terça-feira, 1 de março de 2011

Os Delírios de Consumo de Becky Bloom - Capítulos 1 ao 6

Endwich Bank
1 Stallion Square
Londres W1 3HW
Srta. Rebbeca Bloom
Apto. 4
63 Jarvis Road
Bristol BS1 0DN
6 de julho de 1997
Prezada Srta. Bloom
Parabéns! Tendo recentemente se formado pela Universidade de Bristol, sem dúvida
sente-se orgulhosa de seu desempenho.
Nós, do Endwich, também nos orgulhamos de nosso desempenho como um banco
flexível e preocupado, possuindo diversos tipos de contas para agradar a todos.
Orgulhamo-nos particularmente de nossa abordagem visionária, quando se trata de
clientes do seu nível.
Estamos lhe oferecendo, portanto, Srta. Bloom – na condição de formanda – uma conta
garantida com um limite de até 2.000 mil libras durante os primeiros dois anos de sua
carreira. Caso decida-se por abrir uma conta no Endwich, esta facilidade estará disponível
de imediato.* Esperamos de fato que resolva aproveitar esta oferta tão especial e
aguardamos o recebimento de seu formulário preenchido.
Mais uma vez, parabéns!
Atenciosamente
Nigel Fairs
Gerente Sênior de Marketing
*(sujeito a condições específicas individuais)
ENDWICH – PORQUE NOS IMPORTAMOS

Endwich Bank
AGÊNCIA FULHAM
3 Fulham Road
Londres SW6 9JH
Srta. Rebbeca Bloom
Apto. 2
4 Burney Road
Londres SW6 8FD
10 de setembro de 1999
Prezada Srta. Bloom,
Complementando minhas cartas de 3 de maio, 20 de julho e 14 de agosto, informo que
seu crédito termina no dia 19 de setembro de 1999. A senhora deve estar ciente de ter
excedido substancialmente o limite acordado de 2.000 libras.
O seu saldo atual está com um débito de 3.794,56 libras.
Talvez a senhora possa telefonar para minha assistente, Erica Parnell, para agendar uma
reunião para tratar deste assunto.
Atenciosamente
Derek Smeath
Gerente

ENDWICH – PORQUE NOS IMPORTAMOS

Endwich Bank

AGÊNCIA FULHAM
3 Fulham Road
Londres SW6 9JH
Srta. Rebbeca Bloom
Apto. 2
4 Burney Road
Londres SW6 8FD
22 de setembro de 1999
Prezada Srta. Bloom,
Senti muito saber de sua perna quebrada.
Quando se recuperar, talvez possa fazer a gentileza de telefonar para minha assistente,
Erica Parnell, para marcar uma reunião a respeito de suas necessidades atuais relativas ao
saldo a descoberto.
Atenciosamente
Derek Smeath
Gerente

ENDWICH – PORQUE NOS IMPORTAMOS

Endwich Bank
AGÊNCIA FULHAM
3 Fulham Road
Londres SW6 9JH
Srta. Rebbeca Bloom
Apto. 2
4 Burney Road
Londres SW6 8FD
17 de novembro de 1999
Prezada Srta. Bloom,
Senti muito saber de sua febre ganglionar.
Quando se recuperar, talvez possa fazer a gentileza de telefonar para minha assistente,
Erica Parnell, para marcar uma reunião a respeito de sua situação.
Atenciosamente
Derek Smeath
Gerente
ENDWICH - PORQUE NOS IMPORTAMOS

UM

Tudo bem. Não entre em pânico. É só uma conta do VISA. Só um pedaço de papel;
alguns números. Quero dizer, que poder têm uns poucos números para nos amedrontar?
Pela janela do escritório, olho para um ônibus descendo a Oxford Street. Quero abrir o
envelope branco sobre minha escrivaninha desarrumada. “É só um pedaço de papel”,
repito para mim mesma pela milésima vez. E não sou burra, sou? Sei exatamente qual é o
valor desta conta do VISA.
Mais ou menos.
Vai ser cerca de... 200 libras. Talvez trezentas. Sim, talvez trezentas. Trezentas e
cinqüenta no máximo.
Indiferente, fecho os olhos e começo a calcular. Teve aquele tailleur na Jigsaw. E
aquele jantar com Suze no Quaglino’s. E aquele lindo tapete vermelho e amarelo. O
tapete foi 200 libras, imagine. Mas definitivamente valeu cada centavo – todos os
admiraram. Pelo menos Suze.
E o tailleur da Jigsaw estava em liquidação – por 30% a menos. Portanto, na verdade,
foi uma economia de dinheiro.
Abro meus olhos e estico a mão para a conta. Quando meus dedos alcançam o papel,
lembro-me das novas lentes de contato. Noventa e cinco libras. Um bocado. Mas, afinal,
tive que comprar, não tive? O que devo fazer, andar por aí sem enxergar nada?
E precisei comprar umas loções novas, uma caixinha bonitinha e um delineador
hipoalergênico. Isso eleva para... quatrocentos?
De sua mesa de trabalho na sala ao lado, Clare Edwards olha para mim. Está separando
todas as suas cartas em pilhas como faz todas as manhãs. Embrulha cada uma num
elástico e as classifica com dizeres do tipo “Responder imediatamente” e “Responder sem
urgência”. Odeio Clare Edwards.
- Tudo bem, Becky? – diz ela.
- Tudo bem – digo com um ar leve. – Só estou lendo uma carta.
Com um ar feliz, enfio a mão no envelope, mas meus dedos não tiram a conta. Ficam
grudados nela enquanto minha mente fica tomada – como acontece todo mês – por um
sonho secreto.
Quer saber do meu sonho secreto? Ele se baseia numa história que li uma vez no jornal
a respeito de uma confusão ocorrida num banco. Gostei tanto que recortei e fixei na porta
do meu armário. Duas contas de cartão de crédito foram enviadas para pessoas erradas e
– imagine só – as duas pagaram a conta errada sem perceber. Elas pagaram as contas uma
da outra sem nem mesmo examiná-las.
Desde que li aquela história, tenho um sonho secreto: que o mesmo acontecerá comigo.
Alguma velhinha caduca em Cornwall vai receber minha conta colossal e pagar sem nem
mesmo olhar para ela. E eu receberei sua conta de três latas de comida de gato, a 59
centavos cada uma. Que, naturalmente, pagarei sem questionar. Justiça é justiça, afinal.
Um sorriso toma conta do meu rosto quando olho pela janela. Estou convencida de que
este mês isto vai acontecer – meu sonho secreto está para se tornar realidade. Mas
quando, finalmente, tiro a conta do envelope – irritada com o olhar curioso de Clare –
meu sorriso esmaece, depois desaparece. Uma quentura bloqueia minha garganta. Acho
que pode ser pânico.
A folha fica preta com a quantidade de letras. Uma série de nomes familiares passam
pelos meus olhos como um shopping. Quero entender mas eles se movem muito
rapidamente. Thorntons, consigo enxergar por um instante. Thorntons Chocolates? Que
diabos eu estava fazendo na Thorntons Chocolates? Eu deveria estar de dieta. Esta conta
não pode estar certa. Isto não pode ser meu. Não posso ter gasto todo esse dinheiro.
Não se desespere, grito por dentro. O segredo é não entrar em pânico. É só ler cada
nome devagar, um por um. Inspiro profundamente e me forço para ler com calma,
começando do alto da lista.
WH Smith (tudo bem. Todo mundo precisa de artigos de papelaria)
Boots (idem)
Specsavers (essencial)
Oddbins (garrafa de vinho – essencial)
Our Price (Our Price? Ah, sim. O novo CD dos Charlatans. Bem, eu precisava tê-lo,
não é?)
Bella Pasta (jantar com Caitlin)
Oddbins (garrafa de vinho – essencial)
Esso (gasolina não conta)
Quaglino’s (caro – mas foi imperdível)
Pret à Manger (naquele dia eu estava sem dinheiro vivo)
Oddbins (garrafa de vinho – essencial)
Rugs to Riches (o quê? Ah sim, o tapete. Tapete danadinho)
La Senza (roupa de baixo sexy para sair com James)
Agent Provocateur (uma roupa de baixo mais sexy ainda para sair com James. Ah. Eu
precisava disso)
Body Shop (aquele negócio de escovar a pele que eu preciso usar)
Next (saia branca bem sem graça – mas estava em liquidação)
Millets...
Paro ali. Millets? Eu nunca entro na Millets. Que diabos estaria eu fazendo na Millets?
Intrigada fixo o olhar no extrato, franzo a sobrancelha e procuro pensar – e então, de
repente, a verdade aparece. É óbvio. Alguém mais está usando meu cartão.
Ah, meu Deus. Eu, Rebecca Bloom, fui vítima de um crime.
Agora tudo faz sentido. Algum criminoso roubou meu cartão de crédito e forjou minha
assinatura. Quem sabe onde mais eles o usaram? Não é para menos que meu extrato está
tão preto de números! Alguém resolveu farrear por Londres à custa do meu cartão – e
achou que conseguiria escapar.
Mas como conseguiram? Procuro minha carteira de dinheiro na bolsa, abro-a – e ali
está meu cartão VISA me fitando. Pego e olho para ele. Alguém certamente o roubou de
minha carteira, usou – e depois devolveu. Deve ser alguém que conheço. Ah, meu Deus.
Quem?
Examino pelo escritório com um olhar desconfiado. Quem quer que tenha sido não
prima pela inteligência. Usar meu cartão na Millets! É quase uma piada. Como se algum
dia eu fosse comprar ali.
- Nunca nem entrei na Millets! – digo alto.
- Entrou sim – diz Clare.
- O quê? – viro para ela, nada contente por ter sido interrompida. – Não, não entrei.
- Você comprou o presente de despedida de Michael na Millets, não foi?
Olho para ela e sinto meu sorriso desaparecer. Ah, estraga-prazeres. Claro. O casaco
azul para Michael. O casaco de neve azul brega da Millets.
Três semanas atrás quando Michael , agente de nossa editora, foi embora, voluntarieime
para comprar-lhe o presente. Levei o envelope marrom cheio de moedas e notas para
a loja e escolhi um casaco de neve (acredite-me, ele é esse tipo de homem). E, no último
minuto, agora me lembro, decidi pagar com o cartão e guardar o trocado para meu uso.
Recordo-me muito bem de ter escolhido as quatro notas de 5 libras e tê-las
cuidadosamente guardado na minha carteira, separando as moedas grandes e colocandoas
no compartimento de moedas, despejando o resto do trocado no fundo da bolsa. “Ah,
que bom”, lembro-me de ter pensado. “Não vou precisar ir ao caixa eletrônico.” Pensei
que aquelas sessenta libras durariam semanas.
Então o que aconteceu? Não posso simplesmente ter gasto sessenta libras sem
perceber, posso?
- Por que está perguntando afinal? – diz Clare inclinando-se para mim. Seus olhos de
raios X brilhando atrás dos óculos. Ela sabe que estou olhando para minha conta do
VISA.
- Nenhuma razão – digo eu e, de uma forma brusca, virando para a segunda folha do
extrato.
Mas algo me interrompe. Em vez de fazer o de sempre – fixar os olhos no valor do
Pagamento Mínimo e ignorar completamente o total – me vejo fixando o número no pé
da página.
Novecentas e quarenta e nove libras, sessenta e três centavos. Em branco-e-preto bem
nítido.
Em silêncio, contemplo durante trinta segundos, logo depois empurro a conta de volta
para dentro do envelope. Naquele momento sinto como se aquele pedaço de papel não
tivesse nada a ver comigo. Talvez se, por algum descuido, o deixasse cair no chão atrás
do meu computador, ele desaparecesse. O pessoal da limpeza o varrerá e eu poderei dizer
que nunca o recebi. Não podem me cobrar por uma conta que nunca recebi, podem?
Já estou redigindo uma carta mentalmente. ‘Prezado Gerente do cartão VISA. Sua
carta confundiu-me. A que conta está se referindo precisamente? Nunca recebi nenhuma
conta de sua parte. Não gostei do tom de sua carta e devo avisá-lo de que estou
escrevendo para Anne Robinson da Watchdog.”
Ou sempre existe a opção de me mudar para o exterior.
- Becky? – Levanto a cabeça abruptamente e vejo Clare olhando para mim.
- Você já terminou o texto sobre o Lloyds?
- Quase – minto. Como ela está me observando, sinto-me forçada a trazê-lo para a tela
do meu computador só para mostrar força de vontade. Mas a chata ainda está me
observando.
“Quem economiza pode beneficiar-se do acesso instantâneo” – digito no computador,
copiando diretamente de um release à minha frente. – “A conta também está oferecendo
taxas de juros diferenciadas para quem investe mais de 5.000 libras.”
Digito um ponto final, tomo um gole de café e viro para a segunda página do release.
É isto que faço, por falar nisso. Sou jornalista de uma revista financeira. Sou paga para
dizer às outras pessoas como administrar seu dinheiro.
Não é a carreira que eu sempre quis, claro. Ninguém que escreve sobre finanças pessoais
jamais pensou em fazê-lo. Todos dizem que “caíram” nas finanças pessoais. Estão
mentindo. O que eles querem dizer é que não conseguiram um emprego para escrever
sobre nada que fosse mais interessante. Querem dizer que se candidataram para empregos
em The Times, no Express, na Marie-Claire, na Vogue, na GQ e na Loaded, mas só
receberam um fora.
Começaram então a candidatar-se para a Metalwork Monthly (uma publicação mensal
do setor de metalurgia), a Cheesemakers Gazette (revista dos fabricantes de queijo) e a
What Investment Plan? (publicação sobre investimentos), foram admitidos como
assistentes editoriais insignificantes ganhando muito pouco, e ficaram agradecidos. E
continuaram escrevendo sobre metalurgia, queijo ou poupança desde então – porque é
tudo o que sabem. Eu comecei na revista com o título cativante de Personal Investment
Periodical (publicação sobre investimentos pessoais). Aprendi como copiar um release,
acenar com a cabeça em entrevistas coletivas e fazer perguntas de forma a parecer que
sabia do que estava falando. Depois de um ano e meio – acredite se quiser – fui
convidada para trabalhar na Successful Saving (uma publicação sobre investimentos
bem-sucedidos).
Obviamente ainda não sei nada sobre finanças. As pessoas no ponto de ônibus sabem
mais sobre esse assunto do que eu. As crianças nas escolas sabem mais do que eu. Há três
anos desenvolvo essa atividade e ainda estou esperando que alguém me contrate para
outro lugar.
Naquela tarde Philip, o editor, chama meu nome e eu pulo de medo.
- Rebecca? – diz ele. – Uma palavrinha. – E me chama à sua mesa. Sua voz parece
mais baixa, quase num tom conspirador, e ele sorri para mim como se estivesse pronto
para dar-me uma boa notícia.
Ah, meu Deus, penso. Promoção. Deve ser. Ele sabe que não é justo eu ganhar menos
que Clare, então vai promover-me para o nível dela. Ou talvez acima. E está me dizendo
discretamente para que Clare não fique enciumada.
Um sorriso amplo enfeita meu rosto, levanto e ando cerca de três metros ou coisa
parecida até sua mesa, procurando ficar calma mas já planejando o que vou comprar com
meu aumento salarial. Vou comprar aquele casaco trançado na Whistles. E umas botas
pretas de salto da Pied à Terre. Talvez saia de férias. E pagarei aquela abominável conta
do VISA de uma vez por todas. Sinto-me contente e aliviada. Eu sabia que tudo daria
certo...
- Rebecca? – Ele joga um cartão para mim. – Não vou poder ir a esta entrevista
coletiva – diz ele. – Mas talvez seja bem interessante. Você pode ir? É na Brandon
Communications.
Percebo minha expressão alegre escorrer do meu rosto como geléia. Ele não está me
promovendo. Não estou recebendo um aumento de salário. Sinto-me traída. Por que
sorriu para mim daquele jeito? Devia saber que estava aumentando minhas esperanças.
Seu sacana.
- Alguma coisa errada? - pergunta Philip.
- Não - murmuro. Mas não consigo sorrir. Na minha frente vejo meu novo casaco
trançado e minhas botas de salto alto sumirem como num passe de mágica. Nenhuma
promoção. Só uma entrevista coletiva sobre… Volto os olhos para o cartão de relance.
Sobre uma nova cota de fundo. Como alguém consegue chamar aquilo de interessante?
- Poderá escrever sobre isso para a revista - diz Philip.
- Está bem - encolho os ombros num sinal de aceitação e me afasto.

