sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Coração de Tinta - Capítulos 31 ao 36

31. Nas colinas felpudas

— Deixe-a em paz — disse Merlim. — Talvez ela só queira ser amiga depois de conhecê-lo bem. Com as corujas as coisas não são assim pá-pum.
T. H.White, O único e eterno rei

Dedo Empoeirado avistou a aldeia de Capricórnio do alto da colina. Ela parecia estar ao alcance de sua mão. O sol espelhava-se em algumas janelas e, num dos telhados, um dos casacos-pretos trocava algumas telhas quebradas. Dedo Em-poeirado podia vê-lo enxugando o suor da testa. Nem mesmo naquele calor infernal aqueles patetas tiravam o paletó, como se tivessem medo de se desfazer sem o uniforme negro. Pen-sando bem, os corvos também não tiravam suas penas no sol; e eles não passavam de um bando de corvos, predadores, car-niceiros, que gostavam de enfiar o bico pontudo na carne morta.
No começo, o garoto ficara inquieto ao ver o quão próximo da aldeia de Capricórnio ficava o esconderijo que Dedo Empoeirado havia escolhido, mas ele havia lhe explica-do que naquelas colinas não havia lugar mais seguro do que aquele. Os muros carbonizados estavam praticamente ocultos. Arbustos e ervas silvestres haviam se agarrado às pedras pre-tas de fuligem, e coberto com galhos verdes a dor e a infelici-dade. Os homens de Capricórnio haviam incendiado a casa pouco depois de tomar posse da aldeia abandonada. A velha
mulher que vivia na casa recusara-se a ir embora, mas Capri-córnio não tolerava olhos curiosos tão perto de seu esconde-rijo. Então ele os soltara, seus corvos, seus homens de preto, e eles atearam fogo no galinheiro, que havia sido construído pela própria dona, e também na casa, na qual havia um quarto só. Eles pisotearam os canteiros plantados com tanto esmero e mataram a tiros o jumento, que era quase tão velho quanto sua dona. Como sempre, eles chegaram na calada da noite, mas a lua estava especialmente clara, conforme relatara a De-do Empoeirado uma das criadas de Capricórnio. A velha se-nhora saíra atarantada da casa, chorando e gritando. Ela pra-guejou e vociferou contra todos, mas olhava o tempo inteiro apenas para um deles: Basta, que ficara um pouco afastado porque tinha medo do fogo, com sua camisa tão branca ao luar. Talvez ela tenha visto nele algo de inocência ou um bom coração. A um sinal de Basta, porém, Nariz Chato tapou a boca da mulher, enquanto os outros riam, e de repente ela estava morta. Ela foi deixada sem vida entre os canteiros pi-soteados, e desde aquele dia não havia lugar nas colinas que Basta temesse mais do que aquele lá em cima, onde as paredes carbonizadas despontavam entre os pés de tomilho selvagem. Sim, não havia melhor ponto para observar a aldeia de Capri-córnio.
Dedo Empoeirado ficava a maior parte do tempo em cima de um dos carvalhos que outrora deviam ter fornecido sombra para a velhinha quando ela se sentava na frente de sua casa. Os galhos o escondiam com segurança de qualquer olhar curioso que se perdesse na encosta. Horas a fio, ele ficava ali, imóvel, observando o estacionamento e as casas com o binó-culo. Ele ordenara a Farid que ficasse afastado, na baixada que havia atrás da casa. O garoto obedecera muito a contragosto. Ele não desgrudava de Dedo Empoeirado. Tinha medo de ficar na casa incendiada.
— O espírito dela ainda deve estar aqui — ele sempre dizia. — O espírito da velha. E se ela tiver sido uma bruxa?
Mas Dedo Empoeirado apenas ria dele. Naquele mun-do não havia espíritos. Pelo menos, eles não davam as caras. A baixada atrás da casa era tão protegida que na véspera ele até mesmo se arriscara a acender uma fogueira. O garoto havia caçado um coelho, ele era muito hábil com armadilhas e muito menos piedoso do que Dedo Empoeirado. Quando Dedo Empoeirado pegava um coelho, só se aproximava da armadi-lha quando estivesse seguro de que o bichinho não se debatia mais. Farid não tinha essa compaixão. Talvez ele tivesse pas-sado fome muitas vezes.
Com que admiração ele ficava assistindo sempre que Dedo Empoeirado fazia fogo com alguns galhos finos! O ga-roto já havia queimado todos os dedos em suas brincadeiras. O fogo lhe mordera o nariz e os lábios, mas mesmo assim Dedo Empoeirado sempre o surpreendia confeccionando to-chas com algodão e galhos finos, ou brincando com palitos de fósforo. Uma vez ele pôs fogo na grama seca, e Dedo Empo-eirado o agarrou e o sacudiu como a um cachorro desobedi-ente, até que lhe vieram lágrimas nos olhos.
— Ouça bem, vou lhe dizer pela última vez! O fogo é um animal perigoso! — ele dissera, furioso. — Ele não é seu amigo. Ele o matará se você o tratar da maneira errada, e o denunciará aos seus inimigos com a fumaça!
— Mas ele é seu amigo! — o garoto balbuciara com uma voz desafiadora.
— Que besteira! Eu só não sou imprudente. Eu presto atenção no vento! Eu já lhe disse milhares de vezes: não faça fogo quando está ventando. Agora suma daqui e vá procurar Gwin.
— Ele é seu amigo, sim! — o garoto murmurara antes de sair. — Pelo menos ele lhe obedece mais do que a marta.
Farid tinha razão. O que não significava muita coisa, pois uma marta obedece apenas a si mesma, e naquele mundo o fogo não era nem um décimo tão obediente como no outro. Lá, as chamas tomavam a forma de flores quando Dedo Em-
poeirado lhes ordenava. Elas se ramificavam feito árvores na noite e lançavam uma chuva de fagulhas sobre ele. Elas grita-vam e sussurravam com suas vozes crepitantes e dançavam com ele. Ali as chamas eram dóceis e teimosas ao mesmo tempo, estranhos bichos mudos, que de vez em quando mor-diam a mão que os alimentava. Apenas algumas vezes, nas noites frias, quando o fogo era a única coisa que espantava a solidão, ele acreditava ouvir sussurros, mas eram palavras in-compreensíveis .
Apesar disso, o garoto provavelmente tinha razão. O fogo era seu amigo, mas também era o culpado de que Capri-córnio o tivesse chamado, lá na outra vida. “Mostre-me como lidar com o fogo”, ele dissera quando seus homens o haviam levado até ele, e Dedo Empoeirado obedecera. Hoje ele se arrependia do quanto lhe havia ensinado, pois Capricórnio gostava de soltar as rédeas do fogo e só as retomava quando já estivesse saciado, depois de devorar colheitas e estábulos, ca-sas e tudo o que não fosse capaz de fugir a tempo.
— Ele ainda não voltou? — Farid encostou-se no tronco áspero da árvore.
O garoto era silencioso como uma cobra. Dedo Empo-eirado levava um susto sempre que ele aparecia tão repenti-namente.
— Ainda não! — ele respondeu. — A sorte está sor-rindo para nós.
No primeiro dia, o carro de Capricórnio ainda estava no estacionamento, mas à tarde dois de seus ajudantes puse-ram-se a lustrá-lo até brilhar como um espelho e, pouco antes de escurecer, ele partira. Capricórnio saía com freqüência, para os lugarejos na costa ou para uma de suas bases, como ele gostava de chamar, embora a maior parte delas não passasse de uma cabana na floresta com um ou dois homens entedia-dos. Ele próprio não sabia guiar um automóvel melhor do que Dedo Empoeirado; alguns de seus homens sabiam, embora quase nenhum deles possuísse carteira de motorista por não
saberem ler.
— Esta noite eu vou descer de novo — disse Dedo Empoeirado. — Ele não vai ficar muito tempo fora, e Basta com certeza logo estará de volta.
O carro de Basta não fora visto no estacionamento desde que eles haviam chegado. Será que ele e Nariz Chato ainda estavam amarrados na cabana abandonada?
— Ótimo! Quando iremos? — A voz de Farid soou como se ele quisesse partir imediatamente. — Logo após o pôr-do-sol? Nessa hora estarão todos na igreja jantando.
Dedo Empoeirado espantou uma mosca do binóculo.
— Irei sozinho. Você ficará aqui tomando conta das nossas coisas.
— Não!
— Sim. É muito perigoso. Quero visitar alguém, e para isso terei que entrar no pátio da casa de Capricórnio.
O garoto olhou para ele espantado. Seus olhos eram negros e às vezes pareciam já ter visto muitas coisas.
— Por que esse espanto, hein? — Dedo Empoeirado reprimiu um sorriso. — Você não pensou que eu pudesse ter amigos na casa de Capricórnio?
O garoto sacudiu os ombros e olhou para a aldeia. Um veículo acabava de entrar no estacionamento, uma caminho-nete empoeirada. No compartimento de carga havia duas ca-bras.
— Lá se vão novamente as cabras de um camponês! — murmurou Dedo Empoeirado. — Ele foi inteligente em dei-xá-las ir, senão o mais tardar hoje à noite haveria um bilhete na porta do seu estábulo.
Farid olhou intrigado para ele.
— “Amanhã o galo vermelho cantará”, estaria escrito no bilhete. É a única frase que os homens de Capricórnio sabem escrever. Às vezes, eles simplesmente penduram um galo morto na porta. Isso todo mundo entende.
— O galo vermelho? — o garoto sacudiu a cabeça. —
É uma maldição ou algo parecido?
— Não! Mas que diabos, você está parecendo Basta de novo — Dedo Empoeirado riu baixinho.
Os homens de Capricórnio desceram do carro. O mais baixo carregava duas sacolas abarrotadas, o outro puxava as cabras para fora.
— O galo vermelho é o fogo, o fogo que eles põem nos seus estábulos ou nas suas oliveiras. Às vezes o galo canta dentro de casa ou, se alguém foi muito teimoso, no quarto das crianças. Quase todo mundo possui alguma coisa que lhe é cara.
Os homens levaram as cabras para a aldeia. Um deles era Cockerell, Dedo Empoeirado o reconheceu pelo andar manco. Ele já se perguntara se Capricórnio sabia de todos es-ses negócios, ou se seus homens de vez em quando também não trabalhavam em prol dos próprios bolsos.
Farid prendeu um gafanhoto na mão fechada em con-cha e ficou observando o inseto por entre os dedos.
— Eu vou assim mesmo — ele disse.
— Não.
— Eu não tenho medo!
— Pior ainda.
Depois que seus prisioneiros haviam fugido, Capricór-nio mandara instalar holofotes na frente da igreja, no telhado de sua casa e no estacionamento. Isso não tornava exatamente mais fácil passar desapercebido por ali. Já na primeira noite, Dedo Empoeirado havia entrado na aldeia com as cicatrizes em seu rosto dissimuladas por uma camada escura de fuligem, pois ele sabia que seria reconhecido muito facilmente.
Capricórnio também reforçara as sentinelas, provavel-mente por causa dos tesouros que Língua Encantada havia conseguido para ele. É claro que eles já estavam muito bem escondidos no porão de sua casa, trancados nos pesados co-fres que Capricórnio mandara instalar. Ele não gostava de gastar o seu ouro. Ele o acumulava como os dragões dos
contos de fadas. De vez em quando, ele enfeitava seus dedos com um anel, ou ornava com um colar o pescoço de uma cri-ada que lhe agradava no momento. Ou então mandava Basta lhe comprar uma nova espingarda de caça.
— Com quem você quer se encontrar?
— Não é da sua conta.
O garoto libertou o gafanhoto, que saiu saltando a-pressado com suas longas pernas verde-oliva.
— É uma mulher — disse Dedo Empoeirado. — Uma das criadas de Capricórnio. Ela já me ajudou algumas vezes.
— É aquela da foto na sua mochila? Dedo Empoeirado abaixou o binóculo.
— Como você sabe o que tenho na mochila?
O garoto encolheu a cabeça entre os ombros, como al-guém que está acostumado a receber uma sova para cada pa-lavra dita sem pensar.
— Eu estava procurando os fósforos.
— Se eu o apanhar mais uma vez enfiando a mão na minha mochila, mandarei Gwin morder você.
O garoto deu um sorriso.
— Gwin nunca me morde.
E ele tinha razão. A marta era louca pelo garoto.
— Onde é que se enfiou aquele diabinho infiel? — Dedo Empoeirado espiou entre os galhos. — Não o vejo desde ontem.
— Acho que ele encontrou uma fêmea.
Farid remexeu as folhas secas com um galho. O chão estava repleto delas debaixo das árvores. A noite, as folhas denunciariam quem tentasse se aproximar de seu acampa-mento.
— Se você não me levar — disse o garoto sem olhar para Dedo Empoeirado —, eu irei atrás de você do mesmo jeito.
— Se você vier atrás de mim, vou enchê-lo de pancada.
Farid abaixou a cabeça e olhou para os pés com um ar
inexpressivo. Então olhou para as ruínas atrás das quais eles haviam montado o acampamento.
— Não me venha de novo com a história do espírito da velha! — disse Dedo Empoeirado com irritação. — Quantas vezes vou ter que repetir? O perigo está todo nas casas lá em-baixo. Faça um fogo ali atrás se estiver com medo do escuro.
— Espíritos não têm medo de fogo — a voz do garoto não era mais do que um sussurro.
Dedo Empoeirado desceu de seu posto de observação com um suspiro. O caso do garoto era mesmo quase tão sério quanto o de Basta. Ele não tinha medo de maldições, escadas e gatos pretos, mas via espíritos por toda parte, e não apenas o da velha que dormia em algum lugar por ali na terra dura. Não, Farid via ainda outros espíritos, legiões deles: criaturas malvadas quase onipotentes que arrancavam o coração de po-bres garotos mortais e o comiam. Ele não quis acreditar em Dedo Empoeirado quando este lhe explicou que os espíritos não tinham vindo junto com ele, que eles haviam sido deixa-dos num livro, junto com os ladrões que o chutavam e espan-cavam. Provavelmente ele morreria de medo se ficasse sozi-nho naquela noite.
— Está bem, você vem comigo — disse Dedo Empo-eirado. — Mas sem dar um pio, entendido? Lá embaixo não há espíritos, e sim homens de verdade com navalhas e espin-gardas.
Agradecido, Farid abraçou-o com seus braços magros.
— Já chega, já chega! — disse Dedo Empoeirado ru-demente, afastando o garoto. — Vamos, quero ver se você já aprendeu a ficar numa mão só.
O garoto obedeceu imediatamente. Com a cabeça ver-melha, ele se equilibrou primeiro no braço direito, depois no esquerdo, com as pernas nuas para o ar. Depois de três se-gundos de oscilação, ele caiu nas folhas duras de um arbusto, mas se levantou bem depressa e tentou novamente.
Dedo Empoeirado sentou-se debaixo de uma árvore.
Estava na hora de mandar o garoto embora. Mas co-mo? Num cão se pode jogar algumas pedras, mas num garo-to... Por que ele simplesmente não ficara com Língua Encan-tada? Ele entendia melhor de tomar conta de alguém. E, afinal de contas, fora ele quem o trouxera. Mas não, o garoto tinha ido atrás dele.
— Vou procurar Gwin — disse Dedo Empoeirado, e se levantou.
Sem uma palavra, Farid foi atrás dele.

