quarta-feira, 9 de março de 2011

Harry Potter e a Pedra Filosofal - Capítulos 3 e 4

CAPÍTULO TRÊS
As Cartas de Ninguém

A fuga da jibóia brasileira rendeu a Harry o seu castigo mais longo. Na
altura em que lhe permitiram sair do armário, as férias de verão já haviam
começado e Duda já quebrara a nova filmadora, acidentara o aeromodelo e, na
primeira vez que andara na bicicleta de corrida, derrubara a velha Sra. Figg
quando ela atravessava a Rua dos Alfeneiros de muletas.
Harry ficou contente que as aulas tivessem acabado, mas não conseguia
escapar da turma de Duda, que visitava a casa todo dia.
Pedro, Dênis, Malcolm e Górdon eram todos grandes e burros, mas como
Duda era o maior e o mais burro do bando, era o líder.
Os demais ficavam bastante felizes de participar do esporte favorito de
Duda: perseguir Harry.
Por esta razão Harry passava a maior parte do tempo possível fora de
casa, perambulando e pensando no fim das férias, no qual conseguia vislumbrar
um raiozinho de esperança. Quando setembro chegasse, ele iria para a escola
secundária e, pela primeira vez na vida, não estaria em companhia de Duda.
Duda tinha uma vaga na antiga escola de tio Válter, Smeltings. Pedro ia para lá
também. Harry por outro lado, ia para a escola secundária local. Duda achava
muita graça nisso.
— Eles metem a cabeça dos garotos no vaso sanitário no primeiro dia de
escola — contou ele a Harry — quer ir lá em cima praticar?
— Não, obrigado — respondeu Harry — O coitado do vaso nunca recebeu
nada tão horrível quanto a sua cabeça, é capaz de passar mal. — E correu antes
que Duda conseguisse entender o que dissera.

Certo dia de julho, tia Petúnia levou Duda a Londres para comprar o
uniforme da Smeltings e deixou Harry com a Sra. Figg.
A Sra. Figg não estava tão ruim quanto de costume. Afinal, fraturara a
perna porque tropeçara em um dos gatos e não parecia gostar tanto deles quanto
antes. Deixou Harry assistir a televisão e lhe deu um pedaço de bolo de chocolate
que pelo gosto parecia ter muitos anos.
Naquela noite, Duda desfilou para a família reunida na sala de estar
vestindo o uniforme novo da Smeltings. Os alunos da Smeltings usavam casaca
marrom-avermelhada, calções cor de laranja e chapéus de palha. Carregavam
também bengalas nodosas, que usavam para bater uns nos outros quando
os professores não estavam olhando isto era considerado um bom treinamento
para o futuro.
Ao contemplar Duda nos calções laranja novos, tio Válter disse com a voz
embargada que aquele era o momento de maior orgulho em sua vida. Tia Petúnia
rompeu em lágrimas e disse que não podia acreditar que era o seu Dudinha,
estava tão bonito e adulto.
Harry não confiou no que poderia dizer. Achou que duas de suas costelas
talvez já tivessem partido só com o esforço para não rir.
Havia um cheiro horrível na cozinha na manhã seguinte quando Harry
entrou para o café da manhã. Parecia vir de uma panela de metal dentro da pia.
Ele se aproximou para espiar.
A tina aparentemente estava cheia de trapos sujos que boiavam na água
cinzenta.
— O que é isso? — perguntou à tia Petúnia... Os lábios dela se contraíram
como costumavam fazer quando ele se atrevia a fazer uma pergunta.
— O seu uniforme novo de escola — respondeu.
Harry espiou para dentro da tina outra vez.
— Ah — comentou — eu não sabia que tinha que ser tão molhado.

— Não seja idiota — retorquiu tia Petúnia com rispidez. — Estou tingindo
de cinza umas roupas velhas de Duda para você. Vão ficar iguaizinhas às dos
outros quando eu terminar.
Harry tinha sérias dúvidas, mas achou melhor não discutir.
Sentou-se à mesa e tentou pensar na aparência que teria no primeiro dia
de aula como se estivesse usando retalhos de pele de elefante velho,
provavelmente.
Duda e tio Válter entraram ambos com os narizes franzidos por causa do
cheiro do novo uniforme de Harry. Tio Válter abriu o jornal como sempre fazia e
Duda bateu na mesa com a bengala da Smeltings, que ele carregava para todo
lado.
Ouviram o clique da portinhola para cartas e o som da correspondência
caindo no capacho da porta.
— Apanhe o correio, Duda — disse tio Válter por trás do jornal.
— Mande o Harry apanhar.
— Apanhe o correio Harry.
— Mande o Duda apanhar.
— Cutuque ele com a bengala da Smeltings, Duda.
Harry se esquivou da bengala da Smeltings e foi apanhar o correio. Havia
três coisas no capacho: um postal da irmã do tio Válter, Guida, que estava
passando férias na ilha de Wihgt, um envelope pardo que parecia uma conta e
uma “carta para Harry”.
Harry apanhou-a e ficou olhando, o coração vibrando como um elástico
gigante. Ninguém, jamais, em toda a sua vida, lhe escrevera. Quem escreveria?
Ele não tinha amigos, nem outros parentes, não era sócio da biblioteca, de modo
que jamais recebera sequer os bilhetes grosseiros pedindo a devolução de livros.
Contudo, ali estava, uma carta, endereçada tão claramente que não podia haver
engano.
Sr. H. Potter

