesmo o agradou.
Meio sem jeito, ele pôs a mão no bolso da calça e tirou um lenço amarrotado de dentro.
— Eu sei que conseguiria fazer melhor! — ele soluçou. — Mas esse medo permanente... Posso?
Com um sorriso triste, ele pegou mais um damasco e
deu uma mordida. Então ele secou o sumo da boca com a manga do casaco, pigarreou e olhou para Meggie. Seus olhos ficavam estranhamente grandes atrás daquelas lentes grossas.
— Para a... hum... festa que Capricórnio está planejan-do — ele disse enquanto baixava o olhar e passava o dedo pelo canto da mesa, encabulado —, você terá que ler Coração de tinta, como já deve saber. Até essa ocasião, o livro perma-necerá guardado num local secreto. Apenas Capricórnio sabe onde. Por isso você só poderá vê-lo no... hum... evento. Por-tanto, para a última amostra que Capricórnio exige do seu ta-lento, teremos que utilizar um outro livro. Felizmente ainda existem alguns livros nesta aldeia, não são muitos mas, bem, seja lá como for, fui incumbido de escolher o livro adequado.
Ele ergueu novamente a cabeça e deu um sorriso tími-do para Meggie.
— Por sorte, desta vez eu não tive que procurar ouro nem coisas do tipo. Capricórnio quer apenas uma prova da sua capacidade, e por isso — ele pôs um pequeno livro sobre a mesa — escolhi este aqui.
Meggie debruçou-se sobre a capa.
— Contos escolhidos de Hans Christian Andersen — ela leu em voz alta e olhou para Darius. — São muito bonitos.
— Sim! — ele disse baixinho. — Tristes, mas muito bonitos mesmo.
Ele pegou o livro de cima da mesa e o abriu para Meg-gie num ponto em que, entre as páginas amareladas, à guisa de marcador, havia alguns pedaços de palha.
— A princípio eu tinha pensado no meu conto favori-to, aquele do rouxinol, talvez você o conheça.
Meggie fez que sim.
— Sim, mas como a fada que você leu ontem não está nada bem na jarra onde Basta a prendeu — prosseguiu Darius —, achei que talvez fosse melhor se você fizesse uma tentativa com o soldadinho de chumbo.
O soldadinho de chumbo. Meggie ficou calada. O va-
lente soldadinho de chumbo em seu barquinho de papel... Ela imaginou como seria se de repente ele estivesse ali, ao lado da cesta de frutas.
— Não! — ela disse. — Não. Eu já disse a Capricórnio. Não vou ler absolutamente nada para ele, nem mesmo como amostra. Diga a ele que eu não consigo mais. Diga que eu tentei e não saiu nada do livro.
Darius olhou para ela penalizado.
— Eu faria isso com prazer. Faria mesmo. Mas a gra-lha... — ele pôs o dedo nos lábios como se tivesse sido sur-preendido. — Oh, perdão, naturalmente me refiro à nossa governanta, a senhora Mortola... é para ela que você deve ler. Eu apenas escolhi o texto.
A gralha. Meggie a viu diante de si, com seus olhos de passarinho. “E se eu mordesse a língua?”, ela pensou. “Bem forte.” Isso já lhe acontecera sem querer algumas vezes, e numa delas sua língua inchara tanto que ela tivera que falar com Mo em linguagem de sinais durante dois dias. Ela olhou para Fenoglio em busca de ajuda.
— Leia! — ele disse para sua surpresa. — Leia para a velha, mas só com uma condição: que você possa ficar com o soldadinho de chumbo. Conte alguma história para ela, diga que você precisa brincar com ele senão vai morrer de tédio, por exemplo. E então peça mais uma coisa, algumas folhas de papel e um lápis. Diga que quer desenhar. Entendeu? Se ela concordar, depois veremos.
Meggie não entendeu uma só palavra, mas antes que pudesse perguntar o que Fenoglio tinha em mente, a porta se abriu e a gralha entrou no quarto.
Ao vê-la, o leitor se pôs de pé tão afoito que derrubou da mesa o prato de Meggie.
— Oh, desculpe, desculpe! — ele balbuciou enquanto apanhava os cacos da louça com seus dedos ossudos. Ao pe-gar o último fez um corte fundo no polegar, e o sangue pin-gou no assoalho.
— Levante-se, palerma! — ralhou Mortola. — Você mostrou a ela o livro que deve ler?
Darius fez que sim, e olhou para o dedo cortado com uma expressão infeliz.
— Muito bem, agora suma daqui. Pode ir ajudar as mulheres na cozinha. Tem umas galinhas para depenar.
Darius fez uma careta de nojo, mas fez uma mesura e desapareceu no corredor, não sem antes lançar um olhar pie-doso para Meggie.