32. De volta

Ela falou ao rei na esperança secreta de que ele proibisse o filho dele de sair. Mas o rei disse:
— Bem, minha cara, na verdade as aventuras são úteis até mesmo para os bem pequenos. As a-venturas podem ficar no sangue de um homem, mesmo que mais tarde ele não se lembre de tê-las vivido.
Eva Ibbotson, O segredo da plataforma 13

Naquele dia cinzento e chuvoso em que Meggie a viu do alto pela segunda vez, a aldeia de Capricórnio não pareceu de fato um lugar perigoso. As casas se erguiam tímidas, como que em andrajos, em meio ao verde das colinas. Nenhum raio de sol maquiava a idade das ruínas, e Meggie quase não podia acreditar que eram as mesmas casas que lhe pareceram tão ameaçadoras na noite de sua fuga.
— Interessante! — sussurrou Fenoglio quando Basta entrou no estacionamento. — Sabe que este lugar é realmente muito parecido com um dos cenários que inventei para Cora-ção de tinta? Bem, aqui não há um castelo, mas a paisagem ao redor é praticamente a mesma, a idade da aldeia também deve bater mais ou menos. E você sabia que Coração de tinta se passa num mundo que não é muito diferente da nossa Idade Média? Bem, naturalmente eu acrescentei algumas coisas, as fadas e os gigantes, por exemplo, e algumas coisas eu deixei de lado, mas...
Meggie não continuou a ouvi-lo. Ela não conseguia deixar de pensar na noite em que eles haviam fugido de Ca-pricórnio, e no quanto ela desejara nunca mais ver o estacio-namento, a igreja e aquelas colinas.
— Vamos, andem! — grunhiu Nariz Chato quando a-briu a porta do automóvel. — Você ainda se lembra do cami-nho, não é?
Sim, Meggie se lembrava, embora agora tudo parecesse diferente. Fenoglio examinava as vielas como um turista.
— Eu conheço esta aldeia! — ele sussurrou para Meg-gie. — Isto é, ouvi falar dela. Existem várias histórias tristes sobre ela. Houve um terremoto aqui no século passado, e de-pois, na última guerra...
— Poupe a sua língua para mais tarde, escrevinhador — interrompeu Basta. — Não gosto de cochichos.
Fenoglio lançou-lhe um olhar irritado, e calou-se. Ele não abriu mais a boca até chegarem à igreja.
— Vamos, abram a porta! O que estão esperando? — rosnou Nariz Chato.
Meggie abriu junto com Fenoglio o pesado portal de madeira. O ar frio que veio ao encontro deles tinha um cheiro tão choco como no dia em que ela estivera ali com Mo e Eli-nor. No interior da igreja, quase nada havia se alterado. As paredes vermelhas pareciam ainda mais ameaçadoras agora, com o dia nublado e cinzento, e a expressão no rosto de bo-neco da estátua de Capricórnio parecia ainda mais maldosa. Os tonéis em que os livros haviam sido queimados também estavam no mesmo lugar, mas a cadeira de Capricórnio fora retirada do topo da escada. Dois dos seus homens estavam justamente subindo os degraus com uma nova poltrona. A mulher velha que parecia uma gralha, e da qual Meggie não gostava de se lembrar, estava com eles e lhes dava instruções com voz impaciente.
Basta empurrou duas mulheres que estavam ajoelhadas limpando o chão na nave central, e se pavoneou em direção
aos degraus do altar.
— Onde está Capricórnio, Mortola? — ele gritou para a velha já de longe. — Tenho novidades para ele. Novidades importantes.
A mulher nem ao menos virou a cabeça.
— Mais para a direita, seus palermas! — ela ordenou aos dois homens que ainda lutavam com a poltrona pesada. — Ora, façam-me o favor, não é tão difícil!
Só então ela se virou para Basta com uma expressão de tédio.
— Esperávamos que voltasse mais cedo — ela disse.
— Como assim? — a voz de Basta se elevou, mas Meggie pôde ouvir a insegurança que soava nela, quase como se ele sentisse medo da velha. — Você sabe quantos vilarejos existem nesta maldita costa? E nem mesmo tínhamos certeza de que Língua Encantada estivesse na região.
Mas eu posso confiar no meu faro, e cumpri a minha tarefa.
E ele apontou na direção de Meggie.
— Ah, é? — o olhar da gralha passou por Basta e vol-tou-se para o lugar onde estavam Meggie e Fenoglio, junto com Nariz Chato. — Estou vendo apenas a garota e um ve-lho. Onde está o pai dela?
— Ele não estava lá! Mas ele virá. A garota é a melhor isca.
— E como ele vai saber que ela está aqui?
— Eu deixei um bilhete!
— Desde quando você sabe escrever?
Meggie viu como os ombros de Basta ficaram tensos de raiva.
— Eu deixei o meu nome, nenhuma outra palavra é necessária para fazê-lo entender onde encontrar a preciosa filhinha dele. Diga a Capricórnio que trancarei os dois numa das gaiolas.
Dizendo isso, ele girou nos calcanhares e se pavoneou
novamente até Meggie e Fenoglio.
— Capricórnio não está aqui e não sei quando estará de volta — Morto Ia gritou atrás dele. — Mas até o regresso dele quem manda aqui sou eu, e sou da opinião de que nos últimos tempos você não tem cumprido suas tarefas conforme o es-perado.
Basta virou-se como se tivesse levado uma mordida na nuca, mas Mortola prosseguiu, impassível:
— Primeiro você deixa Dedo Empoeirado roubar suas chaves, depois perde os nossos cães e temos que ir resgatar você nas montanhas, e agora isso. Me dê aqui as suas chaves.
A gralha estendeu a mão.
— O quê?
Basta ficou pálido como um garoto que vai ser castiga-do na frente de toda a classe.
— Você ouviu muito bem. Vou ficar com as chaves, as chaves das gaiolas, da cripta e do depósito de gasolina. Tra-ga-as aqui.
Basta não se mexeu.
— Você não tem esse direito! — ele disse entre os dentes. — Foi Capricórnio quem me deu as chaves, e só ele pode tirá-las de mim.
Ele se virou novamente.
— É o que ele fará! — exclamou Mortola atrás dele. — Ele vai querer ouvir seu relatório assim que voltar. Talvez ele consiga entender melhor do que eu por que você não trouxe Língua Encantada.
Basta não respondeu. Pegou Meggie e Fenoglio pelos braços e arrastou-os em direção ao portal. A gralha gritou al-guma coisa atrás deles, mas Meggie não conseguiu entender. E Basta não se virou novamente.
Basta trancou Meggie e Fenoglio no cubículo de nú-mero cinco, o mesmo em que Farid ficara.
— Agora vocês podem esperar aí até o seu pai chegar! — ele disse antes de empurrar Meggie para dentro.
Era como se ela estivesse tendo um sonho ruim pela segunda vez. Só que agora nem ao menos havia a palha mo-fada para sentar, e a lâmpada no teto estava queimada. Em compensação, entrava um pouco da luz do dia por um bura-quinho na parede.
— Bem, que maravilha! — disse Fenoglio, sentando-se no chão frio com um suspiro. — Um estábulo. Que falta de imaginação. Na verdade, eu imaginei que Capricórnio teria pelo menos um autêntico calabouço para os seus prisioneiros.
— Um estábulo? — Meggie encostou-se na parede. Ela ouvia a chuva tamborilar na porta fechada.
— Sim. O que você pensou que fosse isto aqui? Anti-gamente, todas as casas eram construídas assim, o gado entra-va por baixo, as pessoas por cima. Em algumas aldeias nas montanhas, eles ainda guardam as cabras e os jumentos dessa maneira. E de manhã, na hora em que os rebanhos saem para os pastos, os montes fumegantes de esterco se espalham pelas ruas e as pessoas pisam em cima quando saem para comprar pão.
Fenoglio arrancou um pêlo do nariz, examinou-o como se não pudesse acreditar que algo tão espevitado pudesse crescer ali, e jogou-o fora com um peteleco.
— É incrível — ele murmurou. — Foi exatamente as-sim que imaginei a mãe de Capricórnio: o nariz, os olhos pró-ximos, até mesmo aquele jeito de cruzar os braços e esticar o queixo para o alto.
Meggie olhou incrédula para ele.
— Mãe de Capricórnio? A gralha?
— A gralha! É assim que você a chama? — Fenoglio riu baixinho. — É exatamente esse o apelido dela na minha história. Realmente espantoso. Tenha cuidado com ela. Ela não tem um caráter muito agradável.
— Pensei que ela fosse a governanta.
— Hum, e é isso mesmo que você deveria pensar. Por-tanto, guarde esse nosso segredinho por enquanto, está bem?
Meggie fez que sim, embora não estivesse entendendo nada. De qualquer forma, saber quem era a velha não tinha a menor importância. Nada tinha importância. Desta vez ne-nhum Dedo Empoeirado viria abrir a porta à noite. Tudo ha-via sido em vão — como se eles nunca tivessem fugido. Ela foi até a porta trancada e pressionou as mãos contra ela.
— Mo virá para cá! — ela sussurrou. — E então sere-mos prisioneiros de Capricórnio para sempre.
— Não, não! — Fenoglio levantou-se e foi até ela. Ele a estreitou junto de si, fazendo-a encostar o rosto em seu ca-saco. O tecido era áspero e cheirava a cachimbo. — Ainda vai me ocorrer alguma coisa. Afinal de contas, eu inventei esses vilões. Seria ridículo se eu não conseguisse deixar o mundo livre deles novamente. O seu pai teve uma idéia, mas...
Meggie ergueu o rosto molhado de lágrimas e olhou para ele cheia de esperanças, mas o velho homem sacudiu a cabeça.
— Depois. Agora me explique qual é o interesse de Capricórnio em seu pai. Tem a ver com o dom da leitura que ele possui?
Meggie fez que sim e enxugou as lágrimas.
— Ele quer que Mo traga alguém do livro, um velho amigo... Fenoglio ofereceu um lenço para ela. Quando ela as-soou o nariz, caíram algumas partículas de tabaco.
— Um amigo? Capricórnio não tem amigos — afirmou o velho escritor com o cenho franzido.
Então Meggie sentiu Fenoglio respirar fundo de repen-te.
— Quem é? — ela perguntou, mas Fenoglio limitou-se a enxugar uma lágrima do rosto dela.
— Alguém que espero que você só encontre entre as duas capas de um livro — ele respondeu evasivamente. De-pois se virou e começou a andar para lá e para cá. — Logo Capricórnio estará de volta. Tenho que pensar em como o enfrentarei.
Mas Capricórnio não chegou. Lá fora escureceu, e nin-guém veio tirá-los daquela prisão. Eles nem ao menos recebe-ram algo para comer. Esfriou quando o ar da noite começou a entrar pelo buraco na parede, e eles ficaram sentados lado a lado no chão duro, para se aquecerem.
— Basta continua muito supersticioso? — perguntou Fenoglio em algum momento.
— Sim, muito — respondeu Meggie. — Dedo Empo-eirado gosta de provocá-lo por causa disso.
— Bom — murmurou Fenoglio.
E não disse mais nada.

33. A criada de Capricórnio

Como nunca vi meu pai nem minha mãe, as primeiras representações que fiz da aparência deles baseiam-se paradoxalmente em seus túmu-los. A forma das letras no túmulo do meu pai levou-me à curiosa noção de que ele era um ho-mem robusto e de ombros largos, com cabelos pretos encaracolados e pele escura. Da forma e da inclinação das letras na inscrição “Assim co-mo Georgiana, esposa do supracitado”, tirei a conclusão infantil de que minha mãe era sardenta e enfermiça.
Charles Dickens, Grandes esperanças

