sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Coração de Tinta - Capítulos 19 ao 24

Me desculpem pelo atraso dos capítulos, mas tive alguns problemas com a publicação das postagens. Mas não se preocupem. Irei recompensá-los com os capítulos do 19 ao 36, em postagens diferentes. Mais uma vez peço desculpas.

19. Perspectivas sombrias
 Kaa abaixou a cabeça e pousou-a suavemente no ombro de Mowgli por um momento.
— Um coração valente e uma língua gentil — ela elogiou. — Assim você vai longe na selva, filhote de homem. Mas agora vá embora depressa com seus amigos. Vá dormir, pois a lua já está se pondo e o que vai acontecer agora não é para os seus olhos.
Rudyard Kipling, O livro da selva

De fato, eles receberam comida farta. Ao meio-dia uma mulher lhes trouxe pão e azeitonas, e à noite foi servido um macarrão, que exalava um delicioso aroma de alecrim fresco. Mas isso não bastou para abreviar aquelas horas interminavelmente longas, e mesmo a barriga cheia não foi capaz de espantar o medo do dia seguinte. Talvez nem mesmo um livro o fizesse, mas era inútil pensar sobre isso. Não havia nenhum livro ali, apenas as paredes sem janelas e a porta trancada. Pelo menos havia uma lâmpada nova no teto, e eles não precisaram ficar o tempo todo no escuro. A toda hora, Meggie espiava pela fresta debaixo da porta para ver se já havia anoitecido. Imaginou os lagartos tomando sol lá fora. Ela vira alguns deles na praça em frente à igreja. Será que o lagarto verde-esmeralda que escapulira do meio das moedas havia conseguido sair da igreja? E o garoto? Sempre que fechava os olhos, Meggie via seu olhar atônito.
Ela se perguntou se os mesmos pensamentos passavam pela cabeça de Mo. Desde que haviam sido trancafiados no-vamente, ele quase não abrira a boca. Ele se jogara na cama de palha e virara o rosto para a parede. Elinor também não tinha falado muito. “Quanta generosidade!”, ela apenas murmurara quando Cockerell trancou a porta atrás deles. “Nosso anfitrião nos obsequiou com mais dois montes de palha mofada.” De-pois ela se sentou num canto com as pernas esticadas e ficou ali parada, olhando com uma expressão sombria primeiro para os seus joelhos e depois para as paredes sujas.
— Mo? — Meggie perguntou em algum momento, quando não conseguiu mais suportar o silêncio. — O que vo-cê acha que eles vão fazer com o garoto? E que amigo é esse que Capricórnio quer que você retire do livro?
— Não sei, Meggie — foi só o que ele respondeu, sem se virar. Então ela o deixou em paz, fez sua cama de palha ao lado da dele e começou a andar lentamente ao longo das pa-redes nuas. Talvez atrás de uma delas estivesse o garoto des-conhecido. Ela encostou o ouvido na parede, mas não conse-guiu ouvir nada. Alguém riscara o próprio nome no reboco: Ricardo Bentone, 19/5/96. Meggie passou o dedo sobre as letras. Dois palmos adiante havia um outro nome, e depois mais um. Meggie perguntou-se o que teria acontecido com eles, com Ricardo, Ugo e Bernardo... “Talvez eu também deva escrever o meu nome”, ela pensou, “para o caso de...” Por precaução, ela não foi até o final da frase.
Atrás dela, Elinor deitou-se com um suspiro em sua cama de palha. Quando Meggie se virou, ela sorriu.
— O que eu não daria agora por um pente! — ela disse, tirando o cabelo da testa. — Eu nunca teria imaginado que numa situação dessas fosse sentir justamente a falta de um pente, mas é verdade. Deus do céu, não tenho mais nem um grampo. Devo estar parecendo uma bruxa, ou uma escova de limpeza que já teve dias melhores.
— Que nada, você está muito bem. De qualquer forma,
os grampos vivem escorregando do seu cabelo — disse Meg-gie. — Acho até que você parece mais jovem assim.
— Mais jovem? Hum. Bem, se você acha. — Elinor olhou para si mesma. Seu pulôver cinza como o pêlo de um rato estava todo sujo, e suas meias já tinham três furos. Ela puxou a barra da saia sobre o joelho. — Você foi realmente muito amável lá na igreja, me ajudando. Minhas pernas pare-ciam de gelatina, de tanto medo que senti. Não sei o que está acontecendo comigo. Eu me sinto como se fosse uma outra pessoa, como se a boa e velha Elinor tivesse voltado para casa e me deixado aqui sozinha.
Seus lábios começaram a tremer, e por um instante Meggie pensou que ela fosse começar a chorar, mas na verda-de a velha Elinor ainda estava lá.
— Pois é, veja como são as coisas! — ela disse. — Na hora do aperto é que se vê de que cepa a pessoa é feita. Sem-pre pensei que eu fosse feita de carvalho, mas ao que parece sou feita é de uma pereira ou de alguma outra madeira mole como manteiga. É só um tipinho ordinário brincar com uma lâmina diante do meu nariz e a madeira já racha.
Agora sim vieram as lágrimas, por mais que Elinor ten-tasse engoli-las. Irritada, ela enxugou os olhos com as costas das mãos.
— Acho que você está agüentando muito bem, Elinor — disse Mo, ainda com o rosto virado para a parede. — Acho que vocês duas estão indo muito bem. Eu é que deveria torcer o meu próprio pescoço por ter metido vocês nesta encrenca.
— Imagine, se é para torcer o pescoço de alguém, tem que ser o desse Capricórnio — disse Elinor. — E o desse Basta. Oh, meu Deus, nunca pensei que um dia teria tanto prazer em imaginar como matar uma pessoa. Mas tenho cer-teza de que se eu tivesse a oportunidade de pôr as mãos no pescoço desse Basta...
Quando percebeu o olhar espantado de Meggie, ela se calou constrangida, mas a menina apenas sacudiu os ombros.
— Eu sinto a mesma coisa — Meggie murmurou, en-quanto começava a riscar um M na parede com a chave do cadeado da bicicleta dela. Estranho ainda estar com a chave no bolso da calça. Como uma lembrança de outra vida.
Elinor passou o dedo num dos furos de sua meia. Mo deitou-se de costas e ficou olhando para o teto.
— Sinto muito, Meggie — ele disse de repente. — Sinto muito por ter deixado que eles pegassem o livro.
Meggie riscou um grande E na parede.
— Ah, isso não faz diferença — ela disse, dando um passo para trás. Os Gs de seu nome pareciam Os mordidos. — Provavelmente, você não conseguiria trazê-la de volta de qualquer forma.
— Sim, provavelmente — murmurou Mo, e fixou o olhar no teto de novo.
— A culpa não é sua, Mo — disse Meggie.
“O que importa é que você está comigo”, ela quis a-crescentar. “O que importa é que Basta nunca mais vai encos-tar uma faca no seu pescoço novamente. Eu quase não me lembro dela, só a conheço por algumas fotos.”
Mas ela se calou, pois sabia que nada disso consolaria Mo. Ao contrário, o deixaria ainda mais triste. Pela primeira vez, Meggie teve uma idéia do quanto ele sentia a falta da mãe dela. E por um instante maluco ela sentiu ciúme.
Ela riscou um 7 no reboco, o que foi fácil, e então dei-xou cair a chave do cadeado.
Lá fora, passos se aproximavam.
Elinor tapou a boca quando eles pararam. Basta abriu a porta. Atrás dele, vinha uma mulher. Meggie reconheceu a velha da casa de Capricórnio. Com uma cara mal-humorada, ela passou na frente de Basta e pôs no chão um copo e uma garrafa térmica.
— Como se eu já não tivesse um monte de coisas para fazer! — ela resmungou antes de sair novamente. — Agora temos que alimentar também esses senhores. Pelo menos eles podiam trabalhar, já que vocês têm que mantê-los aqui.
— Diga isso a Capricórnio — foi a resposta de Basta.
Então ele desembainhou sua navalha, deu um sorriso para Elinor e limpou a lâmina no casaco. Lá fora já estava escurecendo, e sua camisa branca brilhava à luz do crepúsculo.
— Saboreie o chá, Língua Encantada — ele disse en-quanto se divertia com o medo no rosto de Elinor. — Morto-la pôs tanto mel que a sua boca vai colar no primeiro gole. Mas amanhã com certeza a sua garganta estará nova em folha.
— O que vocês fizeram com o garoto? — perguntou Mo.
— Oh, acho que ele está aí ao lado. Amanhã Cockerell vai submetê-lo a uma pequena prova de fogo, e então sabe-remos se ele pode ser aproveitado.
Mo sentou-se.
— Uma prova de fogo? — ele perguntou. Sua voz soou séria e ao mesmo tempo irônica. — Bem, você não deve ter feito uma. Você tem medo até dos fósforos de Dedo Empo-eirado.
— Dobre essa língua! — disse Basta, enfurecido. — Mais uma palavra e eu a cortarei fora, mesmo sendo tão vali-osa.
— Não, você não fará isso — disse Mo enquanto se levantava. Sem pressa, ele encheu o copo com o chá fume-gante.
— Talvez não. — Basta baixou a voz, como se tivesse medo de estar sendo espionado. — Mas a sua filhinha tam-bém tem uma língua, e não é tão valiosa quanto a sua.
Mo jogou o copo com o chá quente na direção dele, mas Basta foi tão rápido que o copo se espatifou na porta fe-chada.
— Tenham bons sonhos! — ele exclamou do outro lado, fechando o trinco. — Mandarei trazer outro copo. E amanhã nos veremos nova-mente.
Ninguém disse uma palavra depois que ele se foi. Du-
rante muito, muito tempo.
— Mo, conte uma história! — sussurrou Meggie em algum momento.
— O que você quer ouvir? — ele perguntou pondo a mão em seu ombro.
— Aquela história em que estamos no Egito — ela murmurou. — Em que procuramos tesouros, enfrentamos tempestades de areia, escorpiões e aqueles espíritos terríveis que se levantam das tumbas para vigiar os tesouros deles.
— Ah, essa história! — disse Mo. — Não foi no seu aniversário de oito anos que eu a inventei para você? Pelo que me lembro, ela é bem arrepiante.
— É, e muito! — disse Meggie — Mas termina bem. Tudo termina bem e nós voltamos para casa, carregados de tesouros.
— Eu também quero ouvir essa história! — disse Eli-nor com a voz trêmula.
Talvez ela ainda estivesse pensando na navalha de Bas-ta. E então Mo começou a contar, sem o ruído das páginas, sem o labirinto infindável das letras.
— Mo, nunca saiu nada de uma história contada, não é? — Meggie perguntou preocupada em algum momento.
— Não — ele respondeu. — Para isso acontecer, é preciso de tinta de impressão e da cabeça de uma outra pessoa que tenha inventado a história.
E então ele continuou a contar, e Meggie e Elinor fica-ram ouvindo até que sua voz as levou para longe, muito longe. E eles acabaram adormecendo.
Os três despertaram com o mesmo ruído. Alguém es-tava mexendo na fechadura. Meggie pensou ouvir alguém xingar com voz abafada.
— Oh, não! — murmurou Elinor. Ela foi a primeira a se levantar. — Agora eles vieram me buscar! A velha os con-venceu! Para que nos alimentar? Você talvez — ela disse com um olhar nervoso na direção de Mo. — Mas a mim, para quê?
— Encoste na parede, Elinor — disse Mo, enquanto empurrava Meggie para trás de si. — Fiquem as duas longe da porta.
A fechadura arrebentou com um clique abafado e al-guém abriu a porta, apenas o suficiente para passar apertado. Dedo Empoeirado. Ele lançou um último olhar preocupado para fora, então voltou a fechar a porta atrás de si e encos-tou-se nela.
— Ouvi dizer que aconteceu de novo, Língua Encan-tada! — ele disse baixando a voz. — Dizem que o pobre do garoto ainda não deu um pio. Entendo muito bem. Acredite, é uma sensação horrível de repente vir parar numa outra histó-ria.
— O que o senhor quer aqui? — esbravejou Elinor.
A visão de Dedo Empoeirado apagara instantaneamen-te todo o medo de seu rosto.
— Deixe-o, Elinor. — Mo empurrou-a para o lado e aproximou-se de Dedo Empoeirado. — Como estão as suas mãos?
Dedo Empoeirado deu de ombros.
— Eles passaram um ungüento, mas a pele ainda está vermelha como as chamas que a lamberam.
— Pergunte o que ele quer aqui! — sussurrou Elinor. — E se ele tiver vindo só para nos dizer que não pode fazer nada para nos tirar deste atoleiro, então por favor torça esse pescoço de mentiroso dele.
Como resposta, Dedo Empoeirado jogou um molho de chaves para ela.
— Por que a senhora acha que estou aqui? — ele disse rudemente, enquanto apagava a luz. — Não foi fácil roubar de Basta as chaves do seu carro, e um “obrigada” talvez caísse bem, mas podemos deixar isso para depois. Agora não deve-mos mais ficar aqui muito tempo, temos que sumir de uma vez.
Ele abriu a porta com cuidado e escutou.
— Há um guarda lá em cima na torre da igreja — Dedo Empoeirado sussurrou. — Mas ele observa a colina, e não a aldeia. Os cães estão nos canis e, no caso de termos que lidar com eles, felizmente eles gostam mais de mim do que de Bas-ta.
— Por que deveríamos confiar nele de repente? — sussurrou Elinor. — E se houver alguma armação por trás?
— Vocês têm que me levar junto! Isso é tudo o que há por trás! — respondeu Dedo Empoeirado rispidamente. — Não tenho mais nada para fazer aqui! Capricórnio me enga-nou. Ele acabou com o resto de esperança que eu ainda tinha! Ele acha que pode fazer isso comigo. “Dedo Empoeirado não passa de um cão em que se pode pisar sem que ele morda”, é o que ele pensa. Só que está muito enganado. Ele queimou o livro, e vou pegar de volta o leitor que eu trouxe para ele. E quanto à senhora — ele apontou o dedo queimado para o peito de Elinor — a senhora vai junto, porque tem um auto-móvel. Ninguém escapa a pé desta aldeia, nem dos homens de Capricórnio, nem das cobras que rastejam pelas colinas. Só que eu não sei dirigir, portanto...
— Está vendo? Eu já sabia! — Elinor quase esqueceu de baixar a voz. — Ele quer apenas salvar a própria pele. Por isso está nos ajudando! Ele não está com a consciência pesada. Não, isso não... por que estaria?
— Para mim tanto faz por que ele está nos ajudando — Mo a interrompeu, impaciente. — O que importa é que va-mos sair daqui. Mas vamos levar mais alguém.
— Mais alguém? Quem? — Dedo Empoeirado olhou para ele preocupado.
— O garoto. O garoto a quem impus o mesmo destino que impus a você — respondeu Mo enquanto passava por Dedo Empoeirado. — Basta disse que ele está bem aqui ao lado, e uma fechadura não é nenhum empecilho para os seus dedos habilidosos.
— Esses dedos habilidosos que queimei hoje! — disse
Dedo Empoeirado, irritado — Mas como queira. Esse seu coração mole ainda vai nos custar o pescoço.
Quando Dedo Empoeirado bateu na porta com o nú-mero S, ouviu-se um leve rumor atrás dela.
