domingo, 20 de fevereiro de 2011

Coração de Tinta - Capítulos 43 ao 48

43. Um lugar escuro

— Jim, meu velho — disse Lucas com voz rouca —, essa foi uma viagem curta. Sinto muito que agora você tenha de compartilhar o meu destino.
Jim engoliu a saliva.
— Mas nós somos amigos — ele respondeu em voz baixa, e mordeu o lábio inferior para que parasse de tremer.
Michael Ende, Jim Knopf e Lucas, o maquinista

Dedo Empoeirado achou que Capricórnio fosse dei-xá-los, Resa e ele, pendurados naquela maldita rede até a exe-cução, mas eles passaram ali apenas uma única e longa noite. Pela manhã, mal o sol começara a pintar manchas claras nas paredes vermelhas da igreja, Basta mandou baixar os dois. Por alguns segundos terríveis, Dedo Empoeirado pensou que Ca-pricórnio decidira se livrar deles de maneira rápida e discreta. Quando sentiu novamente o chão firme sob os pés, ele não sabia o que deixava suas pernas mais bambas, se era o medo ou a noite passada na rede. De qualquer forma, ele quase não conseguia ficar de pé.
A primeira coisa que Basta fez foi tranqüilizá-lo, embo-ra certamente não fosse essa a sua intenção.
— Eu adoraria deixá-lo pendurado ali em cima mais um pouco — ele disse enquanto seus homens tiravam Dedo Empoeirado da rede. — Mas, por algum motivo, Capricórnio decidiu trancá-los na cripta pelo resto de suas miseráveis vi-
das.
Dedo Empoeirado fez todo o esforço que pôde para esconder seu alívio. A morte, portanto, ainda estava a alguns passos de distância.
— Deve ser porque Capricórnio se incomoda em ter platéia o tempo todo enquanto discute os planos sujos dele com vocês — Dedo Empoeirado disse. — Ou talvez queira simplesmente que possamos caminhar com nossas próprias pernas para a execução.
Outra noite na rede e Dedo Empoeirado não acredita-ria que ainda tinha pernas. Já depois de uma noite seus ossos doíam tanto que, quando
Basta o levou junto com Resa para a cripta, ele se mo-vimentava como um ancião. Resa tropeçou algumas vezes na escada, parecia estar ainda pior do que ele, mas se mantinha em silêncio. Quando Basta segurou seu braço no momento em que ela escorregou num degrau, ela se soltou dele e lan-çou-lhe um olhar tão gélido que ele a deixou prosseguir sozi-nha.
A cripta sob a igreja era um lugar úmido e escuro, mesmo quando o sol lá fora, como naquele dia, derretia as telhas das casas. As entranhas da velha igreja cheiravam a mofo, cocô de rato e outras coisas cujo nome Dedo Empoei-rado nem queria saber. Logo após chegar à aldeia, Capricórnio mandara equipar com grades as estreitas câmaras onde sacer-dotes já esquecidos dormiam em seus sarcófagos. “Para quem vai morrer, existe lugar mais adequado para dormir do que um sarcófago?”, ele observara na ocasião, com uma gargalhada. Seu humor sempre fora bastante peculiar.
Nos últimos degraus, Basta os empurrou impaciente. Ele estava com pressa de voltar para a luz do dia, para longe dos mortos e dos espíritos. Suas mãos tremiam quando ele pendurou o lampião num gancho e destrancou a grade da primeira cela. Ali embaixo não havia luz elétrica. Também não havia calefação ou outros confortos, apenas os sarcófagos si-
lenciosos e os ratos que se esgueiravam pelo piso gasto de pe-dras.
— Ei, não quer nos fazer mais um pouco de compa-nhia? — perguntou Dedo Empoeirado quando Basta os em-purrou para dentro da cela. Eles tiveram que encolher a cabe-ça. Mal dava para alguém ficar de pé sob as velhas abóbadas. — Podíamos contar histórias de fantasmas. Conheço umas novas.
Basta rosnou feito um cão.
— Não precisaremos de um caixão para você, Dedo Podre! — ele disse enquanto fechava a grade novamente.
— É verdade! Uma urna talvez, ou um vidro de geléia, mas não um caixão, com certeza.
Dedo Empoeirado deu um passo para trás da grade. Assim ele ficava fora do alcance da navalha de Basta.
