sábado, 12 de fevereiro de 2011

O começo de uma era - Coração de Tinta

CORAÇÃO DE TINTA
UM LIVRO DE CORNELIA FUNKE

1.      Um estranho na noite

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A lua brilhava no olho do cavalinho de balanço, e também no olho do ratinho, quando Tolly o tirava de sob o travesseiro para admirá-lo. O relógio fazia tiquetaque e, no meio do silêncio, ele pensou ouvir o som de pezinhos nus correndo pelo chão, depois risadas e cochichos, e então um ruído como se alguém estivesse folheando as páginas de um grande livro.
Lucy M. Boston, As crianças de Green Knowe

~

Chovia naquela noite, uma chuvinha fina e murmurante. Ainda depois de muitos anos, bastava Meggie fechar os olhos e ela podia ouvi-la novamente, como se minúsculos dedinhos estivessem batendo em sua janela. Um cão latia em algum lugar na escuridão e, por mais que se virasse de um lado para o outro, Meggie não conseguia dormir.
     O livro que ela começara a ler estava debaixo do travesseiro. Cutucava o ouvido dela com a ponta da capa, como se quisesse chamá-la de volta para suas páginas. “Oh, deve ser mesmo muito confortável dormir com uma coisa dura e pontuda debaixo da cabeça”, dissera seu pai na primeira vez em que encontrara um volume sob o travesseiro dela. “Confesse, à noite ele sussurra histórias no seu ouvido.” “Às vezes, sim!”, respondera Meggie. “Mas só funciona com crianças.” Em troca, Mo lhe dera um beliscão no nariz. Mo. Meggie nunca chamara o pai de outra maneira.
Naquela noite, em que tanta coisa começou e tanta coisa mudou para sempre, um dos livros preferidos de Meggie estava debaixo de seu travesseiro. Como a chuva não a deixava dormir, ela se sentou, esfregou os olhos e pegou o livro. As páginas farfalharam cheias de promessas quando ela o abriu. Meggie achava que esses primeiros sussurros soavam de maneira diferente em cada livro, conforme ela soubesse ou não o que ele lhe contaria. Mas agora era preciso providenciar luz. Havia uma caixa de fósforos escondida na gaveta do criado-mudo. Mo a proibira de acender velas à noite. Ele não gostava de fogo. “O fogo devora os livros”, ele sempre dizia, mas afinal de contas ela tinha doze anos e podia muito bem tomar conta de algumas chamas. Meggie adorava ler à luz de velas. Ela havia posto três pequenas lanternas e três castiçais no batente da janela. E estava justamente encostando o palito de fósforo aceso num dos pavios já queimados quando ouviu os passos lá fora. Assustada, Meggie apagou o fogo com um sopro — como ela ainda lembrava nitidamente depois de muitos anos —, ajoelhou-se em frente à janela molhada pela chuva e olhou para fora. Foi então que ela o viu.
A chuva dava à escuridão um tom esbranquiçado, e o estranho quase não passava de uma sombra. Somente seu rosto, virado na direção de Meggie, brilhava lá embaixo. Os cabelos estavam grudados em sua testa molhada. A chuva o encharcava, mas ele parecia não se importar. Estava imóvel, os braços em volta do peito, como se dessa maneira pudesse se aquecer pelo menos um pouco. Assim, ele olhava para a casa de Meggie.
“Preciso acordar Mo!”, Meggie pensou. Mas continuou ali sentada, com o coração aos pulos, os olhos fixos na noite, como se o estranho a tivesse contagiado com a sua imobilidade. De repente ele virou a cabeça e Meggie teve a impressão de que olhava diretamente em seus olhos. Ela pulou da cama tão afoita que o livro aberto caiu no chão. Descalça, saiu correndo pelo corredor escuro. Estava frio na velha casa, embora
já fosse final de maio.
A luz do quarto de Mo estava acesa. Era comum ele ficar lendo até altas horas da noite. Meggie herdara do pai a paixão pelos livros. Quando ela tinha um sonho ruim e ia se refugiar junto dele, não havia nada melhor para fazê-la adormecer do que a respiração calma de Mo ao seu lado virando as páginas de um livro. Nada espantava mais rápido os sonhos ruins do que o barulho das folhas impressas.