Dedo Empoeirado partiu quando a noite já tinha caído por completo. O céu ainda estava nublado, não se via uma única estrela. Apenas de vez em quando a lua aparecia entre as nuvens, uma lua fininha, quase definhando, como uma fatia-zinha de limão num mar de tinta.
Dedo Empoeirado estava grato por tanta escuridão, mas o garoto quase morria de susto a cada vez que um galho roçava em seu rosto.
— Que diabos, eu deveria tê-lo deixado junto com a marta! — ralhou Dedo Empoeirado. — Você vai acabar nos denunciando se continuar batendo os dentes desse jeito. Olhe para a frente! É do que está ali que você tem que ter medo! Das espingardas, e não dos espíritos.
Na frente deles, a apenas alguns passos de distância, estava a aldeia de Capricórnio. Os holofotes recém-instalados espalhavam entre as casas cinzentas uma luz clara como o dia.
— E venham me dizer agora que essa tal de eletricidade é uma bênção! — sussurrou Dedo Empoeirado, enquanto se esgueiravam ao longo do estacionamento.
Uma sentinela entediada andava para lá e para cá entre os carros estacionados. Bocejando, ela se encostou na cami-nhonete onde Cockerell transportara as cabras naquela tarde e ajeitou os fones nos ouvidos.
— Muito bom! Desse jeito poderia passar um exército por aqui e ele não ouviria! — sussurrou Dedo Empoeirado. — Se Basta estivesse aqui, trancaria esse sujeito nos estábulos de Capricórnio por três dias, sem um pedaço de pão.
— E se fôssemos por cima dos telhados?
Todo o medo desaparecera do rosto de Farid. A senti-nela com a espingarda não amedrontava o garoto como os espíritos imaginários. Era uma insensatez tamanha que Dedo Empoeirado sacudiu a cabeça. Mas a idéia dos telhados de fato não era boba. Rente à parede de uma das casas que da-vam para o estacionamento, crescia uma videira. Havia anos que ninguém a podava. Assim que a sentinela, gingando ao som da música que enchia os seus ouvidos, se dirigiu para o outro lado do estacionamento, Dedo Empoeirado começou a trepar nos galhos lenhosos. O garoto escalou-os ainda melhor. Ao chegar em cima do telhado, ele estendeu a mão orgulhoso para Dedo Empoeirado. Como gatos perambulando na noite, os dois prosseguiram, esgueirando-se por chaminés e antenas, e por trás dos holofotes que dirigiam luz apenas para baixo, deixando tudo acima deles protegido pela escuridão. Certa hora, uma telha se soltou sob as botas de Dedo Empoeirado, mas ele conseguiu apanhá-la antes que ela se espatifasse na rua lá embaixo.
Quando chegaram à praça em que ficavam a igreja e a casa de Capricórnio, desceram por uma calha. Por alguns se-
gundos sufocantes, Dedo Empoeirado agachou-se atrás de uma pilha de caixas de frutas vazias e conferiu se havia senti-nelas ali. Não apenas a praça, mas também as estreitas vielas que passavam ao lado da casa de Capricórnio encontravam-se mergulhadas na luz clara dos holofotes. Havia um gato preto sentado no poço em frente à igreja. Basta provavelmente teria uma síncope ao vê-lo, mas Dedo Empoeirado estava muito mais preocupado com as sentinelas na frente da casa de Ca-pricórnio. Duas andavam para lá e para cá diante da porta. Uma delas, um sujeito troncudo e desajeitado, fora quem en-contrara Dedo Empoeirado quatro anos antes, no norte, nu-ma cidade onde ele pretendia fazer sua última apresentação. Junto com dois outros, ele o arrastara até a aldeia, e Capricór-nio havia perguntado por Língua Encantada e pelo livro, do seu jeito todo especial.
Os dois homens discutiam. Estavam tão ocupados con-sigo mesmos que Dedo Empoeirado criou coragem e, com alguns passos rápidos, desapareceu na rua que passava em frente à casa de Capricórnio. Farid seguiu-o, silencioso como uma sombra que tivesse adquirido vida. A casa de Capricórnio era um edifício grande e maciço, que em algum momento de-via ter sido a prefeitura, ou então um convento ou uma escola. Todas as janelas estavam escuras, e na estreita viela não havia nenhuma outra sentinela à vista. Mas Dedo Empoeirado manteve-se alerta. Sabia que as sentinelas gostavam de se es-conder nos batentes escuros das portas, com seus ternos pre-tos que os deixavam invisíveis como corvos na noite. Sim, Dedo Empoeirado sabia quase tudo sobre a aldeia de Capri-córnio. Já andara muito por aquelas vielas desde que Capri-córnio o mandara buscar para que ele procurasse Língua En-cantada e o livro. Sempre que as saudades de seu mundo o enlouqueciam, ele vinha até ali, para junto de seus velhos ini-migos, apenas para não se sentir tão estranho. Nem mesmo o medo de Basta era suficiente para mantê-lo afastado.
Dedo Empoeirado apanhou uma pedra do chão, cha-
mou Farid para perto de si com um sinal e jogou a pedra mais adiante no meio da rua. Nada se mexeu. A sentinela fazia a sua ronda conforme o esperado, e Dedo Empoeirado esguei-rou-se até o muro alto atrás do qual ficava o jardim de Capri-córnio: canteiros de hortaliças, árvores frutíferas e ervas, pro-tegidas contra o vento frio que às vezes soprava das monta-nhas próximas. Dedo Empoeirado costumava distrair as cria-das enquanto elas capinavam os canteiros. Não havia holofo-tes no jardim, tampouco sentinelas (quem roubaria legumes?), e do pátio para a casa havia apenas uma porta com grades, que ficava trancada à noite. Além disso, o canil ficava logo atrás do muro, mas agora ele estava vazio, como Dedo Empoeirado verificara ao pular. Os cães não haviam voltado das colinas. Eles foram mais espertos do que Dedo Empoeirado imagina-ra, e pelo jeito Basta não tinha arranjado outros. Burrice dele.
Dedo Empoeirado fez um sinal para o garoto segui-lo e, depois de passar pelos canteiros cultivados com esmero, chegou à porta gradeada. O garoto olhou para ele com um ar indagador quando viu as pesadas grades, mas Dedo Empoei-rado apenas pôs o dedo nos lábios e olhou para cima, na dire-ção de uma das janelas do segundo andar. As venezianas, ene-grecidas pela noite, estavam abertas. Dedo Empoeirado emitiu um miado tão autêntico que logo diversos gatos responderam, mas atrás da janela tudo continuou imóvel. Dedo Empoeirado xingou abafando a voz, escutou a noite por um momento, e imitou o grito estridente de uma ave de rapina. Farid levou um susto e encostou-se na parede. Dessa vez, algo se mexeu no andar de cima. Uma mulher debruçou-se na janela.
Quando Dedo Empoeirado lhe acenou, ela acenou de volta e desapareceu novamente.
— Não me olhe assim! — sussurrou Dedo Empoeira-do quando notou o olhar preocupado de Farid. — Podemos confiar nela, muitas mulheres daqui não suportam Capricórnio e seus homens, muitas nem mesmo estão aqui por vontade própria. Mas todas têm medo dele, medo de perder o empre-
go, medo de que incendeiem as casas dos familiares se falarem sobre ele e sobre o que acontece aqui, ou de que ele envie Basta com sua navalha... Resa não tem essas preocupações; ela não tem família.
“Não tem mais”, ele acrescentou em pensamento.
A porta atrás da grade se abriu e a mulher da janela, Resa, apareceu com expressão preocupada atrás das barras de metal. Ela estava pálida sob os cabelos louros escuros.
— Como você está? — Dedo Empoeirado aproxi-mou-se e enfiou a mão pela grade.
Resa apertou seus dedos com um sorriso, e apontou com a cabeça para o garoto.
— Esse é Farid. — Dedo Empoeirado baixou a voz. — Digamos que ele me persegue. Mas pode confiar nele. Ele gosta de Capricórnio tanto quanto nós.
Resa fez que sim, lançou-lhe um olhar de censura e sa-cudiu a cabeça.
— Sim, eu sei, não foi nada esperto da minha parte voltar aqui. Você soube o que aconteceu? — Dedo Empoei-rado não conseguia evitar que o orgulho transparecesse na sua voz. — Eles acham que eu sou trouxa, mas estão enganados. Ainda há um livro e eu vou pegá-lo! Não me olhe assim. Você sabe onde Capricórnio guarda esse livro?