— Parece que eles ainda querem deixá-lo viver! — ele sussurrou enquanto começava a mexer na fechadura. — Os condenados à morte eles trancam na cripta debaixo da igreja. Basta fica pálido como massa de pão quando Capricórnio o manda para lá. É que eu contei para ele que um fantasma mo-rava entre as lápides de pedra, só para me divertir.
Ele deu uma risadinha com a lembrança, como um me-nino maroto que conseguiu pregar uma boa peça em alguém.
Meggie olhou na direção da igreja.
— Eles matam com freqüência? — ela perguntou bai-xinho. Dedo Empoeirado deu de ombros.
— Não com tanta freqüência quanto antigamente. Mas acontece...
— Pare de contar essas histórias! — murmurou Mo.
Ele e Elinor não tiravam os olhos da torre da igreja. O vigia estava sentado no muro, bem ao lado do sino. Meggie ficou tonta só de olhar para cima.
— Não são histórias, Língua Encantada, é a verdade! Você não a reconhece mais? Sim, ela é uma garota muito feia. Ninguém gosta de encará-la.
Dedo Empoeirado deu um passo para trás e fez uma mesura. — Tenham a bondade. A fechadura está destrancada. Podem ir buscá-lo.
— Entre você! — Mo sussurrou para Meggie. — De você ele vai ter menos medo.
Estava escuro como breu atrás da porta. Já lá dentro, Meggie ouviu novamente um farfalhar, como se um animal se mexesse na palha.
Dedo Empoeirado enfiou o braço pela abertura da porta e pôs uma lanterna na mão de Meggie. Quando ela a ligou, o foco de luz incidiu no rosto moreno do garoto. A palha que haviam dado para ele estava ainda mais mofada do que aquela onde Meggie dormira. De qualquer forma, parecia que o garoto não havia pregado o olho desde que Nariz Chato o prendera ali. Ele abraçava suas pernas, como se fossem a úni-ca coisa que pudesse ampará-lo.
Talvez ele ainda estivesse esperando que o sonho ruim acabasse.
— Venha! — sussurrou Meggie, estendendo a mão pa-ra ele. — Queremos ajudá-lo! Vamos tirá-lo daqui!
Ele não se mexeu. Apenas olhava fixamente para ela, com os olhos apertados de desconfiança.
— Meggie, depressa! — sussurrou Mo através da porta. O garoto o viu, e recuou até bater de costas na parede.
— Por favor — sussurrou Meggie. — Você precisa vir conosco! Aqui eles vão fazer coisas ruins com você!
Ele continuava a olhar para ela. Então ergueu-se, hesi-tante, sem tirar os olhos de Meggie. Era mais alto do que ela, quase um palmo.
De repente, correu em direção à porta aberta, tirando Meggie do caminho tão bruscamente que ela caiu. Mas ele não conseguiu passar por Mo.
— Ei, ei — Mo sussurrou. — Fique calmo, está bem? Nós realmente queremos ajudá-lo, mas você tem que fazer o que dissermos, entendeu?
O garoto olhou para ele com uma expressão hostil.
— Vocês são todos demônios! — ele falou. — Demô-nios ou espíritos maus!
Então ele entendia a língua deles. E por que não en-tenderia? Sua história era contada em todas as línguas do mundo.
Meggie levantou-se e apalpou o joelho. Estava san-grando, por causa da batida no chão de pedra.
— Se quiser ver alguns demônios, é só ficar por aqui! — ela sussurrou ao passar pelo garoto.
Ele recuou diante dela, como se ela fosse uma bruxa.
Mo puxou-o para junto de si.
— Está vendo o vigia lá em cima? — ele disse no ou-vido do garoto, e apontou para a torre da igreja. — Se ele nos vir, vai nos matar.
O garoto olhou para a sentinela. Dedo Empoeirado andou até eles.
— Agora venham de uma vez! Se ele não quiser vir, te-rá que ficar bem aqui. E vocês, tirem os sapatos — Dedo Empoeirado acrescentou, olhando para os pés nus do garoto. — Senão vão fazer mais barulho do que um rebanho de ca-bras.
Elinor resmungou alguma coisa mas obedeceu, e o ga-roto os seguiu, ainda que hesitante. Dedo Empoeirado ia na frente com muita pressa, como se quisesse fugir da própria sombra. Meggie tropeçava a toda hora, tão íngreme era a la-deira pela qual eles desciam. Elinor xingava baixinho a cada vez que topava com o dedão do pé numa pedra do calçamen-to. Estava escuro naquela ruela estreita. Arcos de pedra apoi-avam-se entre as casas próximas umas das outras, como se assim as impedissem de desabar. Os lampiões enferrujados lançavam sombras fantasmagóricas. Sempre que um gato saía da entrada de uma casa, Meggie levava um susto.
Mas a aldeia de Capricórnio dormia. Apenas uma única vez eles passaram por uma sentinela, que fumava encostada no muro de uma viela lateral. Dois gatos brigavam em cima de um telhado, e a sentinela virou-se e pegou uma pedra do chão para jogar nos animais.
Dedo Empoeirado aproveitou a ocasião. Meggie estava contente por ele ter mandado que tirassem os sapatos. Sem fazer ruído, eles passaram pela sentinela, que ainda estava de costas. Meggie ousou respirar novamente apenas quando do-braram a esquina. Mais uma vez, ela reparou nas casas vazias, em todas as janelas mortas e nas portas apodrecidas. O que destruíra as casas? Apenas o tempo? Os moradores haviam fugido de Capricórnio ou a aldeia estava abandonada antes de
ele se instalar ali com seus homens? Dedo Empoeirado não havia comentado alguma coisa sobre isso?
Ele fez um sinal com a mão para que todos parassem, e pôs o dedo nos lábios em sinal de advertência. Eles haviam chegado aos limites da aldeia. Diante deles havia apenas o es-tacionamento. Dois lampiões iluminavam o asfalto rachado. No lado esquerdo erguia-se um alto alambrado.
— Lá atrás fica a praça de festas e cerimônias de Ca-pricórnio — sussurrou Dedo Empoeirado. — Acho que anti-gamente os jovens da aldeia jogavam futebol ali, mas agora é onde acontecem as comemorações diabólicas de Capricórnio: fogueiras, bebida, alguns tiros no ar, fogos de artifício, rostos pintados de preto, é disso que eles gostam.
Eles calçaram os sapatos novamente antes de seguirem Dedo Empoeirado no estacionamento. Meggie olhava o tem-po todo para a cerca de arame. Comemorações diabólicas. Parecia que ela estava vendo o fogo, os rostos pintados de negro...
— Venha logo, Meggie — sussurrou Mo, enquanto a puxava atrás de si.
De algum lugar na escuridão vinha o barulho de água, e Meggie lembrou-se da ponte pela qual haviam passado na ida. E se desta vez houvesse uma sentinela lá?
Havia diversos automóveis no estacionamento, a perua de Elinor também estava lá, um pouco afastada dos outros. Atrás deles, sobre os telhados, erguia-se a torre da igreja, e nada mais os protegia dos olhos da sentinela. Meggie não conseguia vê-la daquela distância, mas com certeza estava lá. Besouros pretos rastejando em cima de uma mesa, era assim que eles deviam parecer vistos do alto. Será que a sentinela possuía um binóculo?
— Vamos logo, Elinor! — sussurrou Mo quando já fa-zia uma pequena eternidade que ela estava tentando abrir a porta do seu automóvel.
— Já vai, já vai! — ela resmungou. — Eu não tenho
mãos tão ágeis como as do nosso amigo dos dedos empoei-rados.
Mo pôs o braço no ombro de Meggie enquanto olhava preocupado ao redor, mas tanto na praça quanto nas ruelas nada se mexia, além de alguns gatos. Tranqüilizado, ele fez Meggie subir no banco de trás.
O garoto hesitou por um momento, examinou o auto-móvel como se fosse um animal estranho, sem ter certeza se aquele bicho era manso ou se o devoraria, mas finalmente também entrou.
Meggie lançou-lhe um olhar pouco amigável e ficou o mais longe possível dele. Seu joelho ainda doía.
— Onde se enfiou o devorador de fósforos? — sus-surrou Elinor. — Droga, não me diga que esse sujeito desa-pareceu de novo.
Meggie foi a primeira a descobrir onde estava Dedo Empoeirado. Ele se esgueirava entre os outros automóveis.
Elinor agarrou o volante, como se fosse difícil resistir à tentação de partir sem ele.
— O que esse sujeito pretende agora? — ela sussurrou. Ninguém sabia. Dedo Empoeirado ficou lá fora por tanto tempo que parecia uma tortura e, quando voltou, fechou a navalha que tinha na mão.
— O que foi agora? — ralhou Elinor quando ele se en-fiou ao lado do garoto no banco de trás. — O senhor não disse que tínhamos que nos apressar? E o que aprontou com a navalha? Não foi para cima de alguém com ela, espero.
— Por acaso eu me chamo Basta? — retrucou Dedo Empoeirado irritado, enquanto encolhia as pernas atrás do banco do motorista. — Eu cortei os pneus, só isso. Medida preventiva.
Ele ainda estava com a navalha na mão. Meggie olhou para ele preocupada.
— Essa é a navalha de Basta — ela disse.
Dedo Empoeirado sorriu, quando a pôs de volta no bolso da calça.
— Era. Eu também adoraria ter roubado o amuleto es-túpido dele, mas ele o usa em volta do pescoço mesmo à noi-te, e isso seria perigoso demais.
Em algum momento, um cão começou a latir. Mo abriu sua janela e pôs a cabeça para fora, preocupado.
— Acreditem se quiserem, são apenas sapos que estão fazendo esse barulho infernal — disse Elinor.
Mas o que Meggie também ouviu ecoar de repente no meio da noite não era a voz de um sapo e, quando olhou a-pavorada pelo vidro de trás, ela viu um homem sair de um dos automóveis estacionados, um furgão branco empoeirado e sujo. Era um dos homens de Capricórnio, Meggie já o vira antes na igreja. Ele olhava ao redor com olhos sonolentos.
Quando Elinor ligou o motor, ele sacou a espingarda que trazia nas costas e correu em direção ao carro. Por um momento Meggie quase sentiu pena dele, de tão atônito e so-nolento que estava. O que Capricórnio faria com uma senti-nela que dormia em vez de vigiar? Mas então ele apontou e atirou. Meggie abaixou a cabeça atrás do encosto, enquanto Elinor acelerava.
— Droga! — ela ralhou com Dedo Empoeirado. — O senhor não viu esse sujeito quando andou ao redor dos car-ros?
— Não, eu não vi! — gritou Dedo Empoeirado de volta. — E agora dirija! Não por aí! O caminho ali na frente, que leva para a estrada!
Elinor girou bruscamente o volante. Ao lado de Meggi-e, o garoto se encolheu. A cada tiro, ele apertava os olhos e tapava os ouvidos. Existiam espingardas em sua história? Provavelmente tantas quantos automóveis. Ele e Meggie ba-tiam a cabeça um no outro a cada tranco que Elinor dava com o automóvel pelo caminho de pedra. Quando finalmente de-sembocaram numa estrada, as coisas não estavam muito me-lhores.
— Esta não é a estrada pela qual viemos! — exclamou Elinor.
A aldeia de Capricórnio estava acima deles como uma fortaleza. As casas não pareciam menores dali.
— Sim, é a mesma! Mas quando chegamos Basta nos recebeu mais acima!
Dedo Empoeirado agarrou-se no assento com uma mão e com a outra segurou firme a sua mochila. Um rosnado furioso saiu de dentro dela, e o garoto lançou um olhar aterro-rizado em sua direção.
Meggie pensou reconhecer o ponto em que Basta os havia recebido: a colina da qual avistaram pela primeira vez a aldeia. Então de repente as casas haviam desaparecido, engo-lidas pela noite, como se a aldeia de Capricórnio nunca tivesse existido. Não havia sentinela na ponte nem na grade enferru-jada que bloqueava a estrada. Meggie ficou olhando para ela até que a escuridão a engoliu. “Acabou”, ela pensou. “Acabou mesmo.”
* * *
A noite estava clara. Meggie nunca vira tantas estrelas. O céu estendia-se sobre as colinas negras como um pano bordado com minúsculas pérolas. O mundo todo parecia feito só de colinas, costas de gatos arqueadas diante do rosto da noite, sem gente, sem casas. Sem medo.
Mo virou-se e tirou o cabelo de Meggie de cima do rosto dela.
— Tudo bem? — ele perguntou.
Ela fez que sim e fechou os olhos. De repente, tudo o que ela queria era dormir... isso se o tumulto no seu coração deixasse.
— Isto é um sonho! — alguém murmurou ao seu lado com voz monótona. — Somente um sonho. O que mais seria?
Meggie virou-se. O garoto não olhou para ela.
— Deve ser um sonho! — ele repetiu, balançando a cabeça para a frente com tanta energia como se quisesse en-corajar a si próprio. — Tudo parece de mentira, falso, com-pletamente maluco, igual aos sonhos, e agora — ele apontou para fora com um movimento de cabeça — ainda por cima estamos voando. Ou é a noite que passa voando por nós. Ou seja lá o que for.
Meggie quase sorriu. “Não é um sonho”, ela quis dizer, mas estava cansada demais para explicar toda aquela história complicada. Ela olhou para Dedo Empoeirado. Ele passava a mão em sua mochila, provavelmente tentando acalmar a marta furiosa.
— Não me olhe assim! — ele disse quando notou o olhar de Meggie. — Eu não vou explicar a ele. Quem tem que fazer isso é o seu pai. Afinal ele é o responsável pelo pesadelo do garoto.
A consciência pesada de Mo parecia escrita em sua testa quando ele se virou para o menino.
— Como você se chama? O seu nome não estava na... — ele parou. O garoto olhou para ele desconfiado e baixou a cabeça.
— Farid — ele respondeu com voz inexpressiva. — Meu nome é Farid, mas acho que falar num sonho dá azar. A pessoa não volta.
E então apertou de novo os lábios, olhou para a frente como se não quisesse encarar ninguém, e permaneceu calado. Será que em sua história ele tinha pais? Meggie não conseguia se lembrar. A história só falava de um garoto, um garoto sem nome, que servia a um bando de salteadores.
— É um sonho! — ele sussurrou novamente. — Ape-nas um sonho. O sol vai nascer e tudo vai ter desaparecido. Isso mesmo.
Mo fitou-o, infeliz e desconcertado, como alguém que capturou um passarinho e tem que agüentar a censura dos pais. “Pobre Mo”, pensou Meggie. “Pobre Farid.” Mas ela
também tinha um outro pensamento, um pensamento do qual se envergonhava. Ele estava ali desde que o lagarto havia saído do meio das moedas de ouro na igreja de Capricórnio. “Eu gostaria de ter esse dom”, o pensamento sussurrava desde en-tão, bem baixinho, mas sempre reiterado. O desejo se instalara em seu coração como um cuco num ninho alheio e, por mais que ela tentasse espantá-lo, ele começara a estufar e a se espa-lhar. “Eu também gostaria”, ele sussurrava. “Gostaria de po-der tirá-las de lá, de poder pegá-las, todas as figuras, todas as maravilhosas figuras, quero que elas saiam das páginas e sen-tem-se ao meu lado, que sorriam para mim, eu quero, eu que-ro, eu quero...”
Lá fora ainda estava escuro, como se não existisse ma-nhã.
— Não vou parar! — disse Elinor. — Vou dirigir até chegar na frente da minha casa.
Então, ao longe, atrás deles, como dedos tateando a escuridão, surgiram os faróis de um automóvel.