Mas a figura na frente da casa não era um sonho.
O livro que Mo estava lendo naquela noite tinha uma capa de pano azul-claro. Também disso Meggie se lembraria mais tarde. Quantas coisas insignificantes ficam gravadas na memória!
— Mo, tem alguém lá fora!
Seu pai ergueu a cabeça e olhou para ela com uma ex-pressão ausente, como sempre fazia quando ela o interrompia na leitura. Sempre demorava alguns instantes até que ele voltasse inteiramente do outro mundo, do labirinto das letras.
— Tem alguém aqui? Você tem certeza?
— Tenho. Ele está olhando para a nossa casa.
Mo pôs o livro de lado.
— O que você leu antes de dormir? O médico e o monstro? Meggie franziu a testa.
— Mo, por favor! Venha comigo.
Ele não estava acreditando, mas foi atrás dela. Meggie o puxava com tanta impaciência que ele deu uma topada com o dedão do pé numa pilha de livros. E no que mais poderia ser? Havia livros espalhados por toda a casa. Eles não ficavam apenas nas estantes, como na casa das outras pessoas. Não, ali eles se empilhavam debaixo das mesas, em cima das cadeiras, nos cantos dos quartos. Havia livros na cozinha e no banheiro, em cima da televisão e dentro do guarda-roupa, pilhas pequenas, pilhas altas, livros grossos e finos, velhos e novos... livros. Eles acolhiam Meggie de páginas abertas na mesa do café-da-manhã, espantavam o tédio nos dias cinzentos — e de
vez em quando alguém tropeçava neles.
— Ele está plantado de pé ali fora! — sussurrou Meg-gie enquanto puxava Mo para dentro do quarto.
— Ele tem uma cara peluda? Se tiver, pode ser um lobisomem.
— Pare! — Meggie olhou para o pai com uma expressão séria, embora as brincadeiras dele espantassem seu medo. Ela mesma quase já não acreditava mais na figura lá fora na chuva... até ajoelhar-se de novo diante da janela. — Ali! Está vendo? — ela cochichou.
Mo olhou para fora através das gotas de chuva que continuavam a escorrer no vidro, e não disse nada.
— Você não jurou que aqui nunca viria um ladrão, porque não há nada para roubar? — sussurrou Meggie.
— Não é um ladrão — Mo respondeu, mas estava com uma expressão tão séria quando se afastou da janela que o co-ração de Meggie começou a bater ainda mais depressa. — Vá para a cama, Meggie. A visita é para mim.
E então Mo já não estava mais no quarto — antes mesmo que Meggie pudesse ter perguntado que visita, por tudo neste mundo, podia ser aquela para aparecer daquele jeito no meio da noite. Aflita, ela foi atrás dele, no corredor ouviu-o soltar a corrente da porta e, quando chegou ao Vestíbulo, Meggie viu o pai parado em frente à porta aberta.
A noite escura e úmida penetrou na casa, e o barulho da chuva soou alto, ameaçador.
— Dedo Empoeirado! — exclamou Mo para a escuridão. — É você? Dedo Empoeirado? Que nome era aquele? Meggie não conseguia se lembrar de tê-lo ouvido alguma vez, mas assim mesmo lhe parecia familiar, como uma lembrança muito antiga que não quer tomar forma definida.
Por alguns instantes, tudo permaneceu quieto lá fora. Somente a chuva caía, murmurando e sussurrando, como se de repente a noite tivesse adquirido voz. Então Meggie ouviu passos se aproximarem da casa, e o homem que estava no pá-
tio emergiu da escuridão. O longo sobretudo que ele vestia estava grudado em suas pernas, encharcado de chuva, e, quando o estranho apareceu na luz da frente da casa, por uma fração de segundo Meggie pensou ter visto sobre seus ombros uma cabecinha peluda meter o nariz para fora da mochila e depois se enfiar bem depressa dentro dela novamente.
Dedo Empoeirado passou a manga no rosto molhado e estendeu a mão para Mo.
— Como vai, Língua Encantada? — ele perguntou. — Há quanto tempo!
Mo apertou a mão estendida, com hesitação.
— Muito tempo — ele disse, passando os olhos pelo visitante, como se esperasse ver atrás dele mais uma figura surgir do meio da noite. — Entre, você vai acabar pegando uma pneumonia. Meggie disse que você já está aí fora há um bom tempo.