DOIS

Só tem uma coisa especial que preciso comprar no caminho para a entrevista coletiva —
é o Financial Times. O FT é de longe o melhor acessório que uma mulher pode ter. Suas
maiores vantagens são:
1. Tem uma cor bonita.
2. Custa só 0,85.
3. Se você entra numa sala com ele debaixo do braço, as pessoas a levam a sério. Com
um FT debaixo do braço, você pode falar sobre as coisas mais frívolas do mundo e, em
vez de acharem-na fútil, pensam que é uma intelectual de peso e que também tem
interesses mais amplos.
Na minha entrevista para a Successful Saving, entrei segurando exemplares do
Financial Times e do Investor’s Chronicle e não me perguntaram nada sobre finanças. Do
que me lembro, passamos o tempo todo falando sobre cidades para passar as férias e
falando mal de outros editores.
Paro então numa banca de jornal, compro um exemplar do FT e coloco debaixo do
braço, admirando minha imagem refletida na imagem da Denny and George.
Minha aparência não é ruim, penso. Estou usando minha saia preta da French
Connection, uma camiseta branca da Knickerboxe um pequeno cardigã de angoráque
comprei na M&S mas parece mais ser da Agnès B. E meus sapatos novos de bico
quadrado da Hobbs. E, melhor ainda,apesar de ninguém poder ver, sei que, por baixo,
estou usando meu lindo conjunto de calcinha e sutiã com botões de rosas amarelas. É a
melhor parte de toda minha roupa. De fato, quase gostaria de ser atropelada para todo
mundo poder ver.
É um hábito meu listar todas as roupas que estou usando como se fosse para uma
página de modas. Faço isto há anos — desde a época em que lia Just Seventeen. Em cada
número eles paravam uma garota na rua, tiravam uma foto e listavam toda a roupa que
estava usando: “Camiseta: da Chelsea Girl; jeans: da Top Shop; sapatos: emprestados de
uma amiga.” Eu lia essas listas avidamente — e até hoje, se comprar algo numa loja que
não esteja tão na moda, corto a etiqueta fora. Porque assim, se algum dia eu for abordada
na rua, poderei fingir que não sei de onde é.
Enfim. Lá estou,me olhando,pensando que minha aparência está bem razoável, meio
querendo que alguém da Just Seventeeen apareça com uma câmera — quando de repente
meus olhos focalizam atentos e meu coração pára. Na janela da Denny and George há um
anúncio discreto. É verde-escuro com letras creme e diz: LIQUIDAÇÃO.
Olho para ele, meu coração bate forte. Não pode ser verdade. Denny and George não
pode estar em liquidação. Eles nunca têm saldo. Suas echarpes e pashminas são tão
cobiçadas que é provável que conseguissem vendê-las pelo dobro do preço. Todo mundo
que conheço no mundo inteiro anseia ter uma echarpe da Denny and George. (Exceto
meus pais, obviamente. Minha mãe acha que qualquer coisa que não possa ser comprada
na Bentalls de Kingston não é necessária.)
Tomo fôlego, dou dois passos à frente e abro a porta da pequena loja. A porta assobia e
a simpática garota loura que trabalha lá olha para mim. Não sei seu nome mas sempre
gostei dela. Diferente de algumas vendedoras antipáticas em lojas de roupas, ela não se
importa se você fica séculos olhando as roupas que, na verdade, não tem condição de
comprar. Geralmente o que acontece é que gasto meia hora desejando as echarpes Denny
and Geroge, depois saio para a Accessorize e compro alguma coisa para me alegrar.
Tenho uma gaveta inteira de substitutos de Denny and George.
— Olá — digo, tentando ficar calma. — Vocês... vocês estão em liquidação.
— Sim. — A garota loura sorri. — Um pouco incomum para nós.
Meu olhar varre a sala. Vejo fileiras de echarpes, cuidadosamente dobradas, com
letreiros verde-escuros com os dizeres “50% de desconto”. Veludo estampado, seda
enfeitada com continhas, cashmere bordado, todos com a assinatura discreta “Denny and
George”. Elas estão em toda parte. Não sei por onde começar. Acho que estou tendo um
ataque de pânico.
— Acho que você sempre gostou deste — diz a simpática moça loura, pegando uma
echarpe de um azul-acinzentado suave na pilha à sua frente.
Ah, Deus, sim. Lembro-me desta. É de um veludo de seda, sobreposto com uma
estampa de um azul mais claro de bolas e contas cintilantes. Contemplo-a, posso sentir os
pequenos fios invisíveis, silenciosamente atraindo-me em sua direção. Preciso tocá-la.
Preciso usá-la. É a coisa mais linda que já vi. A garota olha a etiqueta. “Reduzido de 340
para 120 libras.” Aproxima-se e coloca a echarpe em volta do meu pescoço, enquanto me
admiro no espelho.
Não há duvida. Tenho de ter esta echarpe. Preciso tê-la. Ela faz meus olhos parecerem
maiores, faz meu corte de cabelo parecer mais caro, me faz parecer uma pessoa diferente.
Poderei usá-la com tudo. As pessoas vão se referir a mim como a Garota da Echarpe
Denny and George.
— Se eu fosse você levaria na hora. — A menina sorri para mim. — Só sobrou uma
deste tipo.
Involuntariamente agarro-a com as mãos.
— Vou levá-la — digo ofegante. — Vou levá-la.
Enquanto ela embrulha num papel de seda, pego minha bolsa, abro-a e procuro meu
cartão VISA num ato perfeito e automático — mas meus dedos encontram o couro nu.
Paro surpresa e começo a remexer todos os cantos da bolsa, pensando se guardei meu
cartão em outro lugar com algum recibo ou se está escondido debaixo de outro cartão... E
então, com um baque de desgosto, me lembro. Ficou na minha mesa de trabalho.
Como pude ser tão burra? Como pude deixar meu cartão VISA na minha mesa? Em
que eu estava pensando?
A simpática garota loura guarda a echarpe embrulhada numa caixa verde-escura Denny
and George. Meu coração bate forte. O que vou fazer?
— Como vai pagar? — pergunta numa voz agradável.
Meu rosto fica vermelho.
— Acabei de perceber que deixei meu cartão de crédito no escritório — gaguejo.
— Ah — diz a moça, e suas mãos param.
— Pode guardá-la para mim? — A garota parece em dúvida.
— Por quanto tempo?
— Até amanhã? — digo desesperada. Ai, meu Deus. Ela está fazendo uma careta. Será
que não entende?
— Creio que não — diz ela. — Não podemos reservar a mercadoria do sado.
— Então, só até mais tarde hoje — digo rapidamente. — A que horas vocês fecham?
— Às seis.
Seis! Sinto uma combinação de alívio e adrenalina atravessando meu corpo. Desafio
Rebecca. Vou à coletiva, saio logo que seja possível e, então, pego um táxi de volta para
o escritório. Pego meu cartão VISA, digo ao Philip que esqueci meu caderno de
anotações no local da entrevista, volto aqui e compro a echarpe.
— Pode guardá-la até lá? — Imploro. — Por favor? Por favor? — A garota cede.
— Está bem. Vou deixá-la atrás do balcão.
— Obrigada — suspiro. Saio correndo da loja e desço a rua em direção à Brandon
Communications. Deus, por favor, faça com que a entrevista seja curta, rezo. Por favor,
não deixe as perguntas durarem muito tempo. Por favor, Deus, por favor, permita que eu
tenha aquela echarpe.
Quando chego na Brandon Communications, começo a relaxar. Tenho três horas inteiras,
afinal. E minha echarpe está segura atrás do balcão. Ninguém vai roubá-la de mim.
Há um aviso no foyer da Brandon Communications dizendo que a entrevista coletiva
da Foreland Exotic Opportunities está acontecendo na Suíte Artemis, e um homem de
uniforme está orientando a todos. Isto significa que deve ser bem grande. Claro que não
se trata de uma superprodução com televisão-câmeras-CNN-imprensa internacional. Nas
é uma entrevista coletiva bastante concorrida. Um evento relativamente importante no
nosso mundinho entediante.
Quando entro na sala, já há um burburinho de pessoas se acotovelando e garçonetes
circulando com canapés. Jornalistas engolem o champanhe como se nunca o tivessem
visto antes; garotas de relações públicas com ar arrogante bebem água. Um garçom me
oferece uma taça de champanhe e pego duas. Uma para agora e outra para deixar
embaixo da minha cadeira para as partes chatas.
No canto mais longínquo da sala vejo Elly Granger da Investor’s Weekly News. Ela
foi levada para um canto por dois homens sérios vestidos de terno e, com uma expressão
vazia, acena com a cabeça concordando com o que dizem. Elly é fantástica. Está na
Inverstor’s Weekly News há seis meses e já se candidatou a quarenta e três outros
empregos. O que realmente deseja é ser editora de beleza em alguma revista. O que eu
realmente quero é ser a Fiona Phillips na GMTV. Às vezes, quando já estamos altas
depois de bebermos muito, fazemos pactos de que, se não estivermos em algum lugar
mais interessante dentro de três meses, nós duas deixaremos nossos empregos. Mas
depois a idéia de ficar sem dinheiro — mesmo que só por um mês — é quase mais
aterradora que a idéia de escrever sobre fundos de pensão pelo resto da vida.
— Rebecca. Que bom que você veio.
Olhei para ele e quase engasguei com o champanhe. É Luke Brandon, o todo-poderoso
da Brandon Communications, olhando direto para mim como se soubesse exatamente o
que estou pensando.
Só o encontrei poucas vezes e sempre me sinto pouco à vontade perto dele. Para
começar, tem uma reputação de dar medo. Todos sempre falam de seu talento, até meu
chefe Phillip. Criou a Brandon Communications do nada, e agora é a maior empresa de
RP financeiras de Londres. Alguns meses atrás foi citado em alguns jornais como um dos
mais inteligentes empresários de sua geração. Diziam que seu QI é um fenômeno de tão
alto e que tem memória fotográfica. (Sempre detestei as pessoas com memória
fotográfica.)
Mas não é só isso. É que ele sempre parece ter um olhar de reprovação quando fala
comigo. Como se soubesse que sou uma completa fraude. Me ocorre que, de fato, ele
pode saber. É provável que o famoso Luke Brandon, além de ser um completo gênio,
também consiga ler pensamentos. Ele sabe que, quando olho fixamente para algum
gráfico maçante, acenando que sim com um ar importante na verdade estou pensando
num bonito top preto que vi na Joseph e analisando se tenho condições de comprar as
calças também.
— Conhece Alicia, não? — diz Luke, e faz um gesto para a loura imaculada ao seu
lado.
Por acaso, não conheço Alicia. Mas nem preciso conhecer. Elas são todas iguais, as
garotas da Brandon C, como são chamadas. Se vestem bem, falam bem, são casadas com
banqueiros e não têm nenhum senso de humor.
— Rebecca — diz Alicia friamente, segurando minha mão. — Você está na Successful
Saving, não é?
— Isto mesmo — digo eu, igualmente fria.
— Foi muito gentil da sua parte ter vindo hoje — diz Alicia. — Sei que vocês
jornalistas são muito ocupados.
— Nenhum problema — retruquei. — Gostamos de participar do maior número
possível de entrevistas coletivas. Para estar em dia com os eventos da área. — Fico
contente com minha resposta. Estou quase acreditando em mim mesma.
Alicia acena afirmativamente com a cabeça, séria, como se tudo o que disse fosse
incrivelmente importante para ela.
— Então me diga, Rebecca. O que achou das notícias de hoje? — Aponta para o FT
debaixo de meu braço. — Foi uma surpresa tanto, não achou?
Ah, meu Deus. Do que ela está falando?
— Com certeza é muito interessante — menciono, sorrindo para ganhar tempo. Olho
em torno da sala procurando uma dica, mas não há nada. O que aconteceu? As taxas de
juros subiram ou algo assim?
— Devo dizer que considero isso uma má notícia para o ramo — diz Alicia séria. —
Mas claro, você deve ter seu próprio ponto de vista.
Ela está me olhando, esperando uma resposta. Posso sentir meu rosto brilhando de tão
vermelho. Como sair dessa? De agora em diante, prometo a mim mesma, vou ler os
jornais todos os dias. Nunca vou ser pega assim outra vez.
— Concordo com você — acabo dizendo. — Acho que são notícias muito ruins. —
Minha voz soa estrangulada. Tomo rápido um grande gole de champanhe e rezo para que
aconteça um terremoto.
— Você estava esperando? Sei que vocês jornalistas sempre estão à frente das notícias.
— Eu... eu certamente vi que estava por acontecer — digo e acredito ter soado
convincente.
— E agora esse rumor sobre a Scottish Prime e Flagstaff Life indo na mesma direção!
— Ela olha para mim atenta. — Você acha que isto está mesmo para acontecer?
— É... é difícil dizer — replico e tomo um grande trago de champanhe. Que rumor?
Ah, Deus, por que ela não me deixa em paz?
E então caio no erro de olhar pra Luke Brandon. Ele está me observando com uma
expressão estranha no rosto. Droga. Ele sabe que não tenho a menor idéia, não sabe?
— Alicia — diz ele abruptamente. — Aquela é Maggie Stevens entrando. Você
poderia...
— Claro — diz ela, treinada como um cavalo de corrida, e começa a caminhar
suavemente em direção à porta.
— E, Alicia — acrescenta Luke, e ela rapidamente se volta para ele —, quero saber
exatamente quem sacaneou com esses números.
— Está bem — engole seco ela, e se afasta correndo.
Meu Deus, ele dá medo. E agora estamos sozinhos. Acho que eu podia fugir rápido.
— Bem — digo habilmente. — Preciso ir e...
Mas Luke Brandon e inclina para mim.
— A SBG anunciou que eles assumiram o controla do Rutland Bank esta manhã —
disse calmo.
E evidentemente, agora que ele disse, lembro de ter ouvido alguma coisa sobre o
assunto nas notícias matinais do rádio.
— Sei que fizeram isso — replico orgulhosa. — Li no FT. — E antes que ele diga mais
alguma coisa, me afasto para falar com Elly.
Quando a entrevista está prestes a começar, Elly e eu escapulimos para o fundo da sala e
pegamos dois assentos juntos. Abro meu caderno de anotações, escrevo “Brandon
Communications” no topo da página e começo a desenhar flores em tranças descendo
pela margem. Ao meu lado, Elly disca para o tele-horóscopo pelo celular.
Tomo um gole de champanhe, me inclino para trás e me preparo para relaxar.Não faz
sentido ouvir uma entrevista coletiva. A informação está sempre no release e podemos
descobrir depois o que eles estavam falando. Na verdade, estou pensando se alguém
perceberia se eu pegasse um vidro de esmalte e fizesse minhas unhas quando, de repente,
Alicia inclina-se para mim.
— Rebecca?
— Sim? — digo com ar de preguiça.
— Telefone para você. É seu editor.
— Philip? — respondo com um ar de desinteresse. Como se eu tivesse uma coleção de
editores para escolher.
— Sim. — Ela olha para mim como se eu fosse débil mental e aponta para um telefone
numa mesa ao fundo. Elly me dá um olhar interrogativo e respondo que não sei do que se