O Armário sob a Escada
Rua dos Alfeneiros 4
Little Whinging Surrey
O envelope era grosso e pesado, feito de pergaminho amarelado e
endereçado com tinta verde-esmeralda. Não havia selo.
Quando virou o envelope, com a mão trêmula, Harry viu um lacre de cera
púrpura com um brasão, um Leão, uma Águia, um Texugo e uma Cobra
circulando uma grande letra "H".
— Anda depressa, moleque! — gritou tio Válter da cozinha. — fazendo o
quê, procurando cartas-bombas? — E riu da própria piada.
Harry voltou à cozinha, ainda de olhos fixos na carta. Entregou a conta e o
postal ao tio Válter, sentou-se e começou a abrir lentamente o envelope amarelo.
Tio Válter rasgou o envelope da conta, deu um bufo de desdém e virou o
postal.
— Guida está doente — informou à tia Petúnia. — Comeu um marisco
suspeito...
— Pai! — exclamou Duda de repente. — Pai, Harry recebeu uma carta!
Harry ia desdobrar a carta, escrita no mesmo pergaminho que o envelope,
quando tio Válter arrancou-a de sua mão.
— É minha! — disse Harry, tentando recuperá-la.
— Quem iria escrever para você? — zombou tio Válter, sacudindo a carta
com uma das mãos para desdobrá-la e percorrendo com o olhar. Seu rosto
passou de vermelho para verde mais rápido que um sinal de tráfego. E não parou
ai. Segundos depois ficou branco-acinzentado, cor de mingau de aveia velho.
— P-P-Petúnia! — ofegou.
Duda tentou agarrar a carta para lê-la, mas tio Válter segurou-a no alto
fora do seu alcance. Tia Petúnia apanhou-a cheia de curiosidade leu a primeira
linha. Por um instante pareceu que ela talvez fosse desmaiar. Levou as duas
mãos à garganta e produziu ruído de engasgo.

— Válter! Ah, meu Deus, Válter!
Eles se encararam parecendo ter esquecido que Harry e
Duda continuavam na cozinha. Duda não estava acostumado a ser desprezado.
Deu uma bengalada forte na cabeça do pai.
— Quero ler esta carta — falou alto.
— Quero lê-la — disse Harry furioso —, porque é minha...
— Saiam, os dois — ordenou com voz rouca tio Válter, enfiando a carta no
envelope.
Harry não se mexeu.
— QUERO MINHA CARTA! — Gritou.
— Me deixa ver! — exigiu Duda.
— Fora! — berrou Tio Válter, e agarrando os dois, Harry e Duda, pelo
cangote atirou-os no corredor e bateu a porta da cozinha. Harry e Duda na mesma
hora tiveram uma briga furiosa, mas silenciosa, para saber quem ia escutar
à fechadura, Duda ganhou, por isso Harry, os óculos pendurados em uma orelha,
deitou-se de barriga no chão para escutar pela fresta entre a porta e o chão.
— Válter — disse tia Petúnia com voz trêmula — olhe só o endereço.
Como é que eles poderiam saber onde ele dorme? Você acha que estão vigiando
a casa?
— Vigiando, espionando, talvez nos seguindo — murmurou tio Válter
enlouquecido.
Harry via os sapatos pretos lustrosos do tio Válter andando para cá e para
lá na cozinha.
— Não — disse ele decidido. — Não, vamos ignorá-la. Se não receberem
uma resposta... É, é o melhor... Não vamos fazer nada...
— Mas...
— Não vou ter um deles em casa, Petúnia! Nós não juramos quando o
recebemos que íamos acabar com aquela bobagem perigosa?
Aquela noite, quanto voltou do trabalho, tio Válter fez uma coisa que
nunca fizera antes, visitou Harry no armário.

— Cadê minha carta? — perguntou Harry, no instante em que tio Válter se
espremeu pela porta. — Quem me escreveu?
— Ninguém. Endereçaram a você por engano — disse tio Válter
secamente. — Queimei a carta.
— Não foi um engano — retrucou Harry com raiva, — tinha o endereço do
meu armário.
— CALADO! — gritou tio Válter e algumas aranhas caíram do teto. Ele
inspirou algumas vezes e então fez força para produzir um sorriso que pareceu
bem penoso.
— Hum, sim, Harry sobre este armário. Sua tia e eu estivemos
pensando... Você realmente está ficando grande demais para ele... Achamos que
seria bom se você se mudasse para o segundo quarto de Duda.
— Por quê? — perguntou Harry.
— Não faça perguntas — disse com rispidez o tio. Leve essas coisas para
cima agora.
A casa dos Dursley tinha quatro quartos: um para tio Válter e tia Petúnia,
um para hóspedes (em geral a irmã de tio Válter, Guida), um onde Duda dormia e
um onde Duda guardava todos os brinquedos e pertences que não cabiam
no primeiro quarto. Harry precisou de apenas uma viagem para mudar tudo o que
tinha do armário para o quarto no andar de cima.
Sentou-se na cama e deu uma olhada à sua volta. Quase tudo ali estava
quebrado. A filmadora com apenas um mês de uso estava jogada em cima de um
pequeno tanque com que certa vez Duda atropelara o cachorro do vizinho, no
canto estava o primeiro televisor de Duda, no qual ele enfiara o pé quando seu
programa favorito fora cancelado, havia uma grande gaiola de pássaros,
antigamente habitada por um papagaio que Duda trocara na escola por uma
espingarda de ar de verdade, e que estava guardada numa prateleira com a ponta
dobrada porque Duda se sentara em cima dela. Outras prateleiras estavam cheias
de livros. Eram as únicas coisas no quarto que pareciam nunca ter sido tocadas.
Lá de baixo veio o barulho de Duda gritando com a mãe:

— Eu não o quero lá... Eu preciso daquele quarto.... Mande-o sair:
Harry suspirou e se esticou na cama. Ontem ele teria dado qualquer coisa
para estar ali. Hoje, preferia estar no seu armário com aquela carta do que ali
encima sem ela. Na manhã seguinte, no café, todos estavam muito quietos. Duda
estava em estado de choque.
Berrara, batera no pai com a bengala, vomitara de propósito,
dera pontapés na mãe e atirara sua tartaruga pelo teto da estufa de plantas e nem
assim conseguira o quarto de volta. Harry pensava no dia anterior àquela hora,
desejando com amargura que tivesse aberto a carta no hall. Tio Válter e tia
Petúnia se entreolhavam, ameaçadores.
Quando o correio chegou tio Válter, que parecia estar tentando ser
agradável com Harry, fez Duda ir buscá-lo. Eles o ouviram bater nas coisas do
corredor com a bengala da Smeltings. Então ele gritou:
— Chegou outra!
Sr. H. Potter,
O Menor Quarto da Casa
Rua dos Alfeneiros 4...
Com um grito sufocado tio Válter saltou da cadeira e saiu correndo pelo
corredor, Harry logo atrás dele. Tio Válter teve que lutar e derrubar Duda no chão
para lhe tirar a carta, o que foi dificultado por Harry que agarrara o pescoço do tio
Válter por trás.
Depois de um minuto confuso de luta, em que todos levaram varias
bengaladas, tio Válter se endireitou, ofegante com a carta de Harry apertada na
mão.
— Vá para o seu armário, quero dizer, para o seu quarto — chiou para
Harry — Duda, saia, saia logo.
Harry deu voltas e mais voltas no novo quarto. Alguém sabia que ele se
mudara do armário e parecia saber que ele não recebera a primeira carta. Isto