— Meggie? Ah, é claro.
Dedo Empoeirado deixou que Mo o conduzisse para dentro da casa. Então ele olhou tão demoradamente para Meggie que ela ficou encabulada, sem saber para onde olhar. No final, ela simplesmente retribuiu o olhar.
— Ela cresceu.
— Você se lembra dela?
— Claro.
Meggie notou que Mo deu duas voltas com a chave.
— Com quantos anos ela está?
Dedo Empoeirado sorriu para ela. Era um sorriso estranho. Meggie não conseguia definir se era sarcástico, desdenhoso ou simplesmente tímido. Não retribuiu o sorriso.
— Doze — respondeu Mo.
— Doze? Minha nossa!
Dedo Empoeirado tirou os cabelos encharcados da testa. Eles quase chegavam aos seus ombros. Meggie perguntou-se de que cor seriam quando estivessem secos. Ao redor da boca de lábios finos, sua barba era ruiva como o pêlo do
gato sem dono para o qual Meggie colocava uma tigela de leite na frente da casa de vez em quando. A barba por fazer era rala como a primeira barba de um rapaz, e incapaz de esconder as cicatrizes, três longas e pálidas cicatrizes. Elas marcavam de tal forma o rosto de Dedo Empoeirado que parecia que algum dia ele se partira em pedaços e depois fora rejuntado nova-mente.
— Doze anos — ele repetiu. — É claro. Naquela época ela tinha... três, não é mesmo?
Mo confirmou com a cabeça.
— Venha, vou lhe dar uma roupa seca. — Ele levou o visitante consigo, impaciente, como se de repente tivesse pressa em escondê-lo de Meggie. E disse para ela, por cima dos ombros: — E você vá dormir, Meggie.
Então, sem mais uma palavra, Mo fechou a porta da oficina atrás de si.
Meggie ficou ali esfregando os pés frios um no outro. “Vá dormir, Meggie.” Às vezes, quando já era muito tarde, Mo a jogava na cama como um saco de farinha. Outras vezes, depois do jantar, ele corria atrás dela pela casa até que, já sem fôlego de tanto rir, ela se refugiava em seu quarto. E algumas vezes ele estava tão cansado que se esticava no sofá, e ela lhe fazia um café antes de irem dormir. Mas nunca, nunca, ele a mandara para a cama daquele jeito.
Um pressentimento impregnado de medo espalhou-se em seu coração: o de que, com aquele desconhecido, cujo nome soava estranho e mesmo assim familiar, algo ameaçador tivesse invadido sua vida. E Meggie desejou — com tanto fervor que ela própria se assustou — que Mo não tivesse aberto a porta e que Dedo Empoeirado tivesse ficado lá fora até que a chuva o arrastasse para longe.
Quando a porta da oficina se abriu novamente, ela levou um susto.
— Mas você ainda está aí! — disse Mo. — Vá para a cama, Meggie. Vá!
Na sua testa havia aquela pequena ruga que somente aparecia quando ele estava realmente preocupado com alguma coisa. Nessas ocasiões ele olhava para ela como que sem vê-la, como se em pensamentos estivesse num lugar totalmente di-ferente. O pressentimento cresceu e abriu suas asas negras no coração de Meggie.
— Fale para ele ir embora, Mo! — ela disse enquanto era empurrada para o quarto. — Por favor, mande-o embora. Eu não gosto dele.
:Mo encostou-se na porta aberta do quarto.
— Amanhã, quando você acordar, ele já vai ter ido embora. Palavra de honra.
— Palavra de honra? Sem cruzar os dedos?
Meggie olhou firme nos olhos dele. Ela sempre via quando Mo estava mentindo, mesmo quando ele se esforçava ao máximo para esconder isso dela.
— Sem cruzar os dedos — ele disse, e ergueu as duas mãos como prova.
Então Mo fechou a porta atrás de si, embora soubesse que ela não gostava disso. Meggie encostou o ouvido na porta. Ouviu a louça tilintar. “Ah, o barba-de-raposa vai ganhar um chá para se aquecer. Tomara que ele pegue uma pneumonia”, pensou Meggie. Bem, ele também não precisava morrer, como a mãe de sua professora de inglês. Meggie ouviu a chaleira apitar na cozinha e depois Mo voltar para a oficina levando uma bandeja com louça tilintante.