20. Cobras e espinhos
Os Borribles viraram-se e viram no começo da ponte um círculo ofuscante de luz branca, que vinha do fundo do céu escuro. Eram os faróis de um automóvel posicionado no lado norte da ponte, o lado que os fugitivos haviam deixado havia apenas poucos minutos.
Michael de Larrabeiti, Os Borribles 2 — No labirinto dos Wendel

Os faróis se aproximavam, por mais que Elinor pisasse decidida no acelerador.
— Talvez seja um automóvel qualquer! — disse Meggi-e, mas ela mesma sabia que isso era mais do que improvável. Havia apenas uma aldeia à margem da estradinha sinuosa e esburacada pela qual eles seguiam havia quase uma hora, e era a aldeia de Capricórnio. Os perseguidores só podiam estar vindo de lá.
— E agora? — exclamou Elinor. Ela quase dirigia em ziguezague, de tão nervosa. — Não vou deixar que me pren-dam novamente naquele buraco. Não. Não. E não.
A cada “não” ela batia com a palma da mão no volante.
— O senhor não disse que havia cortado os pneus? — ela ralhou com Dedo Empoeirado.
— E cortei! — ele respondeu furioso. — Pelo jeito, e-les estavam prevenidos para um caso como este, ou será que a senhora nunca ouviu falar de estepes? Acelere! Logo deve
chegar uma cidadezinha. Não deve estar muito longe. Se con-seguirmos chegar até lá...
— Se conseguirmos, sim, se conseguirmos! — excla-mou Elinor, batendo com o dedo no mostrador de gasolina. — A gasolina dá no máximo para mais dez, talvez vinte qui-lômetros.
Eles nem chegaram a tanto. Numa curva fechada, um dos pneus dianteiros estourou. Elinor conseguiu girar o vo-lante um segundo antes de o carro resvalar para fora da estra-da. Meggie deu um grito e tapou o rosto com as mãos. Por um instante terrível, ela pensou que todos fossem despencar pela ribanceira que se perdia na escuridão do lado esquerdo da es-trada, mas a perua patinou para a direita, raspou com o pá-ra-lama no muro baixo de pedras que cercava o outro lado da estrada, deu um último suspiro e parou debaixo de uma azi-nheira que se curvava sobre a estrada como se quisesse tocar o asfalto com seus galhos.
— Oh, mas que droga, mil vezes droga! — vociferou Elinor enquanto soltava o cinto de segurança. — Todos estão bem?
— Agora eu sei por que nunca confiei em automóveis! — murmurou Dedo Empoeirado, abrindo a porta.
Meggie ficou sentada, o corpo todo tremendo. Mo ti-rou-a de dentro do carro e olhou em seus olhos, preocupado.
— Tudo bem?
Meggie fez que sim.
Farid saiu pelo mesmo lado que Dedo Empoeirado. Será que ele ainda achava que era um sonho?
Dedo Empoeirado parou no meio da estrada, com a mochila nos ombros, e escutou atentamente. Ao longe, o ronco de um motor avançava pela noite.
— Temos que tirar o carro da estrada! — ele disse.
— O quê? — Elinor olhou para ele espantada. — Te-mos que empurrá-lo para baixo.
— O meu carro? — Elinor quase gritou.
— Ele tem razão, Elinor — disse Mo. — Talvez assim consigamos despistá-los. Vamos empurrar o carro para baixo. Provavelmente eles nem sequer vão vê-lo no escuro. E, caso vejam, vão pensar que caímos para fora da estrada. Enquanto isso, subimos o morro e nos escondemos entre as árvores.
Elinor lançou um olhar desconfiado para cima.
— Mas é muito íngreme! E se houver cobras?
— Basta já deve ter arranjado uma outra navalha — disse Dedo Empoeirado.
Elinor lançou-lhe um olhar gélido. Então, sem mais uma palavra, ela foi até o carro e abriu o porta-malas.
— Onde está a nossa bagagem? — ela perguntou. De-do Empoeirado mediu-a com um olhar zombeteiro.
— Provavelmente Basta a distribuiu entre as criadas de Capricórnio. Ele gosta de fazer agrados para elas.
Elinor olhou para ele como se não acreditasse numa única palavra. Então fechou o porta-malas, apoiou os braços no carro e começou a empurrar.
Eles não conseguiram.
Por mais que puxassem e empurrassem, o carro de E-linor, embora saísse da estrada, não desceu mais de dois me-tros. Então ele empacou, o nariz de lata entalado no matagal, e não se mexeu mais. Mas o barulho do motor, que soava tão estranho naquele lugar ermo, já penetrava ameaçadoramente alto em seus ouvidos. Empapados de suor, eles voltaram para a estrada — depois de Dedo Empoeirado ter dado um último chute no carro teimoso —, passaram por cima do muro, que parecia não ter uma só pedra com menos de mil anos, e co-meçaram a escalar a encosta. Agora o importante era se afastar da estrada.
Mo puxou Meggie, e Dedo Empoeirado ajudou Farid. Elinor já estava bastante ocupada consigo mesma. Toda a en-costa estava coberta de muros, tentativa penosa de delimitar pequenos campos e jardins na terra árida, para algumas olivei-ras, vinhas e o que mais desse fruto naquele solo. Mas as ár-
vores estavam cercadas de mato e a terra coberta de frutos que ninguém colhera, porque os homens haviam ido embora para algum lugar em busca de uma vida menos dura.
— Abaixem a cabeça! — disse Dedo Empoeirado ofe-gante, enquanto se agachava com Farid atrás de um dos mu-ros desmoronados. — Eles estão vindo.
Mo puxou Meggie para trás da árvore mais próxima. A touceira espinhosa que crescia entre as raízes enodoadas tinha a altura exata para escondê-los.
— E as cobras? — sussurrou Elinor enquanto camba-leava atrás deles.
— Aqui é muito frio para elas! — sussurrou Dedo Empoeirado de seu esconderijo. — A senhora não aprendeu nada sobre elas nos seus livros?
Elinor estava com a resposta na ponta da língua, mas Mo tapou sua boca com a mão. Lá embaixo, apareceu o carro. Era o furgão do qual a sentinela dorminhoca havia saído. Sem diminuir a velocidade, o carro passou pelo ponto onde eles haviam empurrado a perua de Elinor e desapareceu depois da próxima curva. Aliviada, Meggie quis tirar a cabeça dos espi-nhos, mas Mo empurrou-a para baixo novamente.
— Ainda não! — ele sussurrou, aprumando os ouvidos.
Era uma noite tão quieta como Meggie nunca vira an-tes. Era como se ela pudesse ouvir as árvores respirarem, as árvores, a relva e a própria noite.
Os faróis do furgão surgiram na encosta de um outro morro: dois dedos de luz na escuridão tateando ao longo de uma estrada invisível. Mas de repente eles pararam de se mo-ver.
— Eles estão voltando! — sussurrou Elinor. — Oh, meu Deus. E agora?
Ela quis se levantar, mas Mo a segurou firme.
— Você está louca? — ele sussurrou. — É tarde de-mais para continuar a subir. Eles nos veriam.
Mo tinha razão. Logo o furgão estava de volta. Meggie
viu como ele parou a apenas poucos metros do ponto onde eles haviam empurrado o carro de Elinor. Ela ouviu o barulho das portas se abrindo, e viu dois homens descerem do carro. Os dois estavam de costas para ela, mas, quando um deles se virou, Meggie pensou ter reconhecido o rosto de Basta, em-bora não passasse de uma mancha clara na noite.
— Aqui está o carro! — disse o outro.
Era Nariz Chato? Pelo menos era alto e largo como ele.
— Veja se eles estão aí dentro.
Sim, era Basta. Meggie teria reconhecido sua voz em meio a milhares de outras.
Nariz Chato começou a descer a encosta, desajeitado como um urso. Meggie o ouviu praguejar, contra o mato, os espinhos, a escuridão e a maldita gentalha que fazia com que ele tivesse que perambular noite afora. Basta ainda permanecia na estrada. Seu rosto adquiriu sombras marcantes quando ele acendeu o cigarro com um isqueiro. A fumaça branca rodo-piou na direção deles e Meggie pensou sentir o cheiro dela.
— Eles não estão aqui! — exclamou Nariz Chato. — Devem ter continuado a pé. Diabos! Você acha que temos que ir atrás deles?
Basta andou até a beira da estrada e olhou para baixo. Então virou-se para observar a encosta onde Meggie estava agachada ao lado de Mo, com o coração aos pulos.
— Eles não podem estar muito longe — ele disse. — Mas no escuro vai ser difícil encontrar a pista deles.
— Também acho! — Nariz Chato ofegava quando a-pareceu de novo na estrada. — Afinal de contas, não somos uns índios imbecis, não é mesmo?
Basta não respondeu. Apenas ficou ali, escutando a noite e fumando seu cigarro. Então sussurrou algo para Nariz Chato. O coração de Meggie quase parou.
Nariz Chato olhou preocupado ao seu redor.
— Não, é melhor irmos buscar os cães! — Meggie o ouviu dizer. — Mesmo que estejam escondidos em algum lu-
gar por aqui, como vamos saber se eles foram para cima ou para baixo?
Basta lançou um olhar para as árvores, olhou para a es-trada e apagou o cigarro no chão. Então voltou para o carro e pegou duas espingardas.
— Primeiro vamos tentar para baixo — ele disse, jo-gando uma espingarda para Nariz Chato. — A gorda deve ter preferido descer.
Sem mais uma palavra, ele desapareceu na escuridão. Nariz Chato lançou um olhar sequioso para o furgão, e foi atrás de Basta com seus passos pesados, sem parar de res-mungar.
Mal os dois haviam sumido de suas vistas, Dedo Em-poeirado levantou-se, silencioso como uma sombra, e apontou para cima. O coração de Meggie parecia querer sair pela boca quando eles o seguiram. Eles escalaram o morro, esgueiran-do-se de árvore em árvore, de moita em moita, sempre lan-çando um olhar para trás. A cada galho que se quebrava sob os seus pés, Meggie tinha um sobressalto, mas felizmente Basta e Nariz Chato também faziam barulho enquanto se em-brenhavam na mata do outro lado da estrada.
Em algum momento eles deixaram de ver a estrada. Mesmo assim, o medo não os abandonou, o medo de que Basta talvez já tivesse voltado e agora subisse o morro atrás deles. Mas, por mais que eles aprumassem os ouvidos, só es-cutavam a própria respiração.
— Logo eles vão notar que escolheram a direção erra-da! — sussurrou Dedo Empoeirado. — E então vão buscar os cães. Foi sorte eles já não os terem trazido. Basta não confia muito neles, e com razão, pois eu os alimentei com queijo. Isso é ruim para o faro dos cães. Mesmo assim, em algum momento eles irão buscá-los, pois o próprio Basta não vai querer voltar para Capricórnio com uma má notícia.
— Então temos que ir mais depressa! — disse Mo.
— E para onde? — Elinor já estava sem fôlego.
Dedo Empoeirado olhou ao redor. Meggie pergun-tou-se para quê. Seus olhos quase não viam nada de tão escu-ro que estava.
— Temos que nos manter na direção sul — disse Dedo Empoeirado. — Na direção da costa. Temos que estar entre outras pessoas, só isso pode nos salvar. Lá embaixo as noites são claras e ninguém acredita no diabo.
Farid estava ao lado de Meggie. Ele olhava atento para a noite, como se o seu olhar pudesse atrair a manhã ou desco-brir, em algum lugar naquele negror, as pessoas das quais De-do Empoeirado falara. Mas não se via uma luz na escuridão além do emaranhado de estrelas que brilhavam frias e distan-tes no céu. Por um momento Meggie viu nelas olhos traiçoei-ros, e ela pensou ouvi-las dizer: “Veja, Basta, ali estão eles. Venha logo, apanhe-os!”.
Eles prosseguiram sua marcha cambaleante, juntos uns dos outros, para que ninguém se perdesse. Dedo Empoeirado tirara a marta da mochila e prendera a coleira na guia antes de deixá-la andar. Gwin não parecia estar gostando muito. A toda hora, Dedo Empoeirado precisava puxá-lo do meio do mato e afastá-lo de todos os cheiros tentadores que se mantinham inacessíveis ao nariz humano. Ele mostrava os dentes e ros-nava irritado, mordia e puxava a guia.
— Droga, vou acabar tropeçando nessa besta em mini-atura! — xingou Elinor. — Será que ele não pode tomar mais cuidado com os meus pés feridos? Uma coisa é certa: assim que estivermos de novo entre seres humanos, irei para o me-lhor quarto de hotel que o dinheiro pode pagar e descansarei os meus pobres pés num travesseiro grande e macio.
— Você ainda tem dinheiro? — A voz de Mo soou in-crédula. — Eles pegaram logo todo o que eu tinha.
— Oh, a minha carteira Basta também pegou logo — disse Elinor. — Mas sou uma mulher precavida. Meu cartão de crédito está num lugar seguro.
— Existe um lugar seguro contra Basta? — Dedo
Empoeirado puxou Gwin de cima de uma árvore.
— Lógico! — respondeu Elinor. — Nenhum homem tem muitas ganas de revistar senhoras gordas e velhas. Isso pode ser vantajoso. Um dos meus livros mais valiosos...
Ela parou de falar de repente e pigarreou, quando seu olhar se deparou com Meggie. Mas Meggie fez de conta que não ouvira a última frase de Elinor, ou que pelo menos não havia entendido do que ela estava falando.
— Tão gorda assim você não é! — ela disse. — E velha também é um exagero.
Como seus pés doíam!
— Oh, muito obrigada, querida! — disse Elinor. — Acho que vou comprá-la do seu pai para que você me diga essas coisas simpáticas três vezes por dia. Quanto você quer por ela, Mo?
— Preciso refletir — disse Mo. — Que tal três barras de chocolate por dia?
Assim eles seguiram conversando, as vozes pouco mais que um murmúrio, enquanto avançavam sobre a pelagem es-pinhenta da colina. O assunto sobre o qual eles falavam não tinha a menor importância, pois todas aquelas palavras sus-surradas serviam apenas para um fim: afastar o medo e o can-saço que tornava suas pernas pesadas. Eles avançavam mais e mais, na esperança de que Dedo Empoeirado soubesse para onde os conduzia. Meggie ficou o tempo todo bem perto de Mo. Pelo menos suas costas ofereciam alguma proteção con-tra os galhos espinhentos. Eles viviam se enroscando na roupa dela e arranhando o rosto, feito animais malvados com garras afiadas que espreitavam na escuridão.
Finalmente, eles deram numa trilha que podiam seguir. Estava cheia de cartuchos de espingarda vazios nas beiras, jo-gados por caçadores que haviam levado a morte àquele lugar silencioso. No chão de terra batida era mais fácil andar, em-bora Meggie mal conseguisse erguer os pés de tanto cansaço. Quando o sono a fez tropeçar nos calcanhares de Mo, ele a
ergueu e a carregou nas costas, como fazia antigamente quando ela ainda não conseguia acompanhar o passo de suas longas pernas. “Pulga”, ele a chamava na época, “Peninha” ou “Sininho”, como a fada de Peter Pan. Às vezes ele ainda a chamava assim.
Cansada, Meggie deitou o rosto no ombro do pai e tentou pensar em Peter Pan em vez de cobras ou homens ar-mados com facas. Mas dessa vez a sua própria história era forte demais para se deixar espantar por uma história inventa-da.
Farid não dissera mais nada. A maior parte do tempo ele ia atrás de Dedo Empoeirado. O garoto parecia ter gosta-do de Gwin.Toda vez que a marta se enroscava com a guia em algum lugar, Farid corria para libertá-la, mesmo que Gwin ar-reganhasse os dentes e tentasse morder seus dedos. Uma vez ele cravou os dentes tão fundo no polegar do garoto que co-meçou a sangrar.
— Então, você ainda acredita que isto aqui é um so-nho? — zombou Dedo Empoeirado quando Farid limpava o sangue.
O garoto não respondeu. Apenas observava seu polegar dolorido. Então ele sugou o sangue e cuspiu.
— E o que mais seria? — ele perguntou.
Dedo Empoeirado olhou para Mo, mas este parecia tão absorto em pensamentos que nem sequer notou o olhar.
— Poderia ser simplesmente uma nova história — disse Dedo Empoeirado.
Farid riu.
— Uma nova história. Gostei. Sempre gostei de histó-rias.
— Ah, é? E o que está achando desta?
— Um pouco espinhenta demais, e já estava na hora de clarear o dia. Mas pelo menos eu não preciso trabalhar. Já é alguma coisa.
Meggie teve que sorrir.
Um pássaro gritou ao longe. Gwin parou e ergueu o fo-cinho. A noite pertencia aos predadores. Sempre tinha sido assim. Em casa, na proteção de luzes e de paredes sólidas, é fácil esquecer isso. A noite protege os caçadores, facilita seu avanço furtivo e acomete de cegueira as suas
presas. As palavras de um dos livros preferidos de Meggie lhe vieram à mente: “... pois as horas da noite são horas poderosas para dentes caninos, garras e patas”.
Ela apoiou o rosto no ombro de Mo. “Talvez agora seja melhor eu andar com minhas próprias pernas”, ela pensou. “Ele já está me carregando há muito tempo.” Então ela adormeceu nas costas do pai.