significava com certeza que ia tentar outra. Outra vez? E desta vez ele tomaria
providências para que desse certo.
Tinha um plano.
O despertador consertado tocou às seis horas na manhã seguinte. Harry
desligou-o depressa e se vestiu em silêncio.
Não podia acordar os Dursley. Desceu as escadas sorrateiro sem acender
nenhuma luz.
Ia esperar pelo carteiro na esquina da Alfeneiros e receber primeiro as
cartas endereçadas ao numero quatro. Seu coração batia com força quando
atravessou sem ruído o corredor escuro até a porta de entrada.
— AAAAAIIIIIEEE!!!
Harry deu um salto no ar, pisara em alguma coisa grande e mole no
capacho, uma coisa viva!
As luzes se acenderam no primeiro andar e, para seu horror, Harry
percebeu que a coisa grande e mole tinha a cara do tio Válter estava dormindo
junto à porta de entrada em um saco de dormir para impedir que Harry fizesse
exatamente o que estava tentando fazer. Gritou com Harry quase meia hora e
depois lhe disse para ir preparar uma xícara de chá. Harry foi para a
cozinha, arrastando os pés, infeliz, e quando conseguiu voltar o correio tinha sido
entregue, bem no colo de tio Válter. Harry viu três cartas endereçadas em tinta
verde.
Tio Válter não foi trabalhar naquele dia. Ficou em casa e pregou a
portinhola para cartas.
— Entende — explicou à tia Petúnia por entre os lábios cheios pregos —
se eles não puderem entregar então terão de desistir.
— Não tenho muita certeza de que isto vai dar certo, Válter.
— Ah, a cabeça dessa gente funciona de maneira estranha, Petúnia eles
não são como você e eu — disse tio Válter tentando bater um prego com um
pedaço de bolo de frutas que tia Petúnia acabara de lhe trazer.

Na sexta-feira chegaram nada menos que doze cartas para Harry. Como
não passavam pela portinhola da correspondência, tinham sido empurradas por
baixo da porta, metidas pelos lados e algumas até forçadas pela janelinha do
banheiro no térreo. Tio Válter ficou em casa de novo. Depois de queimar todas,
apanhou martelo e pregos e fechou com tábuas as frestas das portas da frente e
dos fundos, de modo que ninguém podia sair.
Cantarolou "Pé ante pé no campo de tulipas" enquanto trabalhava, e se
assustava com qualquer ruído.
No sábado as coisas começam a fugir ao seu controle. Vinte e quatro
cartas acabaram entrando em casa enrolada e escondida em duas dúzias de ovos
que o leiteiro, muito confuso, entregara à tia Petúnia pela janela da sala de estar.
Enquanto tio Válter dava telefonemas furiosos para o correio e a leiteria tentando
encontrar alguém a quem se queixar, tia Petúnia picava as cartas no processador
de alimentos.
— Mas quem é que quer falar tanto assim com você? — Duda perguntou
espantado a Harry.
Na manhã do domingo, tio Válter sentou-se à mesa do café parecendo
cansado e um tanto doente, mas feliz.
— Não tem correio aos domingos — lembrou a todos, contente passando
geléia nos jornais, nada de cartas idiotas hoje...
Alguma coisa desceu chiando pela chaminé do fogão enquanto ele falava
e bateu com força em sua nuca. No instante seguinte, trinta ou quarenta cartas
saíram velozes da lareira como se fossem tiros. Os Dursley se abaixaram, mas
Harry deu um salto no ar para apanhar uma...
— Fora! Fora!
Depois que tia Petúnia e Duda tinham corrido para fora protegendo o rosto
com os braços, tio Válter bateu a porta. Eles podiam ouvir as cartas disparando
para dentro da cozinha, ricocheteando nas paredes e no chão.
— Já chega — disse tio Válter, tentando falar com calma, mas ao mesmo
tempo, arrancando tufos de pêlos dos bigodes. — Quero vocês aqui de volta em

cinco minutos prontos para sair. Vamos viajar. Ponham apenas algumas roupas
nas malas. Não quero discussão!
Ele parecia tão perigoso com metade dos bigodes arrancados que
ninguém se atreveu a discutir. Dez minutos depois eles tinham retirado as tábuas
para passar nas portas e estavam no carro, correndo em direção a estrada. Duda
fungava no banco traseiro, o pai tinha lhe dado um tapa na cabeça por atrasá-los
tentando empacotar a televisão, o vídeo e o computador na mochila esportiva.
Eles viajaram no carro. E viajaram. Nem tia Petúnia se atrevia a perguntar
aonde iam. De vez em quando tio Válter fazia uma curva fechada e seguia na
direção oposta por algum tempo.
— Para despistá-los... Despistá-los — resmungava sempre que fazia isso.
Não pararam para comer nem beber o dia inteiro. Quando a noite caiu
Duda estava uivando. Nunca tivera um dia tão ruim na vida. Estava com fome,
sentia falta dos cinco programas de televisão que queria assistir e nunca levara
tanto tempo sem explodir um alienígena no computador.
Tio Válter parou finalmente à porta de um hotel de aspecto sombrio na
periferia de uma grande cidade. Duda e Harry dividiram um quarto com duas
camas iguais e lençóis úmidos que cheiravam a mofo. Duda roncou, mas Harry
ficou acordado, sentado no peitoral da janela, espiando as luzes dos carros
que passavam enquanto pensava...
Comeram cereal velho e torradas com tomates enlatados frios no café da
manhã do dia seguinte. Tinham acabado de comer quando a proprietária do hotel
aproximou-se da mesa.
— Com licença, mas um dos senhores é o Sr. Harry Potter? É que eu
tenho umas cem dessas na recepção. — E ergueu uma carta para eles poderem
ler o endereço em tinta verde:
Sr. H. Potter
Quarto 17
Railview Hotel Cokewrth