Resa sacudiu a cabeça. Atrás deles ouviu-se um ruído, Dedo Empoeirado virou-se assustado mas era apenas um ca-mundongo atravessando o pátio silencioso. Resa tirou do bolso de seu roupão um lápis e uma folha de papel. Ela es-creveu devagar, com letras bem desenhadas, sabia que para Dedo Empoeirado era mais fácil ler em letras de fôrma. Fora ela quem o ensinara a ler e a escrever, para que os dois pudes-sem conversar.
Como sempre, demorou um certo tempo até as letras tomarem sentido para Dedo Empoeirado. Ele ficava orgu-lhoso sempre que os sinais rebuscados finalmente se juntavam formando palavras, e ele conseguia arrancar o seu segredo.
“Vou procurar”, ele leu baixinho.
— Está bem, mas tenha cuidado. Não quero que você arrisque o seu lindo pescoço.
Mais uma vez, ele se debruçou sobre o papel.
— O que você quer dizer com “A gralha está com as cha-ves de Basta”! Ele devolveu o papel para ela. Farid observava encantado a mão de Resa escrever, como se assistisse a um número de magia.
— Acho que você vai ter que ensinar a ele também — sussurrou Dedo Empoeirado através da grade. — Está vendo como ele olha para você?
Resa ergueu a cabeça e sorriu para Farid. Encabulado, ele olhou para o lado. Resa passou o dedo no rosto.
— Você o acha um garoto bonito? — Dedo Empoei-rado deu um sorriso zombeteiro, enquanto Farid, envergo-nhado, não sabia para onde olhar. — E quanto a mim? Sou bonito como a lua? Hum, o que devo pensar desse elogio? Que tenho quase tantas cicatrizes quanto ela?
Resa tapou a boca com a mão. Era fácil fazê-la rir, ela ria como uma menininha. Só assim se podia ouvir sua voz.
Tiros romperam o silêncio da noite. Resa agarrou a grade, e Farid agachou-se assustado ao pé do muro. Dedo Empoeirado ergueu-o novamente.
— Não é nada — ele sussurrou. — Os vigias estão ati-rando nos gatos de novo. Eles sempre fazem isso quando es-tão entediados.
O garoto olhou para ele incrédulo, mas Resa continuou a escrever.
— “Ela tirou as chaves dele”— leu Dedo Empoeirado. — “Como punição.” Ah, mas Basta não vai gostar nada disso. Ele se gabava de ter essas chaves, como se cuidasse da meni-na-dos-olhos de Capricórnio.
Resa fez um gesto como se tirasse uma faca do cinto, e fez uma cara tão feia que Dedo Empoeirado quase desatou a rir. Ele olhou rapidamente ao redor mas, entre os muros altos,
o pátio estava silencioso como um cemitério.
— Oh, posso muito bem imaginar que Basta está furi-oso — ele sussurrou. — Ele faz tudo para agradar a Capricór-nio, corta rostos e pescoços e coisas do gênero.
Resa pegou a folha de papel mais uma vez. Novamente, demorou até que ele conseguisse decifrar as letras bem defi-nidas.
— Então você ouviu falar de Língua Encantada? Quer saber quem ele é? Bem, se não fosse por mim, ele ainda estaria preso no estábulo de Capricórnio. O que mais? Pergunte a Farid. Língua Encantada colheu ele da história como uma maçã madura. Felizmente não trouxe nenhum dos espíritos” devoradores de carne dos quais o garoto não pára de falar. Sim, ele é um leitor muito bom, muito melhor do que Darius. Está vendo? Farid não manca, seu rosto sempre foi desse jei-to, e ele ainda tem a própria voz, embora agora esteja pare-cendo que não.
Farid lançou um olhar zangado para ele.
— Como é Língua Encantada? Basta ainda não desfi-gurou o rosto dele, é o que posso lhe dizer.
Uma veneziana rangeu em cima deles. Dedo Empoei-rado encostou-se na grade. Apenas o vento, pensou a princí-pio, nada além do vento. Farid olhou para ele com os olhos arregalados de susto. Provavelmente o rangido lhe soava co-mo um demônio, mas o ser que se debruçou na janela em ci-ma deles era de carne e osso: Mortola, ou “a gralha”, como era chamada em segredo. Todas as criadas eram subordinadas a ela, nada estava a salvo dos seus olhos e ouvidos, nem mesmo os segredos que as mulheres sussurravam à noite em seus dormitórios. Os próprios cofres de Capricórnio estavam mais bem acomodados do que elas. Todas dormiam na casa de Ca-pricórnio, cada quatro em um quarto, exceto as que estives-sem envolvidas com um de seus homens e morassem com o parceiro numa das casas abandonadas.
A gralha apoiou-se no peitoril e respirou o ar frio da
noite. Ela ficou ali com o nariz para fora da janela por tanto tempo que Dedo Empoeirado desejou torcer seu pescoço magro, mas ao cabo de uma eternidade todos os cantos de seu corpo pareciam estar cheios de ar fresco, e ela fechou nova-mente a janela.
— Tenho que ir, mas volto amanhã. Talvez até lá você já tenha descoberto alguma coisa sobre o livro! — Dedo Empoeirado apertou novamente a mão de Resa. Seus dedos eram ásperos de tanto lavar e esfregar. — Sei que eu já disse, mas mesmo assim: tome cuidado e fique longe de Basta.
Resa sacudiu os ombros. O que ela podia fazer com um conselho tão desnecessário? Quase todas as mulheres da aldeia mantinham distância de Basta, mas ele não se mantinha à dis-tância delas.
Dedo Empoeirado esperou diante da porta gradeada até que ela aparecesse na janela do quarto. Com uma vela, Re-sa fez um sinal para ele.
A sentinela no estacionamento ainda estava com o fone nos ouvidos. Absorto em pensamentos, o casaco-preto dan-çava entre os automóveis, com a espingarda na mão estendida, como se segurasse uma moça no braço. Quando a certa altura ele olhou novamente na direção de Dedo Empoeirado e Farid, eles já haviam sido engolidos pela noite.
No caminho de volta para o esconderijo, eles não en-contraram ninguém, somente uma raposa, que fugiu deles com olhos famintos. Entre as paredes da casa incendiada, Gwin devorava um pássaro. As penas brilhavam na escuridão.
— Ela sempre foi muda? — perguntou o garoto, quando Dedo Empoeirado se estendeu para dormir debaixo das árvores.
— Desde que a conheço — respondeu Dedo Empoei-rado, e virou-se de costas para ele.
Farid deitou-se ao seu lado. Ele fazia isso toda noite, e por mais que Dedo Empoeirado se afastasse, quando acorda-va o garoto estava sempre perto dele.
— A foto na sua mochila — ele disse. — É dela.
— E daí?
O garoto não respondeu.
— Caso você tenha ficado de olho nela — disse Dedo Empoeirado zombeteiro —, esqueça. É uma das criadas favo-ritas de Capricórnio. Ela até mesmo tem permissão para lhe servir o café-da-manhã e ajudá-lo a se vestir.
— Há quanto tempo ela está com ele?
— Cinco anos — respondeu Dedo Empoeirado. — E em todos esses anos Capricórnio nunca permitiu que ela saísse da aldeia. Mesmo de casa ela só pode sair raramente. Ela ten-tou fugir duas vezes, mas nunca foi muito longe. Numa das tentativas, foi mordida por uma cobra. Ela nunca me contou como Capricórnio a castigou, mas sei que depois disso ela nunca mais tentou fugir.
Atrás deles, ouviu-se um farfalhar. Farid ergueu-se de-pressa, mas era apenas Gwin. A marta lambeu o focinho quando pulou na barriga do garoto. Farid riu e tirou uma pena de seu pêlo. Gwin começou a lamber freneticamente seu pes-coço, seu nariz, como se estivesse com saudades do garoto, e então desapareceu de novo na noite.
— É mesmo uma marta muito simpática — sussurrou Farid.
— Não — disse Dedo Empoeirado, puxando o cober-tor fino até o queixo. — Ele deve gostar de você porque você tem cheiro de garota.
Farid respondeu com um longo silêncio.
— Resa é parecida com a filha de Língua Encantada — ele disse, justamente quando Dedo Empoeirado estava pe-gando no sono. — Ela tem a mesma boca e os mesmos olhos, e também ri como ela.
— Que idiotice! — disse Dedo Empoeirado. — Não existe a mínima semelhança. As duas têm olhos azuis, isso é tudo. Isso é muito comum por aqui. Agora durma de uma vez.
O garoto obedeceu. Enrolou-se no pulôver que Dedo
Empoeirado lhe dera e virou-se de costas. Logo sua respiração estava calma como a de um bebê. Dedo Empoeirado, porém, passou a noite inteira com os olhos abertos, cismando na escuridão.

