terça-feira, 1 de março de 2011

Desventuras em Série - Mau Começo - Capítulos 8 ao 13

CAPÍTULO
OITO


Klaus passou a noite inteira lendo, o que era algo que ele normalmente adorava fazer. Quando seus pais ainda estavam vivos, Klaus costumava levar uma lanterna para a cama, se esconder debaixo das cobertas e ler até não conseguir mais manter os olhos abertos. Certas manhãs, seu pai entrava no quarto para acordá-lo e encontrava Klaus adormecido com a lanterna numa das mãos e o livro na outra. Mas nessa noite de que estamos tratando, é claro, as circunstâncias eram muito diferentes.
Klaus se postou junto à janela, apertando os olhos para ler, à tênue luz da lua por ela filtrada, o livro que contrabandeara. Vez por outra dava uma espiada nas irmãs. Violet estava dormindo de modo descontínuo - expressão que aqui significa "mexendo-se e virando-se com muita freqüência”' - na cama com aqueles calombos todos, e Sunny se envolvera de tal maneira no amontoado de cortinas que ficara parecendo uma trouxinha de pano. Klaus não havia contado nada do livro para as irmãs, porque não queria lhes dar falsas esperanças. Não tinha certeza se o livro os ajudaria mesmo a sair do seu dilema.
Era um livro de texto longo e difícil, e Klaus foi ficando cada vez mais cansado à medida que transcorria a noite. Seus olhos às vezes se fechavam. Pegou-se lendo a mesma frase de novo, e de novo, e de novo. Pegou-se lendo a mesma frase de novo, e de novo, e de novo. Pegou-se lendo a mesma frase de novo, e de novo, e de novo. Mas aí lhe vinha à lembrança como haviam brilhado as mãos de gancho do colega do conde Olaf na biblioteca, e ele então as imaginava dilacerando sua carne, e mais que depressa acordava e retomava a leitura. Encontrou um pedaço de papel que não prestava para nada, rasgou-o em pequenas tiras e as aproveitou para marcar passagens significativas do livro.
Quando a luz de fora passou a se tornar acinzentada com a aproximação do dia, Klaus já havia descoberto tudo o que precisava saber. Suas esperanças se levantaram junto com o sol. Finalmente, logo que os primeiros pássaros começaram a cantar, Klaus caminhou na ponta dos pés até a porta do quarto, abriu-a devagarinho, com o máximo cuidado para não tirar do seu sono sempre incompleto Violet e Sunny (esta ainda embrulhada no amontoado de cortinas), e seguiu para a cozinha, onde sentou e ficou à espera do conde Olaf.
Não precisou esperar muito até ouvir os passos do conde descendo atropeladamente os degraus da torre. Ao entrar na cozinha e ver Klaus sentado à mesa, o conde Olaf deu um sorriso oblíquo, expressão que aqui significa "sorriu de maneira inamistosa e afetada”.
“Olá, órfão”, disse ele. “Acordou cedo.”
O coração de Klaus batia acelerado, mas ele se sentiu calmo na aparência, como se estivesse coberto por uma couraça invisível. "Passei a noite em claro", disse, "lendo este livro." Pôs o livro sobre a mesa para que Olaf pudesse vê-lo. "Intitula-se Direito
Nupcial", disse Klaus, "e me ensinou muitas coisas interessantes.”
O conde Olaf pegara uma garrafa de vinho para se servir da bebida como café da manhã, mas assim que viu o livro, interrompeu o que estava fazendo e sentou-se.
''A palavra nupcial", disse Klaus, "significa 'relativo a casamento.’
"Eu sei o que a palavra significa", resmungou o conde. "Onde foi que você arranjou esse livro?"
"Na biblioteca da juíza Strauss", disse Klaus."Mas isso não interessa. O que interessa é que descobri qual é o seu plano."
"É mesmo?", disse o conde Olaf, erguendo sua sobrancelha tipo duas-em-uma. "Pois então me diga qual é o meu plano, seu fedelho atrevido."
Klaus ignorou o insulto e abriu o livro na página marcada por uma das tiras de papel. "'As leis sobre casamento nesta comunidade são muito simples''', ele leu em voz alta. "'Tudo o que se exige é o seguinte: a presença de um juiz, uma declaração de sim pronunciada pela noiva e pelo noivo, e a assinatura pelo próprio punho da noiva de um documento explanatório.'" Klaus baixou o livro e observou para o conde Olaf: "Se minha irmã disser 'sim' e assinar um pedaço de papel na presença da juíza Strauss, estará legalmente casada. Essa peça que o senhor está montando não deveria se chamar O casamento maravilhoso, mas O casamento ameaçador. O senhor não vai se casar com Violet no sentido figurado... o senhor vai se casar com ela literalmente! Essa peça não é um faz-de-conta; é um compromisso real e amparado na lei".
O conde Olaf deu uma gargalhada grosseira. "Sua irmã não tem idade para se casar."
"Ela pode se casar se tiver a permissão de seu tutor legal agindo in loco parentis", disse Klaus. "Li isso também. Não adianta querer me enganar."
"Por que razão do mundo eu haveria de querer me casar com sua irmã?", perguntou o conde Olaf. "Não resta dúvida de que ela é muito bonita, mas um homem como eu tem condições de conseguir as mulheres bonitas que quiser, e quantas quiser."
Klaus passou a um capitulo diferente do Direito Nupcial. “Um esposo legal”, elu em voz alta, “tem o direito de controle sobre qualquer dinheiro em cuja posse se ache sua esposa legal.'" Klaus encarou o conde Olaf com expressão triunfante. "O senhor vai se casar com minha irmã para ter o controle da fortuna dos Baudelaire! Ou, pelo menos, foi o que o senhor planejou fazer. Mas quando eu mostrar essa informação ao sr. Poe, sua peça não será apresentada, e o senhor irá para a cadeia!"
Os olhos do conde Olaf brilharam com intensidade muito maior, mas ele continuou a sorrir obliquamente para Klaus. Isso foi surpreendente. Klaus esperava que, quando lhe anunciasse o que sabia, aquele homem horrível ficasse furioso, até violento. Afinal de contas, ele não havia explodido daquela forma absurda só porque queria rosbife em vez de macarrão à puttanesca? Sem sombra de dúvida, a descoberta de seu plano teria que enraivecê-lo muito mais. No entanto, o conde Olaf continuou sentado, com a mesma calma de quem estivesse discutindo se iria chover ou fazer sol.
"Acho que você me pegou direitinho", disse Olaf simplesmente. "Tem razão: eu vou para a cadeia enquanto você e as órfãs ganham sua liberdade. Mas então por que não sobe ao quarto e acorda suas irmãs? Elas vão ficar encantadas, tenho certeza, quando souberem de sua grande vitória sobre minhas maquinações perversas.
Klaus olhou bem de perto para o conde Olaf, que continuava sorrindo como se houvesse acabado de contar uma piada inteligente. Por que não ameaçava Klaus num acesso de fúria, ou não arrancava os próprios cabelos no auge da frustração, ou não corria para fazer as malas e fugir? As coisas absolutamente não estavam acontecendo como Klaus tinha previsto.
"Pois bem, eu vou contar para as minhas irmãs", disse ele, e voltou para o quarto. Violet continuava cochilando na cama, e Sunny continuava embrulhada nas cortinas. Klaus acordou primeiro Violet.
"Passei a noite toda em claro, lendo", disse Klaus de um só fôlego, assim que a irmã abriu os olhos, "e descobri o que o conde Olaf está aprontando. a plano dele é casar-se com você de verdade, quando você e a juíza Strauss e todos estiverem pensando que tudo não passa de uma peça, e uma vez que ele se torne seu marido, terá controle sobre o dinheiro de nossos pais e fará conosco o que bem entender."
"Mas como ele pode se casar comigo de verdade?", perguntou Violet. "É só uma peça."
"A única exigência legal para o casamento nesta comunidade", explicou K1aus, erguendo bem visível o Direito nupcial a fim de mostrar a sua irmã onde colhera a informação, "é você dizer 'sim' e assinar um documento por seu próprio punho na presença de um juiz... como a juíza Strauss!"
"Mas não tenho idade suficiente para casar, é claro, disse Violet. “Tenho só catorze anos.”
"Moças menores de dezoito anos", disse Klaus, correndo os dedos pelas folhas do livro até chegar a uma outra página marcada, "podem se casar se tiverem a permissão de seu tutor legal. No caso, o conde Olaf."
"Oh, não!", exclamou Violet. "O que podemos fazer?"
"Podemos mostrar isto ao sr. Poe", disse Klaus, apontando para o livro, "e ele finalmente vai acreditar quando dizemos que o conde Olaf não é flor que se cheire. Vista-se depressa enquanto eu acordo Sunny, e vamos chegar ao banco na hora em que ele abre."
               Violet, que em geral se movimentava devagar pela manhã, concordou com um gesto de cabeça e na mesma hora pulou da cama e foi até a caixa de papelão procurar uma roupa decente para vestir. Klaus remexeu na trouxa de cortinas para acordar a irmã caçula.
"Sunny", ele chamou, carinhosamente, pondo a mão onde achava que estivesse a cabeça da irmã. "Sunny.”
Não houve resposta. Klaus tornou a chamar "Sunny", e afastou a dobra superior das cortinas para acordar a pequena Baudelaire. "Sunny", disse mais uma vez, mas aí se deteve. Porque, debaixo da cortina, tudo o que havia era outra cortina. E, assim, com todas as camadas de cortinas, mas sua irmãzinha não estava em lugar nenhum. "Sunny!", gritou ele, olhando para todos os lados do quarto. Violet deixou cair o vestido que estava segurando e começou a ajudá-lo na procura. Esquadrinharam canto por canto, olharam debaixo da cama e até mesmo dentro da caixa de papelão. Mas Sunny tinha sumido.
"Onde ela pode estar?", perguntou Violet, preocupada. "Ela não é de fugir."
"Realmente, onde ela pode estar?", disse uma voz atrás deles, e as duas crianças se viraram. O conde Olaf se encontrava na soleira da porta, observando Violet e Klaus em sua busca pelo quarto. Os olhos dele estavam brilhando mais do que nunca, e ele continuava com aquele sorriso de quem acabou de contar uma piada.