Harry tentou pegar a carta, mas tio Válter afastou sua mão. A mulher ficou
olhando.
— Eu recebo as cartas — disse tio Válter, levantando-se depressa e
seguindo a mulher que se retirava do salão de refeições.
— Não seria melhor simplesmente irmos para casa, querido? — tia
Petúnia sugeriu timidamente horas depois, mas tio Válter não parecia ouvi-la.
Exatamente o que andava procurando ninguém sabia. Ele os levou até o meio de
uma floresta, desceu do carro, espiou a volta, sacudiu a cabeça, tornou a
embarcar no carro e partiram outra vez. A mesma coisa aconteceu no meio de
um campo arado, no meio de uma ponte pênsil e no alto de um edifício garagem.
— Papai enlouqueceu, não foi? — Duda perguntou, cansado, à tia Petúnia
no fim daquela tarde. Tio Válter estacionara no litoral, passara a chave no carro
com todos dentro e desaparecera.
Começou a chover. Grandes gotas batiam no teto do carro.
Duda choramingou.
— É segunda-feira — falou à mãe. O Grande Humberto vai se apresentar
hoje à noite. Quero estar em algum lugar que tenha televisão.
Segunda-feira. Isto lembrou a Harry uma coisa. Se era segunda-feira e em
geral podia-se confiar que Duda soubesse os dias da semana, por causa da
televisão, então o dia seguinte, terça-feira, era o décimo primeiro aniversário de
Harry.
Naturalmente seus aniversários não eram lá muito divertidos, no ano
anterior, os Dursley tinham-lhe dado um cabide e um par de meias velha do tio
Válter. Ainda assim, não se fazia onze anos todos os dias.
Tio Válter voltou sorrindo. Carregava um pacote comprido e fino e não
respondeu à tia Petúnia quando ela perguntou o que comprara.
— Encontrei o lugar perfeito! — falou. — Vamos! Saiam todos!
Fazia muito frio do lado de fora do carro. Tio Válter apontou para o que
parecia ser um grande rochedo no meio do mar.

Encarrapitado no alto do rochedo havia o casebre mais miserável que se
pode imaginar. Uma coisa era certa, ali não havia televisão.
— Estão anunciando uma tempestade para hoje! — disse tio Válter alegre,
batendo palmas. — E este senhor teve a bondade de concordar em nos emprestar
seu barco!
Um homem desdentado vinha descansadamente em direção a eles, e
apontava com um sorriso muito maldoso para um barco a remos velho que subia e
descia nas águas cinza-grafite lá embaixo.
— Já comprei algumas rações para nós — disse tio Válter — portanto,
todos a bordo!
Fazia muito frio no barco. Salpicos de água gelada do mar escorriam pelos
pescoços deles e um vento cortante fustigava seus rostos. Depois do que
pareceram horas eles chegaram ao rochedo, onde tio Válter, escorregando, levouos
ate a casa em ruínas.
O interior era horrível, cheirava a algas marinhas, o vento assobiava pelas
frestas nas paredes de tábuas e a lareira estava úmida e vazia. Havia apenas dois
quartos.
Afinal as rações de Tio Válter eram uma embalagem de cereal para cada
um e quatro bananas. Ele tentou acender a lareira, mas a embalagem de cereal
apenas fumegou e carbonizou.
— Aquelas cartas viriam a calhar agora, hein? — disse ele animado.
Estava de muito bom humor. Obviamente achava que ninguém teria
chance de alcançá-lo ali, durante uma tempestade, para entregar cartas. Harry
concordava intimamente, embora este pensamento não o animasse nem um
pouco.
Quando a noite caiu, a tempestade prometida desabou ao redor deles. A
espuma das altas ondas chapinhava nas paredes do casebre e um vento
ameaçador sacudia as janelas imundas. Tia Petúnia encontrou uns cobertores
mofados no segundo quarto e preparou uma cama para Duda ao sofá comido
pelas traças. Ela e tio Válter foram se deitar na cama cheia de calombos ao lado

e deixaram Harry procurar a parte mais macia do assoalho e se enrolar no
cobertor mais rasgado e ralo.
A tempestade rugia cada vez com maior ferocidade à medida que a noite
avançava. Harry não conseguia dormir. Tremia e revirava, tentando encontrar uma
posição confortável, seu estômago roncando de fome. Os roncos de Duda eram
abafados pela trovoada que começou por volta da meia-noite. O
mostrador luminoso do relógio de Duda, que estava pendurado para fora do sofá
em seu pulso gordo, informava a Harry que dentro de dez minutos ele completaria
onze anos. Deitado, ele viu seu aniversário se aproximar, perguntando-se se os
Dursley se lembrariam, perguntando-se onde estaria o remetente das
cartas agora.
Faltavam cinco minutos. Harry ouviu alguma coisa estalar lá fora. Desejou
que o teto não caísse, embora quem sabe conseguisse se esquentar se isto
acontecesse. Quatro minutos.
Talvez a casa na Rua dos Alfeneiros estivesse tão abarrotada de cartas
que quando voltasse ele pudesse surrupiar uma.
Três minutos. Seria o mar batendo tão forte na rocha? E faltavam dois
minutos, que barulho esquisito de trituração era aquela? Será que a rocha estava
se desintegrando no mar?
Mais um minuto e ele completaria onze anos. Trinta segundos... Vinte...
Dez... Nove... Talvez acordasse Duda, só para aborrecê-lo... Três... Dois... Um...
O casebre todo estremeceu e Harry sentou-se reto, arregalando os olhos
para a porta. Havia alguém lá fora, que batia querendo entrar.

