sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Coração de Tinta - Capítulos 25 ao 30

25. O final errado

Uma história, um romance, um conto — essas coisas assemelham-se a seres vivos, e talvez o sejam de fato. Elas têm sua cabeça, suas pernas, sua circulação sangüínea e sua roupa, como pes-soas de verdade.
Erich Kästner, Emil e os detetives

Fenoglio ainda ficou calado por um bom tempo depois que Mo terminou sua história. Paula já havia saído em busca de Pippo e Rico. Meggie ouvia seus passos ruidosos no assoa-lho de madeira do andar de cima, para lá e para cá, um salto, um escorregão, risadinhas e gritinhos. Mas a cozinha de Fenoglio estava tão silenciosa que se ouvia o tique-taque do relógio na parede ao lado da janela.
— Ele tem cicatrizes no rosto? O senhor sabe... — ele olhou para Mo à espera de uma resposta.
Mo confirmou com a cabeça.
Fenoglio retirou algumas migalhas de bolo de sua calça.
— Foi Basta quem lhe fez as cicatrizes — ele disse. — Porque os dois gostavam da mesma garota.
Mo fez que sim novamente.
— Sim, eu sei. Fenoglio olhou pela janela.
— As fadas trataram os cortes — ele disse. — Por isso ficaram apenas cicatrizes finas, quase nada mais do que três traços descorados na pele, não é?
Mo confirmou. E Fenoglio olhou novamente para fora.
Na casa da frente, uma janela estava aberta; dava para ouvir uma mulher brigando com uma criança.
— Na verdade eu deveria estar muito orgulhoso — murmurou Fenoglio. — Todo escritor deseja criar figuras cheias de vida, e as minhas até mesmo saíram para fora do livro!
— Foi porque o meu pai leu em voz alta — disse Meg-gie. — Ele pode fazer isso com outros livros também.
— Ah, é claro. — Fenoglio balançou a cabeça para a frente. — Que bom que você me lembrou disso. Senão eu poderia me considerar um pequeno deus, não é? Mas sinto muito por sua mãe. Embora, desse ponto de vista, isso tam-bém não seja culpa minha.
— Para o meu pai é pior — disse Meggie. — Eu não me lembro dela.
Mo olhou surpreso para ela.
— É natural. Você era mais nova do que os meus netos — Fenoglio observou pensativo e andou até a janela. — Eu realmente gostaria de vê-lo. Me refiro a Dedo Empoeirado. Agora naturalmente estou com pena de ter inventado um final tão triste para o pobre coitado. Mas que combina com ele de alguma maneira. Como disse Shakespeare de forma tão bonita: “Cada um desempenha o seu papel, e o meu é triste”. Ele o-lhou para a rua. No andar de cima, alguma coisa se espatifou, mas Fenoglio não pareceu muito interessado.
— Eles são mesmo seus filhos? — perguntou Meggie apontando para cima.
— Deus me livre, não. São meus netos. Uma das mi-nhas filhas também mora aqui na aldeia. Eles vêm sempre a-qui e eu conto histórias para eles. Conto histórias para a me-tade da aldeia, mas não sinto mais vontade de escrevê-las. Onde ele está agora?
Fenoglio voltou-se para Mo com um olhar indagador.
— Dedo Empoeirado? Não posso lhe dizer. Ele não quer vê-lo.
— Ele teve um choque quando meu pai lhe contou so-bre o senhor — acrescentou Meggie.
“Mas Dedo Empoeirado precisa saber o que vai acon-tecer com ele”, ela pensou. “Ele tem que saber. Aí então ele vai entender que realmente não pode voltar. E mesmo assim vai continuar sentindo saudades. Para sempre.”
— Preciso vê-lo! Uma vez só. O senhor não entende isso? — Fenoglio olhou suplicante para Mo. — Eu poderia segui-los discretamente. Afinal, como ele poderia me reco-nhecer? Eu só quero me assegurar de que ele realmente é co-mo o imaginei.
Mas Mo sacudiu a cabeça.
— Acho melhor o senhor deixá-lo em paz.
— Que nada! Posso vê-lo quando quiser. Afinal de contas, fui eu que o inventei!
— E o matou — acrescentou Meggie.
— Pois é — Fenoglio ergueu as mãos, desconcertado. — Eu queria deixar a coisa emocionante. Você não gosta de histórias emocionantes?
— Só quando elas têm um final feliz.
— Final feliz! — Fenoglio bufou com desprezo e vol-tou sua atenção para o andar de cima. Algo ou alguém caíra no chão com um forte estrondo, e a queda foi seguida por um choro alto. Fenoglio correu para a porta.
— Esperem aqui! Eu já volto! — ele exclamou, e desa-pareceu no corredor.
— Mo! — sussurrou Meggie. — Você precisa contar para Dedo Empoeirado! Precisa lhe dizer que ele não pode voltar.
Mas Mo sacudiu a cabeça.
— Ele não quer ouvir, acredite. Já tentei dezenas de vezes. Talvez não seja má idéia fazê-lo se encontrar com Fe-noglio. Talvez ele acredite mais no seu criador do que em mim.
Com um suspiro, ele limpou da mesa algumas migalhas
de bolo.
— Havia uma ilustração em Coração de tinta — ele murmurou enquanto passava a palma da mão no tampo da mesa, como se dessa forma pudesse fazer a imagem aparecer. — Sob uma arcada havia um grupo de mulheres vestidas com roupas suntuosas, como se estivessem indo para uma festa. Uma delas tinha os cabelos claros como os de sua mãe. O de-senho não mostra o rosto dessa mulher, que está de costas para o observador, mas eu sempre imaginei que era ela. Lou-co, não é?
Meggie pôs a mão sobre a dele.
— Mo, prometa que você nunca mais vai voltar àquela aldeia! — ela disse. — Por favor! Prometa que não vai tentar pegar o livro de volta.
O ponteiro de segundos do relógio da cozinha de Fe-noglio cortava o tempo em fatias dolorosamente finas, até que Mo finalmente respondeu.
— Prometo — ele disse.
— Diga isso olhando para mim! Ele obedeceu.
— Eu prometo — repetiu. — Só quero conversar mais uma coisa com Fenoglio, depois iremos para casa e esquece-remos o livro. Satisfeita?
Meggie fez que sim. Embora ela se perguntasse o que ainda havia para conversar.
Fenoglio voltou carregando Pippo nas costas. O meni-no chorava, e as outras duas crianças vinham atrás com cara emburrada.
— Buracos no bolo e agora um na testa, acho que vou ter que mandar vocês todos de volta para casa! — esbravejou Fenoglio, enquanto sentava Pippo numa cadeira.
Então ele remexeu no grande armário até encontrar um curativo, e colou-o sem muito cuidado na testa de seu neto.
Mo empurrou a cadeira para trás e levantou-se.
— Estive pensando — ele disse. — E decidi levá-lo até Dedo Empoeirado.
Fenoglio virou-se para ele, surpreso.
— Talvez o senhor possa fazê-lo entender de uma vez por todas que ele não pode voltar — prosseguiu Mo. — Sabe-se lá o que ele ainda pode tentar fazer; receio que possa ser perigoso para ele. Além disso, tive uma idéia, é uma idéia ma-luca, mas eu gostaria de discuti-la com o senhor.
— Mais maluca do que tudo o que acabei de ouvir? Is-so não deve ser possível!
Os netos de Fenoglio entraram novamente no armário e fecharam a porta em meio a risadinhas.
— Quero ouvir a sua idéia — disse Fenoglio. — Mas antes quero ver Dedo Empoeirado!
Mo olhou para Meggie. Não era comum Mo quebrar uma promessa, e ele se sentia visivelmente desconfortável com isso. Meggie entendia isso muito bem.
— Ele está esperando na piazza — disse Mo, com voz hesitante. — Mas deixe-me falar com ele primeiro.
— Na piazza? — os olhos de Fenoglio se arregalaram. — Isso é maravilhoso!
Ele andou até o espelho que havia ao lado da porta da cozinha e ajeitou os cabelos pretos, como se temesse que Dedo Empoeirado pudesse ficar decepcionado com a aparência de seu criador.
— Vou fazer de conta que não o estou vendo, até que você me chame — ele disse. — Sim, vamos fazer assim.
Houve um barulho no armário, e Pippo saiu de dentro dele vestindo um casaco que lhe chegava nos calcanhares. Na cabeça ele havia posto um chapéu enorme, que lhe cobria os olhos.
— É claro! — Fenoglio tirou o chapéu da cabeça de Pippo e pôs em sua própria. — Aí está! Levarei as crianças! Um avô com seus três netinhos não é nenhuma visão inquie-tante, certo?
Mo assentiu com a cabeça e puxou Meggie pelo corredor estreito.
Eles desceram a rua que levava de volta à piazza e ao automóvel, e Fenoglio os seguiu a alguns metros de distância. Os netos pulavam em volta dele como três cachorrinhos.