trata com os ombros. Philip nunca me telefonou em uma entrevista coletiva antes.
Sinto-me de certa forma feliz e importante enquanto me encaminho para o fundo da
sala. Talvez haja uma emergência no escritório. Talvez ele tenha um furo de reportagem
de uma história incrível e queira que eu voe para Nova York atrás de informação.
— Alô, Philip? — falo no receptor, logo depois me arrependo de não ter dito alguma
coisa forte e impressionante como um simples “Sim”.
— Rebecca, ouça, sinto muito atrapalhar — diz Philip — mas estou com uma
enxaqueca se aproximando. Vou direto para casa.
— Ah — digo intrigada.
— E pensei que você poderia fazer uma coisinha na rua para mim.
Uma coisinha? Quem ele pensa que eu sou? Se ele quer alguém para comprar-lhe
paracetamol, deveria contratar uma secretária.
— Não tenho certeza — respondo com uma voz desencorajadora. — Estou um pouco
enrolada aqui.
— Quando tiver terminado aí. A Comissão Especial da Previdência Social estará
liberando seu relatório às cinco horas. Você pode pegá-lo? Poderia ir direto da sua
coletiva para Westminster.
O quê? Olho para o fone horrorizada. Não, eu não posso pegar o maldito relatório.
Preciso pegar meu cartão VISA! Preciso garantir minha echarpe.
— Clare não pode ir? — digo. — Eu ia voltar para o escritório para terminar minha
pesquisa sobre... — Sobre o que devo escrever este mês? — Sobre hipotecas.
— Clare tem uma reunião no Centro da cidade. E Westminster é no seu caminho de
casa na direção de Fulham, não é?
Philip sempre tem que fazer uma piada sobre eu morar em Fulham. Só porque ele mora
em Harpenden.
— Você pode simplesmente sair do metrô — diz ele —, pegar o material e voltar para
o metrô.
Ah, Deus. Não consigo imaginar nenhuma forma de sair dessa. Fecho meus olhos e
penso rápido. Correr de volta para o escritório, pegar meu cartão VISA, voltar para a
Denny and George, comprar minha echarpe, correr para Westminster, pegar o relatório.
Devo conseguir isso tudo justinho.
— Está bem — digo. — Deixe comigo.
Volto para meu lugar, ao mesmo tempo que as luzes esmaecem e as palavras
OPORTUNIDADES NO EXTREMO ORIENTE aparecem na tela à nossa frente. Há
uma série variada de fotos de Hong Kong, Tailândia e outros lugares exóticos, que
normalmente me fariam sonhar em ir lá numas férias. Mas hoje não consigo relaxar ou
mesmo rir da nova garota da Portfolio Week que está como uma louca tentando anotar
tudo e provavelmente fará cinco perguntas porque acha que deve. Estou preocupada
demais com minha echarpe. E se eu não conseguir voltar a tempo? E se alguém fizer uma
oferta mais alta? O pensamento me faz sentir pânico. É possível surrupiar uma echarpe da
Danny and George?
Depois, quando as fotos da Tailândia desaparecem e os gráficos maçantes começam,
tenho uma luz de inspiração. Claro! Vou pagar a echarpe em dinheiro. Ninguém pode
discutir com dinheiro. Posso tirar cem libras com meu cartão do banco e só preciso de
mais vinte, e a echarpe será minha.
Rasgo um pedaço de papel do meu caderno, escrevo nele “Você pode me emprestar
vinte paus?” e passo para Elly, que ainda está envolvida com o seu telefone celular. O
que será que ela está ouvindo? Não pode ser o horóscopo até agora, certo? Ela olha para
baixo, balança negativamente a cabeça e escreve: “Não posso. A infeliz da máquina
engoliu meu cartão. Estou vivendo de Vale-Refeição no momento.”
Droga. Hesito e olho em volta. “E o cartão de crédito? Pago de volta, sinceramente. E
o que você está ouvindo?”
Passo a página de volta para ela e de repente as luzes se acendem. A apresentação
terminou e não ouvi uma palavra. As pessoas se agitam em suas cadeiras e uma relaçõespúblicas
começa a entregar lustrosas pastas. Elly terminou seu telefonema e sorri para
mim.
— Adoro previsões sobre a vida — diz ela, discando outro número. — São realmente
precisas.
— Um monte de besteiras, isto sim. — Balanço minha cabeça em sinal de reprovação.
— Não posso crer que você acredita nessas besteiras todas. E se considera jornalista de
finanças?
— Não — diz Elly. — Você se considera? — E nós duas começamos a gargalhar até
que uma jornalista mala se vira e nos dirige um olhar mal-humorado.
— Senhoras e senhores. — Uma voz aguda nos interrompe e eu olho. É Alicia, de pé
em frente da sala. Tem belas pernas, percebo ressentida. — Como podem ver, o Plano de
Poupança das Oportunidades Exóticas da Foreland representa uma abordagem
inteiramente nova de investimento. — Ela observa a sala, encontra meu olhar e sorri
friamente.
— Oportunidades Exóticas — sussurro num tom jocoso para Elly e aponto para o
folheto. — Preços exóticos, melhor dizendo. Você já viu quanto eles estão cobrando?
(Sempre leio primeiro a parte dos preços. Como sempre olho primeiro as etiqueas dos
preços.)
Elly revira os olhos em concordância, ainda ouvindo seu telefone.
— A Foreland Investments agrega valor — diz Alicia com seu tom de voz superior. —
A Foreland oferece mais a você.
— Ela cobra mais, você perde mais — digo alto sem pensar, e soa uma risada na sala.
Deus, que embaraçoso. E agora Luke Brandon me observa também. Rapidamente dirijo o
olhar para baixo e finjo estar tomando notas.
Se bem que, para ser sincera, não sei por que ainda finjo tomar notas. Como se nós
puséssemos qualquer coisa na revista que não fosse a propaganda que vem no release. A
Foreland Investments coloca um anúncio espalhado numa chamativa página dupla todo
mês, e ela levou Philip numa fantástica viagem de pesquisa (ah, ah) para a Tailândia no
ano passado — então nós não temos a permissão de dizer nada a não ser o quanto são
maravilhosos.
Enquanto Alicia continua falando, me inclino em direção à Elly.
— Então ouça — murmuro. — Posso pegar seu cartão de crédito emprestado?
— Já estourei — sussurra Elly numa expressão de desculpa. — Já alcancei meu limite.
Por que você acha que estou vivendo de vales?
— Mas preciso de dinheiro! — murmuro. — Estou desesperada! Preciso de vinte paus!
Falo mais alto que o pretendido e Alicia pára de falar.
— Talvez devesse ter investido na Foreland, Rebecca — diz Alicia, e uma nova
risadinha toma conta da sala. Alguns rostos voltam-se para mim e devolvo um olhar
pálido. São colegas jornalistas, pelo amor de Deus. Deveriam estar do meu lado. Onde
está a solidariedade entre colegas?
Não que eu tenha me filiado o sindicato dos jornalistas. Mas mesmo assim.
— Para que você precisa de vinte libras? — diz Luke Brandon, da frente da sala.
— Eu... minha tia — digo, desafiando. — Ela está no hospital e eu queria presenteá-la.
A sala está em silêncio. Depois, para minha incredulidade, Luke Brandon leva a mão
ao bolso, tira uma nota de vinte libras e entrega a um rapaz na fileira da frente de
jornalistas. Ele hesita e passa para a fileira atrás dele. E assim, continuando, a nota de
vinte libras é passada de mão em mão, fazendo seu caminho até mim como um fã num
show de rock sendo carregado pela multidão. Quando chega a mim, uma rodada de
aplausos toma conta da sala e eu enrubesço.
— Obrigada — respondo, embaraçada. — Vou pagar-lhe de volta, claro.
— Minhas recomendações para sua tia — diz Luke Brandon.
— Obrigada — respondo novamente. Olho de repente para Alicia e sinto uma pontada
de triunfo. Ela parece inteiramente desapontada.
Perto do final da sessão de perguntas e respostas, as pessoas começam a escapar para
seus escritórios. Geralmente é nesse momento que compro um cappuccino e dou uma
olhada nas lojas. Mas hoje não. Hoje decido que vou ficar até a última pergunta sobre
sistemas tributários. Depois vou até a frente para agradecer a Luke Brandon e, pessoa por
seu gesto bondoso, talvez embaraçoso. E depois saio e compro minha echarpe. Oba!
Mas, para minha surpresa, depois das primeiras perguntas apenas, Luke Brandon
levanta-se, sussurra algo para Alicia e dirige-se à porta.
— Obrigada — murmuro quando ele passa por minha cadeira, mas nem sequer estou
certa se me ouviu.
Mesmo assim, e daí? Tenho as vinte libras e é isso que isto que importa.
No caminho de volta para Westminster,o metrô pára num túnel sem nenhuma razão
aparente. Passam-se cinco minutos, depois dez minutos. Não consigo acreditar na minha
falta de sorte. Normalmente, claro, fico querendo que o metrô enguice para ter uma
desculpa para ficar longe do escritório por mais tempo. Mas hoje me comporto como um
estressado homem de negócios com uma úlcera. Bato os dedos, suspiro e olho pela janela
para a escuridão do túnel.
Em parte eu sei que tenho tempo suficiente para chegar à Denny and George antes de
fechar. Por outro lado sei que, mesmo que eu não consiga, é improvável que a garota
loura venha minha echarpe para outra pessoa. Mas a possibilidade existe. Portanto, até eu
ter aquela echarpe nas minhas mãos, não conseguirei relaxar.
Quando o trem finalmente volta a funcionar, afundo no meu assento com um suspiro
dramático e olho para o homem pálido e silencioso à minha esquerda.
— Graças a Deus! — digo. — Eu estava ficando desesperada.
— É frustrante — concorda ele, calmo.
— Eles simplesmente não pensam, não é? — digo eu. — Quero dizer, alguns de nós
temos coisas importantíssimas a fazer. Estou com uma pressa horrível!
— Eu também estou com um pouco de pressa — diz o homem.
— Se este trem não tivesse começado a andar, não sei o que eu teria feito. — Balanço
minha cabeça. — Você se sente tão... impotente!
— Sei exatamente o que você quer dizer — diz o homem com intensidade. — Eles não
percebem que alguns de nós... — aponta na minha direção — não estamos viajando à toa.
Faz diferença se chegamos ou não.
— Com certeza! — digo. — Para onde está indo?
— Minha mulher está em trabalho de parto — diz ele.— É nosso quarto filho.
— Ah — respondo estupefata. — Bem... Meu Deus. Parabéns. Espero que chegue...
— Ela levou uma hora e meia da última vez — diz o homem, esfregando sua testa
úmida. — E já estou neste trem há quarenta minutos. Ainda assim. Pelo menos estamos
andando agora.
Encolhe um pouco os ombros e sorri para mim.
— E você? Qual é seu negócio urgente?
Meu Deus.
— Eu... ahn... vou...
Paro covardemente e dou uma tossida, sentindo enrubescer. Não posso dizer a esse
homem que meu negócio urgente consiste em comprar uma echarpe na Denny and
George.
Quero dizer, uma echarpe. Não é nem um tailleur ou um casaco, ou algo que valha a
pena assim.
— Não é tão importante assim — ouço-me dizer entre dentes.
— Não acredito — responde ele gentilmente.
Ah, agora sinto-me horrível. Olho para cima — e graças a Deus é minha estação.
— Boa sorte — digo e me levanto correndo. — Realmente espero que chegue lá a
tempo.
Enquanto ando pela calçada sinto-me um pouco envergonhada. Talvez eu devesse ter
pego minhas cento e vinte libras e dado àquele homem para o seu bebê, em vez de
comprar uma echarpe sem nenhuma finalidade específica. Quero dizer, quando você
pensa a respeito, o que é mais importante? Roupas — ou o milagre de uma nova vida?
Pondero sobre a questão e me sinto profunda e filosófica.De fato estou tão absorta que
quase passo da rua. Mas olho justamente a tempo de virar a esquina — e sentir um golpe.
Uma garota vem na minha direção carregando uma sacola da Denny and George. De
repente tudo é varrido da minha mente.
Ah, meu Deus.
E se ela comprou minha echarpe?
E se pediu especialmente aquela, e a vendedora deu achando que eu não voltaria?
Meu coração começa a bater em pânico e ando com passadas maiores em direção à
loja. Quando chego na porta, abro e quase não consigo respirar de medo. E se ela não
estiver mais lá? O que farei?
Mas a garota loura sorri quando entro.
— Oi! — diz ela. —Ela está esperando por você.
— Ah, obrigada — digo aliviada e me apóio no balcão devido à minha fraqueza.
Honestamente sinto como se tivesse corrido de um assaltante para chegar lá. Na
verdade, acho que deviam incluir as compras como uma atividade cardiovascular. Meu
coração nunca bate tão rápido quanto ao ver um aviso de "desconto de 50%".
Conto o dinheiro em notas de dez e vinte e aguardo, quase tremendo de arrepios,
enquanto ela se abaixa por trás do balcão e reaparece com a caixa verde. Desliza-a para
dentro de uma sacola grossa e brilhante com alças de corda verde-escura e depois me
entrega. Quase fecho meus olhos, a sensação é maravilhosa.
Aquele momento. Aquele momento em que seus dedos se enroscam nas alças de uma
sacola brilhante, sem nenhum vinco — e todas as coisas novas e lindas dentro dela
passam a ser suas. Como é? É como passar fome durante dias, depois encher a boca de
torrada com manteiga quentinha. É como acordar e perceber que é fim de semana. É
como os melhores momentos do sexo. A minha mente bloqueia qualquer outro
pensamento. É um prazer puro, egoísta.
Ando vagarosamente para fora da loja, ainda com uma sensação inebriante de prazer.
Tenho uma echarpe Denny and George. Tenho uma echarpe Denny and George! Tenho...
— Rebecca. — Uma voz masculina interrompe meus pensamentos. Olho e meu
estômago treme de horror. É Luke Brandon.
Luke Brandon está em pé na rua, bem na minha frente, e está olhando para minha
sacola. Vou ficando cada vez mais nervosa. O que ele está fazendo aqui na calçada
afinal? Pessoas como ele não têm motoristas? Não deveria estar se dirigindo rapidamente
a alguma recepção importante ou algo assim?
— Comprou direitinho? — diz ele, franzindo um pouco as sobrancelhas.
— O quê?
— O presente de sua tia.
— Ah, sim — respondo engolindo. — Sim, eu... eu o comprei.
— É isso? — ele aponta para a sacola, e sinto meu rosto queimar.
— Sim — digo afinal. — Achei que uma... echarpe seria bom.
— Muito generoso da sua parte. Denny and George. — Ele levanta as sobrancelhas. —
Sua tia deve ser uma senhora elegante.
— Ela é — respondo e limpo a garganta. — É incrivelmente criativa e original.
— Estou certo disso — diz Luke e pára. — Qual é o nome dela?
Ah, Deus. Eu devia ter fugido logo que o vi, enquanto tinha chance. Agora estou
paralisada. Não consigo pensar em um nome feminino sequer.
— Erm... Ermintrude— ouço minha voz respondendo.
— Tia Ermintrude — diz Luke pensativo. Bem, dê-lhe minhas lembranças.
Faz um aceno com a cabeça, afasta-se, e fico observando, pensando se ele descobriu ou
não.