CAPÍTULO QUATRO
O Guardião das Chaves

BUM!
Bateram outra vez. Duda acordou assustado.
— Onde está o canhão? — perguntou abobado.
Ouviam coisa cair atrás deles e tio Válter entrou derrapando pela sala.
Trazia um rifle nas mãos, agora sabiam o que era aquele pacote fino e comprido
que ele carregava.
— Quem está ai? — gritou. — Olha que estou armado! — Silêncio. E em
seguida...
TRAM!
À porta levou uma pancada tão violenta que se soltou das dobradiças e,
com um baque ensurdecedor, desabou no chão.
Um homem gigantesco estava parado ao portal. Tinha o
rosto completamente oculto por uma juba muito peluda e uma barba selvagem e
desgrenhada, mas dava para se ver seus olhos, luzindo como besouros negros
debaixo de todo aquele cabelo.
O gigante espremeu-se para entrar no casebre, curvando-se de modo que
a cabeça apenas roçou o teto. Abaixou-se, apanhou a porta e tornou a encaixá-la
sem esforço no portal O ruído da tempestade lá fora diminuiu um pouco. Ele se
virou para encarar todos.
— Não poderia preparar uma xícara de chá para nós, poderia? Não foi
uma viagem fácil...
E dirigiu-se ao sofá onde Duda estava paralisado de medo.
— Chegue para lá, gordão — disse o estranho.

Duda soltou um guincho e correu a se esconder atrás da mãe, que parara
encolhida, aterrorizada, atrás de tio Válter.
— Ah, e aqui está o Harry! — disse o gigante.
Harry ergueu os olhos para a cara feroz e selvagem em sombras e viu que
os olhos de besouro se enrugavam em um sorriso.
— A última vez que o vi, você era um bebê — disse o gigante. — Você
parece muito com o seu pai, mas tem os olhos da sua mãe.
Tio Válter fez um som estranho e rascante.
— Exijo que saia imediatamente! — disse — O senhor invadiu minha
casa!
— Ah, cala a boca, Dursley seu cara de passa — disse o gigante, e
esticou o braço para trás do sofá, arrancando a arma das mãos de tio Válter,
vergou-a no meio como se fosse de borracha e atirou-a a um canto da sala.
Tio Válter fez outro som esquisito, como um camundongo sendo pisado.
— Em todo caso, Harry — disse o gigante, dando as costas para os
Dursley —, feliz aniversário para você. Tenho uma coisa para você aqui, talvez
tenha sentado nela sem querer, mas o gosto continua bom.
De um bolso interno do casaco preto ele tirou uma caixa meio amassada.
Harry abriu, com os dedos trêmulos. Dentro havia um grande e pegajoso bolo de
chocolate com a frase Feliz Aniversário escrita em glacê verde.
Harry olhou para o gigante. Quis dizer obrigado, mas as palavras se
perderam a caminho da boca, e em lugar disso o que disse foi:
— Quem é você?
O gigante deu uma risada abafada.
— É verdade, não me apresentei. Rúbeo Hagrid, Guardião das Chaves e
das Terras de Hogwarts.
Estendeu uma mão enorme e sacudiu o braço inteiro de Harry.
— E que tal o chá, hein? — perguntou esfregando as mãos. — Eu não
diria não a uma pessoa mais forte, se é que você me entende.

Seus olhos bateram na lareira vazia em que ficara o pacote carbonizado
de cereal e ele soltou uma risadinha desdenhosa. Curvou-se para a lareira, não
virão o que ele estava fazendo, mas quando se afastou um segundo depois, havia
dentro dela um clarão ribombante. O fogo estrondoso encheu todo o casebre
úmido com sua luz tremeluzente e Harry sentiu o calor envolvê-lo como se tivesse
mergulhado em um banho quente.
O gigante se recostou no sofá, que afundou um pouco sob o seu peso, e
começou a tirar coisas de todo gênero dos bolsos do casaco: uma chaleira de
cobre, uma embalagem amassada de salsichas, um espeto, um bule de chá,
várias xícaras lascadas e uma garrafa de um líquido âmbar de que ele tomou um
gole antes de começar a preparar o chá. Logo o casebre se encheu com o ruído e
o cheiro de salsichas fritas. Ninguém disse nada enquanto o gigante trabalhava,
mas assim que ele empurrou as primeiras salsichas gordas e suculentas,
ligeiramente queimadas, do espeto, Duda se mexeu. Tio Válter disse com rispidez:
— Não toque em nada que ele lhe der, Duda.
O gigante deu uma risadinha ameaçadora.
— Esse pudim de banha do seu filho não precisa engordar mais Dursley,
não se preocupe.
E passou as salsichas para Harry, que estava tão faminto e nunca provara
nada tão maravilhoso, mas ainda assim não conseguia tirar os olhos do gigante.
Finalmente, como ninguém parecia disposto a explicar nada, ele disse:
— Me desculpe, mas continuo sem saber realmente quem você é.
O gigante tomou um grande gole de chá e limpou a boca com as costas
da mão.
— Chame-me de Rúbeo, é como todos me chamam. E como lhe disse,
sou o guardião das chaves de Hogwarts, você sabe tudo sobre Hogwarts, é claro.
— Ah, não — disse Harry. Hagrid pareceu chocado.
— Sinto muito — apressou-se Harry a dizer.
— Sente muito? — vociferou Hagrid, virando-se para encarar os Dursley,
que tinham recuado para as sombras. — Eles é que deviam sentir muito! Eu sabia