21. Basta
“Esta floresta, agora tão pacífica, deve ter estre-mecido outrora com os gritos de morte”, pensei. E a imagem era tão convincente que até hoje penso ouvir os gritos.
Robert L. Stevenson, A ilha do tesouro

Meggie acordou quando Mo parou de andar. O cami-nho os levara quase até o cimo da colina. Ainda estava escuro, mas a noite empalidecera, e ao longe começava a erguer seu manto para uma nova manhã.
— Precisamos descansar, Dedo Empoeirado — Meggie ouviu Mo dizer. — O garoto já está cambaleando, os pés de Elinor com certeza também precisam de um descanso, e este lugar até que não é tão mau, se quer saber.
— Que pés? — perguntou Elinor, sentando-se no chão com um gemido. — Você está se referindo a esses bolos do-loridos na ponta das minhas pernas?
— Exatamente — disse Mo, enquanto a ajudava a se levantar. — Eles ainda precisam dar uns passos. Podemos descansar ali em cima.
A cerca de cinqüenta metros à esquerda, bem no topo da colina, entre as oliveiras, havia uma casa baixa, se é que aquela construção merecia esse nome. Meggie escorregou das costas de Mo antes de começarem a subir. As paredes davam a impressão de que alguém empilhara algumas pedras com pressa, o telhado havia desmoronado e, no lugar onde antiga-
mente ficava a porta, havia um buraco escuro.
Mo teve que se abaixar bastante para conseguir passar. O chão estava coberto de ripas e telhas quebradas. Num canto havia um saco vazio, cacos de cerâmica, talvez de um prato ou de uma travessa, alguns ossos roídos.
Mo suspirou.
— Não é muito aconchegante, Meggie — ele disse. — Mas imagine que você está no esconderijo dos Garotos Per-didos ou...
— ...na barrica de Huckleberry Finn — Meggie olhou ao redor. — Acho que mesmo assim prefiro dormir lá fora.
Elinor entrou. Ela também não pareceu gostar muito das acomodações.
Mo deu um beijo em Meggie e voltou para a porta.
— Acredite, aqui dentro é mais seguro! — ele disse. Meggie olhou para ele preocupada.
— Aonde você vai? Você também precisa dormir.
— Que nada, não estou com sono — ele disse, mas seu rosto o desmentia. — Agora durma, está bem?
Então desapareceu lá fora.
Elinor afastou as ripas quebradas com o pé.
— Venha! — ela disse, tirou o casaco e o esticou no chão. — Vamos tentar nos acomodar aqui juntas. Seu pai tem razão, vamos simplesmente imaginar que estamos em outro lugar. Por que as aventuras só podem ser divertidas quando a gente lê?
Enquanto dizia isso, ela se esticava no chão. Hesitante, Meggie deitou-se ao seu lado.
— Pelo menos não está chovendo — observou Elinor, olhando para o telhado desmoronado. — E temos as estrelas sobre nós, embora já estejam um pouco apagadas. Talvez eu devesse mandar abrir alguns buracos no telhado lá de casa.
Com movimentos impacientes de cabeça, ela ofereceu seu braço como travesseiro para Meggie.
— Assim as aranhas não vão passear nas suas orelhas
quando estiver dormindo. Meu Deus — Meggie ainda a ouviu murmurar —, acho que preciso comprar um par de pés no-vos. Estes aqui não têm mais salvação.
Então ela adormeceu.
Meggie, porém, ficou deitada com os olhos abertos es-cutando os ruídos lá fora. Ela ouviu Mo conversando em voz baixa com Dedo Empoeirado, mas não conseguiu entender sobre o que eles falavam. Em certo momento, ela pensou ter ouvido o nome de Basta. O garoto também ficara lá fora. Fa-rid. Mas dele não se ouvia um pio.
Depois de alguns minutos, Elinor começou a roncar. Mas Meggie não conseguia dormir, por mais que tentasse, en-tão se levantou de mansinho e foi de novo para fora. Mo es-tava acordado. Ele estava sentado com as costas apoiadas numa árvore, observando como a manhã expulsava a noite das colinas ao redor. A alguns passos de distância, estava De-do Empoeirado. Ele apenas ergueu um pouco a cabeça quan-do Meggie saiu da cabana. Será que ele pensava em fadas e duendes? Farid estava deitado ao lado dele, encolhido como um cachorrinho, e Gwin estava a seus pés devorando alguma coisa. Meggie virou a cabeça depressa.
O crepúsculo avançava sobre as colinas, conquistando um cume após o outro. Meggie avistou casas ao longe, espa-lhadas como brinquedos nas encostas verdejantes. Em algum lugar atrás delas devia estar o mar. Ela pôs a cabeça no colo de Mo e olhou para o rosto dele.
— Aqui eles não vão nos achar mais, não é? — ela perguntou.
— Não, claro que não! — ele disse, com o rosto não tão despreocupado como a voz, aliás nem um pouco. — Por que você não está dormindo com Elinor?
— Ela ronca — murmurou Meggie.
Mo sorriu. Então, com o cenho franzido, ele olhou de novo para a encosta onde, escondida entre ervas, arbustos es-pinhosos e a relva alta, estava a trilha que os conduzira até ali.
Dedo Empoeirado também não tirava os olhos da tri-lha. A visão dos dois homens vigilantes tranqüilizou Meggie, e ela logo caiu num sono tão profundo quanto o de Farid, como se o terreno diante da casa em ruínas não estivesse coberto de espinhos, mas sim de penas de ganso. E quando Mo a sacudiu e tapou sua boca com a mão, ela pensou que fosse um sonho ruim.
Ele pôs um dedo nos lábios para adverti-la. Meggie ou-viu um farfalhar na relva, os latidos de um cão. Mo ergueu-a e empurrou-a junto com Farid para a escuridão protetora da cabana. Elinor ainda roncava. Ela parecia uma menina a luz que a manhã derramava em seu rosto, mas, assim que Mo a despertou, voltou tudo outra vez: o cansaço, as preocupações e o medo.
Mo e Dedo Empoeirado puseram-se ao lado da entra-da, um à esquerda, o outro à direita, com as costas contra a parede. Vozes masculinas cortaram o silêncio da manhã. Meg-gie pensou ter ouvido os cães fungar e desejou se dissolver em ar, ou em qualquer coisa invisível e sem cheiro. Farid estava ao seu lado, de olhos arregalados. Pela primeira vez,
Meggie percebeu que eles eram quase negros. Ela nun-ca vira olhos tão escuros, as pestanas longas como as de uma menina.
Elinor estava encostada na parede em frente, mordendo os lábios de medo. Dedo Empoeirado fez um sinal para Mo, e antes que Meggie pudesse entender o que os dois pretendiam eles precipitaram-se para fora. As oliveiras atrás das quais eles se esconderam tinham troncos curtos e galhos emaranhados que caíam até o chão, como se o peso das folhas fosse dema-siado para eles. Uma criança poderia se esconder ali facilmen-te, mas será que os galhos ofereciam proteção suficiente tam-bém para dois homens adultos?
Meggie espiou pela abertura da porta. As batidas de seu coração quase a sufocavam. Lá fora o sol subia mais e mais. A luz do dia penetrava em cada vale, debaixo de cada árvore, e
de repente Meggie desejou que a noite voltasse. Mo ajoelha-ra-se para que não vissem a sua cabeça através do emaranhado de galhos. Dedo Empoeirado encostou-se no tronco curvo e ali, terrivelmente perto, no máximo a vinte passos dos dois, estava Basta. Abrindo caminho entre os cardos e a relva alta, ele se aproximava.
— Eles já estão lá embaixo no vale! — Meggie ouviu uma voz mal-humorada resmungar. No instante seguinte, Na-riz Chato apareceu ao lado de Basta. Eles haviam trazido dois cães de aspecto assustador. Meggie viu como eles farejavam, enfiando suas cabeçorras na relva.
— Com as duas crianças e a gorda? — Basta sacudiu a cabeça e olhou para os lados.
Farid espiava atrás de Meggie e recuou assustado, como se alguém o tivesse mordido, quando viu os dois homens.
— Basta? — os lábios de Elinor formaram o nome sem emitir som. Meggie fez que sim e, enxergando os dois com os próprios olhos, Elinor ficou ainda mais pálida do que já esta-va.
— Mas que droga, Basta, quanto tempo você ainda pretende ficar zanzando por aqui? — a voz de Nariz Chato ecoou longe no silêncio que pairava sobre as colinas. — Daqui a pouco as cobras vão acordar, e eu estou com fome. Vamos simplesmente dizer que eles caíram no vale com o carro. Empurramos mais aquela lata velha, e ninguém vai perceber essa mentirinha! As cobras vão dar cabo deles de qualquer maneira. E, se não derem, eles vão se perder, morrer de fome, pegar uma insolação, ou sei lá o quê. De qualquer forma, nunca os veremos novamente.
— Ele deu queijo para eles! — disse Basta, furioso, puxando os cães. — Aquele maldito devorador de fogo ficou alimentando os cachorros com queijo para estragar o faro de-les. Mas ninguém quis acreditar em mim. Não admira que eles abanem o rabo de alegria sempre que vêem a cara horrorosa dele.
— Você bate demais neles! — resmungou Nariz Chato. — Por isso eles não estão se esforçando. Os cães não gostam de apanhar.
— Besteira. É preciso bater neles, senão mordem! Eles gostam do devorador de fogo porque é igualzinho a eles, aba-na o rabinho e é traiçoeiro e feroz. — Um dos cães se deitou na grama e começou a lamber as patas. Furioso, Basta deu um chute nas costelas dele e o puxou. Depois gritou para Nariz Chato: — Pode voltar para a aldeia se quiser! Mas eu vou pe-gar esse devorador de fogo e cortar os dedos dele um por um. Aí veremos se ainda vai conseguir jogar bolas. Eu sempre dis-se que não podíamos confiar nele, mas o chefe achava aqueles joguinhos com fogo tããão divertidos.
— Está bem, está bem.Todo mundo sabe que você nunca o suportou — disse Nariz Chato com uma voz entedi-ada. — Mas talvez ele não tenha nada a ver com o sumiço dos outros. Você sabe, ele sempre foi e voltou quando lhe deu na telha; talvez amanhã volte sem saber de nada.
— Sim, isso seria típico dele — resmungou Basta, que continuou a andar. Passo a passo, se aproximava das árvores atrás das quais Mo e Dedo Empoeirado se escondiam. — E a chave do carro da gorda, foi Língua Encantada que tirou de debaixo do meu travesseiro? Hein? Não. Desta vez, as me-lhores desculpas não vão adiantar nada. Porque ele pegou mais uma coisa, uma coisa que me pertence.
Dedo Empoeirado pôs involuntariamente a mão no cinto, como se temesse que a navalha de Basta pudesse atrair o dono. Um dos cães ergueu a cabeça fungando e puxou Basta na direção das árvores.
— Ele farejou alguma coisa! — Basta baixou a voz. Ela soou rouca de excitação. — Esse animal estúpido finalmente farejou alguma coisa!
Dez passos, ou talvez menos, e ele estaria entre as ár-vores. O que Mo e Dedo Empoeirado fariam? O que pode-riam fazer? Nariz Chato foi atrás de Basta com um ar descon-
fiado.
— Eles devem ter farejado um porco-do-mato — Meggie o ouviu dizer. — É preciso tomar cuidado com esses bichos, eles derrubam e pisoteiam a gente. Droga, acho que tem uma cobra ali. Uma dessas pretas. Você está com o antí-doto no carro, não é?