26. Um arrepio e um pressentimento

E só então ela largou o livro. E olhou para mim. E declarou:
— A vida não é justa, Bill. Contamos a nossos filhos que ela é justa, mas isso é uma infâmia. Não é uma simples mentira, é uma mentira cruel. A vida não é justa, nunca foi e nunca será.
William Goldman, O noivo da princesa

Dedo Empoeirado estava esperando sentado nos de-graus frios de pedra. Sentia náuseas de medo, ele próprio não sabia muito bem do quê. Talvez o monumento atrás dele lhe lembrasse demais a morte. Ele sempre tivera medo da morte, ele a imaginava fria, como uma noite sem fogo. Contudo, nos últimos tempos, ele temia ainda mais uma outra coisa, e essa coisa era a tristeza. Desde que Língua Encantada o trouxera para aquele mundo, ela o seguia como uma segunda sombra. Era uma tristeza que tornava os membros pesados e o céu cinzento.
Ao lado dele, Farid pulava os degraus da escadaria. Para cima e para baixo, com pés ágeis e uma cara faceira, como se Língua Encantada o tivesse transportado diretamente para o paraíso. O que o fazia tão feliz? Dedo Empoeirado olhou em volta, observou as casas estreitas, amarelas, cor-de-rosa, cor de pêssego, as janelas verde-escuras e os telhados vermelhos co-mo ferrugem, o oleandro florido na frente de um muro, como se seus galhos estivessem em chamas, os gatos que passeavam
em cima dos muros quentes. Farid aproximou-se furtivamente de um deles, agarrou-o pelo pêlo cinzento e o segurou no co-lo, embora o gato tivesse cravado as unhas em sua coxa.
— Sabe o que eles fazem aqui para que os gatos não se reproduzam demais? — Dedo Empoeirado esticou as pernas e piscou para o sol. — Assim que chega o inverno, eles tran-cam os seus próprios gatos em casa e colocam tigelas com comida envenenada na porta para os vira-latas.
Farid acariciou as orelhas pontudas do gato cinzento. Seu rosto estava pasmo, não havia mais nenhum vestígio da felicidade ronronante que pouco antes o fizera parecer tão leve. Dedo Empoeirado desviou depressa o olhar. Por que ele dissera aquilo? Por que estragara a felicidade do rosto do ga-roto?
Farid deixou o gato ir e subiu os degraus até o monu-mento.
Ele ainda estava lá no alto do muro, com as pernas es-ticadas, quando os outros dois voltaram. Língua Encantada não tinha nenhum livro na mão, seu rosto estava tenso, e a consciência pesada estampava-se em sua testa.
Por quê? Por que Língua Encantada estaria com a consciência pesada? Dedo Empoeirado olhou desconfiado ao seu redor, sem saber o que procurar. Língua Encantada sem-pre carregava os sentimentos estampados no rosto. Ele era um livro permanentemente aberto, cujas páginas qualquer um po-dia ler. Sua filha era diferente. Não era muito fácil decifrar o que acontecia dentro dela. Mas, quando ela se aproximou, Dedo Empoeirado pensou identificar em seus olhos algo de preocupação, talvez até piedade. Era por ele? O que aquele escrevinhador havia contado para que a menina olhasse para ele daquele jeito?
Dedo Empoeirado se levantou, bateu o pó da calça e, quando os dois pararam na sua frente, disse:
— Ele não tinha mais nenhum livro, certo?
— Certo. Todos foram roubados — respondeu Língua
Encantada. — Já faz anos.
A filha dele não tirava os olhos de Dedo Empoeirado.
— Por que está me olhando assim, princesa? — ele perguntou, zangado. — Você sabe de alguma coisa que eu não sei?
Na mosca. Sem fazer pontaria. Ele não queria acertar nada, muito menos uma verdade. A menina mordeu os lábios, ainda olhando para ele com aquela mistura de piedade e pre-ocupação.
Dedo Empoeirado passou a mão nas cicatrizes, coladas em seu rosto como um cartão-postal: “Lembranças de Basta”. Não havia dia em que ele conseguisse esquecer do cão raivoso de Capricórnio, por mais que desejasse. “Para você agradar ainda mais às garotas no futuro!”, Basta sussurrara em seu ou-vido antes de limpar o sangue da navalha.
— Oh, mas que droga, mas que droga!
Dedo Empoeirado deu um pontapé num muro, tão forte que ficou sentindo o pé durante dias.
— Você contou sobre mim para o escrevinhador! — ele gritou com Língua Encantada. — E agora até a sua filha sabe mais sobre mim do que eu próprio! Pois bem, desembu-che. Agora eu também quero saber. Conte. Afinal você sem-pre quis fazer isso. Basta me estrangula, é isso? Ele estica o meu pescoço, prende a minha respiração até eu ficar duro que nem uma bengala, não é? Mas como isso me afetaria? Agora Basta está aqui. A história se modificou, ela só pode ter se modificado! Basta não pode fazer nada contra mim se você me mandar de volta!
Dedo Empoeirado deu um passo na direção de Língua Encantada. Queria agarrá-lo, sacudi-lo, bater nele por tudo o que lhe fizera, mas a menina se pôs entre os dois.
— Pare! Não é Basta! — ela exclamou enquanto o empurrava para trás. — É algum dos homens de Capricórnio, alguém que ainda está esperando por você, sim. Eles querem matar Gwin e você tenta ajudá-lo, e por isso eles matam você!
Nessa parte, nada se modificou! Vai acontecer e pronto, não há o que você possa fazer. Entende? Por isso você tem que ficar aqui, você não pode voltar, nunca mais!
Dedo Empoeirado olhou para a menina como se assim pudesse fazê-la se calar, mas ela resistiu. Até mesmo tentou pegar a mão dele.
— Fique feliz por estar aqui! — ela balbuciou enquanto recuava. — Aqui você pode sair do caminho deles. Você pode fugir para bem longe e...
A voz de Meggie sumiu. Talvez ela tenha visto as lá-grimas nos olhos de Dedo Empoeirado. Irritado, ele as enxu-gou com a manga. Ele olhava para os lados, como um animal que caiu numa armadilha e procura uma saída. Mas não havia saída. Nenhum lugar para ir e, o que era pior, nenhum lugar para voltar.
Mais acima, no ponto de ônibus, duas mulheres olha-vam curiosas para baixo. Era comum Dedo Empoeirado atrair olhares como aquele, todos viam que ele não pertencia àquele mundo. Um forasteiro, era o que ele era e sempre seria.
Do outro lado da praça, três crianças e um homem mais velho jogavam futebol com uma lata. Farid olhou para eles. Tinha a mochila de Dedo Empoeirado pendurada nos ombros estreitos, e sua calça estava cheia de pêlos do gato cinzento. O menino encontrava-se absorto em pensamentos, enfiando os dedos dos pés descalços entre as pedras do cal-çamento. Vivia tirando os tênis que Dedo Empoeirado com-prara para ele, mesmo no asfalto quente andava descalço, os tênis amarrados na mochila, como uma presa que levava para casa.
Dedo Empoeirado também olhou para as crianças que estavam brincando. O velho que estava com elas não acabara de acenar? Dedo Empoeirado deu um passo atrás. Um arrepio correu por sua espinha.
— Meus netos estão muito admirados com a marta domesticada que aquele garoto traz pela corrente — disse o
velho quando se aproximou.
Dedo Empoeirado deu mais um passo para trás. Por que o homem olhava para ele daquela maneira? Ele o exami-nava de um jeito totalmente diferente do das mulheres no ponto de ônibus.
— As crianças afirmam que a marta sabe fazer piruetas. E que o garoto come fogo. Será que podemos nos aproximar e ver isso de perto?
O arrepio espalhou-se pelo corpo de Dedo Empoeira-do, embora o sol queimasse sua pele. A maneira como o velho olhava para ele — como a um cão, que fugira de casa havia muito tempo e agora voltara, com o rabo entre as pernas e talvez cheio de piolhos, mas sem dúvida alguma o seu cão.
— Que absurdo, não há pirueta alguma! — ele gritou. — Não há nada para ver aqui!
Ele recuou mais um passo, mas o velho o acompanhou, como se uma fita invisível os unisse.
— Sinto muito! — ele disse erguendo a mão, como se quisesse tocar suas cicatrizes.
Dedo Empoeirado bateu com as costas num automóvel estacionado. Então o velho escritor estava bem na sua frente. O jeito embasbacado como olhava para ele...
— Suma daqui! — Dedo Empoeirado empurrou-o bruscamente. — Farid, traga as minhas coisas!
O garoto correu para o lado dele. Dedo Empoeirado arrancou a mochila de suas costas, pegou a marta e a enfiou dentro dela, sem dar atenção a seus dentes arreganhados. O velho olhava para os chifres de Gwin. Com um movimento rápido, Dedo Empoeirado pendurou a mochila nas costas e tentou passar por ele.
— Por favor, quero apenas conversar com você.
O velho se pôs no caminho de Dedo Empoeirado e segurou no braço dele.
— Mas eu não.
Dedo Empoeirado tentou se soltar. Seus dedos ossudos
eram espantosamente fortes, mas ele tinha a navalha, a nava-lha de Basta. Ele a tirou da mochila, e a segurou sob o queixo do velho. Sua mão tremia, ele nunca sentira prazer em encos-tar uma lâmina no rosto de alguém, mas o velho cedeu.
E Dedo Empoeirado começou a correr.
Ele não deu atenção ao que Língua Encantada gritava atrás dele. Corria, como antigamente precisara fazer tantas vezes. Em suas pernas ele podia confiar, embora ainda não soubesse até onde elas o levariam. Deixou para trás a aldeia e a estrada, enfiou-se debaixo de árvores, abriu caminho em meio à relva selvagem, deixou-se engolir por arbustos amare-los como mostarda, escondeu-se na folhagem prateada das oliveiras, sempre se afastando das casas, das estradas pavi-mentadas. A natureza sempre o protegera.
Somente quando começou a sentir dor ao respirar, Dedo Empoeirado jogou-se na relva, atrás de uma cisterna abandonada na qual os sapos coaxavam e a água da chuva acumulada evaporava ao sol. Ele ficou ali deitado, ofegante, ouvindo as batidas de seu próprio coração e olhando para o céu.
Quem era o velho?
Ele levou um susto. O garoto estava na sua frente. Ele o seguira.
— Suma daqui! — gritou Dedo Empoeirado.
O garoto agachou-se entre as flores selvagens. Elas cresciam por toda parte, azuis, amarelas, vermelhas, como manchas de tinta borrifadas na relva.
— Não quero mais a sua companhia! — disse Dedo Empoeirado secamente.
O garoto ficou calado, colheu uma orquídea selvagem e examinou suas pétalas. A flor parecia uma abelha, uma abelha num caule.
— Que flor mais estranha! — ele murmurou. — Nunca vi uma flor assim.
Dedo Empoeirado sentou-se e apoiou as costas na pa-
rede da cisterna. — Você vai se arrepender se vier atrás de mim — ele disse. — Eu vou voltar, você sabe para onde.
Somente quando disse isso ele tomou consciência de que já estava decidido. Já fazia tempo. Ele voltaria. Dedo Empoeirado, o covarde, voltaria para a toca do leão. Não im-portava o que Língua Encantada dissesse, o que sua filha dis-sesse... ele só queria uma coisa. Ele sempre quisera apenas uma coisa. E se ele não podia tê-la agora, pelo menos tinha a esperança de que um dia ela se tornaria realidade.
O garoto ainda estava lá.
— Agora vá de uma vez. Volte para Língua Encantada! Ele cuidará de você.
Farid continuou sentado, imóvel, com os braços ao re-dor das pernas encolhidas.
— Você vai voltar para a aldeia?
— Vou! Para onde moram os diabos e os demônios. Acredite, eles comem um garoto como você no ca-fé-da-manhã, para abrir o apetite.
Farid passou as pétalas da orquídea pelas maçãs do rosto. Fez uma careta quando as folhas pinicaram sua pele.
— Gwin quer sair — ele disse.
Ele tinha razão. A marta estava mordendo a mochila e pondo o nariz para fora. Dedo Empoeirado abriu as fivelas e deixou-a ir.
Gwin piscou com a luz do sol e rosnou irritado, prova-velmente por causa do horário impróprio, e correu em direção ao garoto.
Farid pôs a marta no ombro e olhou para Dedo Empo-eirado com olhos sérios.
— Nunca vi flores como essas — ele disse mais uma vez. — Nem colinas tão verdes ou uma marta tão esperta. Mas homens como esses de que você está falando eu conheço muito bem. Eles são iguais em toda parte.
Dedo Empoeirado sacudiu a cabeça.
— Esses são piores.
— Não, não são.
A teimosia na voz de Farid fez Dedo Empoeirado rir, ele mesmo não sabia por quê.
— Poderíamos ir para outro lugar — disse o garoto.
— Não, não podemos.
— Por quê? O que você quer na aldeia?
— Roubar uma coisa — respondeu Dedo Empoeirado.
O garoto balançou a cabeça como se roubar fosse a coisa mais normal do mundo, e enfiou a orquídea no bolso da calça com cuidado.
— Antes você me ensina mais algumas coisas sobre o fogo?
— Antes?
Dedo Empoeirado riu. O garoto era esperto, ele sabia que provavelmente não haveria um depois.
— É claro — ele respondeu. — Ensino tudo o que sei. Antes.