34. Segredos

— Se eu tivesse que ser sagrado cavaleiro — disse Wart com um olhar sonhador para o fogo —, então eu... pediria a Deus que enviasse todo o mal do mundo para mim, apenas para mim. Se eu o derrotasse, nada mais dele restaria, e se ele me derrotasse, então apenas eu sofreria por isso.
— Isso seria muito imprudente da sua parte — disse Merlim —, e você seria derrotado. E teria que sofrer por isso.
T. H. White, O único e eterno rei

Capricórnio recebeu Meggie e Fenoglio na igreja; junto com ele havia cerca de doze de seus homens. Ele estava sen-tado em sua nova poltrona de couro preto, que fora instalada ali sob a supervisão de Mortola. Dessa vez, para variar, seu terno não era vermelho, mas amarelo-pálido como a luz da manhã que entrava pela janela. Ele mandara chamá-los cedo. Lá fora a névoa ainda envolvia as colinas, sobre as quais o sol pairava como uma bola flutuando em águas turvas.
— Por todas as letras do alfabeto! — sussurrou Feno-glio quando andava junto com Meggie pela nave central da igreja, com Basta em seus calcanhares. — Ele é exatamente como eu o imaginei. “Pálido como um copo de leite”, sim, acho que foram essas as palavras que usei.
Ele começou a andar mais depressa, como se não a-güentasse esperar para ver de perto sua criatura. Meggie não
conseguiu acompanhar seu passo, e Basta o puxou de volta antes que ele chegasse à escada.
— Ei, o que é isso? — Basta disse entre os dentes. — Não tão depressa, e faça o obséquio de se curvar. Entendido?
Fenoglio lançou-lhe um olhar de desprezo e parou com o corpo aprumado. Basta levantou a mão para bater, mas Ca-pricórnio fez um movimento quase imperceptível com a ca-beça e Basta abaixou a mão como uma criança que levou uma bronca. Ao lado da poltrona de Capricórnio, com os braços cruzados nas costas feito asas, estava Mortola.
— Realmente, Basta, ainda me pergunto o que deu nessa sua cabeça para não trazer também o pai dela! — disse Capricórnio, desviando o olhar de Meggie para o rosto de tar-taruga de Fenoglio.
— Ele não estava lá, já expliquei isso para vocês — a voz de Basta soou ofendida. — Vocês queriam que eu ficasse ali parado como um sapo na lagoa esperando por ele? Logo ele vai aparecer por aqui de livre e espontânea vontade! Todos nós vimos como ele é louco por essa menina! Aposto a minha navalha que ainda hoje, o mais tardar amanhã, ele nos dará o ar da sua graça.
— A sua navalha? Aquela que você há pouco tempo esqueceu onde tinha guardado? — O deboche na voz de Mortola fez Basta apertar os lábios.
— Você está amolecendo, Basta! — observou Capri-córnio. — Sua cabeça quente está enevoando os seus pensa-mentos. Mas vamos ao outro suvenir que você nos trouxe!
Fenoglio não desgrudara os olhos de Capricórnio por um só instante. Ele o observava como um artista que, depois de longos anos, revê um quadro que pintou. E, a julgar pela expressão em seu rosto, estava gostando do que via. Meggie não conseguia ver nenhum vestígio de medo em seus olhos, apenas uma curiosidade quase incrédula e satisfação, satisfação consigo mesmo. Capricórnio não gostou desse olhar, como Meggie também notou. Ele não estava acostumado a ser en-
carado tão destemidamente, como fazia o velho escritor.
— Basta me contou algumas coisas estranhas a seu respeito, senhor...
— Fenoglio.
Meggie observou o rosto de Capricórnio. Ele teria lido alguma vez o nome que ficava na capa de Coração de tinta, logo embaixo do título?
— Até mesmo a voz dele é como imaginei! — Fenoglio sussurrou para Meggie.
Ele parecia encantado como uma criança diante da jaula do leão. “Só que Capricórnio não está dentro da jaula”, pen-sou Meggie. A um olhar de seu chefe, Basta cravou o cotovelo com tanta força nas costas do velho homem que ele perdeu o fôlego.
— Não gosto que cochichem na minha presença — declarou Capricórnio, enquanto Fenoglio ainda ofegava. — Como disse, Basta contou-me uma história deveras mirabo-lante: que o senhor afirma ser o homem que escreveu um certo livro... Como é mesmo que ele se chama?
— Coração de tinta — Fenoglio esfregou as costas dolo-ridas. — Ele se chama Coração de tinta, pois trata de alguém cujo coração é negro de tanta maldade. O título ainda me a-grada.
Capricórnio ergueu as sobrancelhas e sorriu.
— Oh, como devo entender isso? Como um elogio talvez? Afinal é da minha história que o senhor está falando.
— Não, não é, não. É da minha. Você apenas aparece nela. Meggie viu como Basta indagou Capricórnio com o o-lhar, mas este moveu a cabeça de forma quase imperceptível, e as costas de Fenoglio foram poupadas temporariamente.
— Sei, sei, que interessante. Então você insiste nas suas mentiras. Capricórnio abriu as pernas e levantou-se da pol-trona. Com passos lentos, ele começou a descer os degraus. Fenoglio sorriu para Meggie com uma expressão de cumplici-dade.
— Que sorriso é esse? — a voz de Capricórnio soou cortante como a navalha de Basta.
Ele parou bem na frente de Fenoglio.
— Ah, é que acabei de lembrar que a vaidade é uma das características que atribuí a você, vaidade e... — Fenoglio fez uma pausa de efeito antes de continuar — e algumas outras fraquezas, que no entanto é melhor que eu não revele diante de seus homens, não é mesmo?
Capricórnio observou-o em silêncio, durante uma pe-quena eternidade. Então ele sorriu. Foi um sorriso discreto e apagado, quase que somente com os cantos da boca, enquanto seus olhos passeavam pela igreja, como se ele tivesse se es-quecido completamente de Fenoglio.
— Você é um velho insolente — ele disse. — E men-tiroso, ainda por cima. Mas se pretende me impressionar com seus desaforos e suas vigarices, como fez com Basta, terei que desapontá-lo. As suas afirmações são ridículas, assim como você, e foi uma idiotice completa da parte de Basta trazê-lo até aqui, pois agora teremos que nos livrar de você de alguma maneira.
Basta empalideceu. Ele se aproximou de Capricórnio, com a cabeça encolhida entre os ombros.
— Mas e se ele não estiver mentindo? — Meggie o ou-viu sussurrar para Capricórnio. — Ambos afirmam que todos nós morreremos se encostarmos no velho.
Capricórnio olhou para Basta com tanto desprezo que ele cambaleou para trás, como se tivesse sido golpeado.
Fenoglio, porém, parecia estar se divertindo divina-mente. Meggie teve a impressão de que ele observava tudo aquilo como se fosse uma peça de teatro que estava sendo representada especialmente para ele.
— Pobre Basta! — ele disse para Capricórnio. — Você está sendo injusto com ele novamente, pois ele tem razão. E se eu não estiver mentindo? E se eu realmente tiver inventado os dois, você e Basta? Vocês irão se desfazer no ar se me fize-
rem alguma coisa? Sim, tudo indica que é isso o que vai acon-tecer.
Capricórnio soltou uma gargalhada. Mas Meggie per-cebeu que ele estava refletindo sobre o que Fenoglio dissera, e que as palavras do escritor o haviam deixado preocupado, por mais que ele se esforçasse para esconder isso atrás de uma máscara de indiferença.
— Eu posso provar que sou quem afirmo ser! — disse Fenoglio tão baixinho que, além de Capricórnio, somente Basta e Meggie puderam ouvir suas palavras. — Devo fazer isso aqui diante de seus homens e de suas mulheres? Devo contar a eles sobre os seus pais?
A igreja estava em silêncio. Ninguém se mexia, nem Basta nem os homens que esperavam diante dos degraus. Até as mulheres que estavam limpando o chão debaixo da mesa ergueram-se para olhar na direção de Capricórnio e do velho desconhecido. Mortola ainda estava ao lado da poltrona, ela esticara o queixo para a frente, como se assim pudesse ouvir melhor o que estava sendo sussurrado lá embaixo.
Capricórnio examinou suas abotoaduras sem dizer uma palavra. Elas pareciam gotas de sangue em sua camisa clara. Então ele dirigiu novamente os olhos sem cor para o rosto de Fenoglio.
— Diga o que quer dizer, velho! Mas, se tem amor à vida, diga de forma que só eu escute.
Ele disse isso em voz baixa, mas Meggie ouviu em sua voz a cólera reprimida com muito esforço. Ela nunca sentira tanto medo dele antes.
Capricórnio fez um sinal para Basta, que recuou alguns passos, relutante.
— A menina pode ouvir, não é? — Fenoglio pôs a mão no ombro de Meggie. — Ou você também tem medo dela?