— Estou vendo que você tem um novo amuleto! — ele exclamou. Basta já estava quase na escada. — É um pé de co-elho de novo, ou é outra coisa? Eu já não lhe disse que esses trecos atraem fantasmas? No nosso antigo mundo nós podí-amos enxergá-los, pena que aqui as coisas não são tão práticas assim. Mas eles estão aqui com certeza, com os seus sussurros e seus dedos frios.
Basta parou na escada, com os punhos fechados, ainda de costas. Dedo Empoeirado sempre se admirava ao ver co-mo era fácil fazê-lo sentir medo somente com algumas pala-vras.
— Você ainda se lembra de como eles fazem as vítimas deles? — Dedo Empoeirado prosseguiu em voz baixa. — E-les sussurram o nome delas: “Bastaaa!”. Aí elas começam a sentir frio, e depois...
— Logo é o seu nome que eles vão sussurrar, Dedo Podre! — Basta o interrompeu com a voz trêmula. — So-mente o seu.
Ele subiu os degraus apressadamente, como se os fan-tasmas já estivessem atrás dele.
O eco de seus passos cessou, e Dedo Empoeirado es-tava só. Com o silêncio, com a morte e com Resa. Ao que tu-do indicava, eles eram os únicos prisioneiros. As vezes, Ca-pricórnio mandava prender algum pobre-diabo na cripta para assustá-lo, mas a maior parte dos que iam parar ali e escreviam seus nomes nos sarcófagos desapareciam em alguma noite escura, e ninguém jamais voltava a vê-los.
Sua despedida deste mundo seria um pouco mais espe-tacular.
“Minha última exibição, por assim dizer”, pensou Dedo Empoeirado. “Talvez na hora eu perceba que tudo isso foi apenas um sonho ruim, e que eu só precisei morrer para voltar para casa.” Era uma idéia agradável. Se pelo menos ele con-seguisse acreditar nela.
Resa sentara-se no sarcófago. Era uma lápide de pedra lisa. O tampo estava rachado, e o nome que estivera ali du-rante algum tempo não era mais legível. A proximidade da morte não parecia amedrontar Resa.
Para Dedo Empoeirado era diferente. Ele não tinha medo de fantasmas e assombrações como Basta. Se aparecesse algum, ele o cumprimentaria educadamente. Não. Ele tinha medo da morte. Acreditava poder ouvi-la respirar ali embaixo, tão profundamente que não sobrava mais ar para ele próprio. Em seu peito, ele sentia como se estivesse sentado em cima de um animal monstruoso. Talvez lá em cima na rede não esti-vesse tão ruim. Pelo menos havia ar.
Ele sentiu como Resa o observava. Ela bateu no tampo do sarcófago, chamando-o para perto de si. Hesitante, ele sentou-se ao lado dela. Ela pôs a mão no bolso do vestido, tirou de dentro uma vela e segurou-a diante dele com um ar indagador. Dedo Empoeirado sorriu. Sim, ele obviamente ti-nha fósforos. Era facílimo esconder de Basta e dos outros idi-otas algo tão pequeno como alguns palitos de fósforos.
Resa fixou a vela bruxuleante na lápide com um pouco de cera. Ela adorava velas, velas acesas e pedras. Sempre car-
regava ambas nos bolsos, e também mais algumas coisas. Tal-vez ela só tivesse acendido a vela para ele hoje porque sabia o quanto ele amava o fogo.
— Sinto muito, eu deveria ter procurado o livro sozi-nho — ele disse enquanto passava o dedo pela chama clara. — Perdoe-me.
Ela tapou a boca de Dedo Empoeirado com a mão. Ele presumiu que isso significava que, para ela, nada havia a per-doar. Que simpática mentira velada. Ela tirou a mão e Dedo Empoeirado pigarreou.
— Você... não o encontrou, certo?
Não que isso fizesse alguma diferença agora, mas ele precisava saber.
Resa sacudiu a cabeça e ergueu os ombros, lamentando.
— Foi o que pensei — ele disse, e suspirou.
O silêncio era assustador, mais assustador do que mil vozes.
— Conte-me uma história, Resa! — ele disse baixinho, chegando mais perto dela. — “Por favor!”, ele acrescentou em pensamento. “Espante o medo que está apertando o meu peito. Leve-nos para um outro lugar, para um lugar melhor.”