Ele ficou imóvel, como que petrificado, olhando para o chão em volta dos pés. Basta não lhe deu atenção e foi atrás do cachorro. Mais alguns passos e Mo poderia tocá-lo se esti-casse a mão. Basta tirou a espingarda das costas e parou para escutar. Os cães o puxaram para a esquerda e, com fortes la-tidos, pularam num dos troncos.
Gwin estava entre os galhos.
— O que foi que eu disse? — gritou Nariz Chato. — Eles farejaram uma marta! Esses bichos fedem tanto que eu mesmo poderia farejá-los.
— Só que esta não é uma marta comum! — disse Basta entre os dentes. — Não a está reconhecendo?
Ele olhou para a cabana em ruínas, mas não viu mais nada. Mo aproveitou a ocasião. Pulou de trás da árvore, agar-rou Basta e tentou tirar a espingarda de suas mãos.
— Pega! Pega, seu maldito vira-lata! — berrou Basta, e desta vez os cães realmente pareciam querer obedecer.
Eles pularam em cima de Mo, com os dentes amarelos à mostra.
Antes que Meggie pudesse correr para ajudá-lo, Elinor a segurou firme, como da outra vez em sua casa, por mais que ela se debatesse também agora.
Mas dessa vez Mo não estava sozinho. Antes que os cães pudessem mordê-lo, Dedo Empoeirado agarrou a coleira deles. Meggie pensou que eles iriam trucidar Dedo Empoei-rado quando ele os puxou para trás, mas em vez disso eles lamberam as mãos dele, começaram a pular como se ele fosse um velho amigo e quase o derrubaram, enquanto Mo tapava a boca de Basta para que não pudesse chamá-los de volta.
Mas Nariz Chato também chegou. Por sorte ele demo-rava para entender as coisas. Foi o que os salvou: aquele breve instante em que ele ficou parado olhando para Basta, que se debatia nos braços de Mo.
Dedo Empoeirado havia puxado os cães para a árvore mais próxima. Ele estava acabando de amarrar as guias no tronco áspero quando Nariz Chato despertou de sua paralisia.
— Solte os cachorros! — ele gritou, apontando a es-pingarda para Mo.
Dedo Empoeirado xingou com voz abafada e desa-marrou os cachorros, mas a pedra que Farid jogou foi mais rápida. Ela atingiu Nariz Chato no meio da testa — uma pe-dra muito pequena e discreta, mas que derrubou o gigante na relva, como se fosse uma árvore abatida, bem aos pés de De-do Empoeirado.
— Mantenha os cães longe de mim! — gritou Mo, en-quanto Basta ainda tentava usar a espingarda.
Um dos cães abocanhara a manga de Mo. Ao menos era o que Meggie desejava: que tivesse sido somente a manga.
Antes que Elinor pudesse detê-la, ela correu em direção ao feroz animal e agarrou a coleira cheia de cravos. O cão não soltava, por mais que ela o puxasse. Ela viu o sangue na man-ga de Mo, e o cano da espingarda de Basta quase bateu na ca-beça dela.
Dedo Empoeirado tentou chamar os cães de volta, e eles pareciam dispostos a obedecer, pelo menos soltaram Mo. Mas, ao mesmo tempo, Basta conseguiu se libertar.
— Pega! — ele gritou.
Os cães ficaram ali parados, rosnando, sem decidir se deveriam obedecer a Basta ou a Dedo Empoeirado.
— Malditos vira-latas! — gritou Basta, apontando a es-pingarda para o peito de Mo.
No mesmo instante, Elinor encostou a espingarda de Nariz Chato na cabeça de Basta. As mãos dela tremiam, e o rosto estava coberto de manchas vermelhas, como sempre
acontecia quando ficava nervosa, mas assim mesmo ela pare-cia mais do que decidida a fazer uso da arma.
— Abaixe essa espingarda! — ela disse com voz trê-mula. — E ai de você se disser uma palavra errada para os cães! Talvez eu nunca tenha segurado uma espingarda antes, mas apertar o gatilho com certeza eu consigo.
— Deita! — Dedo Empoeirado ordenou aos cães.
Eles lançaram um olhar inseguro para Basta, mas, quando este se calou, eles se deitaram na grama e deixaram que Dedo Empoeirado os prendesse na árvore mais próxima.
O sangue escorria da manga de Mo. Meggie sentiu ver-tigens com a visão.
Dedo Empoeirado fez uma atadura no ferimento com um lenço de seda vermelho, que absorveu o sangue e o fez desaparecer.
— Não está tão ruim quanto parece — ele disse para Meggie quando ela se aproximou com as pernas bambas.
— Você tem alguma coisa na sua mochila com a qual possamos amarrá-lo? — perguntou Mo, apontando com a ca-beça para Nariz Chato, que ainda estava desmaiado.
— O homem da navalha aqui também vai precisar de uma embalagem! — disse Elinor.
Basta olhou para ela cheio de ódio.
— Não me olhe assim! — ela disse, e cutucou o peito dele com o cano da espingarda. — Uma espingarda destas consegue fazer tantos estragos quanto uma navalha, e pode acreditar que estou tendo algumas idéias bem malvadas.
Basta fez uma careta de desprezo, mas não tirou os o-lhos do dedo indicador de Elinor, que continuava no gatilho.
Na mochila de Dedo Empoeirado havia uma corda, não muito grossa mas firme.
— Não vai dar para os dois — observou Dedo Empo-eirado.
— Para que vocês querem amarrá-los? — perguntou Farid. — Por que não os matam? Era o que eles pretendiam
fazer conosco!
Meggie olhou para ele com assombro, mas Basta deu uma gargalhada.
— Olha só! — ele zombou. — Poderíamos ter apro-veitado o garoto! Mas quem disse que iríamos matá-los? Ca-pricórnio os quer vivos. Mortos não sabem ler.
— Ah, é? E você não queria cortar alguns dedos meus? — perguntou Dedo Empoeirado enquanto enrolava a corda nas pernas de Nariz Chato.
Basta sacudiu os ombros.
— Desde quando alguém morre por causa disso?
Em troca, Elinor cutucou as costelas dele com tanta força que ele quase caiu para trás.
— Vocês ouviram? Acho que o garoto tem razão. Tal-vez devêssemos realmente matar esses sujeitos — ela disse.
Mas eles não fizeram isso, é claro.
Havia mais uma corda na mochila que Nariz Chato carregava, e Dedo Empoeirado começou, com visível prazer, a amarrar Basta. Farid o ajudou. Pelo jeito ele sabia como imo-bilizar uma pessoa.
Eles levaram os dois prisioneiros para a casa em ruínas.
— Não é gentil da nossa parte? Aqui as cobras os dei-xarão em paz por um tempo — disse Dedo Empoeirado, en-quanto conduziam Basta através da abertura estreita. — Ao meio-dia, naturalmente estará bem mais quente por aqui, mas talvez até lá alguém já tenha encontrado vocês. Soltaremos os cães. Se eles forem espertos não voltarão para a aldeia, mas os cães raramente são espertos. Hoje à tarde, o mais tardar, o bando todo virá procurá-los.
Nariz Chato só acordou quando já estava deitado ao lado de Basta sob o teto esburacado. Ele girou os olhos furi-oso e seu rosto ficou vermelho-púrpura. Mas, assim como Basta, não conseguiu emitir nenhum som, pois Farid os havia amordaçado, também de forma bastante profissional.
— Um momento — disse Dedo Empoeirado antes de
deixar os dois entregues ao destino. — Ainda tenho uma pendência, uma coisa que sempre quis fazer.
E, para o horror de Meggie, ele tirou a navalha de Basta do cinto e andou em direção aos prisioneiros.
— O que significa isso? — perguntou Mo, e se pôs em seu caminho. Pelo jeito ele pensara a mesma coisa que Meggi-e, mas Dedo Empoeirado apenas riu.
— Não se preocupe, não vou riscar no rosto dele a mesma estampa com a qual ele embelezou o meu — disse. — Vou apenas fazê-lo sentir um pouco de medo.
E então ele se agachou e cortou a fita de couro que Basta trazia no pescoço, na qual estava pendurado um saqui-nho, fechado com uma fita vermelha. Dedo Empoeirado a-baixou-se e ficou balançando o saquinho para lá e para cá di-ante do rosto de Basta.
— Agora nada mais o protege contra o mau-olhado, contra espíritos e demônios, contra pragas, gatos pretos e tu-do o mais do que você tem medo.
Basta tentou chutá-lo com as pernas amarradas, mas Dedo Empoeirado esquivou-se facilmente.
— Até nunca mais, Basta! Mas, se alguma vez os nos-sos caminhos se cruzarem novamente, eu já tenho isto — ele disse, e amarrou a fita de couro ao redor de seu próprio pes-coço. — Sem dúvida, há um fio de cabelo seu aqui dentro, não é? Não? Talvez seja melhor eu pegar um. Jogar o cabelo de uma pessoa no fogo não faz com que aconteçam coisas terríveis com ela?
— Agora chega! — disse Mo, puxando Dedo Empoei-rado. — Vamos embora. Sabe-se lá quando Capricórnio vai dar pela falta dos dois.
Já lhe contei que ele não queimou todos os livros? A-inda existe um exemplar de Coração de tinta.
Dedo Empoeirado parou abruptamente, como se uma cobra o tivesse mordido.
— Achei que deveria lhe contar — Mo olhou para ele,
pensativo. — Embora saiba que isso vai lhe trazer idéias estú-pidas.
Dedo Empoeirado apenas aquiesceu. E sem dizer uma palavra continuou a andar.
— Por que não pegamos o carro deles? — propôs Eli-nor quando voltaram à trilha que estavam percorrendo. — Eles devem tê-lo deixado na estrada.
— Seria muito arriscado — respondeu Dedo Empoei-rado. — Sabe-se lá quem está nos esperando na estrada. Além disso, precisaríamos de mais tempo para voltar até lá do que para chegar à próxima vila. E um automóvel desses é fácil de achar. Você quer dar pistas para Capricórnio?
Elinor suspirou.
— Foi só uma idéia — ela murmurou, massageando o tornozelo dolorido.
Eles mantiveram-se na trilha, pois as cobras já começa-vam a se movimentar na relva alta. Uma delas, preta e fina, até passou na frente deles, serpenteando pela terra amarela. Dedo Empoeirado enfiou uma vara debaixo de seu corpo escamoso e jogou-a de volta no matagal cheio de espinhos. Meggie ima-ginara que as cobras fossem maiores, mas Elinor assegu-rou-lhe que as menores eram as mais perigosas. Elinor man-cava, mas fazia o máximo para não deter os outros. Mo tam-bém ia mais devagar do que antes. Ele tentava disfarçar, mas estava preocupado com a mordida que o cachorro dera em seu braço.
Meggie ia bem junto dele, sempre voltando o olhar preocupado para o lenço vermelho. Em algum momento eles deram numa estrada pavimentada. Um caminhão carregando botijões de gás enferrujados vinha na direção deles. Todos estavam cansados demais para se esconderem, e além disso o caminhão não vinha da direção de Capricórnio. Meggie viu como o homem no volante olhou espantado ao passar por eles. Eles de fato deviam parecer uma trupe estranha com suas roupas imundas, ensopadas de suor e rasgadas por todos aqueles arbustos espinhentos pelos quais haviam passado.
Pouco depois, eles passaram pelas primeiras casas. Cada vez havia mais delas, cravadas nas encostas, coloridas, com flores nas portas. Não demorou muito e eles estavam na peri-feria de uma cidade maior. Meggie viu casas de vários andares, palmeiras com folhas empoeiradas e, de repente, não muito longe, o mar prateado.
— Meu Deus do céu, espero que nos deixem entrar em algum banco — disse Elinor. — As pessoas devem estar achando que fomos atacados por um bando de salteadores.
— E foi isso mesmo que aconteceu. — disse Mo. — Não foi?