CAPÍTULO
NOVE

"De fato", prosseguiu o conde Olaf, "é estranho,não resta dúvida, dar pela falta de uma criança. E logo uma criança tão pequena e indefesa."
"Onde está Sunny?", gritou Violet. "O que é que você fez com ela?"
O conde Olaf continuou a falar como se não tivesse ouvido Violet. "Por outro lado, vemos coisas estranhas acontecerem todos os dias. Na verdade, se vocês dois, órfãos, me acompanharem até o quintal, acho que nós todos veremos algo bem fora do comum.”
Os jovens Baudelaire, sem dizer nada seguiram o conde Olaf casa adentro e com ele saíram pela porta dos fundos. Violet olhou à sua volta examinando o miúdo e esquálido quintal onde ela não pusera mais os pés desde quando nele fora forçada a cortar lenha juntamente com Klaus. A lenha continuava empilhada no mesmo lugar e do mesmo jeito que eles a haviam deixado, como se o conde Olaf os tivesse mandado fazer aquele trabalho sem a menor necessidade ou finalidade, só para ele próprio se divertir. Violet teve um arrepio, pois ainda estava de camisola; olhou para todos os lados e não conseguiu descobrir nada fora do comum.
"Vocês não estão olhando para o lugar certo", disse o conde Olaf. "Para crianças que lêem tanto, meu Deus, vocês dois revelam uma gritante falta de inteligência.”
Violet olhou na direção do conde, mas evitou os olhos dele. Os olhos que ele tinha no rosto, quero dizer. Ela estava olhando para os pés dele, e viu também ali, tatuado, o olho que estivera vigiando os órfãos Baudelaire desde que seus tormentos começaram. Em seguida, os olhos dela foram subindo pelo corpo magrelo e miseravelmente vestido do conde Olaf, até ela perceber que ele apontava para cima com sua mão ossuda. Seguiu o gesto dele e se viu olhando para a torre proibida. Era feita de pedra terrosa, malcuidada, com uma única janela solitária, e junto a essa janela havia algo de que se tinha uma visão pouco nítida, mas que parecia ser uma gaiola.
"Oh, não!", disse Klaus com uma vozinha assustada, o que levou Violet a olhar com mais atenção para a janela. Era mesmo uma gaiola, oscilando na janela da torre como uma bandeira ao vento, mas dentro da gaiola ela conseguiu ver uma Sunny encolhida e apavorada. Observando melhor, Violet notou que a irmã tinha uma faixa amarrada na boca e cordas enroladas no corpo. Estava inteiramente presa.
"Solte a menina!", disse Violet para o conde Olaf. "Ela não lhe fez nada! É um bebê!"
"Bom, vejamos", disse o conde Olaf, sentando-se num cepo. "Se vocês quiserem mesmo que eu a solte, eu faço isso. Mas até uns fedelhos idiotas como vocês são capazes de perceber que se eu a soltar - ou, mais exatamente, se eu pedir a meu camarada que a solte -, a pobrezinha da Sunny pode não resistir à queda. Essa torre tem quase dez metros de altura, ou seja, é muito alta para uma criaturinha tão pequena despencar dali, ainda que esteja dentro de uma gaiola. Mas se insistem..."
"Não!", gritou Klaus. "Não faça isso!" Violet olhou nos olhos do conde Olaf, depois para o pequeno vulto que era sua irmã, pendurada no topo da torre e balançando levemente na brisa. Imaginou Sunny desabando do alto da torre até o chão, imaginou os últimos pensamentos da irmã, que seriam de puro terror. "Por favor", disse a Olaf, sentindo as lágrimas brotarem em seus olhos. "Ela é só um bebê. Faremos qualquer coisa, qualquer coisa. Mas não lhe faça mal."
“Qualquer coisa?", perguntou o conde Olaf, erguendo a sobrancelha. Inclinou-se para Violet e a olhou nos olhos. "Qualquer coisa? Você concordaria, por exemplo, em se casar comigo durante o espetáculo de amanhã à noite?"
Violet o encarou. Teve uma estranha sensação no estômago, como se fosse ela a que estava sendo jogada de grande altura. O que havia de realmente assustador em Olaf, ela se deu conta, era a sua inegável esperteza. Não se tratava apenas de um bêbado grosseirão e desagradável, mas de um bêbado grosseirão, desagradável e esperto.


"Enquanto vocês estavam ocupados lendo livros e fazendo acusações", disse o conde Olaf, "eu mandei um dos meus mais silenciosos e sorrateiros assistentes penetrar no seu quarto e seqüestrar Sunny. Ela está em segurança, por enquanto. Mas eu a vejo como se fosse uma vara pronta para baixar no traseiro de uma mula teimosa."
"Nossa irmã não é nenhuma vara”, disse Klaus.
"Uma mula teimosa”', explicou o conde, "não caminha na direção desejada por seu dono. Nesse sentido, é como vocês, garotos, que insistem em contrariar meus planos. Qualquer dono de animal lhes dirá que uma mula teimosa caminhará na direção desejada contanto que haja uma cenoura diante dela e uma vara atrás. Ela se moverá avançando para a cenoura, porque quer a recompensa da comida, e fugindo da vara, porque não quer ser castigada pela dor. Da mesma forma, vocês farão o que eu mandar, para evitar o castigo de perder sua irmã, e porque querem a recompensa de sobreviver a esta experiência. Muito bem, Violet, deixe-me perguntar mais uma vez: você quer se casar comigo?"
Violet engoliu em seco e baixou os olhos para a tatuagem do conde Olaf. Não conseguia responder.
"Mas o que é isso?", disse o conde Olaf, com uma voz que fingia carinho. Estendeu a mão e acariciou os cabelos de Violet. "Seria assim tão terrível você ser minha noiva, morar em minha casa o resto da vida? Você é uma moça tão adorável, depois de casados eu não me livraria de você como de seu irmão e de sua irmã."
Violet se imaginou dormindo ao lado do conde Olaf, acordando todas as manhãs e olhando para aquele homem horrível. Imaginou-se rodando pela casa, tentando evitá-lo o dia inteiro, e cozinhando para seus horríveis amigos à noite, talvez todas as noites, para o resto de sua vida. Mas foi só olhar para a irmã indefesa, que não teve mais dúvidas sobre qual deveria ser sua resposta. "Se libertar Sunny", disse em mente, “eu me caso com você”.
"Libertarei Sunny", respondeu o conde, "depois do espetáculo de amanhã à noite. Até lá, ela continuará na torre, por precaução. E vou avisando que meus assistentes montarão guarda na porta da escada da torre, isso para o caso de vocês terem alguma idéia boba."
"Você é um homem terrível", disse Klaus, espumando de raiva, mas o conde Olaf simplesmente sorriu outra vez.
"Pode ser que eu seja um homem terrível", disse, "mas a verdade é que fui capaz de bolar uma forma infalível de ficar com a fortuna de vocês, o que, afinal, é mais do que vocês conseguiram com suas próprias forças." Dito isso, ele seguiu na direção da casa. "Lembrem-se, órfãos", disse ainda, "vocês podem ter lido mais livros do que eu, mas de nada lhes serviu para que levassem a melhor nesta situação. Vamos, agora me passem esse livro que lhes deu idéias tão formidáveis, e vão cuidar dos serviços que eu determinei para hoje."
Klaus suspirou e cedeu o livro sobre direito nupcial- frase que aqui significa "deu o livro sobre direito nupcial ao conde Olaf mesmo contra a vontade". Começou a acompanhar o conde Olaf até a casa, mas Violet permaneceu imóvel como uma estátua. Ela não prestara atenção na última fala do conde Olaf, farta de saber que se repetiriam os elogios a ele próprio misturados com os insultos e o desprezo de que não os poupava. Ela olhava para a torre, não para o alto, onde sua irmã balançava, mas para toda a sua extensão. Klaus se virou para olhar a irmã e notou algo que não via já fazia bastante tempo. Para quem não estivesse acostumado a conviver com Violet, não haveria nada que chamasse a atenção por sua estranheza, mas, para aqueles que a conheciam bem, os cabelos amarrados com uma fita para se manterem afastados dos olhos eram um sinal de que as alavancas e engrenagens de seu cérebro inventivo estavam se movendo a todo o vapor.