Depois que ele fechou a porta, ela achou melhor esperar mais alguns segundos por precaução, o que foi bastante difícil. Então, pé ante pé, voltou para o corredor.
Na porta da oficina de Mo havia uma placa, uma pequena placa de latão. Meggie sabia de cor as palavras que estavam escritas ali. Aos cinco anos ela aprendera a ler com aquelas letras antigas e enfeitadas:
Alguns livros devem ser degustados, Outros são devorados, Apenas poucos são mastigados E digeridos totalmente.
Naquela época, quando ainda precisava subir numa caixa para decifrar a placa, ela pensava que a frase falava literalmente em mastigar, e se perguntava horrorizada por que Mo havia escolhido para pendurar em sua porta as palavras de alguém tão esquisito, que destruía livros daquela maneira.
Agora ela já sabia o sentido, mas naquela noite não estava interessada em palavras escritas. Queria entender as palavras faladas, sussurradas em segredo, as palavras quase in-compreensíveis trocadas pelos dois homens atrás da porta.
— Não o subestime! — ela ouviu Dedo Empoeirado dizer.
A voz era tão diferente da de Mo. Nenhuma voz soava como a de seu pai. Com sua voz, Mo era capaz de pintar imagens no ar.
— Ele faria tudo para obtê-lo! — Era Dedo Empoeirado novamente. — E pode acreditar, tudo quer dizer tudo.
— Eu não vou lhe dar o livro. — Esse era Mo.
— Mas ele vai consegui-lo de uma forma ou de outra! Ouça, vou repetir mais uma vez: eles estão seguindo o seu rastro.
— Não seria a primeira vez. Até agora sempre consegui despistá-los.
— Ah, é? E por quanto tempo você acha que isso ainda vai funcionar? E a sua filha? Vai me dizer que ela gosta de ficar mudando de cidade a toda hora? Acredite, eu sei do que estou falando.
Atrás da porta, ficou tão silencioso que Meggie quase não se atrevia a respirar, de medo que os dois homens pudessem ouvir.
Então Mo falou outra vez, hesitante, como se sua língua encontrasse dificuldade em formar as palavras.
— E o que... devo fazer, na sua opinião?
— Venha comigo. Eu o levarei até eles! — Uma xícara tilintou. Uma colher bateu na porcelana. Como os pequenos barulhos ficavam grandes no silêncio.
--- Você sabe que Capricórnio aprecia muito os seus talentos, ele certamente ficaria muito feliz se você mesmo o levasse para ele! O novo, que ele arranjou como seu substituto, é um charlatão terrível.
Capricórnio. Mais um nome esquisito. Dedo empoeirado o pronunciara como se o som pudesse morder a sua língua. Meggie mexeu os dedos dos pés, que estavam gelados. O frio subia até o seu nariz e, embora não entendesse muito do que os dois homens diziam, ela tentava gravar cada palavra.
Na oficina, reinava o silêncio novamente.
— Não sei... — Mo finalmente disse. Sua voz soou tão cansada que
Meggie sentiu um aperto no coração. — Preciso refletir. Quando você acha que seus homens estarão aqui?
— Logo!
A palavra caiu como uma pedra no silêncio.
— Logo — repetiu Mo. — Pois bem. Então decidirei até amanhã. Você tem onde dormir?
— Oh, dá-se um jeito. Já estou me virando bem, embora tudo ainda continue muito rápido para mim — respondeu Dedo Empoeirado, dando uma risada que não parecia alegre. — Mas eu gostaria de saber o que você decidiu. Tudo bem se eu voltar amanhã? Lá pelo meio-dia?
— Claro. Vou buscar Meggie na escola à uma e meia. Venha depois. Meggie ouviu uma cadeira ser empurrada. Mais do que depressa, correu de volta pelo corredor. Quando a porta da oficina se abriu, ela havia acabado de fechar a porta do quarto. Deitou-se na cama, puxou o cobertor até o queixo e ouviu o pai se despedir de Dedo Empoeirado.
— Bem, mais uma vez obrigado por me avisar! — ela o ouviu dizer.
Então os passos de Dedo Empoeirado foram se distanciando, lentos, entrecortados, como se ele hesitasse em prosseguir, como se não tivesse dito tudo o que queria.