27. Apenas uma idéia
— Pode ser tudo verdade — disse o espantalho. — Mas promessa é dívida, é preciso cumprir as promessas.
L. Frank Baum, O mágico de Oz

Eles não foram para a casa de Elinor depois que Dedo Empoeirado os deixou.
— Meggie, sei que prometi a você que iríamos para a casa de Elinor — disse Mo quando estavam, os dois meio perdidos, na praça diante do monumento. — Mas eu gostaria de partir só amanhã. Como já lhe disse, preciso conversar com Fenoglio.
O velho homem ainda estava no mesmo lugar onde ha-via falado com Dedo Empoeirado, olhando fixamente para a rua. Seus netos o puxavam pela manga e o chamavam, mas ele parecia não notá-los.
— Você quer conversar com ele sobre o quê?
Mo sentou-se na escada do monumento e puxou Meg-gie para junto de si.
— Está vendo aqueles nomes ali? — ele perguntou enquanto apontava para cima, onde letras cinzeladas na pedra falavam de homens que não existiam mais. — Atrás de cada um desses nomes, há uma família, uma mãe ou um pai, ir-mãos, talvez uma esposa. Se um deles descobrisse que pode dar vida às palavras, que o que agora é apenas um nome pode-ria se tornar carne e osso novamente, você não acha que eles
fariam tudo, tudo mesmo para que isso acontecesse?
Meggie olhou para a longa seqüência de nomes. Ao la-do do primeiro alguém pintara um coração e, nas pedras dian-te do monumento, havia um buquê de flores secas.
— Ninguém pode despertar os mortos, Meggie — prosseguiu Mo.
— Talvez seja verdade que a morte é apenas o começo de uma nova história, mas ainda ninguém leu o livro em que ela está escrita, e o seu autor certamente não mora num luga-rejo na costa, onde joga futebol com seus netos. Mas o nome da sua mãe não está escrito numa dessas pedras, está escon-dido em algum lugar num livro, e eu tenho uma idéia de como talvez ainda seja possível mudar o que aconteceu há nove a-nos. — Você quer voltar!
— Não, eu não quero. Eu dei a minha palavra a você. Já deixei de cumpri-la alguma vez?
Meggie fez que não com a cabeça. “A palavra que você deu a Dedo Empoeirado”, ela pensou, “você quebrou”; mas não disse o que estava pensando.
— Então, está vendo? — disse Mo. — Quero conver-sar com Fenoglio, só por isso quero ficar aqui mais um dia.
Meggie olhou para o mar. O sol rompera entre as nu-vens, e a água de repente brilhava e reluzia, como se alguém tivesse derramado tinta sobre ela.
— Não é longe daqui — ela murmurou.
— O quê?
— A aldeia de Capricórnio.
Mo olhou para o oeste.
— É estranho que ele tenha vindo morar justamente aqui, não é? É como se ele tivesse procurado um lugar pare-cido com o país da sua história.
— E se ele nos encontrar?
— Impossível. Você sabe quantos lugarejos como este existem nesta costa?
Meggie sacudiu os ombros.
— Ele já o encontrou uma vez, e você estava muito mais longe.
— Ele me encontrou com a ajuda de Dedo Empoeira-do, que com certeza não o ajudará novamente. — Mo se pôs de pé e ergueu Meggie. — Venha, vamos perguntar a Fenoglio onde podemos passar a noite. Além disso, parece que ele está precisando de companhia.
Fenoglio não revelou se Dedo Empoeirado era como ele havia imaginado. Foi bastante lacônico enquanto os dois o acompanharam de volta para casa. Mas quando Mo lhe disse que ele e Meggie gostariam de ficar mais um dia, seu rosto se iluminou um pouco. Ele até mesmo lhes ofereceu um aparta-mento, que de vez em quando alugava para turistas.
Mo aceitou agradecido.
Ele e o velho escritor ficaram conversando até o fim da tarde, enquanto os netos de Fenoglio corriam atrás de Meggie por aquela casa cheia de esconderijos. Os dois homens senta-ram-se no escritório de Fenoglio, que ficava ao lado da cozi-nha. Meggie tentou várias vezes escutar através da porta fe-chada, mas Pippo e Rico sempre a apanhavam com suas mão-zinhas sujas e a puxavam para a escada antes que ela tivesse conseguido ouvir dez palavras.
Finalmente, ela desistiu. Deixou Paula lhe mostrar os gatinhos que passeavam com a mãe deles no pequeno jardim atrás da casa, e acompanhou os três até a casa onde moravam com os pais. Eles não ficaram muito tempo lá, apenas o sufi-ciente para convencer a mãe de que podiam ficar na casa do avô também para a próxima refeição.
Fenoglio serviu macarrão com sálvia no jantar. Pippo e Rico tiraram do macarrão a erva de gosto acre com caretas de nojo, mas Meggie e Paula saborearam as folhas frescas e cro-cantes. Depois de comer, Mo bebeu com Fenoglio uma gar-rafa inteira de vinho tinto, e quando o velho escritor final-mente os acompanhou até a porta, ele disse:
— Então está combinado, Mortimer, você cuida dos
meus livros e amanhã mesmo eu começo meu trabalho.
— Que trabalho, Mo? — perguntou Meggie, enquanto os dois andavam pelas vielas parcamente iluminadas.
A noite não tornara o ar muito mais fresco; um vento estranho começava a soprar pela aldeia, quente e arenoso co-mo se transportasse o deserto através do mar.
— Eu preferiria que você não pensasse mais nisso — disse Mo. — Vamos fazer de conta que estamos de férias por alguns dias. Acho que tudo aqui tem cara de férias, você não acha?
Meggie respondeu apenas com a cabeça. Era verdade, Mo a conhecia muito bem. Quantas vezes ele não adivinhava o que ela estava pensando antes que ela o dissesse! Mas de vez em quando ele esquecia que ela não tinha mais cinco anos, e que era preciso mais do que algumas palavras bonitas para distraí-la das coisas que a preocupavam.
“Tudo bem”, ela pensou, seguindo Mo calada pela aldeia em repouso. “Se ele não quer me contar o que Fenoglio vai fazer para ele, vou perguntar ao próprio cara-de-tartaruga. E se ele também não me disser, um dos seus netos vai descobrir para mim!” Meggie já não podia mais se esconder debaixo da mesa sem ser notada, mas Paula ainda tinha o tamanho adequado para espionar.