TRÊS

Atravesso a porta de nosso apartamento, Suze olha para mim e diz logo:
— Denny and George! Becky, não pode ser verdade.
— Sim. — Sorrio de orelha a orelha. — Comprei uma echarpe para mim.
— Me mostra! — diz Suze, se levantando do sofá. — Me mostra-me-mostra-memostra!
— Ela se aproxima e começa a puxar as cordas da sacola. — Quero ver sua
echarpe nova! Me mostra!
É por isto que adoro dividir apartamento com Suze. Julia, minha antiga companheira
de apartamento, teria franzido a sobrancelha e dito: "Denny e quem?" ou "É muito
dinheiro para uma echarpe." Mas Suze compreende perfeitamente. Se duvidar, ainda é
pior que eu.
Mas ela pode. Apesar de ter vinte e cinco anos de idade como eu, seus pais ainda lhe
dão dinheiro. Chamam de "mesada". Ao que parece, vem de alguma herança de família
— mas até onde consigo perceber, é dinheiro vivo. Seus pais também compraram-lhe um
apartamento em Fulham de presente pelo seu vigésimo primeiro aniversário e, desde
então, ela mora lá, metade trabalhando e metade dormindo.
Ela trabalhou como RP por (muito) pouco tempo, quando a conheci numa viagem a
trabalho para Guernsey. Aliás, ela estava trabalhando para a Brandon Communications.
Não querendo ser rude (ela mesma admitiu), ela foi a pior RP que já conheci. Esqueceu
completamente qual o banco que, supostamente, estava promovendo e começou a falar
entusiasmada de um dos concorrentes. O homem do banco olhava cada vez mais torto
para ela, enquanto todos os jornalistas riam até não poder mais. Suze ficou em má
situação em razão disso. Na realidade, foi quando decidiu que RP não era uma carreira
para ela. (A outra maneira de contar isto é dizer que Luke Brandon se encheu dela logo
que voltaram para Londres. Outra razão para eu não gostar dele.)
Mas nós duas nos divertimos a valer entornando vinho até a madrugada e, desde então,
sempre mantivemos contato. Depois, quando Julia de repente fugiu com um professor,
seu orientador no curso de doutorado (aquela era uma mulher cheia de surpresas), Suze
sugeriu que eu fosse morar com ela. Tenho certeza de que me cobra muito pouco pelo
aluguel, mas nunca insisti em pagar o valor de mercado porque não teria grana para isso.
Do jeito que os preços vão, com meu salário, estou mais perto de morar em Elephant e
Castle do que em Fulham. Como as pessoas normais conseguem morar nesses lugares tão
caros? Nunca consegui entender.
— Bex, abre! — Suze implora. — Me deixa ver! — Ela segura a parte de dentro da
sacola com longos dedos ansiosos, e eu puxo rápido antes que rasgue. Esta sacola vai
para atrás da porta, junto com minhas outras sacolas de lojas de prestígio, para ser usada
de maneira informal quando eu tiver que impressionar. (Graças a Deus que eles não
fizeram sacolas especiais se "Saldo". Odeio lojas que fazem isso. Qual é o sentido de ter
uma sacola de uma loja boa com a palavra "Saldo" salpicada por toda ela? Seria melhor
então salpicar logo o nome de uma loja barata.)
Muito lentamente, tiro a caixa verde-escura da sacola, retiro a tampa e desdobro o
papel de seda. Depois, quase numa atitude reverencial, puxo a echarpe. É linda. É ainda
mais bonita aqui do que na loja. Jogo-a em torno do meu pescoço e dou um sorriso meio
blasé para Suze.
— Ah, Bex! — murmura ela. — É linda!
Por um momento nós duas ficamos em silêncio. Estamos comungando com um ser
superior: o Deus da Compra.
Depois Suze estraga tudo.
— Pode usá-la para sair com James este fim de semana — diz ela.
— Não, não posso — digo, quase irritada, retirando-a novamente. — Não vou sair com
ele.
— Por quê?
— Não vou sair mais com ele. — Encolho os ombros tentando aparentar desinteresse.
— Verdade? — Os olhos de Suze arregalam-se. — Por que não? Você não me contou!
— Eu sei. — Fujo de seu olhar. — É um pouco... estranho.
— Você rompeu com ele? Ainda nem tinha transado com ele! — A voz de Suze elevase
de nervoso. Ela está desesperada para saber. Mas estaria eu desesperada para contar?
Por um instante aventei a possibilidade de ser discreta. Depois pensei: ora, e daí?
— Eu sei — digo eu. — Esse era o problema.
— O que quer dizer com isso? — Suze se curva na minha direção. — Bex, do que está
falando?
Respiro fundo e me viro para encará-la.
— Ele não queria.
— Não achava você bonita?
— Não. Ele... — Fecho os olhos, quase sem acreditar eu mesma. — Ele é contra o
sexo antes do casamento.
— Está brincando. — Abro os olhos e vejo Suze me fitando com uma expressão de
horror, como se tivesse acabado de ouvir a pior profanação conhecida pela espécie
humana. — Você está brincando, Becky. — Na verdade ela está me contestando.
— Não estou. — Consigo dar um sorriso fraco. — Era um pouco embaraçoso,
realmente. Eu de certa forma... o atacava, e ele tinha que me rechaçar.
A terrível lembrança perturbadora que eu conseguira apagar da minha cabeça começa a
tomar meu corpo outra vez. Conheci James numa festa algumas semanas atrás, e aquele
foi o terceiro encontro importante. Tínhamos saído para jantar fora, ele insistiu em pagar,
voltamos para seu apartamento e terminamos nos beijando no sofá.
Bem, o que eu deveria pensar? Lá estávamos os dois — ele e eu — e, se não estou
errada, enquanto sua mente dizia não, seu corpo dizia sim, sim, sim. Por isso, sendo uma
garota moderna, levei a mão ao zíper de sua calça e comecei a abri-lo. Quando ele me
empurrou, achei que estava fazendo alguma brincadeira e continuei mais entusiasmada
ainda que antes.
Analisando a situação, talvez eu tenha levado mais tempo do que deveria para discernir
que ele não estava brincando. Ele de fato precisou beliscar meu rosto para me afastar dele
— apesar de pedir muitas desculpas depois.
Suze me olha incrédula. Depois cai num ataque de riso.
— Ele teve que empurrar você? Bex, sua devoradora de homens.
— Não diga isso! — protestei. — Ele foi realmente muito gentil a respeito. Perguntou
se eu estaria preparada para esperar por ele.
— E você respondeu que de modo algum!
— Mais ou menos. — Desviei o olhar.
Na realidade, levada pela emoção do momento, lembro-me de tê-lo de certa forma
desafiado. — Resista agora, James... — Recordo-me de ter dito numa voz rouca, fitandoo
com o que acreditei serem olhos límpidos e sensuais. — Mas estará batendo à minha
porta no decorrer da semana.
Bem, já se passou mais de uma semana e não ouvi nem um pio. O que, pensando bem,
é muito pouco lisonjeiro.
— Mas é revoltante! — disse Suze. — E a compatibilidade sexual?
— Não sei. — Dou de ombros. — Acho que está querendo jogar com a sorte.
Suze dá uma risadinha inesperada.
— Você chegou a ver o...
— Não! Ele nem me deixava chegar perto!
— Mas conseguiu sentir? Era pequeno? — Os olhos de Suze brilham maliciosamente.
— Aposto que é ínfimo. Ele está esperando convencer alguma pobre garota a se casar
com ele e ficar presa a um brinquedinho a vida toda. Escapou por pouco, Bex! — Suze
leva a mão ao maço de Silk Cut e acende um cigarro.
— Fique longe! — digo, irritada. — Não quero minha echarpe cheirando a cigarro!
— Então o que você vai fazer no fim de semana? — pergunta ela, dando uma tragada.
— Vai estar bem? Quer ir comigo para o campo?
É assim que Suze sempre se refere à segunda casa de sua família em Hampshire. O
campo. Como se seus pais tivessem alguma nação pequena, independente, que ninguém
mais conhecesse.
— Não, está tudo bem — respondo, pegando morosamente a revista da TV. — Vou
visitar meus pais.
— Ah, bem — diz Suze. — Dê um abraço em sua mãe por mim.
— Claro — digo eu. — E você mande lembranças a Pepper.
Pepper é o cavalo de Suze. Ela o monta mais ou menos três vezes por ano, se tanto.
Mas quando seus pais sugerem vendê-lo fica histérica. Parece que custa 15.000 libras por
ano. Quinze mil libras. E o que faz para receber essa quantia? Só fica num estábulo e
come maçãs. Eu não acharia ruim ser um cavalo.
— Ah, sim, isto me lembra — diz Suze. — A conta do imposto predial chegou. É
trezentos para cada uma.
— Trezentas libras? — Olho para ela assombrada. — Quer dizer, para pagar agora?
— É. Na verdade está atrasada. Só me faça um cheque ou outra coisa.
— Tudo bem — digo, meio aérea. Trezentas libras chegando.
Pego minha bolsa e faço logo um cheque. Suze é tão generosa com o aluguel que
sempre pago minha parte das contas, às vezes acrescento um pouco mais. Mesmo assim,
sinto um calafrio quando entrego. Trezentas libras se foram, num piscar de olhos. E ainda
tenho aquela terrível conta do VISA para pensar. O mês não é dos melhores.
— Ah, e alguém ligou — acrescenta Suze e dirige o olhar para uma folha de papel. —
Erica Parsnip. É assim?
— Erica Parsnip? — Às vezes penso que a mente de Suze foi expandida com uma
freqüencia exagerada.
— Parnell. Erica Parnell, do Endwich Bank. Pede que você telefone para ela.
Olho fixamente para Suze, petrificada de pavor.
— Ela telefonou para cá? Chamou este número?
— Foi. Esta tarde.
— Ah, merda. — Ouço meu coração bater. — O que você disse? Disse que estou com
febre ganglionar?
— O quê? — É a vez de Suze se virar e me fitar espantada. — Claro que não disse que
você está com febre ganglionar!
— Ela perguntou sobre minha perna? Alguma coisa sobre minha saúde?
— Não! Só perguntou onde você estava e respondi que estava no trabalho.
— Suze! — digo, num lamento de pavor.
— Bem, o que eu deveria dizer?
— Deveria dizer que eu estava na cama com febre ganglionar e a perna quebrada!
— Bem, obrigada pelo aviso! — Suze me encara com os olhos apertados e cruza as
pernas na posição de lótus. Ela tem as pernas mais longas, finas e flexíveis que já vi.
Quando veste uma legging preta parece uma aranha. — Qual é o problema afinal? —
pergunta. — Sua conta está sem fundos?
Se está sem fundos?
— Só um pouquinho. — Dou de ombros. — Vai se resolver.
Dá-se um silêncio, volto meu olhar para Suze e vejo-a rasgar meu cheque.
— Suze! Não faça essa bobagem!
— Pague-me quando sair do vermelho — diz ela com voz firme.
— Obrigada, Suze — respondo e dou-lhe um abraço apertado. — Não é à toa que é a
melhor amiga que já tive.
Mas uma sensação desagradável no estômago me acompanha durante toda aquela noite
e ainda está presente quando acordo na manhã seguinte. Uma sensação que não consigo
mudar, nemmesmo pensando na minha echarpe Denny and George. Fico deitada na cama
olhando para o teto e, pela primeira vez em meses, calculo quanto devo a todo mundo. O
banco, o VISA, meu cartão Harvey Nichols, meu cartão Debenhams, meu cartão
Fenwicks... E agora Suze também.
É mais ou menos... vamos pensar... mais ou menos 6.000 libras.
Uma sensação gelada percorre meu corpo quando penso no número. Como vou achar
6.000 libras? Eu poderia economizar seis libras por semana durante mil semanas. Ou 12
libras por semana durante quinhentas semanas. Ou... ou 60 libras durante cem semanas.
Seria mais isto. Mas onde vou encontrar 60 libras por semana para economizar?
Ou então eu poderia estudar conhecimentos gerais e ir a um desses programas de
perguntas e ser premiada. Ou inventar alguma coisa realmente inteligente. Ou poderia...
ganhar na loteria. Quando penso nisto, um calor agradável toma conta do meu corpo.
Fecho os olhos e volto a aconchegar-me na cama. A loteria é de longe a melhor solução.
Claro que eu não ia pretender ganhar o prêmio principal — isto é inteiramente
improvável. Mas um dos prêmios menores. Parece haver um monte deles por aí. Digamos
— 100.000 libras. Isto bastaria. Eu poderia pagar todas as minhas dívidas, comprar um
carro, comprar um apartamento...
Na verdade — é melhor ser 200.000 libras. Ou um quarto de um milhão.
Ou, melhor ainda, um desses prêmios partilhados. "Cada um dos cinco ganhadores
receberá um vírgula três milhão de libras." (Adoro a maneira como eles dizem isso. "Um
ponto três." Como se essas 300.000 libras extras fossem uma quantia insignificante.
Como se agente não fosse perceber se existem ou não.)
Um vírgula três milhão me serviriam bem. E não é ganância querer dividir seu grande
prêmio com os outros, não é mesmo? "Por favor, Deus" penso "permita-me ganhar na
loteria e prometo dividir o dinheiro direitinho.
Assim, no caminho para a casa de meus pais, paro num posto de gasolina para comprar
dois bilhetes de loteria. Levo meia hora escolhendo os números. Sei que 44 sempre sai
bem, e 42 também. Mas e o resto? Escrevo algumas séries de números num pedaço de
papel e dou uma olhada de lado, procurando imaginá-los na televisão.
1 6 9 16 23 44
Não! Horrível! O que estou pensando? O 1 nunca vem na frente, para começar. E o 6 e
9 parecem errados também.
3 14 21 25 36 44
Assim está um pouco melhor. Preencho os números no bilhete.
5 11 18 27 28 42
Estou razoavelmente impressionada com esta seqüência. Tem cara de vencedora. Já
posso imaginar Moira Stewart lendo-a alto no jornal da TV. "Um vencedor,
aparentemente morador do sudoeste de Londres, ganhou um prêmio estimado em dez
milhões de libras."
Por um momento sinto que vou desmaiar. O que farei com dez milhões de libras? Por
onde vou começar?
Bem, para início de conversa, por uma grande festa. Em algum lugar elegante mas
legal, com muito champanhe, muita dança e um serviço de táxis para ninguém precisar
dirigir. E presentes para os convidados levarem para casa, como um banho de espuma
muito bom ou algo assim. (Será que Calvin Klein faz espuma de banho? Anoto
mentalmente para verificar na próxima vez que for à Boots.)
Depois comprarei uma casa para toda a minha família e meus amigos, claro. Inclinome
no balcão da loteria e fecho os olhos para me concentrar. Suponha que eu compre
vinte casas por 250.000 libras cada uma. Ainda me sobram... cinco milhões. Mais uma
50.000 libras da festa. E depois levarei todos para viajar num feriado, para Barbados ou
algum lugar desses. Isto irá custar mais ou menos... 100.000 libras, se todos voarmos de
classe econômica.
Então são quatro milhões, oitocentos e cinqüenta mil. Ah! Eu preciso de seis mil para
pagar todas as minhas dívidas com os cartões de crédito e com contas no vermelho. Mais
trezentas para Suze. Digamos que sejam sete mil. Isto me deixa com... quatro milhões,
oitocentos e quarenta e três mil.
Farei muita caridade, claro. Na verdade é provável que eu crie uma fundação.
Sustentarei todas essas casas de caridade feias que são ignoradas, como de doenças de
pele e asilo para velhos. E mandarei um grande cheque para minha velha professora de
inglês, a Sra. James, para que possa equipar a biblioteca da escola. Talvez eles até
mudem o nome da biblioteca em minha homenagem. A Biblioteca Bloom.
Ah, e trezentas para aquele casaco estonteante da Whistles que eu preciso comprar
antes que todos eles sejam comprados. Então quanto resta depois disso? Quatro milhões,
oitocentos e quarenta e três mil, menos...
— Dá licença. — Uma voz me interrompe e olho meio confusa. A mulher atrás de
mim está tentando chegar ao caixa da loteria.
— Desculpe-me — digo eu, e educadamente deixo-a passar. Porém a interrupção
deixa-me um pouco perdida nos cálculos. Eram quatro ou cinco milhões?
Depois, quando vejo a mulher olhando para um pedaço de papel coberto de números
rabiscados, um pensamento horrível toma conta de mim. E se der uma das seqüências de
números que eu rejeitei? E se der esta noite 1 6 9 16 23 44 e eu não marquei? Eu me
odiaria, não é? Por toda a minha vida, eu nunca me perdoaria. Seria como o cara que
cometeu suicídio porque esquecera de colocar seu bilhete no correio.
Rapidamente preencho bilhetes com todas as combinações de números escritos no meu
pedaço de papel. São nove bilhetes ao todo. Nove libras — um bocado de dinheiro
realmente. Quase me sinto mal por gastá-lo. Mas então, são nove chances de ganhar, não
é?
E agora a sensação que tenho quanto à série 1 6 9 16 23 44 é boa. Por que esse
conjunto específico de números entrou na minha mente sem mais nem menos e ficou ali?
Talvez alguém, em algum lugar, esteja tentando me dizer alguma coisa.