que você não estava recebendo as cartas, mas nunca pensei que nem ao menos
sabia da existência de Hogwarts, para apelar! Você nunca se perguntou onde foi
que seus pais aprenderam tudo?
— Tudo o quê? — perguntou Harry
— TUDO O QUÊ? — berrou Hagrid — Ora espere aí um segundo!
Ele se levantara de um salto. Na raiva parecia encher o casebre todo. Os
Dursley se encolhiam contra a parede.
— Vocês vão querer me dizer — rosnou para os Dursley — que este
menino, este menino! Não sabe nada, de NADA?
Harry achou que a coisa estava indo longe demais. Afinal
tinha freqüentado a escola e suas notas não eram ruins.
— Eu sei alguma coisa — falou — Sei, sabe, matemática e outras coisas.
Mas Hagrid dispensou-o com um abano de mão e disse:
— Do nosso mundo, quero dizer. Seu mundo. Meu mundo. O mundo dos
seus pais.
— Que mundo?
Hagrid parecia preste a explodir
— DURSLEY! — urrou ele.
Tio Válter, que ficara muito pálido, murmurou alguma coisa ininteligível
Hagrid olhou alucinado para Harry.
— Mas você deve saber quem foram sua mãe e seu pai — disse — Quero
dizer, eles são famosos. Você é famoso.
— Quê? Meu pai e minha mãe eram famosos?
— Você não sabe... Você não sabe... — Hagrid correu os dedos pelos
cabelos, fixando em Harry um olhar perplexo. — Você não sabe quem é? —
perguntou finalmente.
Tio Válter de repente encontrou a voz.
— Pare! – ordenou — Pare agora mesmo! Eu o proíbo de contar qualquer
coisa ao menino!

Um homem mais corajoso do que Dursley teria se intimidado com o olhar
furioso que Hagrid lhe deu, quando Hagrid falou, cada sílaba tremia de raiva.
— VOCÊ NUNCA CONTOU? NUNCA CONTOU O QUE DUMBLEDORE
DEIXOU ESCRITO NAQUELA CARTA PARA ELE? EU ESTAVA LÁ! EU VI
DUMBLEDORE DEIXAR A CARTA, DURSLEY! E VOCÊ ESCONDEU DELE
TODOS ESSES ANOS?
— Escondeu o que de mim? — perguntou Harry ansioso.
— PARE! EU O PROÍBO! — gritou tio Válter em pânico.
Tia Petúnia deixou escapar um grito sufocado de horror.
— Ah, vão tomar banho, vocês dois — disse Hagrid. — Harry, você e um
bruxo.
O casebre mergulhou em silêncio. Ouviam-se apenas o mar e o assobio
do vento.
— Eu sou o quê? — ofegou Harry.
— Um bruxo, é claro — repetiu Hagrid, recostando-se no sofá, que gemeu
e afundou ainda mais —, e um bruxo de primeira, eu diria, depois que receber um
pequeno treino. Com uma mãe e um pai como os seus, o que mais você poderia
ser? E acho que já está na hora de ler a sua carta.
Harry estendeu a mão finalmente para receber o envelope meio amarelo,
endereçado em tinta verde para:
Sr. H. Potter,
O Assoalho,
Casebre sobre Rochedo,
O Mar.
Ele puxou a carta e leu,
ESCOLA DE MAGIA E BRUXARIA HOGWARTS
Diretor: Alvo Dumbledore

(Ordem de Merlin, Primeira Classe, Grande Feiticeiro,
Bruxo Chefe, Cacique Supremo, Confederação Internacional de
Bruxos).
Prezado Sr. Potter,
Temos o prazer de informar que V.Sa. tem uma vaga na
Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Estamos anexando uma
lista dos livros e equipamentos necessários. O ano letivo começa em
1º de setembro. Aguardamos sua coruja até 31 de julho, no mais
tardar.
Atenciosamente,
Minerva McConagall.
Diretora Substituta.
As perguntas explodiam na cabeça de Harry como fogos de artifício, e ele
não conseguia decidir o que perguntar primeiro. Passados alguns minutos,
gaguejou.
— O que querem dizer com "estão aguardando a minha coruja"?
— Gárgulas galopantes! Isto me lembra uma coisa — disse Hagrid,
batendo a mão na testa com força suficiente para derrubar um cavalo, e de outro
bolso interno do casaco tirou uma coruja, uma coruja de verdade, viva, meio
arrepiada, uma longa pena e um rolo de pergaminho. Com a língua entre os
dentes, ele rabiscou um bilhete que Harry pôde ler de cabeça para baixo:
"Prezado Sr. Dumbledore
Entreguei a carta a Harry. Vou levá-lo amanhã para comprar
o material. O tempo está horrível. Espero que o senhor esteja bem.
Hagrid.”

Hagrid enrolou o pergaminho, entregou-o à coruja, que o prendeu no bico,
depois ele foi até a porta e lançou a ave na tempestade. Quando voltou, sentou-se
como se aquilo fosse tão normal quanto pegar o telefone.
Harry percebeu que sua boca se abrira e fechou-a rapidamente.
— Onde é que eu estava? — disse Hagrid, mas naquele momento, tio
Válter, ainda cor de cera, mas parecendo muito furioso, adiantou-se até a luz da
lareira.
— Ele não vai — falou.
Hagrid resmungou.
— Eu gostaria de ver um grande trouxa como você impedi-lo. —
respondeu.
— Um o quê? — perguntou Harry interessado.
— Um trouxa — disse Hagrid — é como chamamos gente que não é
mágica como nós. E você teve o azar de ser criado na família dos maiores trouxas
que já vi na vida.
— Juramos quando o aceitamos que poríamos um fim nessa bobagem —
disse tio Válter —, juramos que erradicaríamos isso nele. Bruxo, francamente!
— Você sabia? — perguntou Harry. — Você sabia que sou um... Bruxo?
— Sabia! — guinchou tia Petúnia de repente. — Sabia! Claro
que sabíamos! Como poderia não ser, a maldita da minha irmã sendo o que era?
Ah, ela recebeu uma carta igual a essa e desapareceu, foi para aquela... Aquela
escola, e voltava para casa nas férias com os bolsos cheios de ovas de sapo,
transformando xícaras em ratos. Eu era a única que a via como ela era. Um aborto
da natureza! Mas para minha mãe e meu pai, ah não era Lílian isso e Lílian
aquilo, tinham orgulho de ter uma bruxa na família!
Ela parou para suspirar profundamente e aí continuou seu discurso.
Parecia que estava querendo dizer aquilo havia anos.
— Então ela conheceu Potter na escola e eles saíram de casa, casaram e
tiveram você, e é claro que eu sabia que você ia ser igual, esquisito, anormal e
então ela vai e me faz o favor de se explodir e nos deixar entalados com você!