28. Em casa

Para mim, em minha pobreza, minha biblioteca bastava-me como ducado.
William Shakespeare, A tempestade

Já era quase meia-noite quando Elinor finalmente viu seu portão surgir à margem da estrada. Lá embaixo, na beira do lago, as luzes se enfileiravam como uma caravana de va-ga-lumes e refletiam-se trêmulas na água escura. Era bom vol-tar para casa. Até mesmo o vento que soprou no rosto de E-linor quando ela desceu do carro para abrir o portão era fami-liar. Tudo era familiar, o perfume da cerca viva e da terra, e o ar muito mais frio e úmido do que no sul. Seu gosto também não era mais salgado. “Acho que vou sentir falta do gosto do mar”, pensou Elinor. O mar sempre a enchia de nostalgia, ela mesma não sabia do quê.
O portão de ferro rangeu baixinho quando ela o abriu, quase como se lhe desse as boas-vindas. Não haveria nenhu-ma outra voz para saudá-la. “Mas que pensamento mais bobo, Elinor!”, ela murmurou, irritada, enquanto entrava de novo no automóvel. “Os seus livros irão cumprimentá-la. E isso bas-ta!”
Já durante a viagem ela tivera um desses acessos. Havia decidido voltar para casa sem pressa, evitando as grandes es-tradas, e pernoitara num pequeno lugarejo nas montanhas, cujo nome esquecera. Ela sentia-se feliz por estar sozinha no-vamente, afinal era a isso que estava acostumada, mas então
de repente o silêncio dentro do automóvel a incomodara e, ao passar por uma cidadezinha que nem ao menos possuía uma livraria e onde quase todos já estavam dormindo, resolveu en-trar num café apenas para ouvir algumas vozes. Ela não ficara muito tempo lá dentro, só o suficiente para um café bebido às pressas, pois estava irritada consigo mesma. “O que é isso, Elinor?”, murmurara quando estava de volta dentro do carro. “Desde quando você sente falta da companhia de outras pes-soas? Está realmente na hora de voltar para casa, antes que você fique completamente esquisita.”
Quando chegou lá em cima, sua casa lhe pareceu es-tranha, tão escura e abandonada como estava. Apenas o per-fume do jardim espantou um pouco o mal-estar enquanto ela subia os degraus até a porta da casa. A lâmpada sobre a porta, que costumava ficar acesa à noite, estava apagada. Elinor pre-cisou de um tempo ridiculamente grande para conseguir enfiar a chave na fechadura. Enquanto abria a porta e tateava no Vestíbulo, escuro como breu, ela xingou baixinho o homem que costumava cuidar da casa e do jardim em sua ausência. Ela tentara telefonar para ele três vezes antes de partir, mas ele devia estar de novo na casa da filha. Por que ninguém enten-dia que naquela casa estavam guardados tesouros incríveis? Sim, se eles fossem de ouro seria diferente, mas eram apenas de papel, de papel e tinta...
Estava tudo quieto, extremamente quieto, e por um instante Elinor pensou ouvir a voz de Mortimer, a mesma voz que ela ouvira encher de vida a igreja pintada de vermelho. Ela teria continuado a ouvi-la por cem anos; que nada, por du-zentos anos. Pelo menos.
— Ele vai ter que ler para mim quando chegar — ela murmurou enquanto tirava os sapatos dos pés cansados. — Há de existir algum livro que ele possa pegar nas mãos sem perigo.
Como é que ela ainda não havia reparado em como sua casa podia ser silenciosa? Era um silêncio sepulcral, e a alegria
que Elinor esperara sentir quando estivesse novamente entre suas quatro paredes só aparecia timidamente .
— Oláááá, estou de volta! — ela exclamou para o silên-cio, enquanto tateava no escuro em busca do interruptor. — Agora vou espanar o pó de vocês e arrumá-los direitinho nas estantes, meus tesouros!
A luz no teto se acendeu, e Elinor recuou tão assustada que caiu em cima da própria bolsa, que ela havia largado no chão.
— Oh, céus! — ela sussurrou enquanto se punha de pé novamente. — Oh, meu Deus do céu. Não!
Nas paredes, as estantes, feitas sob medida por um marceneiro, estavam vazias. Os livros que antes ficavam tão bem-arrumados nas prateleiras, com as lombadas uma ao lado da outra, agora estavam jogados e amontoados no chão, do-brados, sujos, rasgados, como se pesadas botas tivessem dan-çado uma dança selvagem em cima deles. Elinor começou a tremer, da cabeça aos pés. Ela passou por cima de seus te-souros aviltados como quem atravessa um lago pantanoso, tropeçou, empurrou alguns para o lado, ergueu um outro e o deixou cair novamente, e assim prosseguiu até o longo corre-dor que levava para a biblioteca.
No corredor, as coisas não estavam melhores. Os livros se amontoavam em montes tão altos que Elinor mal conse-guiu abrir caminho em meio aos destroços. Então ela estava diante de sua biblioteca. A porta estava apenas encostada, e Elinor ficou parada ali uma eternidade, com as pernas bambas, até que finalmente criou coragem para abri-la.
Sua biblioteca estava vazia.
Não havia um livro, um único livro, nas estantes nem nas vitrines, cujos vidros estavam quebrados. Também não havia livros no chão. E no teto havia um galo vermelho pen-durado, morto.
Elinor pôs a mão na boca quando o viu. Ele estava de cabeça para baixo, a crista cobrindo os olhos petrificados. Su-
as penas ainda brilhavam, como se a vida tivesse se refugiado nelas: nas delicadas penas ruivas do peito, nas asas com man-chas escuras e nas longas penas da cauda, verde e brilhantes como seda.
Uma das janelas estava aberta. Uma seta preta tinha si-do desenhada com carvão na veneziana. Ela apontava para fora. Elinor correu para a janela, com os pés cambaleantes de medo. A noite não estava escura o bastante para esconder o que havia lá fora no gramado: um monte disforme de cinzas, esbranquiçadas sob a luz da lua, cinza-claro como as asas das traças, cinza como papel queimado.
Ali estavam eles. Seus preciosos livros. Ou o que restara deles.
Elinor ajoelhou-se no assoalho cuja madeira escolhera com tanto critério. Pela janela aberta em cima dela, o vento soprava, o vento familiar, e quase tinha o cheiro do ar da igreja de Capricórnio. Elinor quis gritar, quis praguejar, xingar, esbravejar, mas nenhum som saiu de sua boca. Ela só conseguiu chorar.

29. Um bom lugar para ficar

— Eu não tenho mãe — disse Peter.
E também não sentia a menor falta.
Ele achava que se exagerava muito o valor às mães.
James M. Barrie, Peter Pan