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**com algumas restrições — ver folheto anexo

QUATRO

Quando chego à casa de meus pais, eles estão no meio de uma discussão. Papai está em
cima de uma escada no jardim, remexendo na calha do lado da casa, e mamãe está
sentada à mesa de ferro batido do jardim folheando uma revista de modas antiga.
Nenhum deles me vê quando cruzo o portão do jardim.
— Só estou dizendo que eles deviam dar um bom exemplo! — diz mamãe.
— E você acha que se expor ao perigo é um bom exemplo, não é? Acha que isto
resolveria o problema.
— Perigo! — diz mamãe ironicamente. — Não seja tão melodramático, Graham. É
esta realmente sua opinião sobre a sociedade inglesa?
— Oi, mãe — digo. — Oi, pai.
— Becky concorda, comigo. Não concorda, querida? — pergunta mamãe e aponta para
uma página da revista. — Lindo cardigã — acrescenta em voz baixa. — Olha que
bordado!
— Claro que ela não concorda com você! — retruca papai. — É a idéia mais ridícula
que já ouvi.
— Não é não! — diz mamãe, indignada. — Becky, você não acha que seria uma boa
idéia a Família Real viajar de transporte público, querida?
— Bem... — digo, cautelosa. — Na verdade não tinha...
— Você acha que a rainha deveria ir aos compromissos oficiais no ônibus 93? —
ridiculariza papai.
— E por que não? Talvez assim o ônibus 93 se torne mais eficiente!
— E então... — digo, sentando ao lado de minha mãe. — Como vão as coisas?
— Você percebe que este país está à beira de um grave problema de trânsito? — diz
ela, como se não tivesse me ouvido. — Se mais pessoas não começarem a usar o
transporte público, nossas ruas vão parar.
Papai balança a cabeça.
— E você acha que, se a rainha andar no ônibus 93, vai resolver o problema. Esqueça
as questões de segurança, não importa se ela tiver que reduzir drasticamente seus
compromissos...
— Eu não me referia à rainha necessariamente — revida mamãe e pára por um
segundo. — Mas a alguns daqueles outros. A princesa Michael de Kent, por exemplo. Ela
podia viajar de metrô de vez em quando, não é? Essas pessoas precisam conhecer a vida
real.
A última vez que minha mãe viajou de metrô foi mais ou menos em 1983.
— Querem que eu faça um café? — digo, alegre.
— Se quer saber minha opinião, esse negócio de trânsito não tem nenhum sentido —
diz meu pai. Ele pula da escada e remove a sujeira das mãos. — É tudo propaganda.
— Propaganda? — exclama minha mãe indignada.
— Certo — digo depressa. — Bem, vou esquentar água para o café.
Entro de novo na casa, ponho a chaleira no fogo e sento à mesa numa gostosa nesga de
sol. Já esqueci o que meus pais estavam discutindo. Eles vão repetir a mesma coisa e
concordar que tudo é culpa do Tony Blair. De qualquer modo, tenho coisas mais
importantes para pensar. Estou tentando descobrir quanto exatamente devo dar ao meu
chefe Philip quando ganhar na loteria. Não posso deixá-lo de lado, claro — mas dinheiro
vivo não é um pouco vulgar? Não seria melhor um presente? Umas lindas abotoaduras,
talvez. Ou uma dessas cestas de piquenique que vêm com pratos e talheres dentro. (Clare
Edwards não vai ganhar nada, obviamente.)
Sentada sozinha na cozinha, sinto como se tivesse um pequeno segredo brilhando
dentro de mim. Vou ganhar na loteria. Hoje à noite minha vida vai mudar. Deus, mal
consigo esperar. Dez milhões de libras. Pense só, amanhã poderei comprar o que quiser.
Qualquer coisa!
O jornal está aberto na minha frente na seção de classificados e, aleatoriamente,
começo a examinar as casas caras. Onde irei morar? Chelsea? Notting Hill? Mayfair?
Belgravia, leio. Fantástica mansão de sete quarto com casa de empregados separada e
belo jardim decorado. Bem, parece boa. Eu enfrentaria sete quartos em Belgravia. Meus
olhos voltam-se para o preço e estancam com o choque. Seis ponto cinco milhões de
libras. É quanto estão pedindo. Seis milhões e meio.
Sinto-me estupefata e levemente irritada. Estão falando sério? Não tenho nada como
seis ponto cinco milhões de libras. Só tenho uns... quatro milhões sobrando. Ou eram
cinco? Seja o que for, não é suficiente. Olho atentamente para a página, sentindo-me
roubada. Os ganhadores da loteria deveriam poder comprar o que quisessem — mas já
estou me sentindo pobre e com dinheiro insuficiente.
Chateada, deixo o jornal de lado e pego um encarte de propaganda cheio de colchas
para cama a 100 libras cada. É mais meu caso. Quando ganhar na loteria só terei colchas
brancas, fofas, decido. E terei uma cama branca de ferro batido, venezianas de madeira
pintada e uma camisola branca bem macia...
— E então, como vai o mundo das finanças? — A voz de minha mãe me interrompe e
me viro para ela. Dirige-se animada para a cozinha, ainda segurando sua revista.
— Já fez o café? Deixa, deixa, querida!
— Eu já ia... — digo enquanto levanto da cadeira. Mas, como era de se esperar, mamãe
vai na minha frente. Ela pega um pote de cerâmica que eu nunca tinha visto antes e
coloca o pó do café numa cafeteira dourada nova.
Mamãe é terrível. Está sempre comprando alguma coisa nova para a cozinha — e dá as
coisas velhas para a Oxfam (Campanha Contra a Fome). Chaleiras novas, torradeiras
novas... Nós já tivemos três lixeiras este ano — verde-escura, depois cromada e agora de
plástico amarelo brilhante. Acho um desperdício de dinheiro.
— É uma bonita saia! — diz ela olhando para mim como se fosse a primeira vez. —
De onde é?
— DKNY — murmuro.
— Muito bonita — diz ela. — Foi cara?
— Não muito — digo, de uma vez só. — Umas cinqüenta libras.
Não é verdade. Foi mais para cento e cinqüenta. Mas não tem sentido dizer à minha
mãe quanto as coisas custam na realidade porque ela teria problemas cardíacos. Ou, na
verdade, primeiro contaria a meu pai — e depois eles dois teriam problemas cardíacos e
eu me tornaria uma órfã.
Por isso, o que faço é utilizar dois valores simultâneos: os preços reais e os preços da
mamãe. É mais ou menos estar uma loja onde tudo está com 20% de desconto, e ficar
olhando os artigos e reduzindo mentalmente o preço de tudo. Depois de certo tempo
adquire-se uma prática impressionante.
A única diferença é que uso um sistema de escala progressiva, um pouco como o
imposto de renda. Começa em 20% (se custa 20 libras, digo que custa 16 libras) e vai
até.... bem, até 90% se for preciso. Uma vez comprei um par de botas que me custou 200
libras e disse a mamãe que eu havia pago 20 libras numa liquidação. E ela acreditou.
— E então, está procurando um apartamento? — diz ela, olhando sobre meus ombros
para as páginas dos classificados.
— Não — digo mal-humorada e passo os olhos por uma página do meu encarte. Meus
pais estão sempre querendo convencer-me a comprar um apartamento. Será que sabem
quanto custa um apartamento? E não me refiro a apartamentos em Croydon.
— Parece que Thomas comprou uma ótima casa em Reigate — diz ela, inclinando a
cabeça em direção aos nossos vizinhos. — Ele vai de trem para o trabalho. — Diz isso
com um ar de satisfação como se estivesse contando que ele ganhou o prêmio Nobel da
Paz.
— Bem, não tenho condição de comprar um apartamento — digo. — Ou uma casa.
Pelo menos ainda não, penso. Não até as oito horas da noite. Hihihi.
— Problemas de dinheiro? — diz papai, entrando na cozinha. — Sabe que há duas
soluções para problemas de dinheiro?
Ah, Deus. De novo não. Os aforismos de papai.
— C.G. — diz meu pai, os olhos piscando — ou G.M.D.
Faz uma pausa para causar suspense e eu viro a página do meu encarte fingindo não
ouvi-lo.
— Corte Gastos — diz meu pai — ou Ganhe Mais Dinheiro. Um ou outro. Qual será,
Becky?
— Ah, ambos, espero — respondo indiferente e viro para outra página do meu encarte.
Para ser sincera, quase sinto pena de papai. Será um grande choque para ele se sua filha
se tornar milionária da noite para o dia.
Após o almoço, mamãe e eu vamos a uma feira de artesanato na escola primária local. Só
estou fazendo companhia a ela, e certamente não pretendo comprar nada — mas, quando
chegamos lá, vejo um estande cheio de cartões incríveis, feitos a mão, por apenas 1,50
libra! Compro dez. Afinal, sempre precisamos de cartões, certo? Vejo também um belo
vaso de plantas de cerâmica azul decorado com pequenos elefantes — e há anos digo que
devíamos ter mais plantas no apartamento. Aliás, só eu compro esse tipo de coisas. Só
quinze libras. As feiras de artesanato são tão baratas, não? Você passeia por elas achando
que só vai ter porcaria — mas sempre acaba encontrando alguma coisa para comprar.
Mamãe também está muito feliz pois achou um par de castiçais para sua coleção. Ela
tem coleções de castiçais, de porta-torradas, de jarros de cerâmica, de bichinhos de vidro,
de amostra de bordados e de dedais. (Pessoalmente não acho que seus dedais contem
como uma coleção propriamente, pois ela comprou o lote inteira, incluindo o armário, de
um anúncio na última página da revista Mail on Sunday. Mas nunca diz isso a ninguém.
Eu nem deveria ter mencionado.)
Voltando ao assunto, nós duas estamos satisfeitas e decidimos tomar um chá. Depois,
na saída, passamos por uma dessas barracas horríveis que ninguém chega perto. As
pessoas educadas olham uma vez e depois saem rápido. O pobre homem atrás dela parece
realmente infeliz, então paro para dar uma olhada. E não é para menos que ninguém pare
ali. Ele está vendendo umas tigelas de madeira, de formato esquisito, com facas
combinando. Afinal, para que serve uma tigela de madeira?
— Que legal! — digo num tom alegre e pego uma das tigelas.
— É madeira esculpida a mão. Demorei uma semana para fazer.
Bem, foi uma semana perdida, se você quer saber. É disforme, feio e a madeira tem um
tom horrível de marrom. Mas quando vou colocá-lo de volta, ele parece tão infeliz que
sinto pena e viro ao contrário para ver o preço, achando que se custar umas cinco libras
eu compro. Mas é oitenta libras! Mostro o preço a minha mãe e ela faz uma careta.
— Essa peça especificamente apareceu na Elle Décoration no mês passado — diz o
homem num tom de lamento e mostra uma página cortada da revista. E, ao som de suas
palavras, eu gelo. Elle Décoration? Ele está brincando?
Ele não está brincando. Ali na página, em cores, está uma fotografia de um quarto
completamente vazio, exceto por uma sacola de camurça cheia de sementes, uma mesa
baixa e uma tigela de madeira. Olho para aquilo sem acreditar.
— Era exatamente esta? — pergunto, tentando não parecer muito nervosa. Exatamente
esta tigela?
Quando ele acena que sim, minha mão segura a tigela com força. Não posso acreditar.
Estou segurando uma peça da Elle Décoration. Não é o máximo? De repente me sinto
uma pessoa incrivelmente na moda — e lamento não estar usando calças compridas de
linho branco e o cabelo puxado para trás como Yasmin Le Bon, para combinar.
Isso só prova que tenho bom gosto. Não escolhi esta tigela — desculpe, esta peça —
sozinha? Já consigo ver nossa sala de visitas inteiramente decorada em função dela, toda
clara e minimalista. Oitenta libras. Não é nada para uma peça clássica de estilo como
esta.
— Vou levá-la — digo, determinada, e pego meu talão de cheques dentro da bolsa.
Procuro me convencer que comprar coisa barata é, na verdade, uma falsa economia. É
muito melhor gastar um pouco mais e fazer uma compra que dure a vida toda. E esta
tigela é realmente clássica. Suze vai ficar tão impressionada.
Quando voltamos para casa, minha mãe entra, mas eu fio na calçada transferindo minhas
comprar do carro dela para o meu, com muito cuidado.
— Becky! Que surpresa!
Ah, Deus. É Martin Webster, da casa ao lado, se debruçando sobre a grade com um
ancinho na mão e um enorme sorriso amigo no rosto. Ah, Deus. Martin tem esse jeito de
sempre fazer-me sentir culpada, não sei por quê.
Para falar a verdade, eu sei a razão. É porque ele esperava que eu crescesse e casasse
com seu filho Tom. A história de meu relacionamento com Tom é a seguinte: ele me
chamou para sair uma vez quando tínhamos dezesseis anos e eu disse não; eu ia sair com
Adam Moore. Tudo terminou aí, e dou graças a Deus por isto. Para ser bem sincera, eu
preferiria casar com o próprio Martin a casar com o Tom.
(Isto não significa que eu realmente queira casar com o Martin. Ou goste de homens
mais velhos ou coisa parecida. Foi só para defender um ponto de vista. De qualquer
forma, Martin está muito bem casado.)
— Oi! — respondo com um entusiasmo exagerado. — Como vai?
— Ah, estamos todos bem — responde Martin. — Você ouviu dizer que o Tom
comprou uma casa?
— Sim — digo eu. — Em Reigate. — Fantástico!
— Tem dois quartos, um banheiro, uma sala de estar e uma cozinha ampla e arejada —
descreve. — Peças de carvalho encerado na cozinha.
— Nossa! — exclamo. — Que fabuloso.
— Tom está maravilhado — diz Martin. — Janice! — ele grita. — Venha ver quem
está aqui!
Um instante depois Janice aparece na porta da frente, usando um avental estampado
com flores.
— Becky! — diz ela. — Você se tornou uma estranha! Há quanto tempo não aparece?
Ah, Deus, agora me sinto culpada por não visitar meus pais com mais freqüência.
— Bem — sorrio indiferente. — Você sabe. Estou muito ocupada com meu trabalho e
tudo mais.
— Ah, sim — diz Janice num aceno de espanto. — Seu Trabalho.
Em algum momento Janice e Martin puseram na cabeça que eu sou uma grande
especialista em finanças. Já procurei dizer-lhes que na verdade não sou — mas quanto
mais eu nego, melhor eles acham que eu sou. Não tem jeito. Como conseqüência, eles
agora pensam que sou uma grande especialista e modesta.
Mas quem se importa? É bem divertido fingir ser um geio das finanças.
— Sim, estamos bem ocupados ultimamente — digo simpática. — Devido à fusão da
SBG com o Rutland.
— Claro — responde Janice num sussurro.
— Sabe, isto me lembra — diz Martin. — Becky, espere aí. Volto em dois segundos.
— Ele desaparece antes que eu possa dizer alguma coisa, e sou deixada ali com Janice,
um pouco sem graça.
— Então — digo sem jeito. — Ouvi dizer que a cozinha de Tom tem armários em
carvalho!
É literalmente a única coisa que consigo pensar em dizer. Sorrio para Janice e aguardo
uma resposta. Mas, em vez disso, ela sorri para mim maravilhada. Seu rosto está
brilhando — e logo percebo que cometi um erro enorme. Não devia ter mencionado as
peças de carvalho. Agora Janice vai achar que também quero ter peças iguais, não vai?
Vai pensar que de repente fiquei interessada no Tom, agora que ele tem uma casa em seu
nome.
— É de carvalho e azulejos mediterrâneos — diz, orgulhosa. — Foi uma escolha entre
o estilo mediterrâneo ou o rústico, e Tom escolheu o mediterrâneo.
Por um instante penso em dizer que teria escolhido o estilo rústico. Mas parece
maldade.
— Que bom — digo. — E dois quartos!
Por que não consigo sair do assunto da droga da casa?
— Ele queria dois quartos — diz Janice. — Afinal, nunca se sabe, não é? — Ela sorri
recatada, e, ridiculamente, sinto que começo a ruborizar. Ah, Deus. Por que estou ficando
vermelha? Que estupidez. Agora ela pensa que Tom me agrada. Está no imaginando
juntos na casa nova, preparando o jantar na cozinha de carvalho.
Eu devia dizer alguma coisa. Devia dizer “Janice, não gosto de Tom. Ele é alto demais
e tem mau hálito”. Mas como vou dizer? Em vez disso, me vejo falando:
— Bem, mande lembranças para ele.
— Certamente — diz ela e pára. — Ele tem seu telefone em Londres?
Aarrgh!
— Acho que sim — minto num sorriso alegre. — E ele sempre pode me encontrar
aqui, se quiser. — Agora tudo o que digo soa como tendo duplo sentido. Posso imaginar
como esta conversa será relatada para Tom. “Ela estada perguntando tudo sobre sua casa
nova. E pediu que você lhe telefonasse!”
A vida seria muito mais fácil se pudéssemos rebobinar e apagar as conversas, como
num videocassete. Ou se pudéssemos instruir as pessoas para não registrarem o que
acabamos de dizer, como num tribunal. Por favor tire do registro todas as referências a
casas novas e cozinhas em carvalho.
Por sorte, naquele momento, Martin reaparece segurando um pedaço de papel.
— Achei que você pudesse dar uma olhada nisto — diz ele. — Há quinze anos temos
este fundo de rentabilidade na Flagstaff Life. Agora estamos pensando em tranferi-lo para
fundos mútuos de crescimento. O que você acha?
Não sei. Do que ele está falando afinal? Algum tipo de plano de poupança? Passo o
olhos pelo papel com jeito de profunda conhecedor do assunto e aceno a cabeça muitas
vezes.
— Bem — digo num ar vago. — Sim, parece ser uma boa idéia.
— A empresa nos escreveu dizendo que poderíamos querer um retorno mais lucrativo
depois da aposentadoria — diz Martin. — Além disso é uma quantia garantida.
— E eles nos mandarão um relógio de parece — concorda Janice. — Feito na Suíça.
— Humm — digo, analisando com cuidado o timbre da minha voz.
Flagstaff Life, penso. Tenho certeza de que ouvi alguma coisa sobre eles recentemente.
Quem é a Flagstaff Life? Ah, sim! São os que deram uma festa regada a champanhe em
Soho Soho. E Elly tomou um grande porre e disse a David Salisbury, do The Times, que o
amava. Foi uma festa ótima, agora me lembro. Uma das melhores.
— Você considera esta uma boa empresa? — pergunta Martin.
— Claro — respondo. — Tem um bom nome na praça.
— Bem, então — diz Martin, parecendo satisfeito. — Acho que vamos seguir o
conselho deles. Partir para algo que renda mais.
— Eu pensava que, quanto mais lucro se tem, melhor — digo, numa voz que soa
extremamente profissional. — Mas é apenas um ponto de vista.
— Ah, bem — diz Martin, e dá uma olhada para Janice. — Se Becky acha que é uma
boa idéia...
— Bem, eu particularmente não seguiria meus conselhos! — digo, apressada.
— Veja o que ela diz! — diz Martin com um leve riso. — A especialista em finanças
em pessoa.
— Sabe, Tom às vezes compra sua revista — interrompe Janice. — Não que tenha
muito dinheiro agora, com a hipoteca e tudo mais... Mas comenta que seus artigos são
muito bons! Segundo ele...
— Que ótimo! — interrompo. — Bem, olha, realmente preciso ir agora. Adorei ver
vocês. E dêem um alô ao Tom por mim!
Entro em casa com tanta pressa que bato meu joelho no batente da porta. Depois me
sinto um pouco mal, gostaria de ter me despedido melhor. Mas sinceramente! Se ouvir
mais uma palavra sobre esse Tom e sua cozinha vou enlouquecer.
Porém, quando sento para assistir ao resultado da loteria, já me esqueci deles. Jantamos
bem — frango à provençal do Marks and Spencer, e uma boa garrafa de Pinot Grigio que
eu trouxe. Sei que o frango à provençal vem do Marks and Spencer porque eu mesma já o
comprei algumas vezes. Reconheci os tomates secos, as azeitonas e tudo mais. Mamãe,
claro, ainda finge que fez tudo seguindo uma receita.
Não sei por que ela se preocupa. Ninguém se importaria — principalmente quando
somos só nós, papai e eu. E depois, é óbvio que não foi feito na nossa cozinha onde
nunca entrou qualquer ingrediente pra preparar um prato como esse. O que sobre na
cozinha são muitas caixas vazias de papelão e muitas refeições prontas — e nada entre os
dois. Ainda assim, minha mãe nunca admite que comprou uma refeição pronta, nem
mesmo quando é uma torta em embalagem de alumínio. Meu pai come essas tortas,
cheias de champignons de plástico e molho aguado, e depois diz com a cara mais lavada:
— Delicioso, meu amor.
E minha mãe sorri parecendo toda orgulhosa de si mesma.
Mas esta noite não é torta de alumínio, é frango provençal. (Para ser justa, acho que
quase parece feito em casa — exceto que ninguém jamais cortaria um pimentão vermelho
em pedaços tão pequenos, cortaria? As pessoas têm coisas mais importantes a fazer.)
Comemos e bebemos uma boa quantidade de Pinot Grigio, e há uma torta de maçã no
forno — e já sugeri, casualmente, assistirmos televisão. Porque sei, olhando no relógio,
que o programa da loteria já começou. Numa questão de minutos tudo irá acontecer. Ah,
Deus, não consigo esperar.
Por sorte, meus pais não são o tipo de gente que gosta de conversar sobre política ou
sobre livros. Já colocamos em dia as notícias da família, eu já contei como vai indo meu
trabalho, e eles já me contaram sobre seu feriado na Córsega — portanto, agora, estamos
chegando perto de uma pausa. Precisamos ligar a TV nem que seja como um som
ambiente para a conversa.
Nos reunimos na sala de estar, e meu pai acende a lareira de fogo a gás com efeito de
chamas, em seguida liga a televisão. E lá está! A Loteria Nacional, em glorioso
tecnicolor. As luzes estão brilhando, Dale Winton está zombando da Tiffany de
EastEnders e, de vez em quando, a platéia dá um grito de excitação. Meu estômago está
cada vez mais apertado, e meu coração bate tump-tump-tump. Em alguns minutos essas
bolas vão cair. Em alguns minutos serei uma milionária.
Inclino-me calmamente para trás no sofá e penso no que farei quando ganhar. Quero
dizer, no primeiro instante que eu ganhar. Grito? Fico quieta? Talvez não devesse contar
a ninguém durante umas vinte e quatro horas. Talvez não devesse contar a ninguém de
modo algum.
Este novo pensamento me transporta. Eu poderia ser uma ganhadora secreta! Ter todo
o dinheiro e nenhuma pressão. Se as pessoas me perguntassem como posso pagar tantas
roupas de costureiros famosos, eu simplesmente lhes diria que estou fazendo muito
trabalho de freelance. Sim! E eu poderia transformar as vidas de todos os meus amigos,
anonimamente, como um anjo bom. Ningué jamais saberia. Isto seria perfeito!
Estou calculando o tamanho da casa que posso comprar sem que todo mundo
desconfie, quando uma voz na TV me deixa alerta.
— Pergunta para o Número Três.
O quê?
— Meu animal favorito é o flamingo porque é rosa, felpudo e tem pernas longas. — A
garota sentada no banco, provocante, descruza um par de pernas — longas e lisas — e a
platéia enlouquece. Olho para ela confusa. O que está acontecendo? Por que estamos
vendo Blind Date?
— Esse programa era engraçado — diz minha mãe. — Mas piorou muito.
— Você chama essa porcaria de engraçado? — retruca meu pai sem acreditar.
— Ouça, pai, na verdade, não poderíamos voltar para...
— Eu não disse que é engraçado agora. Eu disse...
— Pai! — digo eu procurando não parecer aflita. — Será que poderíamos voltar para a
BBC1 por um instante?
Blind Date desaparece e suspiro aliviada. No momento seguinte, um homem bonito de
terno toma conta da tela.
— O que a polícia deixou de analisar — diz ele numa voz nasal — é que as
testemunhas não eram suficienteente...
— Pai!
— Onde está a revista da programação? — pergunta ele, impaciente. — Tem que haver
alguma coisa melhor do que isso.
— Tem a loteria!
— Por que você quer assistir à loteria? Comprou um bilhete?
Por um instante fico em silêncio. Se vou ser uma ganhadora secreta, não posso contar a
ninguém que comprei um bilhete. Nem mesmo a meus pais.
— Não! — digo eu dando uma pequena risada. — Só quero ver Martine McCutcheon.
Para meu grande alívio o canal da loteria foi sintonizado de novo e Tiffany está
cantando uma música. Relaxo no sofá e olho meu relógio.
Sei que, na verdade, ver ou não o programa não afetará minhas chances de ganhar —
mas não quero perder o grande momento, certo? Talvez você me ache um pouco maluca
mas sinto que, se eu assistir, posso me comunicar com as bolinhas através da tela. Vou
fixar meu olhar intensamente nelas quando forem misturadas e, silenciosa, induzirei meus
números vencedores. Série 1 6 9 16 23 44.
Só que os números nunca vêm em ordem.
Série 44 1 23 6 9 16. É possível. Ou Série 23 6 1...
De repente há uma rodada de aplausos e Martine McCutcheon termina sua música. Ah,
meu Deus. Está quase acontecendo. Minha vida está prestes a mudar.
— A loteria ficou muito comercializada, não é? — diz minha mãe quando Dale
Winton leva Martine para o botão vermelho. — É uma pena realmente.
— O que quer dizer com ficou comercializada? — retruca meu pai.
— As pessoas costumavam jogar na loteria porque queriam ajudar as casas de
caridade.
— Não é verdade! Não seja ridícula! Ninguém liga para as casas de caridade. Todo
mundo só pensa em si. — Papai gesticula em direção a Dale Winton com o controle
remoto e a tela fica preta.
— Papai! — lamento num grito.
— Então você acha que ninguém se preocupa com a caridade? — diz minha mãe no
silêncio.
— Não foi isto que eu disse.
— Pai! Liga isso de novo! — grito num guincho. — Liga-isso-de-novo! — Estou a
ponto de começar uma luta com ele pelo controle remôo quando ele a liga novamente.
Olho para a tela sem acreditar. A primeira bola já saiu. E é 44. Meu número 44.
— ... apareceu pela última vez três semanas atrás. E aqui vem a segunda bola... E é
número 1.
Não consigo me mexer. Está acontecendo, diante dos meus próprios olhos. Estou
realmente ganhando na loteria. Estou ganhando a danada da loteria!
Agora que está acontecendo, sinto uma calma surpreendente. É como se eu soubesse,
minha vida inteira, que isto ia acontecer. Sentada ali no sofá, em silêncio, sinto-me como
se estivesse num documentário sem graça sobre mim mesma, narrado por Juanna Lumley
ou qualquer outro. “Becky Bloom sempre soube secretamente que um dia ganharia a
loteria. Mas no dia que aconteceu, nem mesmo ela poderia ter previsto...”
— E um outro baixo. Número 3.
O quê? Minha mente se fecha e eu olho perplexa para a tela. Não pode ser. Eles
querem dizer 23.
— E número 2, a bola de bônus da semana passada.
Sinto um frio tomar conta de mim. Que diabos está acontecendo? Que números são
esses?
— E mais um outro baixo! Número 4. Um número popular, apareceu doze vezes este
ano até agora. E finalmente... Número 5! Nossa! Este é um primeiro! Agora, alinhando-os
em ordem...
Não. Isto não pode estar acontecendo. Tem que ser um engano. Os números
ganhadores da loteria não podem ser jamais 1, 2, 3, 4, 5, 44. Esta não é uma combinação
de loteria, é um... é um jogo sujo.
E eu estava ganhando. Eu estava ganhando.
— Olha para aquilo! — diz minha mãe. — Absolutamente incrível! 1, 2, 3, 4, 5, 44.
— E por que deveria ser incrível? — replica papai. — É tão provável quanto qualquer
outra combinação.
— Não pode ser!
— Jane, você sabe alguma coisa sobre as leis da probabilidade?
Calmamente me levanto e saio da sala enquanto a música da loteria ressoa vindo da
televisão. Vou em direção à cozinha, sento à mesa e enterro a cabeça nas mãos. Sinto-me
um tanto trêmula, para falar a verdade. Eu estava tão convencida de que iria vencer. Já
estava morando numa casa grande e indo para Barbados nas férias com todos os meus
amigos, entrando Agnès B e comprando tudo o que quisesse. E parecia tão real.
Agora, em vez disso, estou sentada na cozinha dos meus pais, sem condições
financeiras para uma viagem de férias, e acabei de gastar oitenta libras numa tigela de
madeira de que eu nem gosto.
Sentindo-me arrasada, acendo o fogo da chaleira, pego uma cópia do Woman’s Journal
que está na bancada e passo os olhos nele — mas nem isto me alegra. Tudo parece me
lembrar dinheiro. Talvez meu pai esteja certo, penso com tristeza. Talvez Cortar Gastos
seja a resposta. Suponhamos... suponhamos que eu economizasse o suficiente para juntar
sessenta libras por semana. Eu teria 6.000 libras em cem semanas.
E de repente minha mente fica alerta. Seis mil libras. Não é mal, é? E se pensarmos
bem, não pode ser tão difícil economizar sessenta libras por semana. É só o equivalente a
duas refeições fora. Quero dizer, eu nem ia perceber.
Deus, sim. É isto que vou fazer. Sessenta libras por semana, toda semana. Talvez eu
até abra uma conta especial. Será fantástico! Terei total controle das minhas finanças —
e, quando tiver pago todas as minhas dívidas, simplesmente vou continuar economizando.
Vai se tornar um hábito meu: ser frugal. Depois, ao final de cada ano, vou mergulhar num
investimento clássico como um tailleur Armani. Ou talvez Christian Dior. Alguma coisa realmente de classe.
Começarei na segunda-feira, penso animada, despejando uma colher de chocolate em
pó numa xícara. Farei o seguinte, simplesmente não gastarei nada. Todo meu dinheiro
excedente vai se acumular e eu ficarei rica. Isto vai ser tão fantástico.