Resa era capaz de fazer isso. Conhecia infinitas histó-rias, ela nunca lhe revelara de onde, mas ele sabia naturalmen-te. Ele sabia muito bem quem lera as histórias para ela, antes, em outro tempo. Ele reconhecera o seu rosto na primeira vez em que a vira na casa de Capricórnio. Língua Encantada já havia lhe mostrado a foto muitas vezes.
Resa tirou de um de seus bolsos insondáveis um peda-ço de papel. Não eram apenas velas e pedras que se escondi-am ali dentro. Assim como Dedo Empoeirado sempre levava consigo alguma coisa para fazer fogo, Resa sempre carregava lápis e papel, sua língua de madeira, como ela chamava. Aos olhos dos homens de Capricórnio, tocos de velas, um lápis e um pedaço de papel meio sujo não deviam ser coisas perigo-sas o bastante para serem confiscadas.
Quando contava uma das suas histórias, às vezes ela escrevia apenas meia frase, e Dedo Empoeirado tinha que completar. Assim ia mais depressa, e a história enveredava por caminhos surpreendentes. Mas daquela vez ela não queria lhe contar nenhuma história, embora ele nunca tivesse precisado tanto de uma.
— Quem é a menina? — escreveu Resa.
Era claro. Meggie. Ele deveria mentir? Por que não? Mas Dedo Empoeirado não mentiu, ele próprio não sabia por quê.
— É a filha de Língua Encantada. Que idade? Doze anos, acho. Era a resposta esperada. Ele viu nos olhos dela. Eram os olhos de
Meggie. Talvez um pouco mais cansados.
— Como é Língua Encantada? Acho que você já me perguntou isso. Ele não tem cicatrizes como eu.
Ele tentou sorrir, mas Resa continuou séria. A luz da vela tremulava em seu rosto. “Você conhece o rosto dele me-lhor do que eu”, pensou Dedo Empoeirado, “mas eu não vou lhe dizer. Ele me tirou todo um mundo, por que eu não posso tirar a mulher dele?”
Ela se levantou e segurou a mão um pouco acima da cabeça.
— Sim, ele é alto. Mais alto do que você e mais alto do que eu. — Por que ele não mentia? — Sim, seus cabelos são escuros, mas agora eu não quero falar sobre ele!
Ele mesmo percebeu como sua voz soou irritada.
— Por favor! — Ele pegou a mão dela e puxou-a para o seu lado novamente. — Prefiro que você me conte uma história. Logo a vela vai se apagar, e a luz que Basta nos dei-xou é suficiente para ver essas malditas lápides mas não para decifrar letras.
Ela olhou para ele pensativa, como se quisesse ler seus pensamentos, encontrar as palavras que ele não dissera. Mas Dedo Empoeirado sabia fechar o rosto melhor do que Língua
Encantada, muito melhor. Sabia torná-lo impenetrável, um escudo contra olhares curiosos para seu coração. O que os outros tinham a ver com o coração dele?
Resa curvou-se novamente sobre o papel e começou a escrever. “Escute, ouça bem e preste atenção, pois isso aconteceu, suce-deu, ocorreu e se passou, meu querido, quando os animais domésticos eram selvagens. O cão era selvagem, e o cavalo era selvagem, e a vaca era selvagem, e a ovelha era selvagem, e o porco era selvagem — tão selvagem quanto se pode imaginar —, e eles vagavam à sua maneira selvagem pelas Vastas Florestas Selvagens. Mas o mais selvagem de todos os animais selvagens era o gato. Ele vivia só, e para ele um lugar não era diferente do outro.” Resa sempre sabia de que história ele estava precisando. Ela era uma estranha naquele mundo, assim como ele. Não era possível que ela pertencesse a Língua Encantada.

44. O relato de Farid
— Pois bem — disse Zoff. — Eu tenho a dizer o seguinte, e quem achar que tem um plano melhor pode contar depois.
Michael de Larrabeiti, Os Borribles 2 — No labirinto dos Wendel

Quando Farid voltou, Língua Encantada já estava es-perando por ele. Elinor dormia debaixo das árvores, seu rosto estava vermelho com o calor do meio-dia, mas Língua Encan-tada estava no mesmo lugar em que Farid o deixara. O alívio se espalhou em seu rosto quando ele viu o garoto subindo o morro.
— Ouvimos tiros! — ele gritou para Farid. — Achei que nunca mais fôssemos ver você.
— Eles atiram nos gatos — respondeu Farid, deixan-do-se cair na grama.