22. Em segurança
Os dias arrastavam-se melancólicos, mas cada novo amanhecer levava consigo um pouquinho da angústia que oprimia a alma do garoto.
Mark Twain, As aventuras de Tom Sawyer

Apesar das meias rasgadas, Elinor não foi barrada na agência bancária. Antes disso, porém, ela entrou no primeiro café que encontrou e desapareceu no banheiro feminino. Meggie nunca soube onde exatamente ela costumava esconder suas coisas de valor, mas, quando Elinor voltou, havia lavado o rosto, os cabelos não estavam mais tão desgrenhados e ela empunhava com um ar triunfante um cartão de crédito dou-rado. Então ela pediu café-da-manhã para todo mundo.
Era uma sensação estranha de repente estar num café, comendo e observando lá fora na rua pessoas absolutamente normais indo para o trabalho, fazendo compras ou apenas passando por ali e conversando. Meggie quase não podia a-creditar que passara só duas noites e um dia na aldeia de Ca-pricórnio, e que tudo aquilo — toda aquela agitação cotidiana lá fora — não cessara durante esse tempo.
Mas alguma coisa havia mudado. Desde que Meggie vi-ra Basta encostar a faca no pescoço de Mo, era como se o mundo tivesse adquirido uma mancha, uma terrível queima-dura marrom-escura que ainda se alastrava, crepitando e exa-lando mau cheiro.
Mesmo as coisas mais inocentes de repente tinham uma
sombra suja. Uma mulher sorriu para Meggie e parou na vi-trine de um açougue. Um homem puxava uma criança com tamanha impaciência que ela tropeçou e começou a chorar com o joelho machucado. E aquele ali, por que seu casaco tinha uma saliência na altura do cinto? Será que ele possuía uma navalha como Basta?
A paz parecia irreal, falsa. A fuga através da noite e o medo na cabana abandonada pareciam a Meggie mais reais do que a limonada que Elinor lhe oferecia.
Farid mal tocou no copo que recebeu. Cheirou o con-teúdo amarelo, tomou um gole e então ficou olhando pela ja-nela. Seus olhos não conseguiam decidir quem ou o que deve-riam seguir. Sua cabeça ia para lá e para cá, como se ele a-companhasse um jogo invisível cujas regras tentava desespe-radamente entender.
Depois do café-da-manhã, Elinor perguntou no balcão qual era o melhor hotel da cidade. Enquanto ela pagava a conta com seu cartão de crédito, Meggie e Mo observavam as delícias que estavam expostas na vitrine do balcão. Quando se viraram, Dedo Empoeirado e Farid haviam desaparecido. E-linor ficou muito preocupada, mas Mo a tranqüilizou.
— Você não consegue segurar Dedo Empoeirado com uma cama de hotel. Ele não gosta de dormir debaixo de um teto muito firme — ele disse — e sempre andou sozinho por aí. Talvez ele queira ir embora, talvez pare na próxima esquina e faça uma apresentação para os turistas. Mas pode estar certa de que para Capricórnio ele não voltará.
— E Farid? — Meggie não conseguia acreditar que ele simplesmente se fora com Dedo Empoeirado.
Mo apenas sacudiu os ombros.
— Você não reparou que ele não desgrudou de Dedo Empoeirado o tempo todo? — ele disse. — Não sei se foi por causa dele ou de Gwin.
O hotel que recomendaram a Elinor no café ficava numa praça, perto da avenida ladeada de palmeiras e de lojas
que atravessava a cidade. Elinor pediu dois quartos no último andar, de cuja sacada se podia ver o mar. Era um hotel grande. Embaixo, na entrada, ficava um homem vestido de forma es-quisita que, embora parecesse espantado com a falta de baga-gem dos três, ignorou com um sorriso simpático as roupas sujas que vestiam. As camas eram tão macias e tão brancas que a primeira coisa que Meggie fez foi enfiar a cara nelas. A sensação de estar fora da realidade, porém, não desaparecera. Alguma parte dela ainda estava na aldeia de Capricórnio, tro-peçava em espinhos e escondia-se trêmula na cabana em ruí-nas, enquanto Basta se aproximava do lado de fora. Com Mo, parecia acontecer a mesma coisa. Sempre que ela olhava para ele, seu rosto estava com uma expressão ausente e, em vez do alívio que esperava depois de tudo o que haviam passado, ela descobriu tristeza e uma melancolia que a assustava.
— Você não está pensando em voltar, está? — ela perguntou ao pai, quando viu novamente aquela expressão no rosto dele.
Ela o conhecia tão bem.
— Não, não se preocupe! — ele respondeu, e acariciou seus cabelos. Mas Meggie não acreditou nele.
Elinor parecia nutrir os mesmos temores que Meggie. Por diversas vezes ela falou com Mo com uma cara muito sé-ria — na porta do quarto no corredor do hotel, no ca-fé-da-manhã, no almoço — e, quando Meggie se aproximava, ela parava de repente. Foi também Elinor quem chamou um médico para cuidar do braço de Mo, embora ele achasse que não era necessário, e quem comprou roupas novas para todos eles, junto com Meggie pois, como ela dissera: “Se eu escolher algo para você, sei que vai acabar não usando”. Além disso, ela fez muitos telefonemas. Ela telefonava o tempo inteiro e visitou todas as livrarias da cidade. No terceiro dia, no ca-fé-da-manhã, ela de repente declarou que iria para casa.
— Meus pés não estão mais doendo, a saudade dos meus livros está me matando, e se eu topar com mais um tu-
rista em traje de banho vou começar a gritar — ela disse para Mo. — Já aluguei um carro. Mas, antes de partir, gostaria de lhe dar isto aqui!
Com essas palavras, ela passou um papelzinho para Mo por cima da mesa. Nele havia um nome e um endereço, escri-tos com a letra grande e impetuosa de Elinor.
— Eu o conheço, Mortimer! — ela disse. — Sei muito bem que Coração de tinta não sai da sua cabeça. Por isso, arran-jei o endereço de Fenoglio para você. Acredite, não foi fácil, mas afinal há um boa chance de que ele ainda possua alguns exemplares. Ele não mora longe daqui. Prometa-me que irá visitá-lo e tirar para sempre da sua cabeça o livro que está na-quela maldita aldeia.
Mo ficou olhando para o endereço como se quisesse decorá-lo, então guardou o papel em sua carteira nova.
— Você tem razão, vale a pena fazer uma tentativa! — ele disse. — Muito obrigado, Elinor!
Ele até parecia um pouco feliz.
Meggie não entendera uma palavra. Ela apenas sabia de uma coisa: que estava certa. Mo ainda pensava em Coração de tinta, não conseguia se conformar por tê-lo perdido.
— Quem é Fenoglio? — ela perguntou com voz inse-gura. — Algum dono de livraria?
O nome lhe pareceu conhecido, mas ela não conseguiu se lembrar de onde.
Mo não respondeu. Ficou olhando pela janela.
— Vamos embora com Elinor, Mo! — disse Meggie. — Por favor!
Era bom passear pela praia de manhã, e Meggie gostava das casas coloridas, mas ela queira ir embora. A cada vez que via as colinas que se erguiam atrás da cidade, seu coração batia mais depressa e, por diversas vezes, ela pensou ver no meio da multidão o rosto de Basta ou de Nariz Chato. Ela queria ir para casa, ou pelo menos até a casa de Elinor. Queria ver Mo fazendo novos trajes para os livros de Elinor, imprimindo no
couro finas estampas douradas, escolhendo papéis para as fo-lhas de guarda, preparando o tecido, apertando a prensa. Que-ria que tudo voltasse a ser como era antes daquela noite em que Dedo Empoeirado aparecera.
Mas Mo sacudiu a cabeça.
— Antes preciso fazer essa visita, Meggie — ele disse. — Então iremos para a casa de Elinor. O mais tardar depois de amanhã.
Meggie olhou para o prato. Que coisas incríveis se po-diam comer no café-da-manhã de um hotel caro... mas ela não tinha mais apetite para waffles com morangos frescos.
— Muito bem, então vejo vocês daqui a dois dias. Quero que me dê a sua palavra de honra, Mortimer! — era impossível ignorar a preocupação na voz de Elinor. — Você virá, mesmo que não consiga nada com Fenoglio. Prometa!
Mo não conteve o riso.
— Palavra de honra, Elinor — ele disse.
Elinor deu um suspiro profundo de alívio e mordeu o croissant que ficara o tempo todo esperando no prato.
— Não me pergunte o que tive que fazer para conse-guir esse endereço! — ela disse com a boca cheia. — Esse homem realmente não mora longe daqui, de carro deve ser menos de uma hora de viagem. Estranho que ele e Capricór-nio morem tão perto um do outro, não é?
— Sim, é estranho — murmurou Mo, olhando pela ja-nela. O vento agitava as palmeiras no jardim do hotel.
— Quase todas as histórias de Fenoglio se passam nes-ta região — prosseguiu Elinor — mas, pelo que sei, ele viveu fora do país por muito tempo e só voltou há poucos anos.
Ela fez um sinal para a garçonete, que lhe serviu café. Meggie sacudiu a cabeça quando ela lhe perguntou se queria mais alguma coisa.
— Mo, eu não quero mais ficar aqui! — ela disse bai-xinho. — E também não quero visitar ninguém. Quero ir para casa. Ou pelo menos para a casa de Elinor.
Mo pegou a xícara de café. Ele ainda fazia uma careta de dor quando mexia o braço esquerdo.
— Faremos essa visita amanhã, Meggie — ele disse. — Você mesma ouviu, não é longe daqui. E o mais tardar depois de amanhã você dormirá novamente naquela cama gigantesca de Elinor, onde caberia toda a sua classe.
Ele queria fazê-la rir, mas Meggie não estava animada. Ela observou os morangos em seu prato. Como eram verme-lhos.
— Também vou precisar alugar um carro, Elinor — disse Mo. — Você pode me emprestar o dinheiro? Eu devol-vo assim que nos encontrarmos novamente.
Elinor fez que sim e lançou um longo olhar para Meg-gie.
— Sabe de uma coisa, Mortimer? — ela disse. — Acho que por enquanto não é bom falar de livros com a sua filha. Eu me lembro dessa sensação. Toda vez que eu via o meu pai tão enfronhado num deles que nós ficávamos invisíveis, eu tinha vontade de pegar uma tesoura e picá-lo em pedacinhos. E agora? Agora eu fiquei tão louca quanto ele. Não é estra-nho? Pois é!
Ela dobrou o guardanapo e arrastou a cadeira para trás.
— Agora vou fazer a mala, e você vai contar à sua filha quem é Fenoglio.
Então ela se foi. E Meggie estava sozinha com Mo. Ele pediu mais um café, embora nunca bebesse mais de uma xíca-ra.
— O que há com os seus morangos? — ele perguntou. — Você não vai comer?
Meggie sacudiu a cabeça. Mo deu um suspiro e pegou um.
— Fenoglio é o homem que escreveu Coração de tinta — ele disse.
— Pode ser que ele ainda tenha alguns exemplares. É até mesmo bastante provável.
— Ah, que nada! — disse Meggie com desdém. — Ca-pricórnio já deve ter roubado esses também. Ele roubou to-dos, você mesmo viu!
Mas Mo sacudiu a cabeça.
— Acho que em Fenoglio ele não pensou. Sabe, acon-tece uma coisa curiosa com os escritores. A maior parte das pessoas não consegue imaginar que os livros são escritos por pessoas iguais a elas. Normalmente elas supõem que os escri-tores já estão mortos, e quase ninguém imagina que possa cruzar com um deles na rua ou no supermercado. As pessoas conhecem as suas histórias, mas não os seus nomes, e muito menos o rosto. E a maior parte dos escritores gosta disso. Você ouviu Elinor contar que foi muito difícil descobrir o endereço de Fenoglio. É mais do que provável que Capricór-nio não faça idéia de que o criador dele vive a menos de duas horas daquela aldeia.
Meggie não tinha tanta certeza assim. Pensativa, ela começou a fazer dobras na toalha e depois a desdobrar nova-mente o tecido amarelo-claro.
— Mesmo assim, eu preferiria ir para a casa de Elinor. O livro... — ela hesitou, mas então resolveu dizer. — Não entendo por que você quer o livro de qualquer jeito. Ele não serve para nada.
“Ela se foi”, Meggie acrescentou em pensamento. “Você já tentou trazê-la de volta, mas não é possível. Vamos para casa.”
Mo pegou mais um dos morangos, o menorzinho de todos.
— Os menores são sempre os mais doces — ele disse, e o pôs na boca. — Sua mãe adorava morangos. Ela nunca se cansava de comê-los, e ficava brava quando chovia muito na primavera e eles mofavam nos canteiros.
Um sorriso passou furtivamente por seu rosto quando ele olhou novamente para a janela.
— Só mais esta tentativa, Meggie — ele disse. — Só mais esta. E depois de amanhã iremos para a casa de Elinor. Prometo.