Brompton's Store
CONTAS DE CLIENTES
1 Brompton Street
Londres SW4 7TH
Srta. Rebecca Bloom
Apto. 2
4 Burney Rd
Londres SW6 8FD
6 de março de 2000
Prezada Srta. Bloom
Agradeço seu cheque de 43 libras recebido hoje.
Infelizmente, faltou assinatura. Sem dúvida nenhuma foi apenas um esquecimento de sua
parte. Portanto, estou lhe enviando o cheque e peço-lhe que assine e nos devolva.
Como deve ser de seu conhecimento, este pagamento já está com oito dias de atraso.
Aguardo receber seu cheque assinado.
Atenciosamente
John Hunter
Gerente de Contas de Clientes

CINCO

Frugalidade. Simplicidade. Esses são meus novos lemas. Uma nova vida, sem confusão e
desordem, meio zen, em que eu não gaste nada. Não gastar nada. Quero dizer, quando se
pensa nisso, quanto dinheiro desperdiçamos por dia? Não é para menos que estou com
algumas dívidas. E, realmente, não é culpa minha. Eu só estava sucumbindo à draga
ocidental do materialismo – e é preciso ter a força de um elefante para resistir. Pelo
menos é o que diz o meu novo livro.
Veja bem: ontem, quando minha mãe e eu fomos à Waterstone’s para comprar seu
material de leitura para a semana, dirigi-me à seção de auto-ajuda e comprei o livro mais
maravilhoso que já li. Sinceramente, ele vai mudar a minha vida. Agora já o tenho, está
na minha bolsa. Chama-se Controlando seu dinheiro, de David E. Barton, e é fantástico.
Ele diz que nós todos podemos esbanjar dinheiro sem perceber, e que a maioria das
pessoas poderia facilmente reduzir os gastos pela metade em apenas uma semana.
Em uma semana!
Você só precisa fazer determinadas coisas como preparar seus próprios sanduíches, em
vez de comer em restaurantes e ir de bicicleta para o trabalho, em vez de pegar o metrô.
Quando se começa a pensar nisso, percebe-se que é possível economizar em tudo. E
como David E. Barton diz, há muitos programas que podemos fazer de graça, como ir a
parques e museus ou o simples prazer de um passeio no campo, que esquecemos porque
estamos tão ocupados gastando dinheiro.
É tudo tão simples e fácil. E o melhor de tudo é que você precisa, de cara, sair para
fazer compras! O livro diz que se deve começar a relacionar cada item comprado num
único dia normal de gasto e colocá-lo num gráfico. Ele salienta que é preciso ser honesto
e não cortar de repente ou alterar seu padrão de vida – o que é uma sorte, porque o
aniversário de Suze é na quinta-feira e eu preciso comprar-lhe um presente.
Assim, na manhã de segunda-feira, paro na Lucio’s a caminho do trabalho e compro
um cappuccino tamanho extragrande e um muffin de chocolate, como faço sempre. Devo
admitir que fico um pouco sentida quando vou pagar porque este é meu último
cappuccino e meu último muffin de chocolate. Minha nova fase de frugalidade começa
amanhã – e os cappuccinos não são permitidos. David E. Barton diz que, se você tem o
hábito de tomar café, deve fazê-lo em casa e levá-lo para o trabalho numa garrafa
térmica, e se você gosta de beliscar, deve comprar bolos baratos no supermercado. “Os
comerciantes de café estão depenando você com o que é pouco mais do que água quente
e plástico” – revela ele – e acho que ele está certo. Mas sentirei falta do meu cappuccino
matinal. Ainda. Prometi a mim mesma que seguirei as regras do livro – e é o que farei.
Ao sair da cafeteria segurando minha última xícara, me dou conta de que não tenho na
realidade uma garrafa térmica para o café. Mas tudo bem, comprarei uma. Há umas
lindas de cromo brilhante na Habitat. Garrafas térmicas são mesmo muito usadas hoje em
dia. Acho que Alessi podia até fazer uma. Não seria legal? Beber café numa garrafa
térmica com a grife Alessi. Muito mais elegante do que um cappuccino para viagem.
Sinto-me bastante feliz andando pela rua. Quando chego à Smith’s, entro e olho
algumas revistas para me manter em dia – e também compro um lindo caderninho
prateado e uma caneta para anotar tudo que gasto. Vou ser realmente rigorosa com isso
pois, segundo David E. Barton, o ato em si de anotar as compras deve ter um efeito
restritivo. Assim, quando chego ao trabalho, começo minha lista.
Cappuccino ...................... 1,50
Muffin .............................. 1,00
Caderno .......................... 3,99
Caneta ............................ 1,20
Revistas .......................... 6,40
O que dá um total até agora de... 14,09 libras.
Nossa. Acho que é um bocado, levando em conta que só são 9:40 da manhã.
Mas o caderno e a caneta não contam, não é? São uma espécie de exigência do
treinamento. Quero dizer, como você vai anotar todas as suas despesas sem um caderno e
uma caneta? Pensando assim, subtraio ambos e agora meu total dá... 8,90 libras. O que é
muito melhor.
De qualquer modo, estou no trabalho agora. Provavelmente não gastarei mais nada o
dia todo.
Mas, meu Deus. De algum modo, ficar sem gastar nada é absolutamente impossível.
Primeiro, Guy, do setor de contabilidade, vem com um outro presente de despedida para
darmos. Depois, preciso sair e almoçar alguma coisa. Sou muito contida com meu
sanduíche – escolho ovo com agrião, que é o mais barato na Boots, e eu nem gosto de
ovo e agrião.
David E. Barton diz que, quando fazemos um esforço real, especialmente nos estágios
iniciais, devemos nos recompensar – então eu pego uns óleos de banho de coco, no
balcão de produtos naturais, como um pequeno presente. Depois, percebo que o creme
hidratante que uso está em promoção oferecendo pontos de Vantagem.
Adoro pontos de Vantagem. Eles não são uma invenção maravilhosa? Se você gasta o
suficiente, pode conseguir prêmios muito bons, como uma bela diária num hotel. No
último Natal eu fui muito esperta – acumulei pontos suficientes para comprar um
presente para minha avó. O que aconteceu de fato foi que já havia conseguido 1.653
pontos – e precisava de 1.800 para comprar para ela um kit de rolos quentes para cabelo.
Então comprei para mim um vidro grande de perfume Samsara e ganhei 150 pontos
extras no meu cartão – com isso, com isso consegui o kit de rolos quentes absolutamente
de graça! O único problema é que não gosto muito do perfume Samsara – mas isso eu só
percebi quando cheguei em casa. Mesmo assim não importa.
A maneira inteligente de usar pontos de Vantagem – como em todas as ofertas
especiais – é descobrir a oportunidade de usá-la, pois pode não surgir no seu caminho
outra vez. Assim, pego três potes de creme hidratante e compro. Pontos de Vantagem em
dobro! Acaba saindo de graça, não é?
Depois, preciso comprar o presente de aniversário de Suze. Já comprei um conjunto de
óleos aromáticos – mas outro dia vi um lindo cardigã rosa de angorá, na Benetton, e sei
que ela adoraria. Sempre é possível devolver os óleos aromáticos, ou dar de presente a
alguém no Natal.
Entro na Benetton e pego o cardigã rosa. Estou quase pagando... quando percebo que
eles têm em cinza também. O cardigã angorá mais perfeito, macio, cinza-pomba, com
pequeninos botões de pérola.
Ah, Deus. Você vê, o negócio é que estou procurando um bom cardigã cinza há anos.
Juro que estou. Pode perguntar à Suze, minha mãe, qualquer um. E a outra coisa é que
não estou ainda no meu novo regime frugal, não é? Só estou me monitorando.
Segundo David E. Barton, é preciso agir o mais natural possível. Portanto, devo seguir
meus impulsos naturais e comprá-lo. Seria falso não fazê-lo. Arruinaria todo o processo.
E só custa quarenta e cinco libras. E eu posso comprar com o VISA.
Analise por outro ângulo – o que são quarenta e cinco libras no final das contas? Quero
dizer, nada, não é?
E eu compro. O pequeno cardigã mais perfeito do mundo. Oas pessoas me chamarão
de a Garota do Cardigã Cinza. Poderei viver nele. Realmente, é um investimento.
Após o almoço, preciso ir até a Image Store para escolher uma foto para a capa do
próximo número da revista. É minha tarefa favorita, sem dúvida – e não entendo por que
Philip sempre passa para outra pessoa. Basicamente significa que vou sentar e beber café
a tarde toda enquanto examino fileiras e fileiras de transparências.
Porque, claro, não temos orçamento para criar nossas próprias capas. Deus, não.
Quando comecei no jornalismo, achei que poderia participar de filmagens, conhecer
modelos e ter momentos de muito glamour. Mas não temos nem um fotógrafo. Todas as
nossas revistas usam bancos de fotografias como a Image Store, e as mesmas imagens
tendem a aparecer de novo, várias vezes. Há uma fotografia de um tigre rugindo que já
esteve pelo menos em três capas de finanças pessoais no último ano. Mesmo assim, os
leitores não se importam, não é? Na verdade eles não compram a revista para ver a
modelo. Kate Moss.
A minha sorte é que o editor de Elly também não gosta de escolher capas – e eles
também usam a Image Store, como nós. Assim, sempre procuramos dar um jeito de irmos
juntas e aproveitarmos para conversar. Melhor ainda, a Image Store é lá em Notting Hill
Gate, portanto posso perfeitamente levar séculos para chegar lá e voltar, sem nenhum
problema. Geralmente não me preocupo de voltar para o escritório. É a maneira perfeita
de passar uma tarde. (Isto é, uma tarde paga. Claro, pensaria diferente se fosse um
sábado.)
Chego lá antes de Elly e digo à garota da recepção: “Becky Bloom da Successful
Saving”, mas gostaria mesmo de poder dizer “Becky Bloom do Wall Street Journal”.
Depois, sento numa cadeira macia de couro preto, folheio um catálogo de fotografias
brilhantes de famílias felizes, até que um dos rapazes bem-vestidos que trabalham lá se
aproxima e me encaminha para uma mesa iluminada, reservada para mim.
- Meu nome é Paul – diz ele – e estarei auxiliando você hoje. Sabe o que está
procurando?
- Bem... – digo, e num gesto importante, consulto meu caderno. Tivemos uma reunião
para fechar a capa ontem e acabei escolhendo a matéria. Organização de portfólio:
conseguindo o equilíbrio certo. Antes que você durma com tanta chatice, quero apenas
informar que no mês passado a matéria de capa foi Contas de depósito: colocadas em
teste.
Por que será que não podemos, pelo menos uma vez, colocar os cremes de
bronzeamento em teste? Ora.
- Estou procurando fotografias de escaladas – explico, lendo minha lista. – Ou cordas
bambas, ou monociclos...
- Imagens de equilíbrio – diz Paul apreendendo. – Nenhum problema. Gostaria de um
café?
- Sim, por favor. – Sorrio e relaxo na minha cadeira. Entendo o que quero dizer? É tão
agradável este lugar. E estou sendo paga para sentar nesta cadeira, sem fazer nada.
Alguns momentos depois, Elly aparece com Paul e olho surpresa para ela. Está bem
bonita, num tailleur cor de berinjela e salto alto.
- Então são nadadores, barcos e imagens européias – diz-lhe Paul.
- Isso mesmo – confirma Elly e afunda na cadeira ao lado da minha.
- Deixe-me adivinhar – digo. – Alguma coisa sobre moedas flutuantes.
- Muito bem – diz Elly. – Na verdade é “Europa – afunda ou nada?” – Diz ela numa
voz incrivelmente dramática, e Paul e eu começamos a rir. Quando ele se afasta, observoa
de cima a baixo.
- E então, por que está tão bonita?
- Sempre estou bonita – esquiva-se ela. – Você sabe disso. – Paul já está trazendo no
carrinho pilhas de transparências na nossa direção e Elly olha por cima delas. – São as
suas ou as minhas?
Elly está evitando o assunto. O que está acontecendo?
- Você tem uma entrevista? – pergunto num rápido lampejo de genialidade. Ela me
olha, enrubesce e tira uma folha de transparências do carrinho.
- Números de circo – diz ela. – Ilusionistas. Era isto que você queria?
- Elly! Você tem uma entrevista? Me diz!
Por um instante fez-se silêncio. Elly olha para a folha e depois para mim.
- Sim. – Morde o lábio. – Mas...
- Que bom! – exclamo, e umas meninas com aparência educada no canto da sala
dirigem-nos o olhar. – Para quem? – digo mais calma. – Não é para a Cosmo, é?
Somos interrompidas por Paul que se aproxima com um café e coloca-o na frente de
Elly.
- Nadadores chegando – diz ele, depois sorri e se afasta.
- Para quem? – Repito. Elly se inscreve para tantos empregos que me perco.
- É a Wetherby’s – responde ela, e um rosado sobe seu rosto.
- Wetherby’s Investments? – Ela faz que sim com um leve aceno da cabeça, e eu
franzo a testa perplexa. Por que está se inscrevendo para a Wetherby’s Investments? –
Eles têm alguma revista interna ou algo assim?
- Não estou me candidatando a jornalista – diz ela numa voz baixa. – Estou me
candidatando a gerente de fundos.
- O quê? – digo, pasma.
Sei que os amigos devem apoiar as decisões profissionais uns dos outros e tudo mais.
Mas, com todo respeito, gerente de fundos?
- É provável que eu nem consiga o emprego – diz e desvia o olhar. – Não é nada tão
bom assim.
- Mas...
Estou sem fala. Como pode Elly sequer estar pensando em tornar-se gerente de
fundos? Os gerentes de fundos não são pessoas reais. Eles são os personagens de quem
nós rimos nas viagens de trabalho.
- É só uma idéia – diz ela, defensiva. – Talvez eu só queira mostrar a Carol que
consigo fazer outra coisa. Entende?
- Então é como... uma barganha também? – arrisco.
- Sim – responde e encolhe os ombros levemente, em sinal de indiferença. – Um
instrumento de barganha.
Mas não soa muito convincente e, pelo resto da tarde, Elly não está nem um pouco para
conversas como normalmente. O que aconteceu? Quando saio da Image Store a caminho
de casa ainda estou quebrando a cabeça com isso. Vou até High Street Kensington,
atravesso a rua e hesito em frente à Marks and Spencer.
O metrô está à minha direita. As lojas, à minha esquerda.
Devo ignorar as lojas. Preciso praticar a frugalidade, ir direto para casa e fazer meu
gráfico de gastos. Se precisar de diversão, posso assistir a um pouco de televisão de graça
e, talvez, fazer uma sopa nutritiva e econômica.
Mas não há nada de bom passando hoje, pelo menos até a hora de EastEnders. E não
estou com vontade de tomar sopa. Sinto-me como se precisasse de alguma coisa para me
animar. Além disso – minha cabeça trabalha rápido – estarei desistindo de tudo isso
amanhã, não é? Preciso me empanturrar antes que o jejum comece.
Com uma onda de alegria, corro em direção ao Barkers Centre. Não vou enlouquecer,
prometo a mim mesma. Só um pequeno presente para continuar e não desistir. Já comprei
meu cardigã – portanto, roupas não... e comprei um par de sapatos altos no outro dia –
portanto, isso também não... apesar de ainda haver uns bons sapatos do tipo Prada-y na
Hobbs... Humm. Não estou bem certa.
Chego à seção de cosméticos da Barkers e de repente já sei. Maquiagem! É o que
preciso. Uma máscara nova e talvez um batom novo. Feliz, começo a andar pela sala
clara e inebriante, evitando os sprays de perfume e testando os batons na parte de trás de
minha mão. Quero um batom bem claro, decido, meio bege-rosado; e um delineador de
lábios para combinar...
No balcão da Clarins, minha atenção é tomada por um grande aviso promocional.
Compre dois produtos para a pele e receba GRÁTIS uma sacola de beleza contendo
adstringente, tonificante e creme hidratante tamanho amostra, batom Autumn Blaze,
máscara Extra Strenght e uma amostra de Eau Dynamisante. Estoques limitados, portanto
não perca tempo.
Mas isto é fantástico! Você sabe quanto custa normalmente um batom da Clarins? E
aqui estão eles, dando isso de graça! Numa grande excitação começo a procurar todos os
produtos para a pele tentando decidir quais comprar. Que tal um creme para o pescoço?
Nunca usei isso antes. E um pouco deste hidratante revitalizador. E depois conseguirei
um batom de graça! É um alto negócio.
- Olá – digo à mulher de uniforme branco. – Quero o creme para pescoço e o hidratante
revitalizador. E a sacola de beleza – acrescento, de repente petrificada de medo de ser
tarde demais... Os estoques limitados podem ter acabado.
Mas não acabaram! Graças a Deus. Enquanto meu cartão VISA está processando, a
mulher me entrega uma bela sacola de beleza vermelha (que devo admitir é um pouco
menor do que eu esperava), que abro contente. E lá está mesmo meu batom de graça!
É uma espécie de cor vermelho-amarronzada. Um pouco estranha, devo dizer. Mas se
eu misturar com alguns dos meus outros e acrescentar um pouco de brilho, vai ficar bem
bonito.
Quando chego em casa, estou exausta. Abro a porta do apartamento e Suze vem correndo
como um cachorrinho.
- O que você comprou? – pergunta gritando.
- Não olhe! – respondo gritando também. – Não tem permissão de olhar! É seu
presente.
- Meu presente! - Suze fica tão ansiosa com aniversários. Bem, para ser sincera, eu
também.
Corro para meu quarto e escondo a sacola Bennetton no armário de roupas. Depois
desembrulho todo o resto das minhas compras e tiro meu caderninho prata para listá-las.
David E. Barton diz que isto deve ser feito imediatamente, antes que as coisas sejam
esquecidas.
- Quer uma bebida? – vem a voz de Suze através da porta.
- Sim, por favor! – grito de volta, escrevendo no meu caderno e um momento depois
ela chega com um copo de vinho.
- EastEnders num minuto – diz ela.
- Obrigada – digo, sem dar muita importância e continuo escrevendo. Estou seguindo
exatamente as regras do livro, tirando todos os meus recibos e anotando, e me sinto
realmente satisfeita comigo mesma. Só mostra que, como David E. Barton diz, com um
pouco de esforço e atenção, qualquer um pode ter controle sobre suas finanças.
Pensando bem, comprei um bocado de hidratante hoje, não foi? Para ser sincera, quando
estava no balcão da Clarins comprando meu creme vitalizador, esqueci de todos os potes
que havia comprado na Boots. Mesmo assim, não importa. Sempre é preciso ter creme
hidratante. É imprescindível, como pão e leite, e David E. Barton diz que nunca se deve
economizar no fundamental. Fora isso, não acho que fiz tão mal assim. Claro que não
somei tudo ainda, mas...
Tudo bem. Então aqui está minha lista final e completa:
Cappuccino ................................ 1,50
Muffin ........................................ 1,00
Caderno ..................................... 3,99
Caneta ........................................ 1,20
Revistas ....................................... 6,40
Sanduíche de ovo e agrião ............ 0,99
Óleo de banho de coco ................ 2,55
Cremes umectantes da Boots .......... 20,97
Dois cardigãs .................................. 90,00
Evening Standard .......................... 0,35
Creme para pescoço Clarins ........... 14,50
Creme hidratante Clarins ................. 32,50
Sacola de beleza ................................ Gratuita!
Creme de banana ....................... 2,00
Bolo de cenoura ........................ 1,20
E chega a um total geral de... 173,96 libras.
Olho para esse número em estado de choque.
Não, sinto muito, isto não pode estar correto. Não pode estar correto. Não posso ter
gastado mais de 170 libras em um dia.
Quero dizer, não é nem o fim de semana. Estive no trabalho. Não teria tido tempo para
gastar tanto assim. Deve haver algum erro em algum lugar. Talvez eu não tenha somado
tudo certo. Ou talvez eu tenha repetido a mesma coisa duas vezes.
Meus olhos correm com mais cuidado pela lista e de repente paro triunfante. “Dois
cardigãs.” Eu sabia! Só comprei...
Ah, sim. Comprei mesmo dois, não foi? Droga. Ah, Deus, isto é deprimente. Vou
assistir a EastEnders.