As preocupações de Língua Encantada o deixavam en-cabulado. Ele não estava acostumado a que se preocupassem com ele. Por que demorou tanto? Onde é que você se enfiou? Era a esse tipo de recepção que ele estava acostumado. Mesmo o rosto de Dedo Empoeirado estava sempre fechado, intrans-ponível, como uma porta trancada. Já Língua Encantada trazia tudo escrito na testa — preocupação, alegria, aborrecimento, dor, amor —, mesmo quando tentava ocultar, como por e-xemplo agora ele tentava engolir as palavras que deviam estar queimando sua língua desde que Farid partira.
— A sua filha está bem — disse Farid. — E ela rece-beu o bilhete, embora esteja trancada no andar de cima da ca-sa de Capricórnio. Gwin é um grande alpinista, melhor do que Dedo Empoeirado, e isso não é pouca coisa.
Ele ouviu como Língua Encantada respirou aliviado, como se tivesse tirado todo o peso do mundo do seu peito.
— Eu até recebi uma resposta.
Farid pegou Gwin da mochila, segurou-o pelo rabo e tirou o bilhete de Meggie de sua coleira.
Língua Encantada desdobrou o papel cuidadosamente, como se tivesse medo de apagar as letras com os dedos.
— Folha de guarda — ele murmurou. — Ela deve ter arrancado de um livro.
— O que ela diz? — Você tentou ler?
Farid sacudiu a cabeça e tirou um pedaço de pão do bolso da calça. Gwin merecia uma recompensa. Mas a marta desaparecera. Provavelmente recuperava o sono diurno do qual fora privada.
— Você não sabe ler, não é?
— Não.
— Bem, esta escrita aqui só poucos sabem. É a mesma que eu usei. Você viu, nem mesmo Elinor conseguiu decifrar.
Língua Encantada alisou o papel amarelo-pálido como areia do deserto, leu, e de repente ergueu a cabeça.
— Meu Deus do céu! — ele murmurou. — Mais essa.
— O que foi?
O próprio Farid mordeu o pão que guardara para Gwin. Estava duro; logo eles teriam que roubar mais.
— Meggie também tem o dom! — Língua Encantada sacudiu a cabeça incrédulo e olhou fixamente para o papel.
Farid apoiou os cotovelos na grama.
— Eu já sabia, todos estão falando disso... eu escutei as conversas. Eles dizem que ela sabe fazer feitiços como o pai, que agora Capricórnio não tem mais que esperar por você. Ele não precisa mais de você.
Língua Encantada olhou para ele como se ainda não ti-vesse pensado nisso.
— É verdade — ele murmurou. — E agora nunca mais a deixarão ir embora. Não por vontade própria.
Ele olhou para as letras que sua filha escrevera. Para Farid elas pareciam rastros de cobra na areia.
— O que mais ela escreveu?
— Que eles prenderam Dedo Empoeirado, e que ela será obrigada a ler Coração de tinta, para trazer alguém que irá matá-lo amanhã à noite.
Ele deixou o bilhete cair e passou a mão no cabelo.
— Também ouvi falar disso. — Farid arrancou um tufo de grama e o rasgou em pedacinhos. — Dizem que ele está preso na cripta no porão da igreja. O que mais diz o bilhete? Sua filha não diz nada sobre quem Capricórnio deseja que ela traga do livro?
Língua Encantada sacudiu a cabeça, mas Farid viu que ele sabia mais do que havia contado.
— Pode dizer! É um carrasco, não é? Alguém que é bom em cortar cabeças.
Língua Encantada ficou calado como se não tivesse ou-vido.
— Eu já vi uma decapitação — disse Farid. — Portan-to, pode me contar sem rodeios. Se o carrasco souber manejar bem a espada, a coisa é bem rápida.
Língua Encantada olhou para ele espantado, e então sacudiu a cabeça.
— Não é um carrasco — ele disse. — Pelo menos, não é um carrasco com uma espada. Não é nem mesmo uma pes-soa.
Farid ficou pálido.
— Não é uma pessoa?
Língua Encantada sacudiu a cabeça. Demorou um certo tempo até ele conseguir falar de novo.
— Ele é chamado de Sombra — disse com voz monó-
tona. — Não me lembro exatamente das palavras com as quais está descrito no livro, só sei que o imaginei como uma figura cinza e quente, feita de cinzas incandescentes, sem ros-to.
Farid olhou para ele assombrado. Por um momento, desejou não ter perguntado.