23. Uma noite cheia de palavras
Que criança, ao não conseguir dormir numa noite tépida de verão, não pensou ver no céu o navio pirata de Peter Pan? Quero lhe ensinar a ver esse navio.
Roberto Cotroneo, Se uma criança numa manhã de verão

Meggie ficou no hotel enquanto Mo foi à agência bus-car o automóvel que havia reservado. Ela levou uma cadeira até a sacada e ficou contemplando o mar através da balaustra-da pintada de branco. Como um vidro azul, ele brilhava ao longe, além das casas, e Meggie tentou não pensar em nada, simplesmente em coisa nenhuma. O alarme de um automóvel ecoava até lá em cima, tão alto que ela quase não ouviu Elinor bater na porta.
Ela já estava voltando pelo corredor quando Meggie abriu a porta.
— Ah, você está aí — disse Elinor, e voltou meio en-cabulada. Ela escondia alguma coisa nas costas.
— Estou. Mo foi buscar o automóvel.
— Trouxe uma coisa para você, de despedida — disse Elinor, tirando um pacote achatado das costas. — Não foi fácil achar um livro sem vilões, mas tinha que ser necessaria-mente um que o seu pai pudesse ler para você sem causar da-nos. Acho que com este aqui nada de ruim pode acontecer.
Meggie abriu a embalagem de papel florido. Na capa do
livro viam-se duas crianças e um cão; elas estavam ajoelhadas num pedaço estreito de rocha ou de pedra e olhavam preocu-padas para o abismo atrás delas.
— São poemas — declarou Elinor. — Não sabia se você gostava desse tipo de coisa, mas pensei que, se o seu pai lesse para você, eles certamente soariam maravilhosos.
Meggie abriu o livro. Ela leu: “...nunca lavo minha sombra, mesmo que a tenha há tanto tempo...”. As palavras vieram sopradas das páginas até ela, como uma pequena melodia. Ela fechou o livro novamente, com cuidado.
— Obrigada, Elinor. Eu... infelizmente não tenho nada para você.
— Ah, mas eu também tenho algo muito bom! — disse Elinor, tirando mais um pacotinho da bolsa recém-adquirida. — O que uma devoradora de livros como você vai fazer com um livro só? Este aqui é melhor você ler sozinha. Dentro dele há um monte de vilões. Apesar disso acho que você vai gostar. Afinal de contas, nada como algumas páginas para nos conso-lar quando estamos fora de casa, você não acha?
Meggie concordou com a cabeça.
— Mo me prometeu que iremos nos encontrar com você depois de amanhã — ela disse. — Você vai se despedir dele antes de partir, não é?
Ela pôs o primeiro presente de Elinor em cima da cô-moda e abriu o segundo. Era um livro grosso; isso era bom.
— Ah, não! Prefiro que você faça isso por mim! Não sou muito boa em despedidas. Além disso, logo nos veremos novamente. E eu já disse para ele cuidar bem de você. Nunca deixe os livros abertos — ainda disse Elinor antes de se virar. — Estraga as lombadas. Mas isso o seu pai já deve ter lhe dito milhares de vezes.
— Muitas — disse Meggie, mas Elinor já desaparecera.
Pouco depois, Meggie ouviu alguém arrastando uma mala até o elevador, mas não abriu a porta para ver se era E-linor. Ela também não gostava de despedidas.
O resto do dia, Meggie passou quase todo em silêncio. No fim da tarde, Mo levou-a para jantar num pequeno restau-rante, a apenas duas quadras dali. O sol já se punha quando eles voltaram, e as ruas estavam cheias de gente. O movimen-to era especialmente intenso numa praça, e, quando Meggie abriu caminho com Mo entre a multidão, ela viu que as pes-soas se apinhavam em volta de um cuspidor de fogo.
Todos se calaram quando Dedo Empoeirado fez uma tocha em chamas lamber o seu braço. Enquanto ele se curva-va e os espectadores aplaudiam, Farid andava entre o público estendendo uma pequena caneca de prata. A caneca era a úni-ca coisa que não parecia combinar muito com aquele lugar. Farid, porém, não tinha uma aparência muito diferente da dos garotos que passeavam pela praia e se cutucavam a cada vez que cruzavam com uma garota. Talvez a pele fosse um pouco mais escura e o cabelo um tanto mais preto, mas certamente ao vê-lo ninguém pensaria que ele viera de uma história em que tapetes voavam, montanhas se abriam e lâmpadas podiam realizar desejos. Ele não usava mais o traje azul que lhe che-gava aos pés, e sim uma calça e uma camiseta. Parecia mais velho com elas. Dedo Empoeirado devia tê-las comprado para ele, assim como os sapatos, com os quais ele pisava com mui-to cuidado, como se seus pés ainda não tivessem se acostu-mado a eles. Quando viu Meggie no meio da multidão, ele acenou com a cabeça encabulado e continuou a andar.
Dedo Empoeirado cuspiu uma última bola de fogo no ar, cujo tamanho fez recuar mesmo os espectadores mais co-rajosos, então deixou as tochas de lado e pegou as bolas. Ele as lançou tão alto que as pessoas tiveram que deitar a cabeça para trás para vê-las. Ele as apanhava e lançava para cima no-vamente com o joelho, elas rolavam em seus braços como se puxadas por um fio invisível, apareciam em suas costas como se ele as tivesse colhido do ar vazio, pulavam em sua testa, em seu joelho novamente, tão leves, lembravam pequenas dança-rinas... parecia que nada tinha peso, que era apenas um jogo
alegre... não fosse o rosto de Dedo Empoeirado. Ele se man-tinha sério atrás das bolas rodopiantes, como se não tivesse a menor relação com as mãos que dançavam, nem com a des-treza, nem com a leveza despreocupada. Meggie se perguntou se seus dedos ainda doíam. Eles pareciam avermelhados, mas talvez fosse apenas o brilho do fogo.
Quando Dedo Empoeirado se curvou e guardou as bo-las na mochila, os espectadores foram se dispersando com hesitação, mas ao final restaram apenas Mo e Meggie. Farid sentou-se na calçada e se pôs a contar o dinheiro que havia recolhido. Ele parecia satisfeito, como se nunca tivesse feito outra coisa na vida.
— Então você ainda está aqui — disse Mo.
— Por que não? — Dedo Empoeirado juntou suas coisas, as duas garrafas que já utilizara no jardim de Elinor, as tochas queimadas, a escarradeira, cujo conteúdo derramou com displicência no chão. Ele arranjara uma nova sacola, a antiga devia ter ficado na aldeia de Capricórnio. Meggie apro-ximou-se de mansinho da mochila, mas Gwin não estava den-tro dela.
— Achei que você já tinha ido embora, para um outro lugar, onde Basta não pudesse encontrá-lo.
Dedo Empoeirado sacudiu os ombros.
— Antes eu preciso ganhar mais algum dinheiro. Além disso, eu gosto do clima daqui, e as pessoas sempre param para me ver. E são generosas. Não é verdade, Farid? Quanto ganhamos desta vez?
O garoto teve um sobressalto quando Dedo Empoei-rado se voltou para ele. Farid havia posto de lado a caneca com o dinheiro e ia pôr um palito de fósforo aceso dentro da boca naquele exato momento. Apagou-o rapidamente com os dedos. Dedo Empoeirado reprimiu um sorriso.
— Ele quer aprender a brincar com o fogo de qualquer jeito. Está sempre com bolhas nos lábios.
Meggie olhou discretamente para Farid. Ele agiu como
se não a notasse, enquanto guardava as coisas de Dedo Em-poeirado na sacola, mas ela tinha certeza de que ele escutava atentamente cada palavra que os outros diziam. Duas vezes ela flagrou o olhar de Farid, um olhar escuro, e da segunda vez ele virou o rosto tão bruscamente que quase deixou cair uma das garrafas de Dedo Empoeirado.
— Ei, ei, cuidado com isso, hein? — advertiu-o Dedo Empoeirado, impaciente.
— Não haveria uma outra razão para você ainda estar aqui? — perguntou Mo, quando Dedo Empoeirado se virou para ele outra vez.
— O que você está querendo dizer? — Dedo Empoei-rado desviou o olhar. — Ah, sei. Você está pensando que eu poderia voltar por causa do livro. Está me superestimando. Eu sou um covarde.
— Que besteira! — A voz de Mo soou irritada. — E-linor foi para casa hoje.
— Bom para ela. — Dedo Empoeirado examinou o rosto de Mo com um ar inexpressivo. — E você? Não vai com ela?
Mo olhou para as casas ao redor e sacudiu a cabeça.
— Antes quero visitar alguém.
— Aqui? Quem?
Dedo Empoeirado vestiu uma camisa de mangas cur-tas, uma camisa folgada e colorida que não queria combinar de jeito nenhum com seu rosto marcado por cicatrizes.
— Existe alguém que ainda poderia possuir um exem-plar. Você sabe...
O rosto de Dedo Empoeirado permaneceu impassível, mas seus dedos o denunciaram. De repente eles tinham difi-culdade de enfiar os botões da camisa nas casas.
— Não pode ser! — ele disse com voz rouca. — Ca-pricórnio não deve ter deixado sobrar nenhum.
Mo sacudiu os ombros.
— Talvez. Mas quero tentar mesmo assim. O homem
do qual estou falando não é dono de uma livraria nem de um sebo. Capricórnio provavelmente nem sabe que ele existe.
Dedo Empoeirado olhou ao redor. Alguém fechou a janela de uma das casas, e do outro lado da praça algumas crianças brincavam entre as cadeiras de um restaurante, até que o garçom as expulsou dali. O ar tinha cheiro de comida quente e da fumaça da apresentação de Dedo Empoeirado. Não se via nenhum homem vestido de preto na rua, a não ser o garçom, que arrumava as cadeiras com um ar entediado.
— E quem seria esse misterioso desconhecido? — Dedo Empoeirado baixou a voz num sussurro.
— O homem que escreveu Coração de tinta. O lugar on-de ele mora não fica longe daqui.
Farid aproximou-se com passos lentos, a caneca de prata na mão.
— Gwin ainda não voltou — ele disse para Dedo Em-poeirado. — E não temos mais nada para atraí-lo. Quer que eu vá comprar alguns ovos?
— Não, deixe que ele mesmo se arranja. — Dedo Empoeirado passou o dedo em suas cicatrizes. — Guarde o dinheiro no saco de couro, você sabe, o que está dentro da mochila!
A voz dele soou impaciente. Meggie teria censurado Mo se ele tivesse falado com ela naquele tom, mas Farid pare-cia não se importar. Ele saiu dali todo solícito.
— Eu realmente pensei que havia acabado, que não ha-via mais retorno, nunca mais... — Dedo Empoeirado parou de falar e olhou para cima.
Um avião atravessava o céu noturno piscando luzes coloridas. Farid também olhou. Ele havia guardado o dinheiro e estava sentado ao lado da mochila, esperando. Uma coisa peluda veio deslizando pela praça, agarrou a ponta da calça dele e subiu até o ombro. Com um sorriso, Farid pôs a mão no bolso da calça e deu um pedaço de pão para Gwin.
— E se ainda existir mesmo um livro? — Dedo Empo-
eirado tirou o cabelo da testa. — Você ainda me dá mais uma chance? Tentaria me mandar de volta mais uma vez? Só uma vez?
Sua voz soou tão melancólica que Meggie sentiu pena. Mas o rosto de Mo parecia ausente.
— Você não pode voltar, não para este livro! — ele disse. — Sei que você não quer ouvir uma palavra sobre isso, mas é assim. Conforme-se de uma vez por todas. Talvez eu possa ajudá-lo em algum momento, eu tenho uma idéia, ela é meio maluca, mas...
Ele não continuou, apenas balançou a cabeça e pisou numa caixa de fósforos vazia que estava na calçada.
Meggie olhou para Mo espantada. De que idéia ele es-tava falando? Ela existia de fato ou ele apenas queria consolar Dedo Empoeirado? Se fosse isso, ele não havia atingido o ob-jetivo. Dedo Empoeirado olhou para ele com a velha hostili-dade.
— Irei com você — ele disse. Seus dedos haviam dei-xado um pouco de fuligem no rosto quando ele passou a mão nas cicatrizes. — Irei com você quando for visitar esse ho-mem, e depois veremos.
Atrás deles soaram risadas alegres. Dedo Empoeirado virou-se. Gwin tentava subir na cabeça de Farid, e o garoto ria como se não existisse nada mais delicioso do que algumas garras pontudas de marta no couro cabeludo.
— Ele não tem saudades! — murmurou Dedo Empo-eirado. — Perguntei a ele! Tudo isto aqui lhe agrada — ele disse apontando ao seu redor com a mão. — Até mesmo o barulho e o fedor dos automóveis. Ele está feliz aqui. A ele, pelo visto, você fez um favor.
O olhar que Dedo Empoeirado lançou para o pai de Meggie foi tão reprovador que ela segurou a mão dele invo-luntariamente.
Gwin pulara dos ombros de Farid e farejava a calçada. Uma das crianças que antes brincavam entre as mesas abai-
xou-se e olhou espantada para os pequenos chifres. Mas, antes que ela pudesse estender a mão para o bichinho, Farid se pôs no meio deles, pegou Gwin e sentou-se novamente com a marta nos ombros.
— Onde mora esse...? — Dedo Empoeirado não ter-minou a frase.
— A cerca de uma hora daqui.
Dedo Empoeirado calou-se. No céu, piscavam nova-mente as luzes de um avião.
— Às vezes, de manhã bem cedinho, quando eu ia para o poço me lavar — ele murmurou —, havia umas fadinhas minúsculas voando sobre a água, só um pouco maiores do que as libélulas de vocês, e azuis como violetas. Elas gostavam de voar nos cabelos da gente, às vezes até cuspiam no nosso rosto. Elas não eram muito gentis, mas à noite elas brilhavam como vaga-lumes. De vez em quando eu apanhava uma delas e a trancava num vidro. Quem soltar uma fada a noite antes de dormir terá sonhos maravilhosos.
— Capricórnio disse que havia duendes e gigantes — disse Meggie baixinho.
Dedo Empoeirado olhou pensativo para ela.
— Sim, havia — ele disse. — Duendes, fadas, homen-zinhos de vidro... Capricórnio não gostava muito deles, de nenhum deles, sem exceção. Ele teria matado todos se pudes-se. Capricórnio mandou que perseguissem qualquer coisa com pernas.
— Devia ser um mundo perigoso — Meggie estava tentando imaginar como seria tudo, os gigantes, os duendes... e as fadas.
Uma vez, Mo lhe dera um livro sobre fadas. Dedo Empoeirado sacudiu os ombros.
— Sim, é perigoso, e daí? Este aqui também é perigoso, não é?
De repente, deu as costas para Meggie, andou até a mochila e jogou-a sobre os ombros. Então fez um sinal para o
garoto. Farid ergueu a sacola com as bolas e as tochas e le-vou-a solicitamente para ele. Dedo Empoeirado voltou-se pa-ra Mo mais uma vez.
— Ai de você se contar sobre mim para esse homem! — ele disse. — Não quero vê-lo. Ficarei esperando no carro. Apenas quero saber se ele tem um exemplar do livro, enten-deu? Já que nunca conseguirei o de Capricórnio.
Mo deu de ombros.
— Como você quiser...
Dedo Empoeirado examinou os dedos vermelhos e passou a mão na pele esticada.
— Talvez ele queira me contar como termina a minha história — ele murmurou.
Meggie olhou para ele incrédula. — Você não sabe?
Dedo Empoeirado sorriu. Meggie continuava não gos-tando daquele sorriso. Ele parecia esconder alguma coisa.
— O que tem de mais nisso, princesa? — ele pergun-tou em voz baixa. — Por acaso você sabe como a sua história termina?
Meggie não tinha uma resposta.
Dedo Empoeirado deu uma piscada para ela e se virou.
— Amanhã de manhã estarei no hotel — ele disse.
Então se foi, sem ao menos se virar. Farid o seguiu le-vando a pesada sacola, feliz como um cão perdido que final-mente encontrou um dono.
Naquela noite a lua estava no céu, redonda e alaranjada. Mo abrira as cortinas antes de irem para a cama para que pu-dessem vê-la: um lampião colorido entre todas aquelas estrelas brancas.
Nenhum dos dois conseguia dormir. Mo comprara al-guns livros de bolso, que pareciam um pouco gastos, como se já tivessem passado por muitas mãos. Meggie estava lendo o livro com os vilões que Elinor lhe dera. Ela gostou, mas em algum momento seus olhos ficaram cansados. Ela adormeceu depressa, com Mo ao seu lado. Ele lia sem parar, enquanto a
lua cor de laranja pairava lá fora no céu estranho.
Quando a certa hora ela acordou assustada de um so-nho confuso, Mo ainda estava sentado na cama, com as costas aprumadas, o livro aberto na mão.
A lua já se fora e pela janela só dava para ver a noite.
— Você não está conseguindo dormir? — perguntou Meggie, e sentou-se.
— Ah, aquele cachorro idiota mordeu o meu braço es-querdo, e você sabe que é justamente deste lado que eu durmo melhor. Além disso, estou com preocupações demais na ca-beça.
— Eu também estou com muitas preocupações. — Meggie pegou no criado-mudo o livro de poemas que Elinor lhe dera. Ela alisou a capa, passou a mão na lombada arre-dondada e contornou as letras da capa com o dedo indicador. — Sabe de uma coisa, Mo? Acho que eu também gostaria de saber.
— O quê?
Meggie passou a mão novamente na capa do livro. Ela acreditava tê-lo ouvido sussurrar. Bem baixinho.
— Ler assim — ela disse. — Ler assim, como você. Fazendo tudo ganhar vida.
Mo olhou para ela.
— Você está louca? — ele disse. — Os problemas que temos vêm todos exclusivamente disso.
— Eu sei.
Mo fechou seu livro, com o dedo entre as páginas.
— Leia alguma coisa para mim, Mo! — ela disse baixi-nho. — Por favor. Só uma vez.
Ela estendeu-lhe o livro de poemas.
— Foi Elinor quem me deu. Ela disse que com ele não pode acontecer muita coisa.
— Ah, é? Ela disse isso? — Mo abriu o livro. — E se acontecer? Ele começou a folhear as páginas lisas.
Meggie pôs seu travesseiro bem perto do dele.
— Você não tem mesmo como fazer Dedo Empoei-rado voltar para o livro? Ou você o enganou?
— De jeito nenhum. Você sabe que não sou bom men-tiroso.
— É verdade — Meggie sorriu. — O que você está pensando em fazer, então?
— Vou lhe dizer quando souber se vai funcionar. Mo continuou folheando o livro de Elinor. Com o cenho franzi-do, ele leu uma página, folheou mais um pouco, leu uma ou-tra.
— Por favor, Mo! — Meggie chegou bem pertinho de-le. — Só um poema. Bem pequenininho. Por favor. Para mim.
Ele suspirou.
— Só um? Meggie fez que sim.
Lá fora, o alarme do automóvel silenciara. O mundo estava tão calmo que parecia ter se recolhido num casulo, para somente sair na manhã seguinte, rejuvenescido e pronto para outra.
— Por favor, Mo, leia! — disse Meggie.
E Mo começou a preencher o silêncio com palavras. Ele as atraía para fora das páginas, como se elas estivessem esperando apenas por sua voz — palavras longas e breves, altivas e ternas, ronronantes, rumorejantes. Elas dançavam pelo quarto, pintavam imagens de vidro colorido e faziam có-cegas na pele. Mesmo enquanto dormia, Meggie ainda podia ouvi-las, embora Mo já tivesse fechado o livro. Palavras que lhe explicavam o mundo, o lado sombrio e o lado iluminado, e construíam um muro contra sonhos ruins. Naquela noite, nem um único pesadelo conseguiu atravessá-lo.
Na manha seguinte, um passarinho voava sobre a cama de Meggie, cor de laranja como o luar da noite anterior. Ela tentou pegá-lo, mas ele voou para a janela, o céu azul esperava por ele. O passarinho bateu no vidro várias vezes, machucan-do a cabecinha minúscula. Até que Mo abriu a janela e o dei-xou sair.
— E então, você ainda gostaria de conseguir ler como eu? — perguntou Mo, depois que Meggie seguiu o pássaro com o olhar até ele se fundir com o azul.
— Ele era maravilhoso! — ela disse.
— Sim, mas será que vai gostar daqui? — perguntou Mo. — E quem será que foi para o lugar dele, lá de onde ele veio?
Meggie sentou-se perto da janela, enquanto Mo descia para pagar a conta. Ela se lembrava exatamente do último poema que Mo lera na noite anterior. Ela pegou o livro no criado-mudo, hesitou por um instante — e abriu-o.
Há um lugar onde termina a calçada
Antes de começar a rua
Ali cresce a relva clara e macia
Ah arde o sol quente e purpúreo
E ali dorme o pássaro-da-lua
Depois de longa viagem
No vento frio de hortelã.

Meggie sussurrou as palavras de Shel Silverstein enquanto lia, mas nenhum pássaro-da-lua saiu do abajur. E o cheiro de hortelã ela certamente estava apenas imaginando.

24. Fenoglio

Vocês não me conhecem, a não ser que tenham lido um livro que se chama As aventuras de Tom Sawyer, mas isso não tem importância. Foi o Sr. Mark Twain quem fez o livro, e o que ele conta ali dentro é verdade, quer dizer, mais ou menos. Em algumas coisas ele exagerou, mas na maior parte não. Na verdade, tanto faz. Eu ainda não conheci ninguém que não minta de vez em quando.
Mark Twain, As aventuras de Huckleberry Finn