Endwich Bank
AGÊNCIA FULHAM
3 Fulham Road
Londres SW6 9JH
Srta. Rebbeca Bloom
Apto. 2
4 Burney Road
Londres SW6 8FD
6 de março de 2000
Prezada Srta. Rebecca Bloom,
Agradeço sua mensagem na secretária eletrônica de domingo, 5 de março.
Sinto muito saber que seu cachorro morreu.
Ainda assim, devo insistir que a senhora entre em contato comigo ou com minha
assistente, Erica Parnell, dentro dos próximos dias, para analisarmos sua situação.
Atenciosamente
Derek Smeath
Gerente
ENDWICH – PORQUE NOS IMPORTAMOS

SEIS

Tudo bem, penso no dia seguinte, determinada. O negócio é não ficar nervosa com a
quantia que gastei ontem sem querer. São águas passadas. O importante é que hoje
começa minha nova vida frugal. De agora em diante, não vou gastar absolutamente nada.
David E. Barton diz que devemos ter como meta cortar nossos gastos pela primeira
semana, mas acho que consigo fazer melhor do que isso. Bem, não quero ser rude, mas
esses livros de auto-ajuda geralmente são dirigidos para pessoas totalmente desprovidas
de autocontrole, não é? E eu parei de fumar com a maior facilidade (exceto socialmente,
mas isso não conta).
Sinto-me bastante animada enquanto preparo um sanduíche de queijo e embrulho em
papel laminado. Já economizei umas duas libras só nisso! Como não tenho garrafa
térmica (preciso comprar uma no fim de semana), não posso levar café, mas tem uma
garrafa de suco na geladeira e resolvo que é o que vou querer. Além disso, é mais
saudável.
De fato, fico imaginando por que é que as pessoas compram sanduíches prontos. Olha
como é barato e fácil de fazer. O esmo se aplica às refeições mais elaboradas. David E.
Barton diz que, em vez de pagar caro por refeições para viagem, devemos aprender como
fazer nossos próprios molhos e pratos por uma fração do custo. Portanto, é isto que vou
fazer neste fim de semana, depois de ir a um museu ou, quem sabe, simplesmente passear
ao longo do rio apreciando o cenário.
Enquanto ando em direção ao metrô sinto-me pura e renovada. Quase séria. Veja todas
essas pessoas na rua correndo, só pensando em dinheiro. Dinheiro, dinheiro, dinheiro. É
uma obsessão. Mas, uma vez que você renuncia ao dinheiro, ele deixa de ter qualquer
relevância. Já sinto que estou com uma cabeça completamente diferente. Menos
materialista, mais filosófica. Mais espiritual. Como David E. Barton diz, nós deixamos
de apreciar a cada dia tudo o que já temos. Luz, ar, liberdade, a companhia de amigos...
Quero dizer, são essas coisas que importam, certo? Não as roupas, os sapatos, os
caprichos.
Chega a ser quase assustadora a transformação que já ocorreu dentro de mim. Por
exemplo, passo pela banca de jornais na estação do metrô e, casualmente, desvio meu
olhar para as revistas mas não sinto o menor desejo de comprar nenhuma. Revistas são
irrelevantes na minha nova vida (além disso, já li quase todas).
Assim, entro no trem me sentindo serena e impenetrável como um monge budista.
Quando saio do trem no outro lado, passo reto pela sapataria com descontos, sem nem
olhar, e também pelo Lucio’s. Nada de cappuccinos hoje. Nem muffins. Nada de gastar
— só ir direto para o escritório.
Este é o período mais tranqüilo do mês na Successful Saving. Acabamos de encaminhar
o último número da revista para a gráfica, o que basicamente significa que podemos
relaxar por uns dias sem fazer nada, antes de nos prepararmos para o próximo número.
Claro, devemos começar a pesquisar para o artigo do mês que vem. Na realidade, hoje eu
tinha que dar vários telefonemas para corretores de valores e perguntar por suas sugestões
de investimento para os próximos seis meses.
Mas, de algum modo, a manhã toda passou e não fiz nada, só mudei o protetor de tela
do computador para três peixes amarelos e um polvo e criei um formulário de reembolso
de despesas. Para falar a verdade, não consigo realmente me concentrar no trabalho.
Acho que estou extasiada demais com a pureza do meu novo eu. Fico tentando imaginar
quanto terei economizado até o fim do mês e o que poderei comprar na Jigsaw.
Na hora do almoço, pego meu sanduíche embrulhado no papel laminado e, pela
primeira vez nesse dia, me sinto um pouco deprimida. O pão ficou todo úmido, a água do
picles escorreu para o papel laminado, e a aparência não está nada apetitosa. O que quero
nesse momento é um pão de nozes e um brownie de chocolate de Pret à Manger.
Não pense nisso, digo a mim mesma. Pensa em quanto dinheiro está economizando.
Assim, de algum modo me forço a comer meu sacrifício úmido e a beber um pouco o
suco. Quando acabo, jogo fora o papel laminado, atarraxo de novo a tampa da garrafa e a
coloco em nossa geladeirinha do escritório. Nisso passaram-se mai ou menos... cinco
minutos do meu horário de almoço.
E agora o que devo fazer em seguida? Onde devo ir?
Afundo na frente da minha mesa me sentindo miserável. Deus, esta fragilidade é difícil
de agüentar. Folheio uns arquivos desanimada... depois levanto a cabeça e vejo pela
janela todos os consumidores da Oxford Street segurando suas sacolas. Estou querendo
tanto ir lá, na verdade estou inclinada para a frente na minha cadeira, como uma planta
voltada para a luz. Estou necessitando de luzes fortes e ar quente; as prateleiras de
mercadorias, até o tilintar das caixas registradoras. Mas não posso ir. Esta manhã disse a
mim mesma que passaria o dia inteiro sem me aproximar das lojas. Prometi a mim
mesma — e não posso quebrar minha própria promessa. Pelo menos, não tão cedo...
E então me ocorre um pensamento brilhante. Preciso comprar uma receita com curry
para preparar uma refeição “para viagem” feita em casa, não é? David E. Barton diz que
livro de receita é dinheiro jogado fora. Segundo ele, devíamos usar as receitas impressas
nas laterais os pacotes de alimentos ou pegas emprestado livros de receitas na biblioteca.
Mas tenho uma idéia melhor. Vou entrar na Smith’s e copiar uma receita de curry para
fazer no sábado à noite. Desse modo posso entrar numa loja — mas não preciso gastar
nenhum dinheiro. Já estou me levantando e pegando meu casaco. Lojas, aqui vou eu!
Quando entro na Smith’s, sinto meu corpo inteiro expandir-se num alívio. Sente-se uma
vibração ao entrar numa loja, qualquer loja, que nada se compara. Um pouco pela
expectativa, um poço pela atmosfera receptiva e o burburinho, um pouco pelo simples
fascínio do novo em tudo. Revistas novas brilhando, lápis novos brilhando, transferidores
novos brilhando. Não que eu tenha precisado de um transferidor desde meus onze anos de
idade, mas eles não são lindos, limpinhos e sem nenhum risco dentro das embalagens? Há
uma série nova de fichários com capa de leopardo que nunca tinha visto antes, e por um
momento me sinto quase tentada a comprar. Mas, em vez disso, me forço a passar reto
em direção ao fundo d loja onde os livros estão empilhados.
Existe uma variedade enorme de livros de receitas de comida indiana, e eu pego um
aleatoriamente, passo os olhos nas páginas e imagino que tipo de receitas eu deveria
escolher. Não tinha me dado conta do quanto é complicada essa culinária indiana. Talvez
eu devesse tomar nota de umas duas só para garantir.
Olho à minha volta com cuidado e tiro da bolsa meu caderninho e a caneta. Estou um
pouco cautelosa porque sei que a Smith’s não gosta que se copiem coisas de seus livros.
Sei disso porque, uma vez, pediram a Suze para sair da Smith’s, em Victoria. Ela estava
copiando uma página do A-Z porque tinha esquecido o dela e disseram-lhe que precisaria
comprar ou largar. (O que não faz nenhum sentido, pois eles deixam a gente ler as
revistas de graça, não é mesmo?)
Bem, continuando, quando me certifico de que ninguém está olhando, começo a copiar
a receita de “Camarão à biriani”. Estou na metade da lista de tempero quando uma garota
usando o uniforme da WH Smith aparece no outro canto e rapidamente fecho o livro e me
afasto um pouco, fingindo que estou folheando. Quando acho que estou segura, volto a
abrir mas antes de poder escrever alguma coisa, uma senhora idosa, vestida num casaco
azul, diz alto:
— Esse aí é bom, querida?
— O quê? — digo eu.
— O livro! — Ela aponta para o livro de receitas com seu guarda-chuva. — Preciso de
um presente para minha nora e ela é da Índia. Pensei em comprar um bom livro de
receitas indianas. Você diria que esse é bom?
— Realmente não sei — respondo. — Ainda não o li.
— Ah — exclama a senhora e começa a se afastar. Eu devia manter minha boca
fechada e não me meter na vida dos outros, mas não consigo resistir, tenho que dar um
pigarro e dizer:
— Ela já não tem muitas receitas indianas?
— Quem? — diz a mulher, virando-se.
— Sua nora! — Já estou me arrependendo disso. — Se é indiana, já não sabe cozinhar
comida indiana?
— Ah — diz a velha senhora. Parece totalmente confusa. — Bem, o que eu deveria
comprar então?
Ah, Deus.
— Não sei — digo. — Talvez um livro sobre... sobre alguma outra coisa?
— É uma boa idéia! — diz ela num tom alegre e vem na minha direção. — Me mostre,
querida.
Por que eu?
— Sinto muito — digo. — Estou com um pouco de pressa hoje.
Rapidamente me afasto sentindo-me um pouco mal. Chego à seção de CDs e vídeos,
que está sempre meio vazia, e me escondo atrás da prateleira dos vídeos dos Teletubbies.
Olho em volta, verifico e não há ninguém por perto e abro o livro outra vez. Tudo bem,
viro para a página 214, Camarão à biriani... Começo a copiar de novo e, assim que chego
ao fim da lista de temperos, ouço uma voz séria no meu ouvido.
— Com licença?
Fico tão espantada que minha caneta cai do caderno e, para meu, faz um risco azul bem
sobre uma fotografia linda de um arroz basmati cozido. Rapidamente desloco minha mão
quase cobrindo a marca e me viro com um ar inocente. Um homem vestindo uma camisa
branca portando um crachá com o seu nome me olha com ar de desaprovação.
— Isto não é uma biblioteca pública, a senhora sabe — diz ele. — Acha que temos um
serviço de informação gratuita?
— Só estou folheando — digo logo e cuido de fechar o livro. Mas o dedo do homem
sai do nada e aterrissa na página antes que eu consiga fechá-la. Lentamente ele abre o
livro de novo e nós dois olhamos para meu risco de caneta azul.
— Folhear é uma coisa — diz o homem sério — destruir o estoque da loja é outra.
— Foi um acidente! — digo. — O senhor me assustou!
— Hum — diz o homem, e me dirige um olhar duro. — Pretendia realmente comprar
este livro? Ou qualquer outro?
Há uma pausa — depois, com a expressão um pouco envergonhada, digo:
— Não.
— Entendo — diz o homem, apertando os lábios. — Bem, temo que este assunto
necessite ser levado à gerência. Claro, não poderemos vender este livro mais, portanto é
perda nossa. Se a senhora puder vir comigo e explicar a ela exatamente o que estava
fazendo quando o estrago aconteceu...
Ele estava falando sério? Não vai só me dizer gentilmente que não faz mal e perguntar
se quero um cartão da loja? Meu coração começa a bater forte de pânico. O que vou
fazer? Obviamente não posso comprar o livro estando sob o meu regime frugal. Mas
tampouco quero ir ver a gerente.
— Lynn? — o homem chama uma assistente no balcão de canetas. — Poderia procurar
Glenys para mim, por favor?
Ele realmente está falando sério. Parece contente consigo mesmo como se tivesse pego
um ladrão de lojas. Será que eles podem me processar por fazer marcas de caneta em
livros? Talvez conte como vandalismo. Ah, Deus. Serei fichada criminalmente. Nunca
vou poder viajar para a América.
— Olha, eu o comprarei, está bem? — digo, sem ar. — Comprarei o raio do livro. —
Arranco-o da mão do homem e corro para o balcão de saída antes que ele dia alguma
coisa, meu coração ainda batendo forte.
De pé no balcão seguinte ao meu está a senhora idosa de casaco azul, e procuro evitar
seu olhar. Mas ela me vê e exclama triunfante:
— Segui seu conselho! Comprei uma coisa que eu acho que ela realmente vai gostar!
— Ah, ótimo — repliquei, entregando meu livro de receitas para ser escaneado.
— Chama-se O Guia Alternativo para a Índia — diz a senhora idosa me mostrando o
grosso livro de bolso azul. — Já ouviu falar nele?
— Ah — digo. — Bem, sim, mas...
— São 24,99 libras, por favor — diz a moça da minha caixa registradora.
O quê? Dirijo-lhe o olhar espantada. Vinte e cinco libras, só por receitas? Por que eu
não peguei algum livro de bolso barato? Droga. Droga. Muito relutante, pego meu cartão
de crédito e o entrego. Comprar é uma coisa, ser forçada a pagar contra a sua vontade é
outra bem diferente. Quero dizer, eu poderia ter comprado alguma lingerie bonita com
aquelas vinte e cinco libras.
Por outro lado, penso enquanto saio da loja, significa um bocado de pontos novos no
meu Cartão Club. O equivalente a... 0,50 de libra! E agora serei capaz de fazer vários
molhos de curry deliciosos e exóticos e economizar todo aquele dinheiro perdido de
comida para viagem. Realmente, preciso encarar esse livro como um investimento.
Não quero me gabar mas, fora aquela compra, vou incrivelmente bem nos dois dias
seguintes. As únicas coisas que compro são uma garrafa térmica cromada, muito bonita,
para levar café para o escritório (u uns grãos de café e um triturador elétrico — porque
não faz sentido levar café instantâneo ordinário, faz?). E umas flores e champanhe para o
aniversário de Suze.
Mas tenho permissão para comprar isso, pois, segundo David E. Barton, é preciso
presentear os amigo. Ele diz que o simples ato de dividir pão com os amigos é uma das
características mais antigas e mais essenciais da vida humana. “Não deixe de dar
presentes aos seus amigos”, diz ele. “Não precisam ser extravagantes. Use sua
criatividade e procure fazê-los você mesmo.”
Então o que fiz foi comprar para Suze uma meia garrafa de champanhe em vez de uma
inteira e, em vez de comprar os croissants caros da delicatessen, vou fazê-los eu mesma
com aquela massa especial que se compra em tubos.
À noite vamos ao Terrazza para jantar com os primos de Suze, Fenella e Tarquin, e
para ser sincera, deve ser uma noite bem cara. Mas todo bem, pois conta como dividir
pão com os amigos. (Só que o pão do Terrazza é de tomate seco ao sol e custa 4,50 libras
a cesta.)
Fenella e Tarquin chegam às seis horas no aniversário de Suze e logo que ela os vê
começa a gritar de alegria. Fico no meu quarto e termino de me maquiar, adiando o
momento de ter que sair e cumprimentá-los. Não gosto tanto assim de Fenella e Tarquin.
Na realidade, acho-os um pouco esquisitos. Para começar, têm uma aparência estranha.
Ambos são muito magros — mas de um tipo pálido e ossudo — e têm os mesmos dentes
levemente protuberantes. Fenella faz um pouco de esforço com roupas e maquiagem, e
sua aparência não é tão ruim. Mas Tarquin, francamente, parece um arminho. Ou uma
fuinha. De qualquer forma, alguma pequena criatura ossuda. Eles fazem coisas estranhas
também. Andam por aí numa bicicleta, usam uns blusões combinando, tricotados por sua
avó, e têm esse vocabulário próprio familiar tolo que ninguém mais consegue entender.
Por exemplo, chamam sanduíche de “uíche”. E um drinque é um “titchi” (exceto água,
que é “ho”). Acredite, fica realmente irritante após algum tempo.
Mas Suze os adora. Passou com eles todos os verões de sua infância, na Escócia, e não
consegue enxergar que são um pouco estranhos. O pior de tudo é que ela começa a falar
sobre uíches e titchies quando estão juntos. Me deixa louca.
Ainda assim, não há nada que eu possa fazer — eles estão aqui agora. Acabo de
colocar o rímel e me levanto olhando para a minha imagem no espelho. Fico satisfeita
com o que vejo. Estou usando um top preto bem simples e calças compridas pretas e,
amarrada frouxa em volta do pescoço, minha linda, linda echarpe Denny and George.
Deus, aquela foi uma grande compra. Está fantástica.
Protelo um pouco e depois, resignada, abro a porta de meu quarto.
— Oi, Bex! — diz Suze, olhando pra mim com olhos brilhantes. Está sentada de
pernas cruzadas no chão do corredor, rasgado o embrulho de um presente, enquanto
Fenella e Tarquin estão ao seu lado, em pé, apreciando. Não estão com blusões
combinando hoje, graças a Deus, mas Fenella está vestindo uma saia muito estranha feita
de tweed felpudo, e o terno de peito duplo de Tarquin parece ter sido feito durante a
Primeira Guerra Mundial.
— Oi! — cumprimento e beijo cada um educadamente.
— Nossa! — grita Suze, e tira um quadro numa moldura dourada antiga. — Não