CAPITULO
DEZ
Naquela noite, Klaus foi o órfão Baudelaire com o privilégio de dormir decentemente na cama, e Violet foi a órfã Baudelaire que ficou acordada, trabalhando à luz da lua. Durante o dia, os dois irmãos haviam estado ocupados se movimentando pela casa no cumprimento das tarefas que lhes foram         determinadas e mal falando um com o outro. Klaus estava cansado e desanimado demais para falar, e Violet se concentrara na área inventiva do seu cérebro, absorvida demais em seus planos para falar.
Ao anoitecer, Violet recolheu as cortinas que tinham servido de cama para Sunny e as levou até a porta que dava acesso aos degraus da torre, onde o enorme assistente do conde Olaf, aquele que não parecia nem homem nem mulher, estava montando guarda. Violet lhe perguntou se podia deixar as cobertas com a irmã, para que ela tivesse uma noite mais confortável. A enorme criatura simplesmente olhou para Violet com seus olhos vazios e balançou a cabeça, despachando-a depois com um gesto silencioso.
Violet sabia, é claro, que, apavorada como se achava, Sunny não iria tirar grande consolo daqueles panos, mas o que esperava era poder por alguns instantes abraçá-la e lhe dizer que tudo iria dar certo e terminar bem. Além disso, queria fazer o que se chama de "reconhecimento do local". Fazer o "reconhecimento do local" consiste em observar de terminado lugar com o objetivo de traçar um plano. Por exemplo, se você fosse um assaltante de banco - o que espero que não seja o caso - poderia ir ao banco uns dias antes da data em que planejou realizar o assalto. Talvez usando um disfarce, você daria uma olhada nas instalações e verificaria o número e a posição dos seguranças, das câmeras e de outros obstáculos, para poder planejar como evitar ser capturado ou morto durante a operação.
Violet, uma cidadã respeitadora da lei, não estava planejando assaltar um banco, mas estava planejando resgatar Sunny, e queria dar uma olhada no quarto em que a irmã era mantida prisioneira, para executar seu plano com mais facilidade. Mas parecia que não haveria possibilidade de ela fazer esse reconhecimento. Isso deixou Violet nervosa, e o que ela fez foi voltar para o quarto e sentar no chão junto à janela, para trabalhar silenciosamente em sua invenção.
Violet tinha pouquíssimos materiais com que inventar alguma coisa, e não queria ficar rodando pela casa à procura de outros recursos, por medo de despertar as suspeitas do conde Olaf e sua trupe.
Mas o que tinha era suficiente para construir um aparelho de resgate. Acima da janela havia uma barra de metal resistente, onde antes as cortinas haviam estado penduradas, e Violet a retirou da parede e a trouxe para o chão. Utilizando uma das pedras que Olaf deixara amontoadas num canto do quarto, ela partiu a barra em duas. Então, curvou cada uma das partes em vários ângulos agudos, disso lhe resultando pequenos cortes nas mãos. Depois Violet retirou da parede o quadro em que estava pintado o olho. Na parte de trás do quadro, como é comum encontrar em vários quadros, havia um pedaço pequeno de arame pelo qual ele se prendia no prego. Ela retirou o arame e o usou para juntar as duas partes da barra. Estava pronta uma peça semelhante a uma grande aranha metálica.
Em seguida, ela foi até a caixa de papelão e de lá tirou as roupas mais feias e ordinárias que a sra. Poe comprara, artigos de vestuário que os órfãos Baudelaire seriam incapazes de usar por maior que fosse o seu desespero. Sempre trabalhando depressa e  silenciosamente, ela começou a rasgar as roupas em tiras longas e estreitas, e a amarrar essas tiras umas às outras. Entre as muitas habilidades que tinha Violet, estava um vasto conhecimento de tipos diferentes de nós. Nessa ocasião ela usava o nó que é chamado de língua-do-diabo. Um grupo de mulheres piratas finlandesas inventou esse nó há muito tempo, no século XV, e lhe deu o nome de língua-do-diabo porque envolvia as mais diversas formas de torção, complicadas e misteriosas. A língua-do-diabo era um nó de grande utilidade, e quando Violet juntou as tiras pelas pontas, o resultado foi uma espécie de corda. Enquanto trabalhava, ela se lembrou de algo que seus pais haviam lhe dito quando Klaus nasceu, e de novo quando trouxeram Sunny da maternidade. "Você é a mais velha dos filhos Baudelaire", disseram-lhe, com carinho, mas com firmeza. "E, como a mais velha, será sempre sua responsabilidade olhar por seus irmãos mais novos. Prometa-nos que sempre cuidará deles e não deixará que fiquem em apuros." Violet se lembrou de sua promessa, e pensou em Klaus, cujo machucado no rosto ainda não cicatrizara, e em Sunny, balançando no alto da torre como uma bandeira, e começou a trabalhar 'mais depressa. Apesar de que evidentemente a culpa por esse sofrimento fosse toda do conde Olaf, Violet sentia como se tivesse quebrado a promessa feita aos pais, e jurou que haveria de cumpri-la.
Por fim, aproveitando a maior parte daquelas roupas ordinárias, Violet esperava ter conseguido uma corda com quase dez metros de comprimento. Amarrou uma de suas pontas à aranha de metal e se deteve para avaliar seu trabalho. Ela havia feito o que é chamado de “arpéu”, gancho que se usa para escalar os paredões de um edifício, em geral com fins indignos. Valendo-se da ponta de metal para se fixar em alguma coisa no topo da torre, e da corda para poder subir, Violet esperava alcançar o alto da torre, desprender a gaiola de Sunny e fazer a descida de volta. Tratava-se, sem dúvida, de um plano bastante arriscado, não só porque a ação era perigosa, como também porque o arpéu não fora comprado numa loja que vendia esse tipo de coisa. Mas esse arpéu fora tudo o que Violet conseguira construir na falta de um laboratório de invenções adequado, e o tempo estava se esgotando. Ela não havia contado a Klaus sobre o plano, porque não queria lhe dar falsas esperanças, de forma que, sem acordá-lo, pegou seu arpéu e se retirou do quarto na ponta dos pés.
Uma vez fora da casa, Violet percebeu que seu plano era ainda mais difícil do que pensara. A noite estava silenciosa, o que a obrigaria a não fazer praticamente barulho nenhum. Também havia naquela noite uma leve brisa, e quando ela se imaginou balançando ao sabor da brisa, agarrada a uma corda feita de trapos ordinários, quase desistiu inteiramente. E a noite estava escura, o que tornava difícil para ela ver aonde arremessaria o arpéu de modo que o gancho se fixasse em alguma coisa. Mas, apesar dos arrepios que sentia ali em pé, de camisola, Violet sabia que precisava arriscar. Usando sua mão direita, lançou o arpéu com toda a força o mais longe que pôde, e esperou para ver se ele se agarraria a alguma coisa.
Clang! O gancho fez enorme ruído ao bater na torre, mas não se prendeu a nada e despencou estrondosamente. Com o coração batendo, Violet permaneceu imóvel, imaginando se o conde Olaf ou algum dos seus cúmplices apareceria para investigar. Ninguém apareceu, e, passados alguns momentos, Violet, girando o arpéu acima da cabeça como se fosse um laço de caubói, tentou novo arremesso.
Clang! Clang! O arpéu bateu na torre duas vezes e de novo foi parar no chão. Violet esperou mais uma vez, atenta a qualquer ruído de passos, mas tudo o que ouviu foi o seu sangue pulsando nas veias, aterrorizado. Decidiu fazer uma última tentativa.
Clang! O arpéu bateu na torre e voltou a cair, atingindo Violet no ombro com força. Um dos braços do gancho rasgou sua camisola e lhe fez um corte na pele. Mordendo a mão para não gritar de dor, Violet tateou o lugar no ombro onde fora atingida e sentiu que estava molhado de sangue. O braço latejava, dolorido.
A essa altura do episódio, se eu fosse Violet, teria desistido, mas bem no momento em que ela já estava a ponto de se virar e entrar na casa, imaginou como Sunny devia estar apavorada, e sem se importar com a dor que sentia no ombro, usou a mão direita para novo arremesso do arpéu.
Clang... O som de clang! habitual se interrompeu na metade, e, à fraca luz da lua, Violet viu que o arpéu não estava caindo. Nervosamente, ela deu um forte puxão na corda, que não cedeu. O arpéu tinha funcionado!
Com os pés apoiados na lateral da torre de pedra e as mãos segurando na corda, Violet fechou os olhos e começou a subir. Sem ousar lançar em momento nenhum um olhar à sua volta, seguiu o impulso de escalar a torre, firmando as mãos, uma após a outra, sempre com o pensamento voltado para a promessa feita aos pais e para as coisas horríveis que o conde Olaf faria se o seu plano asqueroso desse certo. O vento noturno soprava cada vez mais forte enquanto ela subia cada vez mais alto, e várias vezes Violet teve que se deter na escalada quando a corda se deslocava movida pelo vento. Tinha certeza de que a qualquer momento a corda iria se rasgar, ou o gancho se soltaria, e ela seria lançada à morte. Mas, graças aos seus apurados dotes de inventora - a palavra apurados aqui significa "habilidosos" -, tudo funcionou como deveria, e de repente Violet senti u que tocava uma peça metálica em vez de uma corda de pano. Abriu os olhos e viu sua irmã Sunny, que olhava para ela freneticamente e tentava dizer alguma coisa que ultrapassasse a mordaça. Violet chegara ao alto da torre, bem diante da janela em que Sunny se achava presa.
A mais velha dos órfãos Baudelaire estava a ponto de pegar a gaiola de sua irmã e iniciar a descida, quando viu algo que a fez parar. Era a extremidade em forma de aranha do arpéu: agora Violet podia ver onde, em que parte do alto da torre, depois daquelas primeiras tentativas fracassadas, aquela extremidade tinha ido enfim se fixar. Enquanto seguia na sua escalada, Violet imaginara que o gancho do arpéu estaria preso em alguma reentrância na pedra, ou em algum canto da janela, ou talvez num móvel dentro do quarto da torre, e lá se agüentava firme. Mas não foi nada disso que aconteceu. O arpéu de Violet havia se prendido num outro gancho. Num dos ganchos do homem das mãos de gancho. E o outro gancho, Violet viu, estava cintilando ao luar, estendido na direção dela.