O apartamento que Fenoglio costumava alugar estava apenas duas vielas distante de sua casa. Tinha um pequeno banheiro, uma cozinha e dois quartos. Como ficava no andar térreo, era um pouco escuro. As camas rangiam quando eles se deitavam, mas apesar disso Meggie dormiu, de qualquer forma muito melhor do que na palha úmida de Capricórnio ou na cabana com o telhado desmoronado.
Mo não dormiu bem. Na primeira noite, Meggie acor-dou três vezes com o barulho dos gatos brigando lá fora, e nas três vezes ele estava deitado com os olhos abertos, os braços cruzados atrás da cabeça, olhando para a janela escura.
Na manhã seguinte ele já estava de pé bem cedo, e comprou o que precisavam para o café-da-manhã na pequena venda que havia no final da rua. Os pãezinhos ainda estavam quentes, e Meggie quase teve a sensação de estar de férias quando Mo a levou até a próxima cidade para comprar as fer-ramentas mais importantes para o seu trabalho — pincéis, es-tiletes, tecido, papelão — e um sorvete verdadeiramente gi-gantesco, que eles tomaram juntos num café com vista para o mar. Meggie ainda estava com o gosto do sorvete na boca
quando eles bateram na porta da casa de Fenoglio. O velho tomou mais um café com Mo em sua cozinha pintada de ver-de, e depois levou os dois para o sótão, onde guardava os seus livros.
— Você não está falando sério! — protestou Mo quando estavam diante das estantes cobertas de pó. — Você deveria ser proibido de ficar com eles, imediatamente! Qual foi a última vez em que esteve aqui em cima? Dá para tirar o pó com uma espátula!
— Tive que alojá-los aqui — defendeu-se Fenoglio enquanto a consciência pesada se escondia em suas rugas. — Lá embaixo estava muito apertado com todas essas estantes, e além disso os meus netos viviam pondo os dedinhos neles.
— Bem, eles não teriam provocado tantos estragos quanto o pó e a umidade — disse Mo com voz tão zangada que Fenoglio se retirou.
— Pobre criança. O seu pai é sempre assim tão severo? — ele perguntou para Meggie enquanto eles desciam a escada íngreme.
— Só quando se trata de livros — ela respondeu.
Fenoglio enfiou-se no escritório antes que ela pudesse fazer qualquer pergunta. Seus netos estavam na escola e no jardim-de-infância, então ela pegou os livros que Elinor lhe dera e sentou-se com eles na escada que dava para o jardinzi-nho de Fenoglio. Ali cresciam roseiras silvestres, tão cheias que mal se podia dar um passo sem se enroscar em suas gavi-nhas, e do último degrau dava para ver o mar, o mar distante, mas que parecia tão próximo...
Meggie abriu o livro de poemas. O sol estava claro e ela teve que apertar os olhos, mas, antes de começar a ler, ela o-lhou para trás para se certificar de que Mo não havia descido novamente. Não queria que ele a surpreendesse fazendo o que pretendia fazer. Estava envergonhada, mas a tentação era grande demais.
Depois de se certificar de que não vinha ninguém, ela
respirou fundo, pigarreou — e começou. Ela formou cada palavra com os lábios, como vira Mo fazer, quase carinhosa-mente como se cada letra fosse uma nota que, se pronunciada com indiferença, desafinaria na melodia. Mas logo ela notou que, quando dava atenção a cada palavra, a frase deixava de soar e que, se prestasse atenção apenas ao som e não ao sen-tido, as imagens atrás dela se perdiam. Era difícil. Muito difícil. E o sol começou a deixá-la sonolenta, até que finalmente ela fechou o livro e ficou sentindo seus raios mornos tocarem-lhe o rosto. De qualquer forma, tentar aquilo tinha sido uma ati-tude boba, muito boba...
No final da tarde vieram Pippo, Paula e Rico, e Meggie foi passear com eles pela aldeia. Eles foram até a venda em que Mo estivera de manhã, sentaram juntos em cima de um muro no final da aldeia, observaram as formigas carregando sementes e flores pelas pedras e contaram os navios que pas-savam ao longe no mar.
Mais um dia se passou dessa maneira. De vez em quando, Meggie se perguntava por onde andaria Dedo Empo-eirado e se Farid ainda estava com ele, como estava Elinor e se ela também se perguntava onde eles estariam.
Não havia resposta para nenhuma dessas perguntas, e Meggie também não descobriu o que Fenoglio fazia atrás da porta de seu escritório. — Ele morde o lápis — relatou Paula, uma vez em que conseguiu se esconder debaixo da escrivani-nha. — Ele morde o lápis e fica andando para lá e para cá.
— Mo, quando vamos nos encontrar com Elinor? — Meggie perguntou na segunda noite, quando notou que ele não conseguia dormir de novo. Ela se sentou na beira da cama dele. Rangia tanto quanto a dela.
— Logo — ele respondeu. — Mas agora vá dormir, está bem? — Você sente falta dela?
A própria Meggie não sabia de onde viera aquela per-gunta tão direta. Ela simplesmente estava em sua língua e teve que sair. Mo demorou para responder.
— Às vezes — ele respondeu finalmente. — De ma-nhã, à tarde, à noite. Quase sempre.
Meggie sentiu o ciúme cravar suas pequenas garras no coração dela. Ela conhecia a sensação, que aparecia sempre que Mo arranjava uma nova amiga. Mas ciúmes da própria mãe?
— Conte-me sobre ela! — Meggie disse baixinho. — Mas nada de histórias inventadas, como as que você me con-tava antigamente.
Antigamente, ela havia procurado em seus livros uma mãe que combinasse com ela, mas em seus livros preferidos quase não havia mães. Tom Sawyer? Sem mãe. Huck Finn? Também. Peter Pan, os meninos perdidos? Nada de mãe à vista. Jim Knopf, órfão. E nos contos de fadas só havia ma-drastas malvadas, mães ciumentas sem coração... a lista pode-ria continuar indefinidamente. Antigamente, isso consolara Meggie. Não ter mãe não parecia ser tão fora do comum. Pelo menos não em suas histórias preferidas.
— O que você quer que eu conte? — Mo olhou para a janela. Lá fora os gatos estavam brigando novamente. Seus gritos soavam como o choro de bebês. — Você se parece mais com ela do que comigo. Felizmente. Ela ri como você, ela come uma mecha de cabelo enquanto lê, igualzinha a você. Ela é míope, mas é vaidosa demais para usar óculos...
— Entendo.
Meggie sentou-se ao lado dele. O braço de Mo quase não doía mais, a mordida do cão de Basta estava praticamente curada. Mas ficaria uma cicatriz, clara como aquela deixada nove anos antes pela navalha de Basta.
— Como você entende? Eu gosto de óculos — disse Mo.
— Eu não. E daí?...
— Ela gosta de pedras, pedras chatas e arredondadas, que acariciam a mão. Ela sempre anda com uma ou duas na bolsa. Além disso, ela tem o hábito de colocá-las em cima dos
livros, principalmente dos livros de bolso, porque não gosta de capas com pontas viradas. Mas você sempre pegava as pe-dras dela e as fazia rolar no chão.
— Então ela ficava zangada.
— Que nada. Ela fazia cócegas no seu pescoço gordi-nho até você largar as pedras. — Mo virou-se para ela. — Você realmente não sente falta dela, Meggie?
— Não sei. Só quando estou zangada com você.
— Então mais ou menos umas doze vezes por dia.
— Imagine! — Meggie cutucou-o com o cotovelo.
Os dois escutaram a noite. A janela estava um pouco aberta e lá fora estava quieto. Os gatos haviam sumido, pro-vavelmente estavam lambendo as feridas. Quase sempre havia um gato malhado com uma orelha rasgada na frente da venda. Por um momento, Meggie pensou ouvir o barulho do mar ao longe, mas talvez fosse apenas a estrada ali perto.
— Para onde você acha que foi Dedo Empoeirado?
A escuridão a envolvia como uma toalha macia. “Vou sentir falta do calor”, ela pensou. “Vou mesmo.”
— Não sei — respondeu Mo, e sua voz soou ausente. — Espero que para bem longe, mas não estou muito certo.
Não, Meggie também não estava.
— Você acha que o garoto ainda está com ele?
Farid. Ela gostava desse nome.
— Acho que sim. Ele anda atrás dele como um cão.
— Eu gosto dele. Você acha que Dedo Empoeirado também gosta?
Mo sacudiu os ombros.
— Não sei do que ou de quem Dedo Empoeirado gos-ta.
Meggie encostou a cabeça em seu peito, como sempre fazia em casa quando ele lhe contava uma história.
— Ele ainda quer o livro, não é? — ela sussurrou. — Basta vai picá-lo em pedacinhos se o apanhar. Ele já deve ter uma nova navalha.
Lá fora, alguém andava pela estreita viela. Uma porta se abriu e se fechou, um cão latiu.
— Se você não existisse — disse Mo —, eu também voltaria.

30. Pippo tagarela

— Vocês foram mal-informados — disse-lhe Flor-de-manteiga. — Aqui não há nenhuma aldeia em muitas milhas.
— Então também não há ninguém que possa ouvi-la gritar — disse o siciliano, e saltou até ela com uma agilidade incrível.
William Goldman, O noivo da princesa