acredito! Não acredito! — Ela olha de Tarquin para Fenella com um olhar radiante, e eu
fito a tela com interesse por cima de seus ombros. Mas, para ser sincera, não consigo
dizer que estou impressionada. Para começar está toda desbotada — toda borrada de
verdes e marrons — também só mostra um cavalo parado quieto num campo. Quero
dizer, não poderia estar pulando uma cerca, empinando ou algo assim? Ou talvez trotando
pelo Hyde Park, montado por uma garota num desses lindos vestidos de Orgulho e
preconceito?
— Feliz Mau Dia! — Tarquin e Fenella falam em uníssono. (Isto é outra coisa. Eles
chamam os aniversários de maus dias desde que... Ah, Deus. Isto é realmente muito chato
para explicar.)
— É absolutamente lindo! — digo, entusiasmada. — Absolutamente maravilhoso!
— É, não é? — diz Tarquin, sério. — Olhe só essas cores.
— Humm, lindas — exclamo acenando que sim.
— E o trabalho escovado. É primoroso. Ficamos emocionados quando nos deparamos
com ele.
— É realmente um belo quadro — digo. — Faz você querer... galopar pelas dunas!
Que disparate é esse que estou dizendo? Por que não posso ser simplesmente sincera e
dizer que não gosto?
— Você monta? — pergunta Tarquin, me olhando um pouco surpreso.
Montei uma vez. No cavalo de meu primo. Caí e jurei que seria a última vez. Mas não
vou admitir isto para o Sr. Cavalo do Ano.
— Costumava — digo e sorrio com modéstia. — Não muito bem.
— Tenho certeza que voltaria — diz Tarquin me olhando. — Você já caçou?
Ah, pelo amor de Deus. Eu pareço a Sra. Vida Campestre?
— Ei — diz Suze encostando o quadro na parede com carinho. — Vamos tomar um
“titchi” antes de sair?
— Claro! — digo me virando logo para longe de Tarquin. — Boa idéia.
— Ah, sim — diz Fenella. — Vocês têm algum champanhe?
— É provável — responde Suze e dirige-se para a cozinha. Nesse momento o telefone
toca e eu atendo.
— Alô?
— Alô, poderia falar com Rebecca Bloom — diz uma voz feminina desconhecida?
— Sim — digo, alheia. Ouço Suze abrir e fechar portas do armário da cozinha e fico
pensando se temos mesmo algum champanhe além dos restos da meia garrafa que
bebemos no café da manhã... — Sou eu mesma.
— Srta. Bloom, aqui é Erica Parnell, do Endwich Bank — diz a voz e eu gelo.
Merda. É o banco. Ah, Deus, eles me enviaram aquela carta, não foi, e eu não fiz nada
a respeito.
O que vou dizer? Rápido, o que vou dizer?
— Srta. Bloom? — diz Erica Parnell.
Está bem — o que vou dizer é que estou inteiramente a par de que excedi meu limite e
estou planejando adotar uma ação remediadora dentro dos próximos dias. Sim, isto soa
bem. “Ação remediadora” soa muito bem. Está bom, vai.
Digo a mim mesma com firmeza para não entrar em pânico — essas pessoas são
humanas — e respiro profundamente. Depois, num movimento perfeito, sem ter sido
planejado, minha mão coloca o fone no gancho.
Por alguns segundos olhos para o fone mudo, sem conseguir acreditar no que acabei de
fazer. Por que fiz aquilo? Erica Parnell sabia que era eu, não sabia? A qualquer momento
telefonará de volta. Deve estar apertando o botão de rediscagem agora, e ficará furiosa...
Rapidamente retiro o fone do gancho e escondo sob uma almofada. Agora ela não pode
me alcançar. Estou segura.
— Quem era? — pergunta Suze, entrando no quarto.
— Ninguém — digo, sentindo-me tremer um pouco. — Foi engano... Ouça, não vamos
tomar os drinques aqui. Vamos sair!
— Ah — diz Suze. — Está bem!
— Muito mais divertido — digo rápido, tentando desviá-la do telefone. — Podemos ir
a algum bar muito gostoso tomar uns drinques e, depois, vamos ao Terrazza.
No futuro, o que vou fazer, penso, é selecionar todas as minhas chamadas. Ou atender
com uma pronúncia estrangeira. Ou, melhor ainda, mudar o número. Tirar meu nome do
catálogo.
— O que está acontecendo? — pergunta Fenella aparecendo na porta.
— Nada! — Ouço minha voz dizer. — Vamos sair para um “titchi” e depois
seguiremos para o “jants”.
Ah, não acredito. Estou me tornando um deles.
Quando chegamos ao Terrazza, me sinto muito mais calma. Claro, Erica Parnell terá
pensado que fomos cortadas por um defeito na linha ou algo assim. Nunca vai achar que
desliguei o telefone na cara dela. Quero dizer, somos duas adultas civilizadas, não
somos? Adultos simplesmente não fazem esse tipo de coisa.
E se eu algum dia encontrá-la — que espero que nunca aconteça — vou me manter
muito tranqüila e dizer “Foi estranho o que aconteceu naquela vez que você me
telefonou, não?” Ou melhor ainda, a acusarei de ter desligado na minha cara (brincando,
é claro).
O Terrazza está cheio, ouve-se um burburinho, tem fumaça de cigarro e conversa, e,
quando sentamos com nossos enormes cardápios prateados, sinto-me relaxar mais ainda.
Adoro comer fora. E suponho que mereço um bom divertimento depois de ter sido tão
frugal nos últimos dias. Não foi fácil agüentar um regime tão rígido, mas de algum modo
consegui. E estou me mantendo nele tão bem! No sábado vou monitorar meu padrão de
gastos novamente, e tenho certeza de que chegarei a uma redução de pelo menos 70%.
— O que vamos beber? — pergunta Suze. — Tarquin, você escolhe.
— Ah, olhe! — grita Fenella. — É o Eddie Lazenby! Preciso cumprimentá-lo. —
Levanta-se e anda na direção de um rapaz meio calvo vestindo um blazer, a uma dez
mesas de distância. Não faço a menos idéia de como ela conseguiu vê-lo nesta multidão.
— Suze! — grita outra voz, e nós todas olhamos. Uma garota loura num tailleur curto
rosa-claro dirige-se à nossa mesa com os braços estendidos pra um abraço. — E Tarkie!
— Oi, Tory — diz Tarquin levantando-se. — Como vai Mungo?
— Ele está lá! — diz Tory. — Você precisa vir dar um alô!
Como é que Fenella e Tarquin passam a maior parte do tempo no meio de Perthshire,
mas no minuto que põem os pés em Londres, são cercados de amigos que não vêem há
muito tempo?
— Eddie mandou um abraço — anuncia Fenella retornando à mesa. — Tory! Como
vai você? Como vai Mungo?
— Ah, ele está bem — diz Tory. — Mas vocês já sabem? Caspar está de volta à
cidade!
— Não! — exclamam todos, e eu estou quase tentada a juntar-me a eles. Ninguém se
preocupou em me apresentar a Tory, mas é assim que as coisas são com esse tipo de
gente. Você se une ao grupo por osmose. Num minuto é um completo estranho, no outro
está rindo com eles dizendo: “Você ouviu sobre Valentina e Sebastian?”
— Olha, precisamos fazer o pedido — diz Suze. — Vamos lá falar com ele num
instante, Tory.
— Está bem, tchau — diz Tory, e se afasta.
— Suze! — exclama outra voz, e uma garota num vestido preto bem curto aproxima-se
correndo. — E Fenny!
— Milla! — as duas exclamam. — Como vai? Como vai o Benjy?
Ah, Deus, isto não pára. Aqui estou eu, olhando para o menu — fingindo estar
realmente interessada nas entradas mas, na realidade, estou me sentindo como uma total
nulidade com que ninguém quer falar — enquanto os malditos Fenella e Tarquin são os
Socialites do Ano. Não é justo. Eu também quero pular de mesa em mesa. Eu quero
esbarrar em velhos amigos que conheço desde a infância. (Ainda que, para ser sincera, a
única pessoa que conheci por tanto tempo foi Tom, meu vizinho, e ele agora deve estar na
sua cozinha de carvalho em Reigate.)
Mas, em todo caso, abaixo meu menu e dou uma olhada esperançosa pelo restaurante.
Por favor, Deus, só uma vez, faça com que haja alguém que eu conheça. Não precisa ser
alguém de quem eu goste, ou mesmo que eu conheça tão bem assim, só alguém a quem
eu possa me juntar, papear um pouquinho e depois exclamar “Precisamos almoçar!”
Qualquer pessoa serve. Qualquer uma mesmo...
Nesse momento, com uma emoção inacreditável, vejo um rosto familiar a algumas
mesas de distância! É Luke Brandon, sentado numa mesa com um senhor e uma senhora
mais velhos, muito bem-vestidos.
Bem, ele não é exatamente um velho amigo mas eu o conheço, não é? E não é como se
eu tivesse muita escolha. E eu quero tanto pular de mesa em mesa como os outros.
— Vejam, lá está o Luke! — exclamo (baixo, para ele não me ouvir). — Eu
simplesmente preciso ir lá falar com ele!
Quando os outros me olham surpresos, jogo meu cabelo para trás, fico de pé num pulo
e corro dali, tomada por uma alegria repentina. Eu também posso fazer isso! Estou
pulando de mesa em mesa no Terrazza. Sou uma garota enturmada!
Só quando me encontro a uns poucos passos da mesa dele é que diminuo o passo e fico
imaginando o que vou dizer exatamente.
Bem... serei apenas educada. Vou cumprimentar e — ah, genial! Posso agradecê-lo
novamente por seu gentil empréstimo de vinte libras.
Merda, eu paguei mesmo a ele, não paguei?
Sim. Sim, mandei-lhe aquele cartão reciclado bonito com papoulas e um cheque. Isto
mesmo. Agora não entre em pânico, é só ser calma e charmosa.
— Oi! — exclamo tão logo chego a uma distância de sua mesa que posso ser ouvida,
mas o burburinho à nossa volta é tão alto que ele não me ouve. Não é à toa que todos os
amigos de Fenella falam tão alto... É preciso uns sessenta e cinco decibéis para ser
ouvido.
— Oi! — tento outra vez, ainda sem resposta. Luke está sério, falando com o senhor
mais velho, e a senhora está ouvindo interessada. Nenhum deles sequer desvia o olhar.
Isto está ficando um pouco embaraçoso. Estou em pé, sozinha, sendo totalmente
ignorada pela pessoa com quem quero falar. Ninguém mais parece ter este problema. Por
que ele não se levanta correndo e exclama “Você soube da Foreland Investments?” Não é
justo. O que devo fazer? Devo simplesmente me afastar? Devo fingir que estava me
encaminhando para o toalete das Senhoras?
Um garçom passa por mim com uma bandeja com uma certa dificuldade, e sou
empurrada para a frente, impotente, na direção da mesa de Luke — nesse momento, ele
me olha. Olha fixo para mim sem nenhuma emoção, como se nem soubesse quem eu sou.
E sinto meu estômago dar uma mexidinha de pânico. Mas agora preciso ir até o fim.
— Olá, Luke! — digo num tom alegre. — Só queria... cumprimentar!
— Bem, olá — diz ele após uma pausa. Mamãe, papai, esta é Rebecca Bloom.
Rebecca, meus pais.
Meu Deus. O que fiz? Fui parar numa reunião íntima familiar. Saia, rápido.
— Oi. — Dou um sorriso pálido. — Bem, não quero incomodar...
— E então, como conheceu Luke? — pergunta a Sra. Brandon.
— Rebecca é uma importante jornalista econômica — diz Luke, tomando um gole de
vinho. (É isto mesmo que ele pensa? Nossa Mãe, preciso deixar escapar numa conversa
com Clare Edwards. Aliás, com Philip também.
Sorrio confiante para o Sr. Brandon, me sentindo como uma estrela. Sou uma
importante jornalista econômica fazendo amizade com um importante empresário num
badalado restaurante londrino. Nada mau, não?
— Jornalista econômica, hein? — murmura o Sr. Brandon, e abaixa seus óculos de
perto para me ver melhor. — E então o que você achou da declaração do ministro das
Finanças?
Nunca mais vou procurar amigos de mesa em mesa. Nunca mais.
— Bem — começo confiante, pensando se eu não poderia de repente fingir estar vendo
um velho amigo do outro lado da sala.
— Pai, estou certo de que Rebecca não quer falar de trabalho — diz Luke, franzindo
um pouco a testa.
— Com certeza! — diz a Sra. Brandon, sorrindo para mim. — É uma linda echarpe,
Rebecca. É Denny and George.
— Sim! — digo alegre, aliviada por escapar da declaração do ministro. (Que
declaração?) — Fiquei tão contente, comprei-a na semana passada numa liquidação!
De soslaio, consigo ver que Luke Brandon está me olhando com uma expressão
estranha. Por quê? Por que me olha tão...
Ai, merda. Como posso ser tão burra?
— Na liquidação... para minha tia — continuo, tentando pensar o mais rápido possível
— comprei para minha tia de presente. Mas ela... morreu.
Faz-se um silêncio constrangedor e desvio meu olhar para o chão. Não consigo
acreditar no que acabei de dizer.
— Minha nossa — diz o Sr. Brandon, áspero.
— Tia Ermintrude morreu? — diz Luke numa voz estranha.
— Sim — replico, me forçando a olhar para ele. — Foi muito triste.
— Que horror! — diz a Sra. Brandon lamentando.
— Ela estava no hospital, não é? — diz Luke, enchendo seu copo e água. — Qual era o
problema dela?
Por um instante fico em silêncio.
— Foi... sua perna — ouço-me dizer.
— A perna? — a Sra. Brandon olha para mim ansiosa. — O que houve de errado com
a perna dela?
— Ela... inchou e gangrenou — digo após uma pausa. — Tiveram que amputá-la e
depois ela morreu.
— Cristo — dia o Sr. Brandon, balançando a cabeça. — Esses malditos médicos. — E
me dirige um olhar feroz repentino. — Ela morreu sozinha?
— Hummm... Não estou certa — digo começando a recuar. Não consigo agüentar mais
isto. Por que eu não disse apenas que ela me deu o raio da echarpe? — De qualquer
modo, foi muito bom vê-lo, Luke. Preciso ir, meus amigos vão sentir minha falta!
Faço uma espécie de aceno desinteressado sem encarar Luke bem nos olhos,
rapidamente me viro e volto para Suze, meu coração batendo rápido e meu rosto ardendo
de vermelho. Deus, que fiasco.
Mas consigo recompor-me antes de chegar a comida. A comida! Pedi mariscos grelhados
e quando dou a primeira dentada, quase desmaio. Após tantos dias torturantes de comida
barata e funcional, isto é um manjar dos deuses. Quase sinto vontade de chorar, como um
prisioneiro retornando ao mundo real, ou crianças após a guerra quando o racionamento
acaba. Depois dos meus mariscos, peço um steak béarnaise com batatas fritas e quando
todos os outros dizem “não obrigado” para o cardápio de sobremesa, peço um musse de
chocolate. Pois quem sabe quando estarei novamente num restaurante como este? Pode
ser que se passem muitos meses na base de sanduíches de queijo e cafés feitos em casa
numa garrafa térmica, sem nada para aliviar a monotonia.
É um caminho duro o que escolhi. Mas no final valerá a pena.
Enquanto aguardo minha musse de chocolate, Suze e Fenella decidem que precisam ir
falar com Benjy, do outro lado do salão. Levantam-se, as duas acendendo seus cigarros
ao mesmo tempo, e Tarquin fica para trás para me fazer companhia. Não parece gostar
tanto de pular de mesa em mesa como elas. Na verdade, ele esteve bem quieto a noite
toda. Também percebi que bebeu mais do que qualquer um de nós. Estou esperando que,
a qualquer momento, sua cabeça aterrisse na mesa. O que para mim até seria bom.
Durante um tempo faz-se silêncio entre nós. Para ser sincera, Tarquin é tão estranho,
não sinto nenhuma obrigação de falar com ele. Depois, de repente, ele diz:
— Você gosta de Wagner?
— Ah, sim — respondo imediatamente. Não estou bem certa se já ouvi Wagner, mas
não quero parecer inculta, nem mesmo para Tarquin. E já fui à ópera, apesar de achar que
foi o Mozart.
— O Liebestod de Tristão — diz ele e sacode a cabeça — O Liebestod.
— Mmmm — digo e faço um aceno de cabeça concordando, num gesto que espero
demonstrar inteligência. Sirvo-me de um pouco de vinho, encho o copo dele também e
olho em volta para ver onde Suze foi. É típico dela desaparecer e deixar-me com seu
primo bêbado.
— Dah-dah-dah-dah, daaah dah dah…
Ai, meu Deus, ele está cantando. Não muito alto, admito, ma intensamente. E está
olhando nos meus olhos como que esperando que eu o acompanhe.
— Dah-dah-dah-dah...
Agora ele fecha os olhos e fica se balançando. Isto está se tornando embraçoso.
— Da diddle-idly da-a-da-a daaaah dah...
— Lindo — digo animada. — Nada é melhor que o Wagner, não é?
— Tristão — diz ele — e Isolda. Abre os olhos. — Você seria uma bela Isolda.
Eu seria uma o quê? Enquanto estou ainda olhando para ele, leva minha mãe aos seus
lábios e começa a beijá-la. Por alguns segundos estou chocada demais para mover-me.
— Tarquin — digo o mais firme que posso, tentando puxar minha mão. — Tarquin,
por favor... — Encaro-o e desesperadamente passo os olhos pelo salão em busca de Suze,
e quando o faço, encontro o olhar de Luke Brandon saindo do restaurante. Ele franze um
pouco a testa, levanta a mão num gesto de adeus e desaparece pela porta.
— Sua pele tem o cheiro de rosas — murmura Tarquin contra minha pele.
— Ah, cale a boca! — digo zangada e retiro minha mão da sua com tanta força que
uma fileira de dente fica marcada na minha pele. — Me deixe em paz!
Eu lhe daria um tapa, mas ele provavelmente tomaria isto como um convite.
Naquele momento, Suze e Fenella voltam para a mesa, cheias de novidades sobre
Binky e Minky — e Tarquin cai no silêncio. Pelo resto da noite, mesmo quando nos
despedimos, quase não me olha. Graças a Deus. Deve ter entendido a mensagem.



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