No entanto ele se foi, e apenas a chuva ainda tamborilava com seus dedos molhados na janela de Meggie.
Quando Mo abriu a porta do quarto, ela fechou os olhos depressa e tentou respirar devagar, como se estivesse num sono profundo e inocente.
Mas Mo não era bobo. Às vezes, ele era terrivelmente esperto.
— Meggie, ponha um pé para fora das cobertas — ele disse. Relutante, ela tirou os dedos dos pés ainda frios de sob o cobertor e colocou-os em cima da mão quente de Mo.
— Eu sabia — ele disse. — Você estava espionando. Você não pode fazer o que eu digo pelo menos uma vez?
Com um suspiro, ele empurrou de volta o pé para baixo do cobertor quente. Então sentou-se na cama, passou as mãos no rosto cansado e olhou pela janela. Seus cabelos eram escuros como o pêlo de uma toupeira. Os cabelos de Meggie eram loiros como os da mãe, que ela conhecia somente de algumas fotos desbotadas. “Fique feliz por ser mais parecida com ela do que comigo”, Mo sempre dizia. “Minha cabeça não ficaria nada bem em cima de um pescoço de menina.” Mas Meggie gostaria de ser parecida com ele. Não havia no mundo um rosto que ela amasse mais.
— Não entendi nada do que vocês falaram — ela murmurou.
— Ótimo.
Mo olhou pela janela, como se Dedo Empoeirado ainda estivesse no pátio. Então levantou-se e foi até a porta.
— Tente dormir mais um pouco — ele disse. Mas Meggie não queria dormir.
— Dedo Empoeirado! Que nome é esse? — ela perguntou. — E por que ele chamou você de Língua Encantada?
Mo não respondeu.
— E o outro, o que está atrás de você... eu ouvi quando Dedo Empoeirado falou... Capricórnio. Quem é?
— Ninguém que você precise conhecer. — Mo não se virou. — Você não disse que não tinha entendido nada? Até amanhã, Meggie.
Dessa vez, ele deixou a porta aberta. A luz do corredor batia na cama de Meggie e misturava-se ao negro da noite que entrava pela janela. Ela ficou ali deitada, esperando que a escuridão afinal desaparecesse e levasse consigo a sensação de que algo funesto estava para acontecer.
Somente muito depois ela compreendeu que o mal que a ameaçava não nascera naquela noite. Ele apenas voltara sorrateiramente.


2. Segredos
~
— Mas como fazem essas crianças sem livros de histórias? — perguntou Naftali.

E Reb Zebulun respondeu:
— Elas têm que se conformar. Livros de histórias não são como pão. Pode-se viver sem eles.
— Eu não poderia viver sem eles — disse Naftali.
Isaac B. Singer, Naftali, o contador de histórias, e seu cavalo Sus

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O dia começava a clarear quando Meggie acordou. Nos campos, a noite estava desbotada, como se a chuva tivesse lavado a barra de seu vestido. No despertador ainda não eram cinco horas, e Meggie ia se virar para o lado e continuar a dormir quando percebeu que havia alguém no quarto. Assustada, sentou-se e viu Mo na frente do guarda-roupa.
— Bom dia! — ele disse, enquanto colocava numa mala o pulôver preferido de Meggie. — Sinto muito, sei que ainda é cedo, mas precisamos viajar. Que tal um chocolate quente?
Meggie fez que sim, sonolenta. Lá fora os passarinhos cantavam alto, como se já estivessem acordados havia horas.
Mo ainda pôs duas calças na mala, fechou-a e levou-a até a porta. — Vista alguma coisa quente — ele disse. — Está frio lá fora.
— Para onde vamos? — perguntou Meggie, mas ele já havia desaparecido.
Perturbada, ela olhou pela janela. Quase esperava ver Dedo Empoeirado lá fora, mas no pátio havia apenas um melro saltitando entre as pedras molhadas. Meggie vestiu a calça e se arrastou até a cozinha. No corredor havia duas malas, uma sacola e a caixa de ferramentas de Mo.
Ele estava sentado à mesa preparando sanduíches. Provisões para a viagem. Quando Meggie entrou na cozinha, seu pai olhou para ela e sorriu, mas Meggie percebeu que ele estava preocupado.