Na manhã seguinte, por volta das dez horas, Elinor te-lefonou para a casa de Fenoglio. Meggie estava com Mo no sótão, observando-o libertar um livro de sua capa mofada, com tanto cuidado como se salvasse um animal ferido de uma armadilha.
— Mortimer! — chamou Fenoglio pela escada. — Tem uma mulher histérica ao telefone gritando coisas incompreen-síveis no meu ouvido. Ela afirma ser uma amiga sua.
Mo largou o livro sem capa e desceu. Fenoglio pas-sou-lhe o fone com má vontade. A voz de Elinor vomitava raiva e desespero no ambiente pacífico do escritório. Mo es-forçava-se por tirar um sentido de tudo o que ela despejava em seu ouvido.
— Como ele sabia... ah, claro... — Meggie o ouviu di-zer. — Queimados? Todos?
Ele passou a mão no rosto e olhou para Meggie, mas ela teve a sensação de que seu olhar a atravessava.
— Está bem... Sim, com certeza, embora eu receie que
também nesse caso eles não acreditem numa só palavra sua. E isso que aconteceu com os livros não é da competência da policia local?... Ah, sei. É claro... Irei buscá-la. Certo.
Então ele pôs o fone no gancho.
Fenoglio não conseguiu esconder sua curiosidade. Ele farejava uma nova história.
— O que foi isso agora? — perguntou, impaciente, enquanto Mo ficou parado olhando para o telefone.
Era sábado. Rico estava pendurado nas costas de Feno-glio como um macaquinho, mas as outras crianças ainda não haviam aparecido.
— Mortimer, o que foi? Você não fala mais conosco? Olhe para o seu pai, Meggie! Ali parado feito um estafermo!
— Era Elinor — disse Mo. — A tia da mãe de Meggie. Eu contei sobre ela para você. Os homens de Capricórnio in-vadiram a casa dela. Tiraram os livros das estantes da casa in-teira e os usaram como capachos, e os livros que estavam na biblioteca — ele hesitou um momento antes de continuar —, os livros mais preciosos, eles levaram para fora e queimaram no jardim. Tudo o que ela encontrou na biblioteca foi um galo morto.
Fenoglio fez seu neto escorregar de suas costas.
— Rico, vá dar uma olhada nos gatinhos! — ele disse. — Isto aqui não é para os seus ouvidos.
Rico protestou, mas seu avô empurrou-o impiedosa-mente para fora do escritório e fechou a porta.
— Como você tem tanta certeza de que foram os ho-mens de Capricórnio? — ele perguntou ao voltar-se para Mo novamente.
— E quem mais seria? Além disso, pelo que me lem-bro, o galo vermelho é a marca registrada dele. Você se es-queceu da sua própria história?
Fenoglio calou-se com uma expressão aflita.
— Não, não, eu me lembro — ele murmurou.
— E como está Elinor? — Meggie esperou a resposta
de Mo com o coração disparado.
— Felizmente ela ainda não havia chegado em casa, demorou no caminho de volta. Graças aos céus. Mas você pode imaginar como ela está. Os livros mais bonitos, meu Deus...
Fenoglio recolheu com pressa alguns soldados de brinquedo que estavam em seu tapete.
— Sim, Capricórnio ama o fogo — ele disse com a voz embargada. — Se foi ele de fato, sua amiga pode se dar por sortuda que ele não a tenha queimado junto com os livros de uma vez.
— Direi isso a ela.
Mo pegou uma caixa de fósforos que estava sobre a es-crivaninha de Fenoglio, ergueu-a e abaixou-a de novo lenta-mente.
— E os meus livros? — Meggie teve que criar coragem para fazer a pergunta. — Meu baú, que estava escondido de-baixo da cama?
Mo pôs a caixa de fósforos de volta em cima da escri-vaninha.
— Esta é a única boa notícia — ele disse. — Nada a-conteceu com o seu baú. Ele ainda está lá debaixo da cama. Elinor conferiu.
Meggie respirou aliviada. Será que havia sido Basta quem pusera fogo nos livros? Não, Basta tinha medo do fogo, ela se lembrava muito bem de como Dedo Empoeirado havia zombado dele. Mas, no final das contas, não fazia diferença qual dos casacos-pretos tinha sido. Os tesouros de Elinor ha-viam ido embora, e nem mesmo Mo podia trazê-los de volta.
— Elinor está vindo para cá de avião, tenho que ir buscá-la — disse Mo. — Ela encasquetou que tem que pôr a polícia atrás de Capricórnio. Eu disse a ela que acho perda de tempo. Mesmo se ela pudesse provar que foram os capangas dele que invadiram a casa dela, como pretende provar que foi ele quem deu a ordem? Mas você conhece Elinor.
Meggie concordou com uma expressão abatida. Sim, ela conhecia Elinor, e entendia muito bem a reação dela. Mas Fenoglio riu.
— A polícia! É inútil querer pegar Capricórnio com a polícia! — ele exclamou. — Capricórnio faz as próprias re-gras, as próprias leis...
— Pare! Isso não é um livro que você está escrevendo! — Mo interrompeu-o em tom rude. — Talvez seja muito di-vertido inventar alguém como Capricórnio, mas pode acredi-tar que não é nem um pouco divertido encontrar-se com ele. Estou indo para o aeroporto, Meggie fica aqui. Cuide bem dela.
Antes que Meggie pudesse protestar, ele já saíra pela porta. Ela foi para a rua atrás dele, mas Paula e Pippo vieram ao seu encontro. Eles a seguraram e tentaram levá-la consigo. Queriam brincar com ela de canibal, de bruxa, do monstro de seis braços — personagens das histórias de seu avô, com os quais eles povoavam seu mundo e suas brincadeiras. Quando Meggie finalmente conseguiu se soltar daquelas mãozinhas, Mo já estava longe. O lugar onde ele havia estacionado o carro alugado estava vazio, e Meggie ficou na piazza, sozinha com o monumento aos mortos e alguns velhos que contemplavam o mar, com as mãos enfiadas no bolso da calça.
Indecisa, ela andou lentamente até os degraus diante do monumento e se sentou. Não estava com vontade de correr pela casa atrás dos netos de Fenoglio nem de brincar de es-conde-esconde. Não, ela só queria ficar sentada ali e esperar pelo regresso de Mo. O vento quente que havia soprado na noite passada, deixando uma fina camada de areia nos peitoris das janelas, já tinha ido embora. O ar estava mais frio do que nos dias anteriores. O céu ainda estava claro sobre o mar, mas algumas nuvens cinzentas se aproximavam vindas da direção das colinas e, a cada vez que o sol desaparecia atrás delas, uma sombra se espalhava sobre os telhados do vilarejo fazendo Meggie sentir um arrepio.
Um gato chegou perto dela de mansinho, com as per-nas esticadas, o rabo apontando para o alto. Era um bichano magro cheio de carrapatos, com costelas desenhadas como listras sob seu fino pêlo cinzento. Meggie chamou-o baixinho até que ele pôs a cabeça debaixo do braço dela e, ronronando, pediu uns dedos carinhosos. Ele parecia não ter dono, estava sem coleira e não possuía um dedo de gordura que indicasse que alguém cuidava dele. Meggie coçou suas orelhinhas, o queixo, as costas, enquanto olhava para a rua que desaparecia no final da aldeia, depois de uma curva fechada.
A que distância ficava o aeroporto? Meggie apoiou o rosto nas mãos. Acima dela, as nuvens se acumulavam cada vez mais ameaçadoras. Elas se tornavam mais densas e avan-çavam, cinzentas de chuva.
O gato esfregou as costas no joelho de Meggie e, en-quanto os dedos dela acariciavam o pêlo sujo, de repente mais uma pergunta lhe veio à mente. E se Dedo Empoeirado não tivesse contado a Capricórnio apenas sobre a casa de Elinor? E se ele também tivesse contado onde ela e Mo moravam? Também haveria um monte de cinzas esperando por eles no sítio? Não. Ela não queria pensar nisso. “Ele não sabe!”, ela sussurrou. “Ele não sabe de nada, Dedo Empoeirado não lhe contou”, ela repetiu várias vezes, como uma esconjuração.
Em algum momento, Meggie sentiu uma gota de chuva na mão, depois mais uma. Ela olhou para o céu. Não havia mais um pedacinho azul. Como a proximidade do mar fazia o tempo mudar depressa! “Bem, é melhor esperar no aparta-mento”, ela pensou. Talvez lá ainda houvesse um pouco de leite para o gato. O pobre bichinho não pesava mais do que um lenço. Meggie teve medo de quebrar alguma coisa nele quando o ergueu.
Dentro do apartamento estava escuro como o breu. Mo havia fechado as janelas de manhã para que não ficasse muito quente com o sol. Meggie estava tiritando de frio quando en-trou no quarto, ensopada pela chuvinha fina. Ela pôs o gato
em cima de sua cama desfeita, vestiu o pulôver enorme de Mo e foi até a cozinha. A caixa de leite estava quase vazia, mas o pouco que havia, dissolvido num tanto de água, foi suficiente para encher uma tigelinha.
O gato quase tropeçou nas próprias patas, de tão afoito que correu quando Meggie pôs o leite ao lado da cama. Lá fora a chuva engrossava cada vez mais. Meggie ouviu o baru-lho das gotas batendo na calçada. Ela abriu a janela. A faixa de céu entre os telhados estava escura, como se o sol já estivesse se pondo. Meggie andou devagar até a cama de Mo e sen-tou-se em cima dela. O gato ainda lambia a tigela, sua lingüi-nha passava avidamente sobre a porcelana florida na esperan-ça de saborear uma última gota. Meggie ouviu passos do lado de fora, e então alguém bateu na porta. Quem seria? Era im-possível que Mo já estivesse de volta. Ou será que ele havia esquecido alguma coisa? O gato sumira, provavelmente se es-condera debaixo da cama.
— Quem é? — perguntou Meggie.
— Meggie! — chamou uma voz de criança.
Claro, era Paula ou Pippo. Sim, devia ser Pippo. Talvez os dois quisessem que ela fosse procurar formigas com eles, apesar da chuva. Debaixo da cama, uma pata cinzenta asso-mou e agarrou o cadarço de seu tênis. Meggie entrou no cor-redor estreito.
— Não tenho tempo para brincar agora! — ela excla-mou através da porta fechada.
— Por favor, Meggie! — suplicou a voz de Pippo. Com um suspiro, Meggie abriu a porta.
E deu de cara com Basta.
— Olha só quem está aqui! — ele disse com uma voz baixa e ameaçadora, enquanto seus dedos seguravam o pes-coço fino de Pippo. — O que você me diz, Nariz Chato? Ela não tem tempo para brincar.
Basta empurrou Meggie bruscamente para trás e entrou com Pippo pela porta. Nariz Chato, é claro, também estava lá.
Seu vasto tórax quase não passou pela porta.
— Solte-o! — Meggie ordenou para Basta com voz trêmula. — Você está machucando o menino.
— Estou? — Basta olhou para o rosto pálido de Pippo. — Isso não seria gentil da minha parte, já que ele nos mostrou onde você estava escondida.
Dizendo isso, ele apertou ainda mais o pescoço de Pippo.
— Sabe quanto tempo nós ficamos naquela cabana imunda? — ele sussurrou para Meggie.
Ela deu um passo para trás.