CAPITULO
ONZE

"Mas que prazer tê-la aqui conosco!", disse o homem das mãos de gancho num tom de voz repulsivamente doce. Violet na mesma hora tentou recuar às pressas pela corda, mas o assistente do conde Olaf era ágil demais para ela. Numa única manobra ele a carregou para dentro da torre e, com a outra mão de gancho, ainda deu um puxão na corda que fez despencar aos trambolhões o aparelho por ela inventado para resgatar a irmã. "Fico tão feliz por você estar aqui!", disse o homem das mãos de gancho. "Estava justamente pensando como seria bom ver o seu lindo rostinho. Sente-se."
"O que vai fazer comigo?", perguntou Violet. "Eu disse sente-se!", vociferou o homem das mãos de gancho, e a empurrou para uma cadeira.
Violet deu uma olhada no quarto, pouco iluminado e em absoluta desordem. Tenho certeza de que, no decorrer da vida de vocês, devem ter notado como o quarto das pessoas reflete a personalidade delas. No meu quarto, por exemplo, juntei uma coleção de objetos que são importantes para mim, inclusive um acordeom todo empoeirado em que toco canções tristes, uma série de anotações sobre as atividades dos órfãos Baudelaire, e um retrato meio tremido, tirado há muito tempo, de uma mulher chamada Beatrice. São objetos particularmente queridos e preciosos para mim. No quarto da torre havia objetos que da mesma forma eram queridos e preciosos para o conde Olaf: coisas verdadeiramente terríveis. Tiras de papel, em que ele escrevera seus pensamentos perversos em rabiscos ilegíveis, acumulavam-se em pilhas desordenadas no alto do exemplar de Direito nupcial que tinha tomado de Klaus. Havia umas poucas cadeiras, e algumas velas acesas produziam sombras bruxuleantes ao seu redor. Por todo o chão, viam-se garrafas de vinho vazias e pratos sujos espalhados. Mas, especialmente, desenhos, pinturas e gravuras de olhos, grandes e pequenos, estavam presentes em qualquer canto do quarto: olhos pintados no teto, olhos esboçados no sujo soalho de madeira, olhos pichados no peitoril da janela, e um olho enorme pintado na maçaneta da porta que dava para a escada. Era um lugar terrível.
O homem das mãos de gancho retirou um walkie-talkie de um bolso de seu seboso sobretudo. Com certa dificuldade apertou um botão e esperou um instante. "Chefe, sou eu", disse. "Sua inocente noivinha acabou de escalar a torre para tentar salvar a fedelha que dá mordidas." Fez uma pausa enquanto o conde Olaf dizia algo. "Não sei. Com uma espécie de corda."
"Era um arpéu", disse Violet, e rasgou uma das mangas de sua camisola a fim de fazer uma atadura para pôr no ombro. “Eu mesma fiz.”
"Ela está dizendo que era um arpéu", disse o homem das mãos de gancho, falando pelo walkie-talkie. "Não sei, chefe. Certo, chefe. Certo, chefe, claro que eu sei muito bem que ela é sua. Certo, chefe."
Apertou um botão para desligar, depois se virou para Violet. "O conde Olaf está muito descontente com sua noiva.”
"Não sou noiva dele", disse Violet asperamente.
"Logo, logo vai ser", disse o homem das mãos de gancho, fazendo com o gancho um gesto de advertência que a maioria das pessoas faria com o dedo indicador. "Mas, enquanto isso, eu preciso ir pegar seu irmão. Vocês três ficarão trancados neste quarto até anoitecer. Assim, o conde Olaf pode ter certeza de que não causarão nenhum transtorno." Dito isso, o homem das mãos de gancho se retirou do quarto pisando forte. Violet ouviu quando ele trancou a porta, e em seguida o barulho de seus passos se afastando na escada. Imediatamente correu para junto de Sunny e pôs a mão em sua cabeça. Com medo de suscitar - palavra que aqui quer dizer "provocar" - a cólera do conde Olaf se retirasse a faixa da boca da irmã ou se a livrasse das cordas que a amarravam, Violet passou a mão nos cabelos de Sunny murmurando que estava tudo bem.
Mas é claro que não estava tudo bem. Estava tudo inteiramente péssimo. Com o penetrar das primeiras luzes da manhã no quarto da torre, Violet se pôs a pensar em todas as coisas horríveis por que ela e seus irmãos tinham passado nos últimos tempos. Seus pais morreram súbita e tragicamente. A sra. Poe lhes comprara roupas feias e ordinárias. Eles se mudaram para a casa do conde Olaf e lá eram tratados de maneira terrível. O sr. Poe se recusara a ajudá-los. Eles descobriram um plano maquiavélico do conde, que consistia em se casar com Violet e roubar a fortuna dos Baudelaire. Klaus tentara desmascarar o conde contando-lhe o que ficara sabendo numa consulta à biblioteca da juíza Strauss, e fracassara. A pobre Sunny fora feita prisioneira. E, agora, Violet tentara resgatar Sunny e fora feita prisioneira também. No final das contas, os órfãos Baudelaire tiveram que lidar com catástrofe em cima de catástrofe, e Violet considerava a situação deles lamentavelmente deplorável, expressão que aqui quer dizer que "não era de modo nenhum agradável" a situação deles.
O som de passos subindo a escada tirou Violet de seus pensamentos, e logo o homem das mãos de gancho abriu a porta e empurrou para dentro do quarto um Klaus muito cansado, assustado e confuso.
"Aqui está o órfão que faltava”, disse o homem das mãos de gancho. "E agora preciso ir ajudar o conde Olaf nos últimos preparativos para o espetáculo desta noite. Não me venham com truques e espertezas, vocês dois, ou eu também os amarro e penduro e deixo balançando no lado de fora da janela." Com um último olhar intenso para eles, tornou a trancar a porta e desceu as escadas pisando forte.
Klaus piscou e olhou o quarto sujo à sua volta. Ainda estava de pijama. "O que foi que aconteceu?", perguntou a Violet. "Por que nos puseram aqui em cima?"
"Tentei resgatar Sunny", disse Violet, "usando uma invenção minha para escalar a torre."
Klaus foi até a janela e olhou para baixo. "É muito alto.”, disse. “Você deve ter ficado apavorada.”
"Dava medo, sim", ela admitiu, "mas não tanto quanto a idéia de me casar com o conde Olaf."
"Sinto muito que sua invenção não tenha funcionado", disse Klaus com tristeza.
''A invenção funcionou perfeitamente", disse Violet, passando a mão no ombro ferido. ''Acontece que fui descoberta e me pegaram. E agora estamos perdidos. O homem das mãos de gancho disse que nos manterá presos aqui até a noite, e aí começa O casamento maravilhoso."
"Você acha que seria capaz de inventar alguma coisa que nos ajudasse a fugir?", perguntou Klaus, olhando à sua volta no quarto.
"Talvez", disse Violet. "Por que não dá uma olhada nesses livros e papéis? Pode ser que haja alguma informação que sirva para nós."
Nas poucas horas que se seguiram, Violet e Klaus procuraram no quarto e em sua própria mente qualquer coisa capaz de ajudá-los. Violet tentou encontrar objetos com que pudesse inventar algo. Klaus deu uma boa olhada nos papéis e nos livros do conde Olaf. Vez por outra eles iam até Sunny, sorriam para ela e passavam a mão em sua cabeça para tranqüilizá-la. Ocasionalmente, Violet e Klaus falavam um com o outro, mas a maior parte do tempo ficavam em silêncio, mergulhados nos próprios pensamentos.
"Se tivéssemos querosene", disse Violet por volta de meio-dia, "eu poderia fabricar coquetéis molotov com essas garrafas."
"O que são coquetéis molotov?", perguntou Klaus.
"São pequenas bombas preparadas dentro de garrafas", explicou Violet. "Poderíamos jogá-las pela janela e atrair a atenção de quem estivesse passando perto daqui."
"Mas não temos querosene", disse Klaus melancolicamente.
Ficaram em silêncio algumas horas.
"Se fôssemos polígamos", disse Klaus, "o plano do conde Olaf não funcionaria."
"Polígamos são o quê?", perguntou Violet.
"Polígamos são pessoas que casam com mais de uma pessoa", explicou Klaus. "Nesta comunidade, os polígamos não têm apoio da lei, nem mesmo se casarem em presença de um juiz, disserem 'sim' e assinarem o documento por seu próprio punho. Li isso aqui no Direito Nupcial"
"Mas não somos polígamos", disse Violet melancolicamente.
Ficaram em silêncio mais algumas horas.
"Poderíamos quebrar essas garrafas ao meio", disse Violet, "e usá-las como facas, mas fico com medo de que a trupe do conde Olaf nos vença pela força."
"Você poderia dizer 'não' em vez de 'sim"', disse Klaus, "mas fico com medo de que o conde Olaf mande jogar Sunny torre abaixo."
"É o que eu faria, sem a menor dúvida", disse o conde Olaf, provocando um sobressalto nas crianças. Elas estavam tão envolvidas na conversa que nem o ouviram subir a escada e abrir a porta. Vestia uma roupa extravagante, e sua sobrancelha havia sido encerada para parecer tão brilhante quanto seus olhos. Atrás dele se postava o homem das mãos de gancho, que sorriu e acenou para os garotos com um dos ganchos. "Vamos, órfãos", disse o conde Olaf. "Chegou o grande momento. Meu colega aqui vai ficar neste quarto, mantendo contato permanente pelos nossos walkie-talkies. Se alguma coisa não sair bem no espetáculo desta noite, sua irmã será jogada para a morte. Andem, vamos."
Violet e Klaus olharam um para o outro, depois para Sunny, que continuava balançando em sua gaiola, e saíram atrás do conde Olaf. Enquanto descia os degraus da torre, Klaus sentiu um peso no coração, produzido pela mais absoluta falta de esperança. Não parecia de fato haver nenhuma saída para aquela enrascada. Violet sentia o mesmo, até o momento em que estendeu a mão direita para se apoiar no corrimão. Olhou um instante para sua mão direita e começou a pensar. Durante a descida da escada, a saída pela porta da rua e a breve caminhada pelo quarteirão até o teatro, Violet pensou, pensou, pensou, no maior esforço de concentração de toda a sua vida.
CAPITULO
DOZE