— Muito bem! — disse a gralha, fazendo um sinal im-paciente com a cabeça. — Comece a ler. E capriche!
Meggie leu, e o soldadinho de chumbo de repente es-tava lá. Foi como se ele simplesmente tivesse despencado do teto. “Foi uma queda horrível. Ele foi parar no chão de ponta-cabeça, com a perna estendida no ar e a baioneta fincada entre as pedras do cal-çamento”
A gralha o pegou antes que Meggie o alcançasse. Olhou para ele como se fosse um pedaço de madeira pintada, en-quanto ele olhava para ela aterrorizado. Então ela o pôs no bolso de seu casaco de tricô grosseiro.
— Por favor! Posso ficar com ele? — balbuciou Meggie quando a gralha já estava na porta.
Fenoglio postou-se atrás dela para lhe dar cobertura, mas a gralha apenas olhou para Meggie com seu olhar vítreo de passarinho.
— A senhora... A senhora não tem nada para fazer com ele — Meggie gaguejou. — Eu estou tão entediada. Por favor.
A gralha olhou para ela impassível.
— Depois que eu o mostrar para Capricórnio, você o terá de volta — ela disse, e então desapareceu.
— O papel! — exclamou Fenoglio. — Você esqueceu o papel e o lápis!
— Sinto muito! — murmurou Meggie.
Ela não esquecera, simplesmente não tivera coragem de pedir mais uma coisa à gralha. Parecia que seu coração ia sair
pela boca.
— Bem, teremos que arranjar de outra maneira — murmurou Fenoglio. — A questão é apenas como.
Meggie andou até a janela, encostou a testa no vidro e olhou para o jardim lá embaixo, onde algumas das criadas de Capricórnio estavam ocupadas em prender os tomateiros nas estacas. O que Mo diria quando soubesse que ela também ti-nha o dom?, ela pensou. “Quem você tirou do livro, Meggie? A pobre Sininho e o valente soldadinho de chumbo?”
— Sim — murmurou Meggie enquanto desenhava com o dedo um M invisível na vidraça. “Pobre fadinha, pobre sol-dadinho de chumbo, pobre Dedo Empoeirado.” E mais uma vez ela pensou na mulher, na mulher de cabelos escuros.
— Resa — ela murmurou. Teresa. Era esse o nome de sua mãe. Ela já ia dar as costas para a janela quando viu pelo canto do olho que havia alguma coisa lá fora se aproximando pelo batente da janela... um focinho peludo. Meggie recuou assustada. Ratos subiam nas paredes das casas? Sim, subiam. Mas aquilo não era um rato, o focinho era muito achatado. Depressa, ela se encostou no vidro novamente.
Gwin.
A marta estava sentada no batente estreito, olhando para ela com olhos sonolentos.
— Basta! — murmurou Fenoglio atrás dela. — Isso mesmo, Basta vai me arrumar o papel. É uma idéia.
Meggie abriu a janela, bem devagar para que Gwin não se assustasse e despencasse lá de cima. Mesmo uma marta quebraria todos os ossos se caísse daquela altura no pátio pa-vimentado. Bem devagar, ela pôs a mão para fora. Seus dedos tremiam quando ela os passou nas costas de Gwin. Então ela o agarrou, antes que ele pudesse mordê-la com seus dentinhos afiados, e rapidamente o trouxe para dentro do quarto. Preo-cupada, ela olhou para baixo, mas nenhuma das criadas per-cebera nada. Todas estavam curvadas sobre os canteiros, com os vestidos encharcados de suor por causa do sol quente que
ardia nas suas costas.
Sob a coleira de Gwin havia um pedaço de papel sujo, dobrado centenas de vezes, preso com um pedaço de fita.
— Por que você abriu a janela? O ar lá fora está mais quente do que aqui dentro! Nós...
Fenoglio parou e olhou assombrado para o animal no braço de Meggie. Rapidamente, ela pôs um dedo nos lábios em sinal de advertência. Então, apesar da resistência do ani-malzinho, ela apertou Gwin contra o peito e tirou o bilhete da coleira. A marta rosnou ameaçadora, e tentou morder mais uma vez os dedos de Meggie. Gwin não gostava nem um pouco quando alguém o segurava por tempo demais. Ele mordia até mesmo o próprio Dedo Empoeirado quando ele tentava fazer isso.
— O que você tem aí, uma ratazana? — Fenoglio a-proximou-se. Meggie soltou a marta, que imediatamente pulou para o batente da janela.
— Uma marta — exclamou Fenoglio, espantado. — De onde ela veio?
Apavorada, Meggie olhou para a porta, mas o guarda não parecia ter ouvido nada. Fenoglio pôs a mão na boca e olhou para Gwin tão espantado que Meggie quase começou a rir.