Dedo Empoeirado já esperava no estacionamento com Farid quando eles chegaram do hotel. Sobre as colinas próxi-mas pairavam nuvens de chuva, que um vento morno e úmido impelia lentamente para o mar. Tudo parecia cinzento naquele dia, até mesmo o reboco colorido das casas e os arbustos flo-ridos na beira da estrada. Mo pegou a estrada costeira, que Elinor dissera ter sido construída pelos romanos, e seguiu na direção oeste.
Durante toda a viagem, o mar estava a esquerda deles, a água até o horizonte, algumas vezes escondido pelas casas, outras pelas árvores. Naquela manhã não parecia tão convida-tivo como no dia em que Meggie viera das montanhas com Elinor e Dedo Empoeirado. O cinza do céu refletia-se opaco nas ondas, e a espuma borbulhava como num balde de água suja. Várias vezes, quando deu por si, Meggie estava olhando
de novo para a direita, na direção das colinas, entre as quais, em algum lugar, se escondia a aldeia de Capricórnio. Uma vez, ela até mesmo pensou ter visto a pálida torre da igreja atrás de um monte escuro e seu coração disparou, embora ela soubes-se que aquela não podia ser a igreja de Capricórnio. Afinal de contas, seus pés ainda se lembravam perfeitamente do longo caminho.
Mo dirigia mais depressa do que de costume, muito mais depressa, parecia louco para chegar. Depois de quase uma hora, eles saíram da estrada costeira e seguiram por uma estradinha estreita e sinuosa que os conduziu através de um vale cinzento, coberto de construções. As encostas estavam repletas de estufas, com vidraças caiadas contra o sol, que na-quele dia se ocultava atrás das nuvens. Somente quando a es-trada começou a subir, o verde voltou a aparecer dos dois la-dos da estrada. Campos incultos empurravam os muros e oli-veiras retorciam-se à beira da estrada. Eles passaram por al-gumas bifurcações e várias vezes Mo precisou consultar o mapa que havia comprado, mas no final os nomes nas placas estavam sempre certos.
Eles entraram numa pequena vila, que não tinha quase nada além de uma praça, algumas casas e uma igreja que se parecia muito com a da aldeia de Capricórnio. Quando desceu do carro, Meggie avistou o mar lá embaixo. Mesmo daquela distância, via-se a espuma nas ondas, tão agitado ele estava naquele dia cinzento. Mo estacionara o carro na praça, ao lado do monumento aos mortos de duas guerras passadas. A lista de nomes era extensa para um lugarejo tão pequeno. Meggie teve a impressão de que havia quase tantos nomes quanto ca-sas na aldeia.
— Pode deixar aberto que eu tomo conta! — disse Dedo Empoeirado quando Mo quis trancar o carro.
Ele jogou a mochila nos ombros, prendeu Gwin na corrente embora a marta estivesse cochilando, e sentou-se num degrau da escadaria do monumento. Sem dizer uma pa-
lavra, Farid acomodou-se ao lado dele. Mas Meggie foi atrás de Mo.
— Lembre-se de que você prometeu não dizer nada sobre mim! — gritou Dedo Empoeirado atrás deles.
— Está bem, está bem! — respondeu Mo.
Farid estava brincando com fósforos novamente; Meg-gie surpreendeu-o quando se virou mais uma vez para obser-var o local. Ele já aprendera a apagar o palito na boca, mas Dedo Empoeirado tirou os fósforos dele assim mesmo e Fa-rid ficou olhando infeliz para as mãos vazias.
Com a profissão de seu pai, Meggie tivera oportunidade de conhecer muitas pessoas que gostavam de livros, pessoas que os vendiam, colecionavam, imprimiam ou, como Mo, cuidavam deles para que não se deteriorassem, mas nunca an-tes ela havia encontrado alguém que escrevia as frases que preenchiam todas aquelas páginas. Ela nem ao menos sabia o nome do autor de alguns dos seus livros favoritos, o que dizer então da cara que eles tinham. Ela sempre via os personagens que surgiam das palavras, nunca os que estavam por trás delas e os haviam inventado. Era como Mo havia dito: a maior par-te das vezes imaginamos os escritores mortos, ou então muito, muito velhos. Mas o homem que abriu a porta depois de Mo ter tocado duas vezes a campainha não era nem uma coisa nem outra. Bem... velho ele era, sim, bastante velho, pelo menos aos olhos de Meggie, com uns sessenta anos no míni-mo, ou talvez mais. Seu rosto era enrugado como o de uma tartaruga, mas seus cabelos eram pretos, sem o menor reflexo grisalho (mais tarde ela descobriria que ele os tingia), e não parecia exatamente frágil. Ao contrário, ele se plantou diante deles no batente da porta de uma maneira tão imponente que a língua de Meggie ficou paralisada na hora.
Felizmente não aconteceu o mesmo com Mo.
— Senhor Fenoglio? — ele perguntou.
— Sim?
Seu rosto adquiriu uma expressão ainda mais ausente.
Todas as rugas se encheram de desagrado. Mas isso não pare-ceu impressionar Mo.
— Mortimer Folchart — ele se apresentou. — Esta é minha filha, Meggie. Um dos livros do senhor me trouxe até aqui.
Um menino apareceu na porta ao lado de Fenoglio, um menino pequeno, de uns cinco anos de idade, e do outro lado uma menina enfiou-se entre o velho e o batente. Ela lançou um olhar curioso para Mo e depois para Meggie.
— Pippo roubou o chocolate do bolo — Meggie ou-viu-a sussurrar enquanto olhava preocupada para Mo.
Quando ele piscou para a menina, ela deu uma risadi-nha e se escondeu nas costas de Fenoglio, que continuava com cara de poucos amigos.
— Todo o chocolate? — ele murmurou. — Eu já vou. Diga a Pippo que ele se meteu numa encrenca danada.
A menina fez que sim e saiu correndo, parecendo feliz por ser a portadora da má notícia. O menino abraçou a perna de Fenoglio.
— Trata-se de um livro muito especial — prosseguiu Mo. — Coração de tinta. O senhor o escreveu faz muito tempo e infelizmente não é mais possível comprá-lo em lugar ne-nhum.
Meggie mal conseguia acreditar que as palavras se des-grudavam dos lábios de Mo, com o olhar sombrio que ainda repousava sobre ele.
— Sei. E daí? — Fenoglio cruzou os braços.
A menina apareceu novamente, à esquerda dele.
— Pippo se escondeu — ela sussurrou.
— Isso não vai adiantar nada — disse Fenoglio. — Eu sempre o encontro.
A menina disparou dali novamente. Meggie a ouviu chamar pelo ladrão de chocolate dentro da casa.
Mas Fenoglio voltou-se para Mo.
— O que o senhor deseja? Caso queira me fazer per-
guntas capciosas sobre o livro, esqueça. Não tenho tempo pa-ra essas coisas. Além disso, como o senhor mesmo disse, já faz uma eternidade que o escrevi.
— Não, não quero fazer perguntas, a não ser uma. Eu gostaria de saber se o senhor ainda possui alguns exemplares, e se poderia me vender um deles.
Agora o velho homem já não olhava para Mo com um ar tão ausente.
— Ora, vejam só. O senhor deve ter de fato gostado do livro. Sinto-me lisonjeado. Muito embora... — seu rosto se fechou novamente. — O senhor não é um desses malucos que colecionam livros raros só porque são raros, é?
Mo sorriu.
— Não! — ele disse. — Eu gostaria de lê-lo. Só de lê-lo.
Fenoglio apoiou um braço no batente da porta e olhou para a casa da frente, como se temesse que ela pudesse des-moronar no instante seguinte. A viela onde ele morava era tão estreita que, se Mo esticasse os braços, poderia tocar os dois lados. Muitas das casas eram feitas de pedras rústicas cor de areia, como as casas na aldeia de Capricórnio, porém ali havia flores nas janelas e também nas escadas, e muitas janelas pare-ciam recém-pintadas. Na frente de uma casa havia um carri-nho de bebê, diante de outra, uma lambreta, e ouviam-se vo-zes pelas janelas abertas. Em algum momento, pensou Meggi-e, a aldeia de Capricórnio havia sido como aquela.
Uma velha senhora passou por eles e olhou desconfiada para os estranhos. Fenoglio acenou para ela com a cabeça, murmurou um breve cumprimento e esperou até que ela de-saparecesse atrás de uma porta pintada de verde.
— Coração de tinta — ele disse. — Faz muito tempo mesmo. E é estranho que o senhor venha me perguntar jus-tamente por ele.
A menina voltou. Ela puxou a manga de Fenoglio e cochichou alguma coisa em seu ouvido. O rosto de tartaruga
de Fenoglio abriu-se num sorriso. Meggie gostou muito mais dele assim.
— Eu sei, ele sempre se esconde lá, Paula — ele disse baixinho para a menina. — Talvez você deva aconselhá-lo a tentar um esconderijo melhor.
Paula saiu correndo pela terceira vez, não sem antes lançar para Meggie um olhar cheio de curiosidade.
— Bem, vamos entrar — disse Fenoglio.
Sem mais uma palavra, ele fez um sinal para Mo e Meg-gie entrarem na casa. Mancando, pois o menino ainda estava pendurado na sua perna feito um macaquinho, ele os condu-ziu ao longo de um estreito corredor. Ao final, Fenoglio abriu a porta que dava na cozinha, onde, em cima da mesa, se en-contravam as ruínas de um bolo. A cobertura marrom estava cheia de buracos, como a capa de um livro roído pelas traças durante muitos anos.
— Pippo? — Fenoglio gritou tão alto que a própria Meggie estremeceu, embora não se sentisse culpada por ne-nhum crime. — Sei que você está me ouvindo. E agora escute bem, para cada buraco neste bolo vou dar um nó no seu nariz. Entendeu?
Meggie ouviu uma risadinha. Parecia vir do armário que havia ao lado da geladeira. Fenoglio partiu um pedaço do bolo furado para si.
— Paula — ele disse —, dê um pedaço para a menina, caso ela não se importe com os buracos.
Paula saiu de sob a mesa e esperou a resposta de Meg-gie.
— Eu não me importo — disse Meggie.
Então Paula pegou uma faca enorme, cortou um peda-ço igualmente enorme do bolo e o pôs em cima da toalha na frente de Meggie.
— Pippo, passe um dos pratos de rosas para cá — dis-se Fenoglio.
De dentro do armário saiu uma mão com um prato. Os
dedos estavam marrons de chocolate. Meggie pegou-o rapi-damente antes que caísse, e pôs o pedaço de bolo em cima dele.
— O senhor também quer? — perguntou Fenoglio pa-ra Mo.
— Eu preferiria o livro — respondeu Mo. Ele estava bastante pálido.
Fenoglio colheu o menininho da sua perna e sentou-se.
— Rico, vá procurar uma outra árvore — ele disse, e então voltou-se para Mo com um ar pensativo. — Não posso lhe dar o livro. Não possuo mais nenhum exemplar. Todos foram roubados, todos. Eu os emprestei para uma exposição sobre livros infantis antigos, em Gênova. Entre eles havia uma edição especial, ricamente ilustrada, e também um exemplar com uma dedicatória do ilustrador, os dois livros que perten-ciam aos meus filhos, junto com todas as anotações que eles rabiscaram (eu sempre pedi a eles que sublinhassem as partes de que mais gostavam), e finalmente o meu exemplar pessoal. Todos foram roubados, dois dias após a inauguração da expo-sição.
Mo passou a mão no rosto como se pudesse apagar de-le a decepção.
— Roubados! — ele disse. — É claro.
— É claro? — Fenoglio apertou os olhos e olhou para Mo cheio de curiosidade. — O senhor precisa me explicar isso. Não o deixarei sair da minha casa antes de saber por que o senhor está interessado justamente nesse livro. Olhe que posso soltar as crianças em cima do senhor, o que não seria nada agradável.
Mo tentou sorrir, mas não conseguiu muito bem.
— O meu também foi roubado — ele disse finalmente. — E também era um exemplar muito especial.
— Incrível — Fenoglio ergueu as sobrancelhas. Elas pareciam lagartas arrepiadas sobre os seus olhos. — Vamos, conte-me.
Toda a hostilidade desaparecera do rosto do homem. A curiosidade tomara o seu lugar, nada além da pura curiosidade. Nos olhos de Fenoglio, Meggie reconheceu a mesma fome insaciável por histórias que ela sentia a cada vez que um novo livro aparecia diante de seus olhos.
— Não há muito o que contar — respondeu Mo, e Meggie percebeu na voz do pai que ele não pretendia contar a verdade ao velho escritor. — Eu restauro livros. Vivo disso. Encontrei o seu livro num sebo há muitos anos, eu pretendia reencaderná-lo e depois vendê-lo, mas gostei tanto que acabei ficando com ele. Então ele foi roubado e eu tentei em vão adquirir um novo exemplar. Uma amiga que entende muito de livros raros finalmente me sugeriu que procurasse o próprio autor. Foi ela que conseguiu o seu endereço para mim. E en-tão eu vim até aqui.
Fenoglio apanhou algumas migalhas de bolo da mesa.
— Muito bem — ele disse. — Mas me conte o resto da história.
— O que o senhor está querendo dizer?
O velho homem olhou firme para Mo até que este vi-rou a cabeça e olhou pela estreita janela da cozinha.
— Estou querendo dizer que consigo farejar boas his-tórias a quilômetros de distância, portanto não tente esconder uma de mim. Vamos lá, desembuche. O senhor também re-ceberá um pedaço desse fabuloso bolo furado.
Paula sentou-se no colo de Fenoglio. Encaixou a cabe-ça debaixo do queixo dele e ficou olhando para Mo tão cheia de expectativas como o seu velho avô.
Mas Mo sacudiu a cabeça.
— Não, acho melhor deixar isso para lá. De qualquer forma, o senhor não acreditaria numa só palavra.
— Oh, eu acredito nas coisas mais malucas! — retru-cou Fenoglio, enquanto cortava um pedaço de bolo para Mo. — Eu acredito em qualquer história, desde que seja bem con-tada.
A porta do armário abriu-se um pouquinho, e Meggie viu a cabeça de um menino sair para fora.
— E o meu castigo? — ele perguntou.
Devia ser Pippo, a julgar pelos dedos sujos de chocola-te.
— Depois — disse Fenoglio. — Agora tenho outra coisa para fazer. Decepcionado, Pippo saiu do armário.
— Você disse que ia dar nós no meu nariz.
— Nó duplo, nó de marinheiro, nó borboleta, o que você quiser, mas antes preciso ouvir essa história. Fique fa-zendo mais algumas traquinagens até que eu tenha tempo para os seus nós.
Pippo fez uma tromba e desapareceu no corredor. O outro menininho correu depressa atrás dele.
Mo continuava calado, enfiando migalhas de bolo no tampo arranhado da mesa e desenhando figuras invisíveis com o dedo.
— Nessa história aparece uma pessoa, e eu prometi que não falaria dela para você — ele disse finalmente.
— Uma promessa ruim não se torna melhor só porque foi cum-prida — disse Fenoglio. — Pelo menos é o que está escrito num dos meus livros preferidos.
— Não sei se foi uma promessa ruim — Mo suspirou e olhou para o teto, como se pudesse encontrar nele a resposta. — Está bem. Vou lhe contar. Mas Dedo Empoeirado vai me matar se souber.
— Dedo Empoeirado? Uma vez eu dei esse nome a um personagem. É claro, um dos saltimbancos de Coração de tintai Chorei ao narrar sua morte no último capítulo, de tão emo-cionante que a cena ficou.
Meggie quase engasgou com o pedaço de bolo que a-cabara de pôr na boca, mas Fenoglio prosseguiu impassível.
— Não são muitos os personagens que morrem nos meus livros, mas às vezes simplesmente acontece. As cenas de morte não são fáceis de escrever, elas logo ficam piegas, mas a
de Dedo Empoeirado naquela época realmente saiu muito bem.
Perplexa, Meggie olhou para Mo.
— Ele morre? Mas... você sabia disso?
— É claro. Eu li a história inteira, Meggie.
— Mas por que você não contou para ele?
— Ele não quis ouvir.
Fenoglio acompanhou o diálogo com cara de desen-tendido... e de imensa curiosidade.
— Quem o mata? — perguntou Meggie. — Basta?
— Ah, Basta! — Fenoglio sorriu de contentamento. Todas as suas rugas encheram-se de satisfação consigo mes-mo. — Um dos melhores vilões que já criei. Um cão raivoso, mas não chega aos pés do meu outro herói do mal: Capricór-nio. Basta arrancaria o próprio coração por ele, mas Capricór-nio nada sabe de tais paixões. Ele não sente nada, absoluta-mente nada, nem ao menos a própria crueldade lhe dá prazer. De fato inventei algumas figuras sinistras em Coração de tinta. Também há Sombra, o cão de Capricórnio, como eu mesmo o chamei. Mas naturalmente isso é um eufemismo para um monstro como ele.
— Sombra? — a voz de Meggie quase não passava de um sussurro. — Ele mata Dedo Empoeirado?
— Não, não. Desculpe, esqueci completamente a sua pergunta. Quando começo a falar dos meus personagens, é difícil me fazer parar. Não, é um dos homens de Capricórnio que mata Dedo Empoeirado. Realmente, a cena ficou muito boa. Dedo Empoeirado tem uma espécie de marta de estima-ção, o capanga de Capricórnio quer matá-la, pois sente um grande prazer em matar pequenos animais. Bem, Dedo Em-poeirado tenta salvar o amiguinho peludo... e morre por ele.
Meggie emudeceu. “Pobre Dedo Empoeirado”, ela pensou. “Pobre Dedo Empoeirado.” Ela simplesmente não conseguia pensar em mais nada.
— Qual dos homens de Capricórnio? — ela perguntou.
— Nariz Chato? Ou Cockerell?
Fenoglio olhou para ela cheio de espanto.
— Incrível. Você consegue gravar todos os nomes? Eu esqueço a maioria deles assim que acabo de inventá-los.
— Não é nenhum dos dois, Meggie — disse Mo. — No livro, o nome do assassino nem sequer é mencionado. É todo um bando que caça Gwin, e um deles investe com um punhal. Provavelmente alguém que ainda está lá esperando por Dedo Empoeirado.
— Ainda está lá esperando? — Fenoglio olhou confuso para Mo.
— Isso é terrível! — sussurrou Meggie. — Ainda bem que eu não continuei a ler.
— Mas o que você quer dizer com isso? Por acaso está falando do meu livro? — a voz de Fenoglio soou ofendida.
— Estou. Estou, sim — disse Meggie, lançando um olhar indagador para Mo. — E Capricórnio? Quem o mata?
— Ninguém.
— Ninguém?
Meggie olhou para Fenoglio tão indignada que ele co-meçou a coçar o nariz, encabulado. Era um nariz considerável.
— Por que está me olhando assim? — ele exclamou. — Sim. Eu o deixei escapar. É um dos meus melhores vilões. Por que deveria matá-lo? Na vida real também é assim: os grandes assassinos escapam e vivem felizes até o fim da vida, enquanto os bons morrem, às vezes até mesmo os melhores. Assim é que são as coisas. Por que nos livros tem que ser sempre dife-rente?
— E Basta? Ele também fica vivo? — Meggie lem-brou-se do que Farid dissera na cabana: “Por que vocês não os matam? Era o que eles pretendiam fazer conosco!”.
— Basta também fica vivo — respondeu Fenoglio. — Na época, aventei por um tempo a idéia de fazer uma conti-nuação de Coração de tinta, e não queria renunciar aos dois. Eu estava orgulhoso deles! Bem, Sombra também não saiu mal...
não, realmente, mas gosto mais das minhas figuras humanas. Sabe, se você me perguntasse de qual dos dois eu tinha mais orgulho, de Basta ou de Capricórnio, eu não saberia dizer!
Mo voltara a olhar pela janela. Então se virou para Fe-noglio.
— O senhor gostaria de se encontrar com os dois? — ele perguntou.
— Com quem? — Fenoglio olhou surpreso para ele.
— Com Capricórnio e Basta.
— Credo, não!
Fenoglio riu tão alto que Paula ficou assustada e tapou a boca dele.
— Bem, nós os encontramos — disse Mo, cansado. — Eu e Meggie, e Dedo Empoeirado.

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