Quando Violet e Klaus Baudelaire se viram de camisola e pijama nos bastidores do teatro do conde Olaf, sentiram-se divididos, frase que aqui quer dizer que "sentiram duas coisas diferentes ao mesmo tempo". Por um lado, é claro que estavam cheios de pavor. Pelo murmúrio de vozes que vinha do palco, os dois órfãos Baudelaire podiam concluir que a apresentação de O casamento maravilhoso havia se iniciado, e a essa altura parecia tarde demais para tentar de alguma forma frustrar o plano do conde Olaf. Por outro lado, entretanto, estavam fascinados, pois como nunca tinham estado nos bastidores de um teatro durante um espetáculo, não sabiam que havia tanta coisa para ver. Os membros da trupe do conde Olaf corriam de um lado para outro, numa atividade incessante que não lhes dava tempo sequer de dirigir um olhar às crianças. Três homens muito baixos carregavam uma grande prancha de madeira onde fora pintado um cenário representando uma sala de estar. As duas mulheres de rosto branco arrumavam flores num vaso que de longe parecia ser de mármore mas que na verdade era de papelão. Um homem com jeito de importante, coberto de verrugas na cara, ajustava os enormes focos de iluminação. Dando uma espiada no palco, as crianças puderam ver o conde Olaf, em seu figurino extravagante, declamando uma fala da peça, pouco antes de baixar a cortina, a qual era controlada por uma mulher de cabelos muito curtos que puxava uma corda comprida ligada a uma roldana. Como vocês podem ver, os dois Baudelaire mais velhos, apesar de todo o medo, estavam muito interessados no que acontecia, pensando apenas como seria bom se não tivessem nenhum envolvimento com aquela situação.
Quando a cortina desceu, o conde Olaf se retirou do palco com passadas largas e olhou para as crianças. "É o fim do segundo ato! Por que os órfãos ainda não estão prontos para entrar em cena?", Sussurrou ele para as mulheres de rosto branco. Em seguida, quando a platéia prorrompeu em aplausos, sua expressão de zanga se transformou numa de alegria, e ele voltou ao palco. Com gestos dirigidos à mulher de cabelos curtos para que levantasse a cortina, ele deu suas passadas largas até o centro exato do palco e fez duas refinadas mesuras para agradecer ao público tão logo a cortina  se ergueu. Acenava e atirava beijos para a platéia enquanto a cortina voltava a baixar, e então mais uma vez seu rosto se encheu de indignação. "O intervalo dura só dez minutos", disse, "e as crianças têm que entrar em cena. Tratem de vesti-las, rápido!"
Sem dizer nada, as duas mulheres de rosto branco seguraram Violet e Klaus pelos pulsos e os levaram a um vestiário. A sala era empoeirada mas coberta de espelhos e pequenas lâmpadas para que os atores pudessem se ver direito quando fizessem a maquiagem e pusessem a peruca, e lá as pessoas ficavam chamando umas às outras, e rindo muito enquanto trocavam de roupa. Uma das mulheres de rosto branco puxou os braços de Violet para cima a fim de tirar sua camisola e lhe entregou um vestido branco de rendinhas, muito sujo. Enquanto isso, a outra mulher de rosto branco havia despido Klaus de seu pijama e mais que depressa botara no menino uma roupa azul de marinheiro que pinicava seu corpo e lhe dava a aparência de criança que acabou de aprender a andar.
"Não é emocionante?", disse uma voz, e quando as crianças se voltaram, viram a juíza Strauss, pomposamente vestida com uma toga e usando uma peruca empoada. Ela segurava um livrinho. "Crianças, vocês estão fantásticas!"
''A senhora também", disse Klaus. "Que livro é esse?"
"Ora, essas são as minhas falas", disse a juíza Strauss. "O conde Olaf pediu que eu trouxesse um livro jurídico e lesse o texto autêntico da cerimônia de casamento, 'para dar à peça um tom absolutamente realista. Tudo o que você tem para dizer, Violet, é 'sim', mas eu tenho que fazer um discurso e tanto. Vai ser bem divertido."
"Sabe o que seria bem divertido mesmo?", disse Violet com cuidado. ''A senhora trocar as falas aqui e ali, pouca coisa."
O rosto de Klaus se iluminou. "É, juíza Strauss. A senhora pode ser criativa. Não há razão para seguir à risca a cerimônia. Não se trata de um casamento de verdade."
A juíza Strauss franziu a testa. "Não sei, não, crianças. Acho melhor seguir as instruções do conde Olaf. Afinal, o responsável é ele."
“Juíza Strauss, chamou uma voz. Juíza Strauss. Por favor, compareça para a maquiagem!"
"Ih, meu Deus! Preciso ir fazer maquiagem!" A juíza Strauss tinha uma expressão sonhadora, como se estivesse para ser coroada rainha, e não apenas para receber algumas camadas de pó e cremes no rosto. "Crianças, agora tenho que ir. Nós nos vemos no palco, meus queridos!"
A juíza saiu correndo, enquanto as mulheres de rosto branco terminavam de arrumar as crianças. Uma delas pôs uma grinalda florida nos cabelos de Violet, que nesse momento se deu conta, horrorizada, de que estava vestida de noiva. A outra pôs um boné de marinheiro em Klaus, que se olhou num dos espelhos e ficou arrasado ao constatar como estava feio. Seus olhos encontraram os de Violet, que também se mirava no espelho.
"O que podemos fazer?", disse Klaus bem baixinho. "Fingir que estamos doentes? Talvez cancelassem o espetáculo."
"O conde Olaf perceberia que era mentira", replicou Violet melancolicamente.
"Vai começar o terceiro ato de O casamento maravilhoso de Ivon Cult!", gritou um homem que segurava uma prancheta. "Por favor, vão todos para os seus lugares no palco!"
Os atores saíram às pressas do vestiário, e as mulheres de rosto branco agarraram as crianças e as empurraram para que seguissem os demais. Os bastidores se converteram num completo pandemônio _ expressão que aqui quer dizer "lugar em que atores e auxiliares de cena correm em todas as direções para resolver detalhes de última hora.” O careca de nariz comprido andou rápido ao lado das crianças, depois parou de repente, olhou para Violet em seu vestido de noiva e sorriu com sarcasmo.
"Nada de gracinhas, hein!?", disse para os dois, levantando um dedo ossudo. Lembrem-se: quando entrarem em cena, façam exatamente o que devem fazer. O conde Olaf estará com o walkie-talkie na mão durante todo o ato, e se vocês fizerem uma única coisa diferente do combinado, ele liga na mesma hora para onde está Sunny."
"Já sei, já sei", disse Klaus penosamente. Estava cansado de ser ameaçado do mesmo modo tantas vezes seguidas.
"Pois tratem de fazer exatamente como foi combinado", tornou a dizer o homem.
"Tenho certeza de que assim farão", disse uma voz de repente, e quando as crianças se voltaram, viram o sr. Poe, em trajes muito formais e acompanhado de sua mulher. Ele sorriu para as crianças e se aproximou a fim de apertar-lhes a mão. "Polly e eu queríamos só dizer a vocês que quebrem a perna."
"Quê?", disse Klaus, chocado.
"É uma expressão que se usa em teatro", explicou o sr. Poe, "com o sentido de 'boa sorte no espetáculo desta noite'.* Fico feliz de ver que vocês se adaptaram à vida com seu novo pai e que participam de atividades familiares."
"Sr. Poe", disse Klaus rapidamente. "Violet e eu temos uma coisa importante para lhe dizer. É muito importante.”
“O que?”, disse o sr. Poe.
"Pois é", interrompeu o conde Olaf, "o que é que vocês têm para dizer ao sr. Poe, crianças?"