— Muuuito tempo! — Basta esticou a palavra e chegou perto de Meggie com sua cara de raposa, tão perto que ela viu o seu próprio reflexo nos olhos dele. — Não é verdade, Nariz Chato?
— Aqueles ratos malditos quase me devoraram os de-dos dos pés — resmungou o gigante. — Em troca, eu gostaria muito de girar o nariz dessa bruxinha até ele ficar virado de ponta-cabeça na cara dela.
— Talvez mais tarde. — Basta empurrou Meggie para o quarto escuro. — Onde está o seu pai? O pequeno aqui disse que ele saiu. Para onde ele foi?
Ele soltou o pescoço de Pippo e deu um empurrão tão violento em suas costas que o menino tropeçou em Meggie.
— Fazer compras. — Meggie mal conseguia respirar de medo. — Como você nos encontrou?
E ela mesma se deu a resposta. Dedo Empoeirado. É claro. Quem mais? Mas em troca do que ele os traíra desta vez?
— Dedo Empoeirado — respondeu Basta como se ti-vesse lido seus pensamentos. — Não há muitos malucos neste mundo que andam por aí cuspindo fogo e possuem uma mar-ta domesticada, que dirá uma com chifres. Só tivemos que perguntar um pouco por aí, e quando encontramos a pista de Dedo Empoeirado, obviamente encontramos a do seu pai
também. E com certeza já lhes teríamos feito uma visita antes, se este cabeça-de-vento — ele deu uma cotovelada tão forte no estômago de Nariz Chato que este soltou um grunhido de dor — não tivesse perdido vocês de vista no caminho para cá. Vasculhamos um monte de aldeias, gastamos a saliva e a sola dos sapatos, até que finalmente chegamos aqui e perguntamos para um desses velhos que ficam o dia inteiro olhando para o mar se ele lembrava das cicatrizes de Dedo Empoeirado. On-de ele se enfiou? Ele também foi fazer compras?
Ao dizer isso, Basta fez uma cara de deboche. Meggie sacudiu a cabeça.
— Ele foi embora — ela respondeu com a voz sumida. — Já faz tempo.
Então Dedo Empoeirado não os traíra. Não daquela vez. E Basta o deixara escapar por entre os dedos. Meggie quase sorriu.
— Vocês queimaram os livros de Elinor! — ela disse enquanto estreitava Pippo, ainda emudecido de medo, junto de si. — Vocês ainda vão se arrepender.
— Ah, é? — Basta deu um sorriso malvado. — Por quê? Cockerell divertiu-se a beça. Mas agora chega desse papo furado, nós não temos todo o tempo do mundo. O menino aí — Pippo afastou-se do dedo indicador de Basta como se ele fosse uma faca — nos contou algumas coisas estranhas sobre um avô que escreve livros, e sobre um livro que interessava muito ao seu pai.
Meggie engoliu a saliva. Mas que bobo era aquele Pip-po. Que fedelho bobo e tagarela.
— O gato comeu sua língua? — perguntou Basta. — Talvez eu deva apertar um pouco mais o pescocinho magro do garoto?
Pippo começou a chorar e enfiou o rosto no pulôver de Mo, que Meggie ainda estava usando. Ela passou a mão em seus cabelos crespos, tentando consolá-lo.
— Esse livro não está mais com o avô dele! — ela gri-
tou para Basta. — Vocês já o roubaram!
Sua voz soou rouca de ódio, e ela sentiu enjôo de seus próprios pensamentos. Ela queria chutar Basta, bater nele, enfiar na barriga do desgraçado a navalha novinha em folha que estava no cinto dele.
— Roubamos? É, pode ser — Basta deu um sorriso amarelo para Nariz Chato. — Mas preferimos nos convencer disso pessoalmente, não é?
Nariz Chato fez que sim com um ar ausente, e olhou para os lados.
— Ei, você está ouvindo?
Embaixo da cama, soou um ruído de algo raspando. Nariz Chato ajoelhou-se no chão, ergueu o lençol e passou o cano da espingarda sob a cama. O gatinho cinzento rosnou e disparou para fora de seu esconderijo. Quando Nariz Chato quis apanhá-lo, ele enfiou as garras em seu rosto deformado. Com um grito de dor, Nariz Chato se pôs de pé.
— Vou torcer o pescoço dele! — berrou. — E partir a nuca ao meio!
Meggie quis interceptá-lo quando ele foi para cima do gato, mas Basta se adiantou.
— Você não vai encostar a mão nele! — ele ralhou com Nariz Chato, enquanto o gatinho sumia atrás do armário. — Matar gatos dá azar. Quantas vezes ainda vou ter que lhe dizer isso?
— Que idiotice! Isso é uma superstição imbecil! Já torci o pescoço de muitas dessas bestas! — vociferou Nariz Chato enquanto passava a mão no rosto arranhado. — E por acaso tive mais azar do que você por causa disso? Às vezes você me enlouquece com essa sua ladainha: “Não pise na sombra que dá azar... Ei, você pisou primeiro com o pé esquerdo, dá a-zar!... Alguém bocejou. Droga, amanhã vou cair morto!”.
— Pare! — vociferou Basta. — As suas lamúrias é que estão me enlouquecendo! Leve as crianças para a porta.
Pippo agarrou-se em Meggie quando Nariz Chato os
arrastou pelo corredor.
— Mas por que esta choradeira? — ele rosnou no ou-vido do menino. — Nós vamos visitar o seu avô!
Pippo não largou a mão de Meggie um só instante en-quanto eles cambaleavam atrás de Nariz Chato. Ele a agarrou com tanta força que ela sentiu suas unhinhas curtas cravadas na pele. “Por que Mo não me escutou?”, ela pensou. “Podía-mos ter ido para casa.”
A chuva ainda estava forte. Meggie sentia escorrer as gotas em seu rosto e na nuca. As vielas estavam desertas, não havia ninguém que pudesse ajudá-los. Basta ia logo atrás, ela o ouviu amaldiçoar a chuva em voz baixa. Quando eles chega-ram a casa de Fenoglio, Meggie estava com os pés ensopados e Pippo com os cachos grudados na cabeça. “Talvez ele não esteja em casa!”, pensou Meggie, esperançosa, e se perguntou o que Basta faria se a porta vermelha se abrisse e Fenoglio aparecesse diante dele.
— Por acaso vocês foram enfeitiçados por algum mau espírito para ficarem na rua com esse tempo? — esbravejou o velho escritor. — Já estava indo procurá-los. Entrem, depres-sa!
— E nós também podemos entrar?
Basta e Nariz Chato haviam encostado na parede ao lado da porta, para que Fenoglio não os visse de imediato, mas agora Basta estava atrás de Meggie e punha as mãos nos om-bros dela. Enquanto Fenoglio ainda olhava para ele estupefa-to, Nariz Chato deu um passo e pôs o pé na porta aberta. Pippo passou por ele lépido como um peixe e desapareceu dentro da casa.
— Quem são eles? — Fenoglio lançou um olhar de censura para
Meggie, como se ela tivesse trazido os dois por vontade própria. — São amigos do seu pai?
Meggie enxugou a chuva do rosto e retribuiu o olhar de censura.
— Você deveria conhecê-los melhor do que eu! — ela disse.
— Conhecê-los? — Fenoglio olhou para ela desenten-dido. Então ele voltou o olhar para Basta mais uma vez, e seu rosto ficou pasmo. — Meu Deus! Não pode ser.
A cabeça de Paula apareceu atrás dele.
— Pippo está chorando — ela disse. — Ele se escon-deu no armário!
— Fique com ele! — disse Fenoglio sem tirar os olhos de Basta. — Eu já vou.
— Quanto tempo ainda vamos ficar aqui fora, Basta? — resmungou Nariz Chato. — Até encolhermos?
— Basta! — repetiu Fenoglio, sem se mexer do lugar.
— Sim, é este o meu nome, velho! — Os olhos de Basta se estreitavam sempre que ele ria. — Estamos aqui porque você tem algo que nos interessa muito, um livro...
É claro. Meggie quase desatou a rir. Ele não estava en-tendendo nada! Basta não sabia quem era Fenoglio. E como saberia? Como ele podia saber que aquele velho homem o ha-via inventado, criado com papel e tinta, seu rosto, sua navalha e sua maldade?
— Chega de conversa! — grunhiu Nariz Chato. — As minhas orelhas já estão cheias d’água.
Ele tirou Fenoglio do caminho como se fosse uma mosca inoportuna e entrou na casa. Basta o seguiu com Meg-gie. Pippo ainda estava chorando na cozinha, dentro do armá-rio. Paula permanecia diante da porta fechada tentando con-solá-lo. Quando Fenoglio entrou na cozinha com os estra-nhos, ela se virou e olhou preocupada para o rosto de Nariz Chato. Ele estava com uma cara fechada, como sempre. Pare-cia simplesmente não ter sido feito para sorrir.
Fenoglio sentou-se à mesa e fez um sinal para Paula se aproximar.
— Então, onde ele está?
Basta olhou ao redor, mas Fenoglio estava absorto de-
mais na contemplação de suas criaturas, e não respondeu. Chamava-lhe a atenção principalmente Basta, de quem não tirava os olhos, como se não pudesse acreditar no que via.
— Eu já disse, não há mais nenhum livro aqui! — Meggie respondeu por ele.
Basta fingiu que não ouviu, e fez um sinal impaciente para Nariz Chato.
— Vá procurar — ele ordenou. Nariz Chato obedeceu mal-humorado.
Meggie ouviu como ele batia os pés na estreita escada de madeira que levava para o sótão.
— Bem, agora me diga, sua pequena bruxa! Como vo-cês vieram parar aqui na casa do velho? — Basta deu um em-purrão nas costas dele. — Como souberam que ele ainda tinha um exemplar?
Meggie lançou um olhar de advertência para Fenoglio, mas infelizmente sua língua era tão solta quanto a de Pippo.
— Como eles vieram até mim? Eu escrevi o livro! — proclamou, orgulhoso, o velho escritor.
Talvez ele esperasse que Basta se ajoelhasse a seus pés imediatamente, mas ele apenas contraiu os lábios num sorriso piedoso.
— É claro! — ele disse, tirando a navalha do cinto.
— É verdade, foi ele quem escreveu o livro! — Meggie simplesmente não conseguiu engolir as palavras.
Ela queria ver no rosto de Basta o mesmo medo que havia feito Dedo Empoeirado empalidecer quando soubera sobre Fenoglio, mas Basta apenas riu e começou a fazer enta-lhes na mesa da cozinha.
— E esta história quem foi que inventou? — ele per-guntou. — O seu pai? Eu tenho cara de bobo por acaso? To-do mundo sabe que as histórias dos livros são antiqüíssimas, e foram copiadas por pessoas que já estão mortas e enterradas.
Ele enfiou a lâmina na madeira, tirou-a novamente e enfiou outra vez. Sobre sua cabeça, Nariz Chato andava para
lá e para cá fazendo grande barulho.
— Mortas e enterradas, que interessante. — Fenoglio pôs Paula em seu colo. — Você ouviu, Paula? Esse jovem pensa que todos os livros foram escritos em tempos remotos, por pessoas que já morreram e pegaram as histórias Deus sabe lá de onde. Vai ver elas as colheram do ar...
Paula deu uma risadinha. Dentro do armário, agora reinava silêncio. Provavelmente Pippo estava lá, sem respirar e com o ouvido grudado na porta.
— O que é que tem de tão engraçado nisso? — Basta empertigou-se como uma cobra em cujo rabo alguém hou-vesse pisado.
Fenoglio não lhe deu atenção. Contemplou suas pró-prias mãos com um sorriso, como se rememorasse o dia em começara a escrever a história de Basta. Então ele olhou para Basta.