Harry ficara muito branco. Assim que encontrou a voz, disse:
— Se explodir? Você me disse que eles morreram num acidente de carro!
— ACIDENTE DE CARRO! — rugiu Hagrid erguendo-se com tanta raiva
que os Dursley voltaram correndo para o canto da sala — Como é que um
acidente de carro poderia matar Lílian e Tiago Potter! Isto é um absurdo! Um
escândalo! E Harry Potter não conhecer a própria história, quando qualquer garoto
no nosso mundo conhece o nome dele!
— Mas por quê? O que aconteceu? — perguntou Harry ansioso.
A raiva desapareceu do rosto de Hagrid. Ele pareceu repentinamente
aflito.
— Eu nunca esperei isso — disse numa voz contida e preocupada. — Eu
não fazia idéia do quanto você desconhecia, quando Dumbledore me disse que eu
poderia ter problemas para encontrá-lo. Ah, Harry, não sei se sou a pessoa certa
para lhe contar, mas alguém tem de contar, você não pode viajar para Hogwarts
sem saber.
Ele lançou um olhar feio aos Dursley.
— Bom, é melhor você saber o que eu puder lhe contar, mas não posso
lhe contar tudo, é um grande mistério, algumas partes.
Ele se sentou, fitou o fogo durante alguns segundos e então falou:
— Começa, eu acho, com.. Com uma pessoa chamada, mas é incrível
você não saber o nome dele, todo o mundo no nosso mundo sabe...
— Quem?
— Bom... Não gosto de dizer o nome dele se puder evitar. Ninguém gosta.
— Por que não?
— Gárgulas vorazes, Harry, as pessoas ainda estão apavoradas. Droga,
como é difícil. Olha, havia um bruxo que virou... Mau. Tão mau quanto alguém
pode virar. Pior. Pior do que o pior. O nome dele era...
Hagrid engoliu em seco, mas não conseguiu dizer nada.
— E se você escrevesse? — sugeriu Harry.

— Não, não sei soletrar o nome dele. Está bem, Voldemort. — Hagrid
estremeceu. — Não me faça repetir. Em todo o caso, esse... Esse bruxo faz uns
vinte anos agora, começou a procurar seguidores. E conseguiu alguns por medo,
outros porque queriam ter um pouco do poder dele, sim, porque ele estava
ficando poderoso. Dias funestos Harry, ninguém sabia em quem confiar, ninguém
se atrevia, a ficar amigo de bruxas ou bruxos desconhecido. Coisas horríveis
aconteciam. Ele estava tomando o poder. E claro que algumas pessoas se
opuseram a ele, e ele as matou. Terrível. Um dos únicos lugares seguros que
restaram foi Hogwarts. Acho que Dumbledore era o único de quem Você-Sabe-
Quem tinha medo. Não ousou se apoderar da escola, não no começo, pelo
menos.
Ora sua mãe e seu pai eram os melhores bruxos que eu já conheci.
Primeiros alunos em Hogwarts no seu tempo! Suponho que o mistério era por que
Você-Sabe-Quem nunca tentou convencer os dois a se aliar a ele antes...
Provavelmente sabia que eram muito chegados a Dumbledore para querer alguma
coisa com o lado das Trevas. Talvez ele achasse que podia convencê-los... Talvez
quisesse tirar os dois do caminho. Só o que sabemos é que ele apareceu na vila
em que vocês estavam morando, num dia das bruxas, faz dez anos. Na época
você só tinha um ano de idade. Ele foi à sua casa e... E...
Hagrid puxou depressa um lenço muito sujo e manchado e assoou o nariz,
fazendo o barulho de uma buzina de nevoeiro.
— Desculpe — disse. — Mas é muito triste, conheci sua mãe e seu pai e
não podia existir gente melhor, em todo o caso... Você-Sabe-Quem matou os dois.
E então, e esse é o verdadeiro mistério da coisa, ele tentou matar você. Queria
fazer o serviço completo, acho, ou então tinha começado a gostar de matar. Mas
não conseguiu. Você nunca se perguntou como arranjou essa marca na testa?
Isso não foi um corte normal. Isso é o que se ganha quando um feitiço poderoso e
maligno atinge a gente, destruiu os seus pais e até a sua casa, mas não fez efeito
em você, e é por isso que você é famoso, Harry. Ninguém nunca sobreviveu
depois que ele decidia matá-lo, ninguém a não ser você, e ele já havia matado

alguns dos melhores bruxos da época, os McKinnon, os Bone, os Priuet, e você
era apenas um bebê, e sobreviveu.
Algo muito doloroso passou pela cabeça de Harry. Quando a história de
Hagrid ia terminando ele viu de novo um lampejo ofuscante de luz verde, com
mais clareza do que se lembrava antes e se lembrou de mais uma coisa, pela
primeira vez na vida, uma risada alta, fria e cruel.
Hagrid o observava com tristeza.
— Eu mesmo o retirei da casa destruída, por ordem de Dumbledore.
Trouxe você para essa gente...
— Um monte de baboseiras antigas — disse tio Válter.
Harry se assustou, quase esquecera que os Dursley estavam ali. Tio
Válter, sem dúvida, tinha recuperado a coragem. Olhava ameaçador para Hagrid e
tinha os punhos fechados.
— Agora, ouça aqui, moleque — vociferou —, aceito que você seja meio
estranho, provavelmente nada que uma boa surra não pudesse ter curado, e
quanto aos seus pais, bem, eles eram excêntricos, não há como negar e o mundo
está melhor sem eles, receberam o que mereciam por se meter com essa gente
dada a bruxarias, foi o que previ, sempre soube que iam acabar mal.
Mas naquele instante, Hagrid ergueu-se de um salto do sofá e puxou um
guarda-chuva cor-de-rosa e arrebentado de dentro do casaco. Apontou-o como
uma espada para tio Válter, e disse:
— Estou lhe avisando, Dursley, estou lhe avisando, nem mais uma
palavra...
Ameaçado de ser furado pela ponta de um guarda-chuva por um gigante
barbudo, a coragem de tio Válter fraquejou outra vez, ele se achatou contra a
parede e ficou em silêncio.
— Assim está melhor — disse Hagrid, arquejando e tornando a se sentar
no sofá, que desta vez afundou de vez até o chão.
Harry, nesse meio tempo, continuava a ter perguntas e a fazer centenas
dela.