— Não podemos viajar, Mo! — ela disse. — Ainda falta uma semana para as minhas férias!
— E daí? Afinal, não é primeira vez que preciso viajar a trabalho durante as aulas.
Ele tinha razão. Isso até acontecia com freqüência: toda vez que o dono de um sebo, um colecionador de livros ou uma biblioteca precisava de um encadernador, Mo era contratado para remover o mofo e a poeira de livros antigos e valiosos, ou fazer novos trajes para eles. Meggie achava que o nome “encadernador” não descrevia muito bem o trabalho do pai, por isso, alguns anos antes, ela fizera uma placa para a oficina dele com os dizeres: Mortimer Folchart, médico de livros. E aquele médico de livros jamais visitava seus pacientes sem a filha. Sempre fora assim e assim sempre seria, não importava o que dissessem os professores de Meggie.
— Que tal catapora? Já usei essa desculpa alguma vez?
— A última vez. Quando tivemos que visitar aquele sujeito horrível das bíblias. — Meggie examinou o rosto de Mo. — Mo? Temos que ir embora por causa de... ontem à noite?
Por um instante, ela pensou que ele lhe contaria tudo — o que quer que houvesse para contar. Mas ele sacudiu a cabeça.
— Não, imagine! — ele disse, enfiando os sanduíches num saco plástico, sem olhar para ela. — Sua mãe tinha uma
tia. A tia Elinor. Já fomos uma vez à casa dela, quando você era bem pequena. Já faz um bom tempo que ela quer que eu dê um jeito nos seus livros. Ela mora na região dos lagos italianos, nunca me lembro qual deles, mas é um lugar muito bonito, e daqui são no máximo seis ou sete horas de viagem.
“Por que precisa ser justo agora?”, Meggie quis perguntar. Mas não fez isso. Também não perguntou se ele havia se esquecido do encontro no começo da tarde. O medo que sentia das respostas era grande demais — e o medo de que Mo mentisse para ela mais uma vez também.
— Ela é tão esquisita quanto as outras? — foi o que Meggie perguntou.
Mo já a levara para visitar cada parente! Tanto a família dele quanto a da mãe de Meggie eram grandes, e ela tinha a impressão de que se espalhavam por metade da Europa.
Mo sorriu.
— Um pouco esquisita ela é, sim, mas vocês vão se dar bem. Ela tem livros realmente magníficos.
— Quanto tempo vamos ficar fora?
— Pode ser um tempo maior desta vez.
Meggie bebeu um gole do chocolate. Estava tão quente que queimou seus lábios. Ela encostou depressa a faca na boca para esfriá-los. Mo arrastou a cadeira para trás.
— Ainda preciso pegar umas coisas na oficina — ele disse. — Não vai demorar muito. Você deve estar morta de sono, mas pode dormir no ônibus depois.
Meggie fez que sim com a cabeça e olhou para fora pela janela. A manhã estava cinzenta. Uma névoa pairava sobre os campos e as colinas, e Meggie teve a impressão de que as sombras da noite haviam se escondido entre as árvores.
— Traga o lanche e não se esqueça de pegar livros — gritou Mo do corredor.
Como se ela não fizesse isso sempre. Já havia alguns anos, ele confeccionara um pequeno baú para ela carregar os livros prediletos em todas as viagens, curtas e longas, para lu
gares distantes e não tão distantes. “É bom ter os próprios livros quando se está num lugar estranho”, Mo dizia. Ele mesmo sempre levava pelo menos uma dúzia.
Mo pintara o baú de vermelho, vermelho como uma papoula, a flor preferida de Meggie, cujas pétalas eram ótimas para prensar entre as páginas de um livro e depois carimbar na pele uma estampa com a forma de uma estrela. Na tampa, Mo escrevera, com lindas letras ornamentais, Baú do tesouro de Meg-gie; dentro, o forro era de tafetá preto-brilhante. Desse tecido, porém, quase nada se via, pois Meggie possuía muitos livros prediletos. E, a cada nova viagem para um lugar diferente, um novo se juntava aos antigos. “Quando você leva um livro numa viagem”, dissera Mo quando ela pôs o primeiro no baú, “acontece uma coisa estranha: o livro começa a colecionar lembranças. Depois basta abri-lo, e você já está de novo no lugar onde o leu. Tudo volta, já nas primeiras palavras: as imagens, os cheiros, o sorvete que você tomou enquanto lia... Acredite, os livros são como papel pega-moscas. Não existe nada melhor para grudar lembranças do que páginas impressas.”