— Você... sempre usa mangas compridas, não é mes-mo? — ele disse. — Quer que eu lhe diga por quê?
Basta apertou os olhos e ergueu o olhar para o teto.
— Que diabos, por que esse idiota precisa demorar tanto para encontrar um livro?
Fenoglio olhava para ele com os braços cruzados.
— É muito simples: porque ele não sabe ler! — disse baixinho. — Você também não sabe, ou será que aprendeu nesse meio-tempo? Nenhum dos homens de Capricórnio sa-be, nem mesmo o próprio Capricórnio.
Basta cravou a navalha tão fundo no tampo da mesa que teve que fazer força para tirá-la.
— É claro que ele sabe ler, do que você está falando? — Ele curvou-se sobre a mesa com um ar ameaçador. — Não gosto da sua conversa, velho. Que tal se eu fizesse mais umas rugas na sua cara?
Fenoglio sorriu. Talvez ele pensasse que Basta não po-deria lhe fazer nada porque ele o havia inventado. Meggie não estava tão certa disso.
— Você usa mangas compridas — continuou Fenoglio lentamente, como se quisesse dar tempo a Basta para entender bem cada palavra — porque o seu chefe gosta de brincar com fogo. Você queimou os dois braços, até os ombros, quando incendiou para ele a casa de um homem que ousou negar a filha a Capricórnio. Desde então, é um outro capanga que a-teia o fogo, e você se limita a lidar com a navalha.
Basta levantou-se tão bruscamente que Paula desceu do colo de Fenoglio e se escondeu debaixo da mesa.
— Você gosta de bancar o sabichão! — ele rosnou en-quanto apontava a navalha para o queixo de Fenoglio. — Só que você apenas leu o maldito livro. E daí?
Fenoglio olhou em seus olhos. A faca em seu queixo não parecia assustá-lo tanto quanto a Meggie, nem de longe.
— Sei tudo sobre você, Basta — ele disse. — Sei que você daria a sua vida por Capricórnio a qualquer momento, e que anseia todos os dias por um elogio dele. Sei que você era mais novo do que Meggie quando os capangas dele o recolhe-ram e que, desde então, você o considera uma espécie de pai. Mas quer que eu lhe conte uma coisa? Capricórnio acha que você é burro, e o despreza por isso. Ele despreza todos vocês, filhos tão dedicados, embora ele mesmo tenha providenciado para que continuassem burros. E ele entregaria todos à polícia sem vacilar, se isso trouxesse algum proveito para ele. Você sabia?
— Feche essa boca suja, velho idiota! — a faca de Bas-ta estava perigosamente perto do rosto de Fenoglio. Por um instante, Meggie achou que ele fosse cortar o nariz do escritor. — Você não sabe nada sobre Capricórnio. A não ser o que leu naquele livro idiota, e acho que agora eu deveria lhe cortar o pescoço!
— Espere!
Basta virou-se para Meggie.
— Não se meta! Depois eu cuido de você, sua pirralha insolente — ele disse.
Fenoglio havia posto as mãos no pescoço e olhava es-tupefato para Basta. Pelo jeito, ele finalmente compreendera que não estava seguro contra a navalha do personagem.
— É verdade! Você não pode matá-lo! — exclamou Meggie. — Senão. ..
Basta passou o polegar na lâmina da faca.
— Senão o quê?
Meggie procurava desesperadamente pelas palavras certas. O que ela poderia responder? O quê?
— Porque... Capricórnio também morreria! — ela ex-clamou. — Sim! Isso mesmo! Todos vocês morreriam, você, Nariz Chato e Capricórnio... Se você matar esse velho escritor, vocês morrerão, porque foi ele quem inventou todos vocês!
Basta esticou os lábios num sorriso desdenhoso, mas abaixou a navalha. E por um momento Meggie acreditou per-ceber em seus olhos algo que poderia ser medo.
Fenoglio olhou para ela aliviado.
Basta deu um passo para trás, examinou a lâmina aten-tamente, como se tivesse encontrado nela uma mancha, e lus-trou-a com uma ponta de seu paletó preto.
— Não acredito numa única palavra de vocês, só para deixar claro! — ele disse. — Mas essa história é tão maluca que talvez o próprio Capricórnio também queira ouvi-la.
Ele lançou um último olhar para a navalha reluzente, fechou-a e enfiou-a de volta no cinto.
— Por isso não levaremos apenas a menina e o livro, mas também o velho.
Meggie ouviu como Fenoglio respirou fundo. Ela mesma não tinha certeza se seu próprio coração ainda batia, de tanto medo que estava sentindo. Basta a levaria. “Não!”, ela pensou. “Não.”
— Levar-me? Para onde? — perguntou Fenoglio.
— Pergunte à menina! — Basta apontou na direção de Meggie com um ar debochado. — Ela e o pai já tiveram a honra de ser nossos hóspedes. Pernoite, refeições, tudo inclu-
ído.
— Mas isso é um absurdo! — exclamou Fenoglio. — Eu pensei que vocês quisessem o livro.
— Pensou errado. Nem ao menos sabemos se ainda existe um. Viemos apenas para levar Língua Encantada de volta. Capricórnio não gosta nem um pouco quando seus hóspedes partem sem se despedir, e Língua Encantada é um hóspede muito especial, não é verdade, meu amor? — Basta piscou para Meggie. — Mas ele não está aqui, e eu tenho coisa melhor para fazer do que ficar esperando. Por isso levarei a filha dele, e ele virá atrás dela por conta própria.
Basta andou até Meggie e pôs o cabelo dela atrás da o-relha.
— Ela não é uma bela isca? — ele perguntou. — Acre-dite em mim, meu velho: quando se tem a filha, tem-se o pai também, como um urso amestrado com uma argola no nariz.
Meggie tirou a mão dele com um tapa. Ela estava tre-mendo de raiva.
— Não faça isso de novo! — Basta sussurrou em seu ouvido. Meggie ficou contente ao ouvir os passos pesados de Nariz Chato descendo a escada nesse momento. Esbaforido, ele apareceu na porta da cozinha com uma pilha de livros de-baixo do braço.
— Tome! — ele exclamou enquanto os descarregava na mesa da cozinha. — Todos começam com essa argola aberta, e a menor fechada sempre vem depois. Exatamente como você desenhou para mim.
Ele pôs ao lado dos livros um papelzinho ensebado, onde estavam escritos um C meio torto, seguido de um o. As letras davam a impressão de ter sido escritas com muito es-forço.
Basta espalhou os livros na mesa e separou-os com a navalha.
— Não — ele disse empurrando dois deles para fora da mesa, de forma que eles caíram no chão abertos e com as pá-
ginas dobradas. — Estes também não.
Mais dois foram parar no chão, e finalmente Basta var-reu o resto de cima da mesa.
— Tem certeza que não há mais nenhum? — ele per-guntou a Nariz Chato.
— Tenho.
— Ai de você se estiver enganado. Pode acreditar: quem estará encrencado será você, e não eu.
Nariz Chato lançou um olhar preocupado para os livros aos seus pés.
— Ah, sim, mais uma pequena mudança: vamos levar também esse aí — Basta apontou para Fenoglio com a nava-lha. — Para que ele possa contar suas belas histórias para o chefe. Acredite, elas são realmente divertidas. E caso ele ainda tenha um livro escondido, lá em casa teremos tempo suficien-te para lhe perguntar. Cuide do velho, que eu tomo conta da menina.
Nariz Chato acatou a ordem arrancando Fenoglio da cadeira. Basta agarrou o braço de Meggie. De volta para Ca-pricórnio. Ela mordeu os lábios para não começar a chorar enquanto Basta a arrastava em direção à porta da cozinha. Não. Basta não veria uma lágrima sua, ela não lhe daria esse prazer. “Pelo menos eles não pegaram Mo!”, ela pensou. E de repente, ela não conseguia pensar em outra coisa: e se eles cruzassem com Mo antes de saírem da aldeia? E se encontras-sem Mo e Elinor?
De repente ela estava com pressa, mas Nariz Chato pa-rara na porta.
— E a menina e o chorão dentro do armário? — ele perguntou.
O choro de Pippo parou, e o rosto de Fenoglio ficou mais branco do que a camisa de Basta.
— Bem, meu velho, o que você acha que vou fazer com os dois? — perguntou Basta com ar debochado. — Você que acha que sabe tudo sobre mim.
Fenoglio não disse uma palavra. Provavelmente passa-vam pela sua cabeça todas as crueldades que ele inventara para Basta.
Basta divertiu-se com o medo em seu rosto por alguns minutos preciosos, e depois se virou para Nariz Chato.
— Os pirralhos ficam — ele disse. — Uma criança já é suficiente.
Fenoglio custou para recuperar a voz.
— Paula, Pippo, vão para casa! — ele exclamou en-quanto Nariz Chato os empurrava pelo corredor. — Ouvi-ram? Imediatamente. Digam para sua mãe que viajei por uns dias! Entendido?
— Vamos passar mais uma vez no apartamento — or-denou Basta quando estavam lá fora na rua. — Esqueci com-pletamente de deixar um recado para o seu pai. Afinal ele pre-cisa saber onde você está, não é mesmo?
“Que recado pode ser esse se você mal sabe escrever duas letras?”, pensou Meggie, mas não disse nada, é claro. Durante todo o caminho, ela receava que Mo cruzasse com eles. Mas, quando eles chegaram ao apartamento, apenas uma velha senhora vinha descendo a rua.
— Uma palavra e eu volto para torcer o pescoço das duas crianças! — sussurrou Basta para Fenoglio quando a mulher afrouxou o passo.
— Olá, Rosália — disse Fenoglio com a voz abafada. — Tenho novos inquilinos para o meu apartamento. O que você me diz?
A desconfiança sumiu do rosto de Rosália, e em alguns instantes a mulher desapareceu no final da viela. Meggie abriu a porta e, pela segunda vez, deixou Basta e Nariz Chato entrar no apartamento onde ela e Mo haviam se sentido tão seguros.
No corredor, ela se lembrou novamente do gatinho. Preocupada, olhou em volta, mas não conseguiu encontrá-lo em lugar algum.
— O gato precisa sair — ela disse quando eles estavam
no quarto.
— Senão ele vai morrer de fome.
Basta abriu a janela.
— Agora ele pode sair.
Nariz Chato bufou com desprezo, mas desta vez não disse nada sobre a superstição de Basta.
— Posso pegar alguma coisa para vestir? — perguntou Meggie. Nariz Chato apenas grunhiu. E Fenoglio olhou infeliz para si mesmo.
— Eu também posso precisar de alguma coisa para vestir — ele disse, mas ninguém lhe deu atenção.
Basta estava ocupado em deixar seu bilhete. Cuidado-samente, com a ponta da língua entre os dentes, ele riscou seu nome no guarda-roupa com a navalha. BASTA. Mo entende-ria muito bem o recado.
Meggie enfiou com pressa algumas coisas em sua mo-chila. Ficou com o pulôver de Mo. Quando ela ia enfiar os livros de Elinor entre as roupa, Basta tirou-os de sua mão.
— Eles ficam aqui! — ele disse.
Mo não veio ao encontro deles durante o caminho para o carro de Basta.
Durante todo o interminável caminho.

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