(*) No Brasil, seguindo uma tradição francesa, o termo usado para desejar boa sorte aos atores é merda!. (N.1:)

O conde Olaf havia surgido como num passe de mágica, e seus olhos brilhantes encaravam significativamente as crianças. Numa das mãos, Violet e Klaus puderam ver que ele segurava um walkie-talkie.
"Só queríamos lhe dizer que agradecemos muito tudo o que o senhor fez por nós, sr. Poe", disse Klaus sem muita firmeza. "Era tudo o que queríamos dizer."
"Está certo, está certo", disse o sr. Poe, dando uma palmadinha nas costas do menino. "Bom, está na hora de Polly e eu irmos para os nossos lugares. Quebrem a perna, jovens Baudelaire!"
"Ah, bem que eu poderia quebrar uma perna!", sussurrou Klaus para Violet, e o sr. Poe se retirou.
"Podem deixar que isso não tardará a acontecer", disse o conde Olaf, empurrando as duas crianças para o palco. Outros atores se movimentavam agitada e confusamente, procurando seus lugares no terceiro ato, e a juíza Strauss se recolhera a um canto, treinando suas falas lidas no livro jurídico. Klaus deu uma olhada à sua volta no palco, para ver se encontrava ali alguém que pudesse ajudar. O careca de nariz comprido pegou Klaus pela mão e o afastou para o lado.
"Você e eu não arredaremos pé daqui o tempo que durar o ato. Isso significa do começo ao fim."
"Eu sei o significado da expressão 'o tempo que durar"', disse Klaus.
"Nada de inventar bobagens", disse o careca. Klaus ficou olhando sua irmã vestida de noiva tomar lugar ao lado do conde Olaf quando subiu a cortina. Depois ouviu os aplausos da platéia quando se iniciou o terceiro ato de O casamento maravilhoso.
Não vejo no que pode interessar a vocês a descrição do enredo dessa insípida - a palavra insípida aqui quer dizer "chata e boba" - peça escrita por Ivon Cult, porque era uma peça de amargar e sem importância real para a nossa história. Vários atores e atrizes travavam diálogos dos mais chatos e se deslocavam incessantemente no espaço da cena, enquanto Klaus procurava trocar olhares com cada um deles, tentando de algum modo pedir ajuda. Logo se deu conta de que aquela peça devia ter sido escolhida só como pretexto para o perverso plano de Olaf, e não por seu valor como entretenimento, já que era visível a perda de interesse do público, que se mexia mais e mais nas poltronas. Klaus voltou sua atenção para a platéia a fim de ver se alguém seria capaz de captar que havia uma trama secreta por trás das aparências, mas a maneira como o homem das verrugas na cara dispusera as luzes impediu Klaus de distinguir os rostos no auditório, permitindo-lhe apenas perceber o contorno das pessoas na platéia. O conde Olaf tinha um grande número de falas muito longas, que ele interpretou com gestos e expressões faciais grandiloqüentes. Ninguém pareceu ter notado que ele segurava o tempo todo um walkie-talkie.
Por fim, ajuíza Strauss começou a falar, e Klaus viu que ela estava lendo diretamente do livro jurídico. A juíza tinha os olhos cintilantes e o rosto afogueado ao atuar no palco pela primeira vez, a magia da presença em cena tirando-lhe qualquer capacidade de perceber que estava sendo usada para o plano de Olaf. Ela falava e falava sobre Olaf e Violet se amarem na doença e na saúde, nos tempos favoráveis e nos tempos adversos, e todas aquelas coisas que se dizem às muitas pessoas que, por um motivo ou outro, decidem se casar.
Quando terminou seu discurso, ajuíza Strauss se virou para o conde Olaf e perguntou: ''Aceita esta mulher como sua legítima esposa?".
"Sim", disse o conde Olaf, sorrindo. Klaus viu Violet estremecer.
"E você", disse ajuíza Strauss, virando-se para Violet, "aceita este homem como seu legítimo esposo?”
"Sim", disse Violet. Klaus cerrou os punhos. Sua irmã havia dito "sim" na presença de um juiz. Assim que ela assinasse o documento oficial, o casamento seria legalmente válido. E agora Klaus podia ver a juíza Strauss tomando o documento das mãos de um dos outros atores e estendendo-o a Violet para que o assinasse.
"Não faça nenhum movimento", murmurou o careca para Klaus, e Klaus pensou na pobre Sunny, balançando no alto da torre, e ficou imóvel enquanto via Violet receber uma longa pena das mãos do conde Olaf. Os olhos de Violet estavam arregalados quando ela os dirigiu para o documento, o rosto estava pálido, e sua mão esquerda tremia quando assinou seu nome.