Talvez ele tivesse razão. Mas Meggie levava seus livros em todas as viagens também por outra razão. Eles eram seu lar quando ela estava num lugar estranho — vozes familiares, amigos que nunca brigavam com ela, amigos inteligentes e poderosos, audazes e experientes, viajados, aventureiros calejados. Seus livros a alegravam quando ela estava triste e espantavam o tédio enquanto Mo cortava o couro e o tecido e reencadernava velhas páginas que haviam se soltado após i-números anos sendo folheadas por incontáveis dedos.
Alguns livros iam todas as vezes, outros ficavam em casa, porque não combinavam com o objetivo da viagem ou porque precisavam dar lugar a uma nova história, ainda desconhecida.
Meggie passou a mão pelas lombadas arredondadas. Que histórias ela deveria levar desta vez? Que histórias podiam
 ajudar contra o medo que invadira a casa na noite anterior? Que tal uma história de mentiroso, como As aventuras do barão de Munchhausen? Mo havia mentido para ela. Havia mentido mesmo sabendo que ela vira a mentira em seu nariz. Pinóquio, pensou Meggie. Não. Muito estranha. E muito triste. Mas alguma coisa arrepiante ela tinha que levar, algo que expulsasse todos os pensamentos da cabeça, mesmo os mais sombrios. As bruxas. Isso, ela levaria As bruxas, as bruxas de cabeças calvas que transformavam crianças em ratos — e Ulisses, junto com o ciclope e a feiticeira que transformava os guerreiros em porcos. Mais perigosa do que essa a sua viagem não poderia ser, poderia?
Bem à esquerda estavam dois livros de figuras, com os quais Meggie aprendera a ler — na época ela estava com cinco anos, e as páginas ainda tinham a marca do seu pequeno e incrivelmente inquieto dedo indicador —, e no fundo, escondidos embaixo de todos os outros, estavam os livros que a própria Meggie confeccionara. Ela passara dias inteiros recortando e colando figuras e fazendo novos desenhos, embaixo dos quais Mo tinha que escrever o que representavam: Um anjo com cara feliz, de Meggi para Mo. O próprio nome ela mesma escrevera — naquela época sempre se esquecia de escrever o “e” final. Meggie observou sua letra infantil e pôs o pequeno livro de volta no baú. Naturalmente Mo ajudara na encadernação. Ele enfeitara com capas de papel colorido e estampado todos os livros feitos por ela e, para os outros, dera um carimbo de cabeça de unicórnio para que imprimisse o nome na primeira página, ora com tinta preta, ora com tinta vermelha, conforme a escolha de Meggie. A única coisa que Mo nunca havia feito era ler para a filha. Nem uma única vez.
Ele jogava Meggie para o alto, carregava-a nos ombros pela casa ou a ensinava a fazer um marcador de páginas com penas de melro. Mas ler para ela, nunca. Nem uma única vez, nem uma única palavra, por mais que ela pusesse os livros no colo dele. Assim, Meggie tivera que aprender sozinha a deci-
frar os sinais de tinta preta, a abrir o baú do tesouro...
Meggie levantou-se.
Ainda havia espaço no baú. Talvez Mo tivesse um livro novo que ela pudesse levar, algum livro bem grosso, especial-mente maravilhoso...
A porta da oficina estava fechada.
— Mo?
Meggie girou a maçaneta. A grande escrivaninha estava limpa como se tivesse sido varrida; nenhum carimbo, nenhum estilete, Mo realmente pegara tudo. Então ele não mentira?
Meggie entrou na oficina e olhou ao redor. A porta da câmara dourada estava aberta. Na verdade, a câmara era um simples quarto de despejo, mas Meggie o batizara assim, pois era ali que Mo guardava seus materiais mais preciosos: o couro mais fino, os tecidos mais bonitos, o papel marmorizado, os carimbos com os quais imprimia estampas douradas no couro macio... Meggie enfiou a cabeça pela porta entreaberta — e viu Mo empacotando um livro com papel de embrulho. Não era um livro muito grande nem muito grosso. A capa de tecido verde-claro parecia gasta, mas Meggie não pôde ver mais nada, pois Mo o escondeu rapidamente nas costas quando notou que ela estava lá.