— Ela tem chifres! — ele murmurou.
— É claro. Porque você a inventou assim! — ela res-pondeu num sussurro.
Gwin ainda estava no batente. Seus olhos piscavam desconfortáveis. Ele de fato não gostava da luz do sol e cos-tumava passar o dia dormindo. Como chegara ali?
Meggie pôs a cabeça para fora da janela, mas lá embai-xo no pátio estavam apenas as criadas. Ela voltou depressa para o quarto e desdobrou o pedaço de papel.
— Uma mensagem? — Fenoglio curvou-se sobre os ombros dela.
— É do seu pai?
Meggie fez que sim. Ela reconhecera a letra na hora, embora não estivesse tão uniforme como normalmente. Seu coração começou a dançar dentro do peito. Ela seguiu ansio-samente as letras com os olhos, como se fossem um caminho que finalmente a levaria até Mo.
— Que diabos está escrito aí? Não consigo decifrar uma só palavra — sussurrou Fenoglio.
Meggie sorriu.
— É a escrita dos elfos! — ela sussurrou. — Mo e eu a utilizamos como escrita secreta desde que eu li 0 senhor dos a-néis, mas ele está um pouco destreinado. Cometeu muitos er-ros.
— Bem, e o que diz? Meggie leu para ele.
— Farid, mas quem é Farid?
— Um garoto. Ele veio das Mil e uma noites quando Mo leu o livro, mas essa é outra história. Você o viu, ele estava junto com Dedo Empoeirado quando ele fugiu de você.
Meggie dobrou o papel e olhou pela janela mais uma vez. Uma das criadas havia se levantado. Ela limpou a terra das mãos e olhou para o muro alto, como se sonhasse sim-plesmente voar por cima dele. Quem trouxera Gwin? Mo? Ou a marta a encontrara ali sozinha? Era muito improvável. Ela não ficaria zanzando em plena luz do dia sem que houvesse alguém por trás.
Meggie enfiou o bilhete na manga do vestido. Gwin ainda estava sentado no batente, com um ar sonolento. Ele esticou o pescoço e começou a cheirar o ar lá fora. Talvez es-tivesse farejando os pombos que às vezes pousavam na janela.
— Dê-lhe pão para ele não ir embora! — sussurrou Meggie para Fenoglio.
Então ela foi até a cama e virou sua mochila de pon-ta-cabeça. Onde é que estava o lápis? Ela tinha um lápis, com certeza. Ali estava. Era quase um toco. Mas onde é que iria arrumar papel? Ela tirou um dos livros de Darius de sob o colchão e arrancou cuidadosamente a folha de guarda. Ela
nunca chegara a arrancar a folha de um livro, mas agora era preciso.
Meggie ajoelhou-se no chão e começou a escrever, com as mesmas letras sinuosas que Mo utilizara em sua mensagem. Conhecia o código de cor. “Estamos bem, e eu também sei ler como você, Mo! Eu li a fada Sininho, e amanhã, quando escurecer, Capricór-nio quer que eu traga Sombra de Coração de tinta para matar Dedo Empoeirado.” Sobre Resa, ela não escreveu nada. Nenhuma palavra sobre Meggie ter pensado que vira sua mãe, e que também ela, se tudo corresse como Capricórnio queria, só tinha mais dois dias de vida. Uma notícia como aquela não cabia num pedaço de papel, por maior que ele fosse.
Gwin mordiscava avidamente o pão que Fenoglio se-gurava. Meggie dobrou a folha de papel e prendeu-a na colei-ra.
— Cuide-se! — ela sussurrou para Gwin, então jogou o resto do pão no pátio de Capricórnio.
Gwin deslizou pela parede como se não houvesse nada mais fácil neste mundo. Uma das criadas gritou quando ele passou no meio de suas pernas. Ela disse alguma coisa para as outras mulheres, provavelmente estava preocupada com as galinhas de Capricórnio, mas Gwin já havia pulado o muro e desaparecido.
— Bom, muito bom, então seu pai está aqui! — sus-surrou Fenoglio para Meggie, enquanto se punha ao lado dela na janela. — Em algum lugar lá fora. Muito bom. E você vai receber o soldadinho de chumbo de volta. Tudo está indo muito bem. Quem diria, hein?
Ele apertou a ponta do nariz, e piscou com a luz do sol.
— Como próximo passo — ele murmurou — vamos tirar vantagem da superstição de Basta! Que bom que eu o criei com esse ponto fraco! Foi um lance inteligente.
Meggie não entendeu do que ele estava falando, mas não importava. Ela só conseguia pensar numa coisa: Mo estava lá.

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