CAPÍTULO
TREZE



"E agora, senhoras e senhores", disse o conde Olaf, avançando um passo para se dirigir ao público, "tenho uma comunicação a fazer. Não há motivo para continuar o espetáculo desta noite, pois o seu objetivo foi alcançado. Esta não foi uma cena de ficção. Meu casamento com Violet Baudelaire é perfeitamente legal, e agora tenho o controle absoluto de sua fortuna.”
Da platéia partiram exclamações de espanto, e alguns dos atores se entreolharam, chocados. Ninguém, aparentemente, sabia do plano de Olaf. "Isso não pode ser!", gritou a juíza Strauss.
"As leis que regem o casamento nesta comunidade são bem simples", disse o conde Olaf. "A noiva só precisa dizer 'sim' na presença de um juiz como a senhora e assinar um documento explanatório. E todos vocês", aqui o conde Olaf estendeu o braço para a platéia, "foram testemunhas."
"Mas Violet não passa de uma criança!", disse um dos atores. "Ela não tem idade suficiente para se casar.”
"Tem, se o seu tutor legal lhe der autorização", disse o conde Olaf, "e eu sou o seu tutor legal, além de ser seu marido."
"Mas esse pedaço de papel não é um documento oficial!", disse a juíza Strauss. "É apenas um acessório cênico!"
O conde Olaf tomou o papel da mão de Violet e o entregou à juíza Strauss. "Se prestar bem atenção, verá que é um documento oficial da Prefeitura."
A juíza Strauss pegou o documento e o leu rapidamente. Em seguida, cerrando os olhos, deu um profundo suspiro, franziu a testa e se pôs a pensar, muito concentrada. Klaus olhou para ela e ficou imaginando se era essa a expressão que o rosto da juíza Strauss assumia quando ela julgava na Suprema Corte. "Você tem razão", disse, por fim, ao conde Olaf, "este casamento, infelizmente, é de todo legal. Violet disse 'sim' e assinou seu nome aqui no documento. Conde Olaf, você é o marido de Violet, e, por conseguinte, tem o controle absoluto de seu patrimônio.”
"Isso não pode ser!", disse uma voz da platéia, que Klaus reconheceu como sendo a voz do sr. Poe. Ele subiu correndo os degraus para o palco e tomou o documento da juíza Strauss. "É um terrível contra-senso!"
“Lamento, mas esse terrível contra-senso tem apoio na lei", disse a juíza Strauss. Seus olhos se encheram de lágrimas. "Não posso acreditar que tenha sido enganada tão facilmente. Eu jamais faria nada que pudesse prejudicar suas crianças. Jamais."
"Foi muito fácil enganá-la', disse o conde Olaf com um sorriso maldoso, e a juíza começou a chorar. "Foi brincadeira de criança me apropriar dessa fortuna. E agora, se me dão licença, minha noiva e eu temos que ir para casa, afinal é a nossa noite de núpcias.”
"Primeiro tem que soltar Sunny!", esbravejou Klaus. “Você prometeu soltá-la.”
"Onde está Sunny?", perguntou o sr. Poe.
"Está que não tem para onde se virar neste momento", disse o conde Olaf, "se me perdoam o gracejo." Seus olhos brilhavam ao apertar botões no walkie-talkie e esperar que o homem das mãos de gancho respondesse ao chamado. ''Alô? É claro que sou eu, seu idiota. Tudo correu como combinado. Por favor, tire Sunny da gaiola e venha com ela diretamente para o teatro. Klaus e Sunny têm algumas tarefas para fazer antes de deitar." O conde Olaf dirigiu um olhar penetrante a Klaus. "Está satisfeito agora, perguntou.
"Sim", disse Klaus mansamente. Não estava satisfeito coisíssima nenhuma, é claro, mas pelo menos sua irmã caçula já não estava pendurada numa torre.
"Não pense que está livre", o careca sussurrou para Klaus. "O conde Olaf cuidará de você e de suas irmãs mais tarde. Ele não quer fazer isso na frente de todas essas pessoas." Não foi preciso que explicasse a Klaus o que queria dizer com "cuidar".
"Bem, quanto a mim, não estou nem um pouco satisfeito", disse o sr. Poe. "Tudo isto é absolutamente horrendo, completamente monstruoso. Financeiramente, é um desastre."
"Pois é, mas tudo foi feito de acordo com alei", disse o conde Olaf. ''Amanhã, sr. Poe, irei ao banco e retirarei toda a fortuna dos Baudelaire."
O sr. Poe abriu a boca como se fosse dizer alguma coisa, mas, em vez disso, começou a tossir. Tossiu por vários segundos num lenço, enquanto todos esperavam. "Não permitirei tal coisa', disse por fim o sr. Poe, forçando a garganta e limpando a boca. "Não permitirei de maneira nenhuma."
"Lamento, mas não terá outro jeito", respondeu-lhe o conde Olaf.
"Eu... sinto muito, mas Olaf tem razão", disse a juíza Strauss com os olhos marejados. "Este casamento está de acordo com a lei."
"Desculpe", disse Violet de repente, "mas a juíza pode estar enganada."
Todos se viraram a fim de olhar para a mais velha dos órfãos Baudelaire.
"O que disse, condessa?", perguntou Olaf.
"Não sou sua condessa", disse Violet, irascível, palavra que aqui quer dizer "num tom de extrema irritação". "Pelo menos não acho que seja."
"E por que não?", quis saber o conde Olaf.
"Não assinei o documento pelo meu próprio punho, como a lei determina, disse Violet.
"O que quer dizer com isso? Todos aqui vimos!" A sobrancelha tipo duas-em-uma do conde Olaf estava começando a se erguer de raiva.
''Acho que seu marido está com a razão, querida', disse a juíza Strauss tristemente. "Não adianta querer negar. As testemunhas são muitas."
"Como a maioria das pessoas", disse Violet, "eu sou destra. Mas assinei o documento com a mão esquerda.”
"Quê?", gritou o conde Olaf. Arrancou o papel das mãos da juíza Strauss e o examinou. Seus olhos brilhavam mais do que nunca. "Você é uma mentirosa!", rosnou para Violet.
"Não, não é", disse Klaus, animando-se. "Eu estou lembrado, porque reparei que sua mão esquerda tremia no momento em que ela assinou seu nome."
"É impossível provar", disse o conde Olaf.
"Se quiser", disse Violet, "com o maior prazer assino meu nome outra vez, numa outra folha de papel, com a mão direita e depois com a esquerda. Aí, basta ver com qual das duas assinaturas a que está no documento se parece mais."
"Um pequeno detalhe como esse - com que mão você costumava assinar - não tem a mínima importância", disse o conde Olaf.
"Se me permite, caro senhor", disse o sr. Poe, "gostaria que essa decisão ficasse a cargo da juíza Strauss. "
Todos olharam para a juíza Strauss, que estava enxugando a última de suas lágrimas.
"Deixem-me ver", disse ela tranqüilamente, e tornou a fechar os olhos. Deu um suspiro profundo, e os órfãos Baudelaire, assim como todos os que gostavam deles, prenderam a respiração enquanto ajuíza Strauss franzia a testa e refletia sobre o assunto com a máxima concentração. Por fim, ela sorriu. "Se, de fato, Violet é destra", disse, medindo cada palavra, "e assinou o documento com sua mão esquerda, disso resulta que a assinatura não preenche os requisitos das leis nupciais. A lei determina claramente que a noiva assine o documento por seu próprio punho. Portanto, podemos concluir que este casamento é inválido. Violet, você não é uma condessa, e, conde Olaf, você não tem controle sobre a fortuna dos Baudelaire.”
"Viva!", gritou uma voz da platéia, e várias pessoas aplaudiram. A não ser que entre vocês leitores, haja algum advogado, imagino como não deverá lhes parecer estranho que o plano do conde Olaf tivesse sido derrotado pelo fato de Violet assinar com a mão esquerda em vez da direita. Mas a lei é uma coisa estranha. Por exemplo, determinado país na Europa tem uma lei que exige de todos os padeiros que vendam pão pelo mesmo preço. Certa ilha tem uma lei que não permite a ninguém levar as frutas locais para o exterior. E uma cidade, não muito longe de onde vocês moram, tem uma lei que me proíbe passar a menos de oito quilômetros de distância das suas fronteiras. Se Violet houvesse assinado o contrato de casamento com a mão direita, a lei teria feito dela urna desgraçada condessa, mas, porque o assinou com a esquerda, continuou sendo, para seu alívio, urna desgraçada órfã.
O que era uma boa notícia para Violet e seus irmãos, evidentemente era urna péssima notícia para o conde Olaf. No entanto, ele se limitou a dirigir a todos um sorriso petrificado. "Neste caso", disse a Violet, apertando um botão no walkie-talkie, "ou você se casa de novo comigo amanhã, e desta vez da maneira correta, ou eu..."
"Nipo!" A voz inconfundível de Sunny se sobrepôs à do conde Olaf, enquanto ela subia titubeante ao palco na direção de seus irmãos. O homem das mãos de gancho vinha logo atrás dela, com seu walkie-talkie emitindo zumbidos e estalidos. O conde Olaf agira tarde demais.
"Sunny! Você está salva!", gritou Klaus, e a beijou. Violet correu para junto deles, e os dois Baudelaire mais velhos fizeram festa para a caçula.
"Alguém, por favor, traga alguma coisa para ela comer", disse Violet. "Ela deve estar com muita fome, depois de ter ficado pendurada numa janela todo esse tempo.
"Bolo!", gritou Sunny.
“Urrr!", rugiu o conde Olaf. Começou a caminhar de um lado para outro corno um animal enjaulado, detendo-se apenas para apontar um dedo para Violet. "Você pode não ser minha mulher", disse, "mas continua sendo minha filha, e..."
"O senhor acha mesmo", disse o sr. Poe com exasperação na voz, que eu vou permitir que continue cuidando dessas três crianças, depois da fraude a que assisti aqui esta noite?"
"Os órfãos são meus", insistiu o conde Olaf, "e comigo permanecerão. Não há nada de ilegal e mal em tentar casar-se com alguém.
"Mas certamente há algo de ilegal em pendurar urna criancinha na janela de uma torre", disse a juíza Strauss na maior indignação. "O senhor, conde Olaf, irá para a cadeia,  as três crianças irão morar comigo.”
"Prendam-no!", disse urna voz na platéia, e outras se juntaram a ela.
"Levem-no para a cadeia!"
"É um homem malvado!"
"E devolva o nosso dinheiro! A peça é urna porcaria!"
O sr. Poe segurou o conde Olaf pelo braço e, após um breve acesso de tosse, anunciou com voz áspera: Prendo-o em nome da lei .
"Oh, juíza Strauss!", disse Violet. "É mesmo verdade o que a senhora disse? Podemos ir morar com a senhora?"
"Claro que é verdade", disse ajuíza Strauss. "Gosto muito de vocês, crianças, e me sinto responsável por sua felicidade."      .
"Vamos poder usar a sua biblioteca todo dia?",perguntou Klaus.
"Vamos poder trabalhar no jardim?", perguntou Violet.
"Bolo!", tornou a gritar Sunny, e todos riram.
Nesta altura de nossa história, sinto-me obrigado a interrompê-la para lhes dar um último aviso. Como eu disse no comecinho, este livro que está na mão de vocês não termina com um final feliz. Pode parecer, pelo que acabaram de ler, que o conde Olaf vai para a cadeia e que os três jovens Baudelaire vão viver felizes para sempre com ajuíza Strauss, mas não é assim. Se preferirem, podem fechar o livro imediatamente e não ler o desfecho infeliz que se segue. Vocês podem passar o resto da vida acreditando que os Baudelaire triunfaram sobre o conde Olaf e viveram o resto da vida deles na casa e na biblioteca da juíza Strauss, mas não é assim que a história continua. Pois, quando estavam todos rindo do grito de Sunny pedindo bolo, o homem com jeito de importante e cheio de verrugas na cara se esgueirou para os controles de iluminação do teatro.
Num piscar de olhos, o homem puxou a alavanca principal, de modo que todas as luzes se apagaram e todo mundo ficou no escuro. O instante seguinte desencadeou um pandemônio, com as pessoas correndo de um lado para outro, aos gritos, uma chamando pela outra. Os atores tropeçavam no público. O público tropeçava nos acessórios do cenário. O sr. Poe agarrou sua mulher, pensando que fosse o conde Olaf. Klaus agarrou Sunny e a levantou o mais alto que pôde, para que ela não se machucasse. Mas Violet percebeu na mesma hora o que havia acontecido, e foi se dirigindo com todo o cuidado para onde ela se lembrava que estavam os controles de luz. Durante a apresentação da peça, Violet observara atentamente aqueles controles, fazendo um registro mental dos aparelhos para o caso de eles poderem ser Utilizados em alguma invenção. Tinha certeza de que, se encontrasse a alavanca, saberia restabelecer a iluminação interrompida. Com os braços estendidos para a frente como se fosse cega, Violet foi abrindo caminho através do palco, em passos cautelosos para não esbarrar nos móveis nem nos atores sobressaltados. Na escuridão, Violet mais parecia um fantasma, com seu vestido de noiva branco se deslocando lentamente pelo palco. Até que, assim que chegou onde se achava a alavanca, Violet sentiu alguém tocar em seu ombro. Um vulto se inclinou para sussurrar-lhe no ouvido.
''Ainda que seja a última coisa que eu faça, hei de ficar com a sua fortuna', zumbiu a voz. "E quando tiver conseguido isso, vou matá-los, os três, com as minhas próprias mãos."
Violet deu um grito abafado de terror, mas puxou a alavanca. O teatro inteiro se inundou de luz. Todos piscaram e olharam em torno. O sr. Poe soltou o braço de sua mulher. Klaus pôs Sunny no chão. Mas não havia ninguém tocando no ombro de Violet. O conde Olaf sumira.
"Para onde ele foi?", gritou o sr. Poe. "Para onde foram todos eles?"
Os jovens Baudelaire olharam em volta e viram que não só o conde Olaf havia desaparecido, mas seus cúmplices - o homem das verrugas na cara, o homem das mãos de gancho, o careca de nariz comprido, a pessoa enorme que não parecia nem homem nem mulher e as duas mulheres de rosto branco - também haviam desaparecido com ele.