— Mas o que aconteceu ao Vol... Desculpe... Quero dizer, Você-Sabe-
Quem?
— Boa pergunta, Harry. Desapareceu. Sumiu. Na mesma noite em que
tentou matar você. O que faz você ainda mais famoso. É o maior mistério,
entende... Ele estava ficando cada dia mais poderoso, porque foi embora? Tem
quem diga que ele morreu. Besteira, na minha opinião. Não sei se ainda tinha
humanidade suficiente para morrer. Tem quem diga que ainda está lá fora
esperando, ou coisa parecida, mas não acredito. Gente que estava do lado dele
voltou para o nosso. Uns pareciam que estavam saindo de uma espécie de transe.
Acho que não teriam feito isso se ele fosse voltar. A maioria de nós acha que ele
ainda anda por ai, mas perdeu os poderes. Está fraco demais para continuar.
Porque alguma coisa em você acabou com ele, Harry. Aconteceu alguma coisa,
naquela noite, com que ele não estava contando, eu não seio que foi, ninguém
sabe, mas alguma coisa em você o aleijou, para valer.
Hagrid fitou Harry com calor e respeito iluminando seus olhos, mas Harry,
ao invés de se sentir contente e orgulhoso, teve a certeza de que tinha havido um
terrível engano. Bruxo? Ele?
Como era possível? Passara a vida dominado por Duda e infernizado pela
tia Petúnia e pelo tio Válter, se era realmente um bruxo, por que eles não tinham
se transformado em sapos toda vez que tentaram prendê-lo no armário? Se uma
vez derrotara o maior feiticeiro do mundo, como é que Duda sempre pudera chutálo
para cá e para lá como se fosse uma bola de futebol?
— Rúbeo — disse calmo — acho que você deve ter cometido um engano.
Acho que não posso ser um bruxo.
Para sua surpresa, Hagrid deu uma risadinha abafada.
— Não é bruxo, hein? Nunca fez nada acontecer quando
estava apavorado ou zangado?
Harry olhou para o fogo. Pensando bem... Cada coisa estranha que
deixara os seus tios furiosos tinha acontecido quando ele, Harry estava perturbado
ou com raiva... Perseguido pela turma de Duda, pusera-se de repente fora do seu

alcance, receoso de ir para a escola com aquele corte ridículo, conseguira fazer os
cabelos crescerem de novo, e da última vez que Duda batera nele, não fora à forra
sem perceber que estava fazendo isto? Não mandara uma cobra atacá-lo?
Harry olhou para Hagrid, sorrindo, e viu que ele ria abertamente para ele.
— Viu? — disse Hagrid — Harry Potter não é bruxo? Espere, você vai ser
famoso em Hogwarts.
Mas tio Válter não ia ceder sem brigar.
— Eu não já disse que ele não vai? — sibilou. — Ele vai para a escola
secundária local e vai me agradecer por isso. Li aquelas cartas e dizem que ele
precisa de um monte de lixo, livros de feitiços, varinhas mágicas e...
— Se ele quiser ir, um trouxão como você não vai poder impedir. —
resmungou Hagrid raivoso. — Impedir o filho de Lílian e Tiago Potter de ir para
Hogwarts! Você enlouqueceu. Ele está inscrito desde que nasceu. Vai freqüentar a
melhor escola de bruxos e bruxedos do mundo. Sete anos lá e ele nem vai
se reconhecer. Vai estudar com garotos iguais a ele, para variar, e vai estudar
com o maior mestre que Hogwarts já teve, Alvo Dumbledore.....
— NÃO VOU PAGAR A NENHUM VELHO BIRUTA E PATETA PARA
ENSINÁ-LO A FAZER MÁGICAS! — gritou tio Válter.
Mas ele finalmente fora longe demais. Hagrid agarrou o guarda-chuva e
girou por cima da cabeça.
— NUNCA — trovejou — INSULTE... ALVO DUMBLEDORE NA... MINHA
FRENTE!
E girou o guarda-chuva no ar baixando-o até apontar para Duda, houve
um lampejo de luz violeta, o estalo de uma bombinha, um grito agudo e, no
segundo seguinte, Duda estava dançando no mesmo lugar com as mãos
apertando a barriga banhuda, guinchando de dor. Quando Duda virou de costas,
Harry viu um rabo de porco enroscado saindo de um buraco nas calças dele.
Tio Válter urrou. Puxando tia Petúnia e Duda para o quarto, lançou um
último olhar aterrorizado a Hagrid e bateu a porta ao entrar.
Hagrid olhou para o guarda-chuva e coçou a barba.

— Não devia ter perdido as estribeiras — disse arrependido —, mas em
todo o caso saiu errado. Queria transformá-lo em porco, mas acho que ele já
parecia tanto com um que não pude fazer muita coisa.
E olhou de esguelha para Harry, por baixo das sobrancelhas peludas.
— Fico agradecido se não contar isso para ninguém em Hogwarts —
falou. – Não... Hum... Tenho permissão para fazer mágicas, rigorosamente
falando. Permitiram que eu fizesse alguma coisa para seguir você e entregar as
cartas e coisas assim, uma das razões por que eu queria tanto este trabalho.
— Porque você não pode fazer mágica? — perguntou Harry.
— Ah, bom... Eu estive em Hogwarts, mas.. Hum... Fui expulso, para falar
a verdade. No terceiro ano. Eles partiram a minha varinha ao meio e tudo o mais.
Mas Dumbledore me deixou ficar como guarda-caça. Grande sujeito o
Dumbledore.
— Por que você foi expulso?
— Já está ficando tarde e temos muito que fazer amanhã — disse Hagrid
em voz alta. — Temos que ir à cidade, comprar os seus livros e etc.
Ele tirou o grosso casaco preto e atirou-o a Harry.
— Pode ficar com ele. Não se assuste se ele se mexer um pouco acho
que ainda tenho uns ratos do campo em um dos bolsos.

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