Capricórnio nem ao menos olhou para Meggie. Ele só tinha olhos para o velho homem que o havia criado.
— Então fale de uma vez, mesmo que não tenha nada a
dizer! Você não é o primeiro nesta igreja que tenta salvar sua pele com algumas mentiras, mas, se continuar com seus dis-parates, ordenarei a Basta que enrole uma linda víbora em volta do seu pescoço. Sempre tenho alguns espécimes em casa para ocasiões como esta.
Fenoglio também não se impressionou muito com essa ameaça.
— Bem! — ele disse lançando um olhar ao redor, como se lamentasse não ter mais público. — Por onde vou come-çar? Bem, primeiro alguns princípios fundamentais: o narrador de uma história não escreve tudo o que sabe sobre seus per-sonagens. Os leitores não precisam saber de tudo. É melhor que algumas coisas sejam segredos que o narrador compartilha com suas criaturas. No caso dele, por exemplo — ele apontou para Basta —, eu sempre soube que ele foi uma criança muito infeliz antes de você recolhê-lo. Como foi dito de forma tão acertada num livro maravilhoso, “é terrivelmente fácil convencer uma criança de que ela é detestável”. Basta estava convencido disso. Não que você o tenha feito mudar de opinião, não! Por que o faria? Mas de repente havia alguém a quem ele podia se afei-çoar, alguém que lhe dizia o que devia fazer... ele encontrou um deus, Capricórnio, e mesmo que você o trate mal... bem, quem disse que todos os deuses são bondosos? A maior parte deles é severa e cruel, não é mesmo? No livro, eu não escrevi tudo isso. Eu sabia, isso já era o suficiente. Mas agora chega de falar de Basta, vamos a você.
Capricórnio não tirava os olhos de Fenoglio. Seu rosto estava tenso, como se tivesse se transformado em madeira.
— Capricórnio. — A voz de Fenoglio soou quase ca-rinhosa quando ele pronunciou o nome. Ele olhou por cima dos ombros de Capricórnio, como se tivesse esquecido que falava de alguém de carne e osso, que estava na sua frente e não mais num mundo feito somente de palavras, entre duas capas de papelão. — É claro que ele tem um outro nome, mas nem ele mesmo se lembra mais qual é. Ele se faz chamar de
Capricórnio desde que tem quinze anos, por causa do signo do zodíaco sob o qual nasceu. Capricórnio, o inacessível, o insondável, que gosta de se fazer de deus ou de diabo, con-forme as circunstâncias. Mas o diabo tem mãe? — Pela pri-meira vez, Fenoglio olhou nos olhos de Capricórnio. — Você tem.
Meggie olhou para a gralha. Ela andara até a escada, com as mãos nodosas fechadas, mas Fenoglio falava baixo.
— Você gosta de espalhar que ela provém de uma casa nobre — ele prosseguiu. — Sim, às vezes você até gosta de contar que ela era filha de um rei. O seu pai, conforme você afirma, era um escudeiro na corte do pai dela. De fato é uma bela história. Posso lhe contar a minha versão?
Pela primeira vez, Meggie viu no rosto de Capricórnio algo que podia ser medo, um medo sem nome, sem começo nem fim. E atrás dele, como uma gigantesca sombra negra, erguia-se o ódio. Meggie tinha certeza: Capricórnio teria ma-tado Fenoglio naquele instante, mas o medo atava as mãos de seu ódio e o tornava ainda maior.
Fenoglio também via isso?
— Sim, conte, conte a sua história. Por que não? — Os olhos de Capricórnio estavam vidrados como os de uma ser-pente.
Fenoglio deu um sorriso maroto como o de seu neto.
— Bem, vamos continuar. A história do escudeiro na-turalmente é mentira.
Meggie seguia tendo a impressão de que o velho ho-mem se divertia magnificamente. Ele se comportava como se estivesse brincando com um gatinho. Como ele podia conhe-cer tão mal a criatura que havia criado?
— O pai de Capricórnio era um simples ferreiro — Fenoglio prosseguiu, sem se deixar perturbar pela cólera fria nos olhos de Capricórnio. — Ele deixava o filho brincar com o carvão em brasa e, às vezes, batia nele tão violentamente como batia no ferro que forjava. A compaixão era punida com
surras, as lágrimas também, assim como cada “eu não sei” ou “eu não consigo”. “A força é o que conta!”, foi o que ele en-sinou ao filho. “O mais forte faz as regras, somente ele, por-tanto trate de ser você quem as faz.” A mãe de Capricórnio também considerava essa a única verdade no mundo, nada podia contestá-la. Dia após dia, ela dizia ao filho que um dia ele seria o mais forte. Ela não era uma princesa, e sim uma criada com mãos e joelhos ásperos, e seguia o filho como uma sombra, mesmo quando ele começou a sentir vergonha dela e inventou uma nova mãe e um novo pai para si. Ela o admirava por sua crueldade, adorava ver o medo que ele espalhava. E amava o seu coração negro como tinta. Sim, seu coração é uma pedra, Capricórnio, uma pedra negra, tão capaz de sentir pena quanto um pedaço de carvão, e você tem muito orgulho disso.
Capricórnio começou a mexer novamente em suas a-botoaduras, ele as girava e examinava absorto, como se toda a sua atenção estivesse dedicada às pequenas peças vermelhas de metal, e não às palavras de Fenoglio. Quando o velho es-critor se calou, Capricórnio puxou a manga do casaco cuida-dosamente sobre o punho e puxou um fio de linha da barra. Ele pareceu ter removido a cólera desse modo. Toda a cólera, o ódio, o medo, nada mais se podia ver em seu olhar pálido e indiferente.
— Esta é mesmo uma história espantosa, velho — ele disse em voz baixa. — Gostei dela. Você é um bom mentiro-so, e por isso vou mantê-lo aqui. Por enquanto. Até eu me fartar das suas histórias.
— Me manter aqui? — Fenoglio empertigou-se. — Eu não pretendo ficar aqui! O que...
Mas Capricórnio tapou a boca dele com a mão.
— Nem mais uma palavra! — ele sussurrou. — Basta me contou sobre os seus três netos. Se você me causar pro-blemas ou contar as suas mentiras para os meus homens, pe-direi a Basta que embrulhe algumas víboras em papel de pre-
sente e as deixe na porta da casa dos seus netos. Fui claro, meu velho?
Fenoglio deixou a cabeça cair, como se Capricórnio ti-vesse quebrado seu pescoço apenas com algumas palavras sussurradas. Quando ele a ergueu novamente, o medo estava instalado em cada ruga de seu rosto.
Com um sorriso de satisfação, Capricórnio enfiou a mão no bolso da calça.
— Sim, todos vocês têm o coração mole atado a algu-ma coisa — ele disse. — Filhos, netos, irmãos, pais, cães, ga-tos, canários... Todo mundo tem: camponeses, donos de lojas, até mesmo os policiais têm família, ou pelo menos um cão. Você devia ter visto o pai dela!
Capricórnio apontou para Meggie tão de repente que ela levou um susto.
— Ele virá até aqui, mesmo sabendo que não o deixarei ir embora, nem ele nem a filha dele. Mesmo assim ele virá. Este mundo não está maravilhosamente organizado?
— Sim — murmurou Fenoglio. — Maravilhosamente.
E pela primeira vez ele contemplou sua criatura não com admiração mas com repulsa. Capricórnio preferiu assim.
— Basta! — ele gritou, e fez um sinal para que ele se aproximasse. Basta se pôs a andar exageradamente devagar. Ele ainda parecia ofendido.
— Leve o velho para o quarto onde prendemos Darius antes! — ordenou Capricórnio. — E ponha uma sentinela na porta.
— Você quer que eu o leve para a sua casa?
— Sim, por que não? Afinal de contas ele afirma ser algo como o meu pai. Além disso, as histórias dele são diver-tidas.
Basta sacudiu os ombros e pegou o braço de Fenoglio. Meggie olhou assustada para o escritor. Logo ela estaria to-talmente sozinha, sozinha com as paredes sem janelas e com a porta trancada num estábulo de Capricórnio. Mas Fenoglio
segurou a mão dela antes que Basta pudesse levá-lo.
— Deixe a menina comigo — ele disse para Capricór-nio. — Você não pode prendê-la de novo naquele buraco e deixá-la sozinha.
Capricórnio lhe deu as costas com uma expressão de indiferença.
— Como quiser. De qualquer forma, o pai dela logo estará aqui.
Sim, Mo viria. Meggie não conseguia pensar em outra coisa enquanto Fenoglio a levava consigo, com o braço em seu ombro, como se pudesse realmente protegê-la de Capri-córnio, de Basta e de todos os outros. Mas ele não podia. E Mo poderia? É claro que não. “Por favor!”, ela pensou. Talvez ele não conseguisse mais encontrar o caminho. Ele não podia vir. Era a única coisa que ela desejava. A única coisa em todo o mundo.