— O que você está fazendo aqui? — ele perguntou em tom rude.
— Eu... — Por um momento Meggie ficou muda de susto com a cara feia que seu pai fez. — Eu só queria perguntar se você tem mais um livro para mim... já li todos os do meu quarto e...
Mo passou a mão no rosto.
— Claro. Alguma coisa vou achar, com certeza — ele disse, mas seus olhos continuavam dizendo “Saia daqui. Saia, Meggie”. — Eu já levo para você. Agora só preciso pegar mais uma coisa, está bem?
Pouco depois, ele levou três livros para ela. Mas o livro que ele havia embrulhado não estava entre eles.
Uma hora depois, eles carregaram tudo até o pátio. Meggie começou a tiritar de frio quando saiu da casa. Era uma manhã fria, fria como a chuva da noite anterior, e o sol pálido no céu parecia uma moeda que alguém havia esquecido lá em cima.
Fazia pouco mais de um ano que eles moravam naquele velho sitio. Meggie gostava da vista para as colinas, dos ninhos de andorinhas no telhado, do poço seco, tão fundo e escuro que parecia descer em linha reta até o centro da Terra. Ela achava a casa muito grande e muito ventilada, com todos aqueles quartos vazios, onde moravam aranhas enormes, mas o aluguel era barato e Mo tinha espaço suficiente para seus livros e para a oficina. Além disso, havia um galinheiro ao lado da casa e o estábulo — apesar de ser mais apropriado para algumas vacas ou um cavalo, era lá que agora estava estacionado o velho ônibus. “Vacas precisam ser ordenhadas, Meggie”, Mo havia dito quando ela propusera fazer uma tentativa com pelo menos dois ou três espécimes. “Cedo, de manhã bem cedo. E todos os dias.”
“É um cavalo?”, ela perguntara. “Até Píppi Meialonga tem um cavalo, e ela nem tem um estábulo.”
Meggie também teria ficado satisfeita com algumas ga-linhas ou uma cabra, mas estas também tinham que ser alimentadas diariamente e eles viajavam demais. Assim, só restou a Meggie o gato de pêlo alaranjado que às vezes passava por lá, cansado de brigar com os cães no sítio ao lado. O velho ranzinza que morava lá era o único vizinho. Às vezes seus cães uivavam tão queixosos que Meggie tinha que tapar os ouvidos. Eram vinte minutos de bicicleta até a cidade mais próxima, onde ficava a escola e moravam duas de suas amigas, mas Mo quase sempre a levava de carro, porque era um caminho deserto e a estradinha passava por campos ermos e árvores escuras.
— Meu Deus, o que você pôs aqui dentro? Tijolos? — perguntou Mo quando carregava o baú de Meggie para fora.
— Você mesmo sempre diz que os livros têm que ser pesados, porque o mundo inteiro está dentro deles — respondeu Meggie, fazendo-o rir pela primeira vez naquela manhã.
O ônibus, que estava no estábulo como se fosse um enorme bicho malhado, era mais familiar a Meggie do que todas as casas em que já morara com Mo. Em nenhum outro lugar ela dormia tão profundamente como na cama que ele construira para ela dentro do veículo. Naturalmente, havia também uma mesa, uma pequena bancada para cozinhar e um banco cujo assento era uma tampa que, quando erguida, deixava entrever guias de viagens, mapas de estradas e uma série de livros de bolso já lidos e relidos.
Sim, Meggie gostava do ônibus, mas naquela manhã hesitou ao entrar. Quando Mo voltou mais uma vez para fechar a porta da casa, ela teve subitamente a sensação de que aquela viagem seria diferente das outras, de que levaria os dois para longe, muito longe, numa fuga de alguma coisa que não tinha nome. Pelo menos não um nome que Mo lhe revelasse.
— Lá vamos nós. Para o sul! — ele disse depois de se acomodar atrás do volante.
E assim eles partiram, sem se despedir de ninguém, muito cedo, numa manhã com cheiro de chuva.
Mas, no portão, Dedo Empoeirado esperava por eles.

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