"Devem ter corrido para fora', disse Klaus, "enquanto ainda estava escuro."
O sr. Poe foi na frente para a saída do teatro, e a juíza Strauss e os meninos o seguiram. Viram que, bem ao longe, mas bem ao longe mesmo, no final do quarteirão, um carro preto do tamanho de uma limusine se afastava para dentro da noite. Talvez estivessem nele o conde Olaf e seus colegas. Talvez não. Em todo caso, o carro virou uma esquina e desapareceu na cidade escura enquanto as crianças assistiam sem dizer nada.
"Droga!", disse o sr. Poe. "Eles se foram. Mas não se preocupem, meninos, nós iremos pegá-los. Vou ligar para a polícia imediatamente."
Violet, Klaus e Sunny se entreolharam; sabiam que não seria tão simples como o sr. Poe dizia. O conde Olaf trataria de ficar longe enquanto planejava seu próximo movimento. Era esperto demais para se deixar apanhar por pessoas como o sr. Poe.
"Bem, vamos para casa, garotada, disse ajuíza Strauss. "Vamos deixar para nos preocupar com isso amanhã, depois que eu tiver preparado um bom café da manhã para vocês."
O sr. Poe tossiu. "Esperem um minuto", disse ele, baixando os olhos para o chão. "Lamento dizer lhes isto, meninos, mas não posso permitir que sejam criados por alguém que não é parente de vocês."
"Quê!?", exclamou Violet. "Depois de tudo o que a juíza Strauss fez por nós?"
"Nunca teríamos descoberto o plano do conde Olaf sem ela e a sua biblioteca", disse Klaus. "Sem "a juíza Strauss, teríamos perdido a vida."
"Não discuto isso", disse o sr. Poe, "e agradeço à juíza Strauss por sua generosidade, mas o testamento de seus pais é bem explícito. Vocês têm que ser adotados por um parente. Hoje ficarão comigo em minha casa, e amanhã irei ao banco e resolverei o que fazer com vocês. Desculpem, mas é como tem que ser.
As crianças olharam para ajuíza Strauss, que deu um suspiro profundo e beijou os jovens Baudelaire, um por um. "O sr. Poe tem razão", disse ela tristemente. "Ele deve respeitar a vontade de seus pais.Vocês não querem fazer o que seus pais queriam, crianças?"
Violet, Klaus e Sunny visualizaram seus pais tão amados, e desejaram mais do que nunca que o incêndio não houvesse ocorrido. Nunca, mas nunca mesmo, tinham se sentido tão sós. Queriam demais morar com aquela mulher bondosa e generosa, mas sabiam que isso simplesmente não poderia acontecer. "Acho que tem razão, juíza Strauss", disse Violet por fim. "Vamos sentir muita saudade da senhora."
"E eu também vou sentir muita saudade de vocês", disse ela, com os olhos mais uma vez marejados. Depois, cada um deu um último beijo na juíza Strauss, e seguiram o sr. e a sra. Poe até o carro. Os órfãos Baudelaire se amontoaram no banco de trás e olharam pela janela traseira para ajuíza Strauss, que chorava e acenava para eles. Diante deles estavam as ruas escuras por onde o conde Olaf escapara para armar novas falcatruas. Atrás ficara a bondosa juíza, que tanto interesse havia demonstrado pelas três crianças. Para Violet, Klaus e Sunny, parecia que o sr. Poe e a lei estavam errados em sua decisão de afastá-los da possibilidade de uma vida feliz com a juíza Strauss, encaminhando-os para um futuro desconhecido na companhia de algum parente desconhecido. Não compreendiam por que devia ser assim, mas, como ocorre com tantos acontecimentos infelizes na vida, o fato de não compreendermos uma coisa não significa que ela seja menos real. Os Baudelaire ficaram bem juntinhos para enfrentar o ar frio da noite, e continuaram acenando pela janela traseira. O carro foi se afastando mais e mais, até ajuíza Strauss se tornar um pouquinho de nada na escuridão, e a impressão que ficou nos garotos foi de que o rumo que sua vida ia tomando era uma aberração, frase que aqui quer dizer "não tinha o menor sentido e traria muito desgosto".

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