35. Objetivos distintos

Faber enfiou o nariz no livro.
— Você sabia que os livros cheiram a noz-moscada ou a outras especiarias exóticas? Quando eu era pequeno sempre gostava de cheirá-los.
Ray Bradbury, Fahrenheit 451

Farid avistou o automóvel.
Quando ele apareceu na estrada, Dedo Empoeirado es-tava deitado debaixo de uma árvore, tentando refletir. Desde que soubera que Capricórnio estava de volta, ele não conse-guira mais ter um único pensamento claro. Capricórnio estava de volta e ele ainda não sabia onde procurar o livro. As folhas desenhavam sombras em seu rosto, o sol atravessava os ga-lhos como agulhas brancas e quentes, e ele sentia a testa arder. Basta e Nariz Chato também haviam voltado, é claro. O que ele esperava? Que eles ficassem fora para sempre?
— Por que você está nervoso, Dedo Empoeirado? — ele sussurrou para as folhas. — Você nunca deveria ter volta-do para cá. Sabia que seria perigoso.
Ele ouviu passos se aproximarem, passos apressados.
— Um carro cinza! — Farid ofegava quando se ajoe-lhou ao seu lado na grama, de tão depressa que correra. — Acho que é Língua Encantada!
Dedo Empoeirado levantou-se de um salto. O garoto sabia do que estava falando. De fato sabia distinguir aqueles
besouros de lata fedorentos. Ele próprio nunca conseguira.
Afoito, ele seguiu Farid até o ponto de onde se enxer-gava a ponte. Como uma cobra preguiçosa, a estrada ondulava em direção à aldeia de Capricórnio. Não lhes restava muito tempo caso quisessem cortar o caminho de Língua Encantada. Sem parar para pensar, os dois desabalaram encosta abaixo. Farid foi o primeiro a pular no asfalto. Dedo Empoeirado sempre tivera orgulho da própria agilidade, mas o garoto era ainda mais hábil do que ele, rápido em suas pernas finas como as de um gamo. Agora ele já brincava com o fogo como com um cachorrinho, tão esquecido da vida que de vez em quando Dedo Empoeirado o lembrava, com um palito de fósforo a-ceso, de como eram quentes os dentes daquele cãozinho.
Língua Encantada freou bruscamente quando viu Dedo Empoeirado e Farid no meio da estrada. Ele parecia muito cansado, como se tivesse dormido mal algumas noites. Ao lado dele estava Elinor. De onde ela vinha? Ela não tinha vol-tado para casa e para o seu mausoléu de livros? E onde estava Meggie?
O rosto de Língua Encantada se fechou quando ele viu Dedo Empoeirado. Ele desceu do automóvel.
— É claro! — ele exclamou enquanto andava na dire-ção de Dedo Empoeirado. — Você contou para eles onde es-távamos! Quem mais seria? O que Capricórnio prometeu a você desta vez?
— Eu contei o que para quem? — Dedo Empoeirado recuou. — Não contei nada para ninguém. Pergunte ao garo-to.
Língua Encantada nem ao menos olhou para Farid. A devoradora de livros também descera. Ela ficou ao lado do automóvel com cara amarrada.
— A única pessoa aqui que contou alguma coisa foi você! — exclamou Dedo Empoeirado. — Você contou ao velho sobre mim, embora tivesse prometido que não contaria.
Língua Encantada parou. Era tão fácil fazê-lo sentir-se
culpado.
— Vocês deveriam esconder o automóvel debaixo das árvores. — Dedo Empoeirado apontou para a beira da estra-da. — A qualquer momento pode passar um dos homens de Capricórnio, e eles não gostam nem um pouco de automóveis estranhos.
Língua Encantada virou-se e olhou para a estrada. — Você não está acreditando nele, não é? — exclamou Elinor. — É claro que foi ele quem traiu vocês, quem mais seria? É só ele abrir a boca que já começa a mentir.
— Basta levou Meggie. — Língua Encantada soou i-nexpressivo, bem diferente de antes, como se, junto com sua filha, tivessem levado também o timbre de sua voz. — Eles também levaram Fenoglio, ontem de manhã, quando fui bus-car Elinor no aeroporto. Desde então estamos procurando esta maldita aldeia. Eu já não sei mais quantas aldeias aban-donadas há nestas colinas. Somente quando passamos pela barreira da estrada é que tive certeza de que finalmente está-vamos na estrada certa.
Dedo Empoeirado ficou calado olhando para o céu. Alguns pássaros voavam para o sul, negros como o uniforme dos homens de Capricórnio. Ele não vira quando eles haviam trazido a menina, mas também não ficara o dia inteiro olhan-do para o estacionamento.
— Basta passou vários dias fora, de fato eu pensei que ele estava procurando vocês — ele disse. — Você tem sorte de ele não ter conseguido apanhá-lo.
— Sorte? — Elinor ainda estava ao lado do automóvel. Então ela exclamou para Língua Encantada: — Diga para ele sair do nosso caminho! Ou eu mesma vou passar por cima dele! Ele estava mancomunado com esses incendiários mise-ráveis desde o começo.
Língua Encantada ainda olhava para Dedo Empoeirado como se não pudesse decidir se acreditava nele ou não.
— Os homens de Capricórnio invadiram a casa de E-
linor — ele disse finalmente. — Eles fizeram uma fogueira no jardim com todos os livros da biblioteca dela.
Dedo Empoeirado teve que admitir que por um mo-mento sentiu quase uma certa satisfação. O que aquela fanáti-ca por livros estava achando? Que Capricórnio simplesmente a esqueceria? Ele sacudiu os ombros e olhou para Elinor com uma cara inexpressiva.
— Isso era de se esperar — ele disse.
— Isso era de se esperar? — a voz de Elinor quase não saiu. Agressiva como um fila, ela partiu para cima dele. Farid se interpôs no caminho, mas ela o empurrou tão bruscamente para o lado que ele caiu no asfalto quente.
— Talvez você consiga enganar esse garoto com os seus números de cuspir fogo e com as suas bolas coloridas, seu devorador de fósforos! — ela vociferou. — Mas comigo isso não funciona! De todos os livros da minha biblioteca, a única coisa que sobrou foi um monte de cinzas! A polícia fi-cou muito admirada com a maestria do incendiário. “Pelo menos eles não incendiaram a sua casa, senhora Loredan! Nem mesmo houve danos no seu jardim, a não ser pela man-cha do fogo no gramado.” De que me interessa a casa? De que me interessa a maldita grama? Eles queimaram meus li-vros mais preciosos!
Dedo Empoeirado viu as lágrimas em seus olhos, mesmo tendo virado o rosto depressa, e de repente sentiu uma certa compaixão. Pensando bem, talvez ela fosse seme-lhante a ele: o lar dela também consistia em papel e tinta de impressão, como o dele. Talvez ela se sentisse tão estranha quanto ele no mundo real. Mas Dedo Empoeirado não de-monstrou sua compaixão, ele a escondeu sob a máscara do deboche e da indiferença, assim como ela escondia o seu de-sespero com a raiva.
— Mas o que a senhora estava pensando? Capricórnio sabia o seu endereço. Era de se prever que ele mandasse os homens dele depois que vocês simplesmente desapareceram.
Ele sempre foi muito rancoroso.
— Ah, é, e por quem ele sabia onde eu moro? Por vo-cê? — Elinor ergueu a mão com os punhos fechados, mas Farid segurou o braço dela.
— Ele não denunciou nada — o garoto exclamou. — Nada nem ninguém. Ele só está aqui para roubar uma coisa.
Elinor abaixou o braço.
— Então é isso! — Língua Encantada pôs-se do lado dela. — Você veio buscar o livro. Isso é loucura!
— É? E você? O que pretende fazer? — Dedo Empo-eirado olhou para ele com desprezo. — Você pretende sim-plesmente entrar na igreja de Capricórnio e pedir a ele que devolva a sua filha?
Língua Encantada não respondeu.
— Ele não vai devolvê-la e você sabe disso! — prosse-guiu Dedo Empoeirado. — Ela é apenas a isca e, assim que você tiver mordido, vocês dois serão prisioneiros de Capri-córnio, provavelmente até o fim da vida.
— Eu queria trazer a polícia! — Irritada, Elinor liber-tou seu braço das mãos morenas de Farid. — Mas Mortimer foi contra.
— O que foi inteligente da parte dele! Capricórnio teria mandado Meggie para as montanhas e vocês nunca mais a veriam.
Língua Encantada olhou para a direção em que, atrás das colinas, se via o contorno escuro das montanhas.
— Espere até eu roubar o livro! — disse Dedo Empo-eirado. — Esta noite entrarei novamente na aldeia! Não posso libertar a sua filha como da última vez, pois Capricórnio tri-plicou as sentinelas, e à noite a aldeia toda fica mais clara do que a vitrine de uma joalheria, mas talvez eu descubra onde ela está presa! Aí você pode fazer o que quiser com essa in-formação. E como agradecimento por meus esforços, antes você lerá o livro e tentará me mandar de volta. Que tal?
Dedo Empoeirado achou a proposta bastante racional,
mas Língua Encantada refletiu brevemente e então recusou com a cabeça.
— Não! — ele disse. — Não! Sinto muito, não posso mais esperar. Meggie já deve estar se perguntando onde estou. Ela precisa de mim.
E com isso ele se virou e voltou para o automóvel. Mas, antes que ele pudesse entrar, Dedo Empoeirado se pôs em seu caminho.
— Eu também sinto muito — ele disse enquanto abria a navalha de Basta. — Você sabe que eu não gosto dessas coisas, mas às vezes precisamos proteger as pessoas contra as próprias besteiras. Não vou permitir que você entre às cegas nessa aldeia, como um coelho numa armadilha, apenas para que Capricórnio capture você e sua maravilhosa voz nova-mente. Isso não vai ajudar a sua filha, e a mim muito menos.
A um sinal de Dedo Empoeirado, Farid também pegara a sua navalha. Ele a comprara para o garoto numa cidadezinha à beira-mar; quase não passava de um canivete, mas Farid a encostou com tanta firmeza nas costelas de Elinor que ela contraiu o rosto.
— Meu Deus, você está querendo me cortar de verda-de, seu pequeno cretino? — ela vociferou.
O garoto recuou, mas não abaixou a faca.
— Tire o carro daí, Língua Encantada! — ordenou Dedo Empoeirado. — E não tenha idéias idiotas: o garoto vai segurar a faca no peito da sua amiga maluca por livros até que você volte aqui.
Língua Encantada obedeceu. Naturalmente. O que mais ele poderia fazer? Eles amarraram os dois nas árvores que cresciam atrás da casa incendiada, a apenas alguns passos de distância de seu acampamento. Elinor reclamou aos berros, como Gwin fazia quando era puxado para fora da mochila pelo rabo.
— Pare! — ralhou Dedo Empoeirado. — Não será de grande ajuda para nós se os homens de Capricórnio nos acha-
rem aqui.
Aquilo funcionou. Ela parou na hora. Língua Encanta-da havia encostado a cabeça no tronco da árvore e fechado os olhos.
Farid testou mais uma vez todos os nós das cordas, até que Dedo Empoeirado o chamou com um sinal.
— Você vai ficar aqui vigiando os dois quando eu en-trar na aldeia esta noite — ele cochichou. — E não me venha com os espíritos novamente. Afinal, desta vez você não estará sozinho.
O garoto olhou para ele melindrado, como se Dedo Empoeirado tivesse posto a sua mão no fogo.
— Mas eles estão amarrados! — ele protestou. — O que há para vigiar? Até hoje ninguém conseguiu desmanchar os meus nós, palavra de honra! Por favor. Quero ir com você! Eu posso vigiar, ou distrair as sentinelas. Posso até mesmo entrar na casa de Capricórnio! Eu sou mais silencioso do que Gwin!
Mas Dedo Empoeirado sacudiu a cabeça.
— Não! — ele disse em tom rude. — Hoje irei sozi-nho. E se precisar de alguém para me seguir feito uma sombra, eu arrumo um cachorro.
Então ele deixou o garoto.
Era um dia quente. O céu sobre as colinas estava azul e sem uma única nuvem. Ainda faltavam muitas horas para escurecer.

36. Na casa de Capricórnio

No sonho, eu entrei algumas vezes em casas escuras que não conhecia. Casas estranhas, escuras, assustadoras. Quartos negros que me envolviam até eu não conseguir mais respirar...
Astrid Lindgren, Mio, meu filho

Duas estreitas camas-beliche de metal encostadas na parede caiada, um armário, uma mesa diante da janela, uma cadeira, uma prateleira sobre a qual havia apenas uma vela. Meggie tinha esperanças de poder ver da janela a estrada ou pelo menos o estacionamento, mas o quarto tinha vista apenas para o pátio. Algumas das criadas de Capricórnio estavam a-gachadas nos canteiros arrancando ervas daninhas, e as gali-nhas ciscavam numa área cercada de arame. O muro em volta do pátio era alto como o de uma prisão.
Fenoglio estava sentado na cama de baixo, com o olhar fixo no chão poeirento. As tábuas do assoalho rangiam quan-do eles andavam. Do outro lado da porta, Nariz Chato recla-mava.
— O que você quer que eu faça? Não, com os diabos, procure outra pessoa! Prefiro entrar escondido na aldeia vizi-nha e pôr um trapo com gasolina na porta de alguém ou um galo morto na janela. Por mim, até fico dançando com uma máscara de diabo na frente das janelas, como Cockerell teve que fazer no mês passado. Mas eu não vou ficar aqui feito um dois-de-paus vigiando um velho e uma menininha! Pegue um
dos garotos, eles ficam felizes quando podem fazer alguma coisa que não seja lavar os carros.
Mas Basta não se deixou convencer.
— Depois do jantar você será substituído! — ele disse, e saiu. Meggie ouviu seus passos se distanciarem no longo corredor, eram cinco portas até a escada, depois lá embaixo, à esquerda, estava a porta de entrada... ela gravara o caminho direitinho. Mas como passaria por Nariz Chato? Ela foi mais uma vez até a janela. Só de olhar para fora, sentiu vertigens. Não, por ali não seria possível descer, ela poderia quebrar o pescoço.
— Deixe a janela aberta! — disse Fenoglio atrás dela. — Aqui dentro está tão quente que eu vou acabar derretendo.
Meggie sentou-se ao lado dele na cama.
— Eu vou fugir! — ela sussurrou. — Assim que escu-recer.
O homem velho olhou para ela espantado, mas então sacudiu a cabeça energicamente.
— Você ficou louca? É perigoso demais!
Lá fora no corredor, Nariz Chato ainda reclamava com seus botões.
— Vou dizer que preciso ir ao banheiro. — Meggie segurou firme sua mochila. — E então vou sair correndo.
Fenoglio segurou-a pelos ombros.
— Não! — ele sussurrou mais uma vez com voz firme. — Não, você não vai! Vamos ter alguma outra idéia! Ter idéi-as é a minha profissão, você já se esqueceu?
Meggie apertou os lábios.
— Está bem, está bem! — ela murmurou.
Então ela se levantou e andou lentamente de volta para a janela.
Lá fora o sol se punha.
“Vou tentar assim mesmo”, ela pensou, enquanto atrás dela Fenoglio se esticava com um suspiro na cama estreita. “Não vou fazer o papel de isca! Vou fugir antes que eles
prendam Mo também.”
E enquanto ela esperava pela escuridão, espantou pela centésima vez a pergunta que não saía da sua cabeça.
Onde estava Mo?
Por que ele ainda não chegara?

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