— Todos... estão animados com a execução — ele con-tinuou a contar com voz entrecortada. — Os casacos-pretos estão de bom humor. Eles também querem matar a mulher, aquela com a qual Dedo Empoeirado se encontrou, porque ela tentou encontrar o livro para ele.
Ele enfiou na terra os dedos dos pés descalços. Dedo Empoeirado tentara acostumá-lo a usar sapatos, por causa das cobras, mas a cada passo ele tinha a sensação de que alguém segurava seus dedos, e por isso acabou jogando-os no fogo.
— Que mulher? Uma das criadas de Capricórnio? — Língua Encantada perguntou.
Farid fez que sim. Ele esfregou os dedos dos pés. Es-tavam cheios de picadas de formigas.
— Ela não fala, é muda como um peixe. Dedo Empo-eirado tem uma foto dela na mochila. Ela já o ajudou outras vezes. Além disso, eu acho que ele está apaixonado por ela.
Farid não tivera dificuldade de espionar a aldeia. Ali ha-via muitos garotos da sua idade. Eles lavavam os automóveis para os casacos-pretos, poliam suas botas e suas armas, entre-gavam cartas de amor... Ele também já precisara entregar car-tas de amor, antigamente, na outra vida. Botas ele não preci-sara limpar, mas armas sim. E recolher o estrume dos came-los. Lustrar automóveis certamente era mais agradável.
Farid olhou para cima. Umas nuvenzinhas brancas co-mo penas de garça, eriçadas como flores de acácia, cruzavam o céu. Sempre passavam nuvens naquele céu. Farid gostava disso. O céu sobre o mundo de onde ele viera sempre estava nu.
— Já amanhã? — murmurou Língua Encantada. —
Mas o que vou fazer? Como vou tirá-la da casa de Capricór-nio? Talvez eu consiga entrar lá à noite, sem ser visto; eu pre-cisaria de um terno preto daqueles...
— Eu trouxe um para você. — Farid puxou da mochila primeiro o paletó, depois a calça. — Roubei de um varal. Para Elinor, eu tenho um vestido!
Língua Encantada olhou para ele com uma admiração tão escancarada que Farid corou.
— Você é de fato um garoto corajoso. Talvez eu deva perguntar a roce como tirar Meggie desta aldeia?
Farid riu encabulado e olhou para os pés. Perguntar a ele? Nunca alguém perguntara se ele tinha alguma idéia. Ele sempre fora apenas o cão farejador, o espião. Os planos, quem fazia eram outros: planos para roubos, assaltos, planos de vingança. O cão não era consultado. O cão apanhava quando não obedecia.
— Somos apenas dois, e lá embaixo eles são pelo me-nos vinte — ele disse. — Não vai ser fácil...
Língua Encantada olhou para o local onde estavam acampados. A mulher dormia debaixo das árvores.
— Você não está contando com Elinor? Pois devia. Ela é muito mais combativa do que eu, e no momento está muito furiosa.
Farid sorriu.
— Bem, então três! — ele disse. — Três contra vinte.
— Sim, isso não soa bem, eu sei. — Língua Encantada levantou-se com um suspiro. — Venha, vamos contar a Eli-nor o que você descobriu.
Farid, porém, ficou sentado na grama. Ele pegou um dos galhos secos que se espalhavam por toda parte. Lenha de primeira. Ali havia uma quantidade infinita de lenha. Em sua antiga vida, as pessoas iriam longe, muito longe por uma lenha como aquela. E pagariam em ouro. Farid examinou a lenha, passou os dedos na casca áspera e olhou para a aldeia de Ca-pricórnio.
— Podemos deixar o fogo nos ajudar — ele disse. Língua Encantada olhou para ele sem entender.
— Como assim?
Farid ergueu um graveto do chão e mais um. Começou a fazer uma pilha com os galhos e ramos secos que as árvores lançavam ali como se os tivessem em demasia.
— Dedo Empoeirado me mostrou como domar o fo-go. É como Gwin: ele morde quando não se sabe como pe-gá-lo, mas se for bem tratado faz o que a pessoa quer. Foi as-sim que Dedo Empoeirado me ensinou. Se for utilizado na hora certa e no lugar certo...
Língua Encantada curvou-se, pegou um dos gravetos e passou a mão nele.
— Mas e depois, como você pretende prendê-lo nova-mente? Faz tempo que não chove. Antes que perceba, as co-linas estarão em chamas.
Farid sacudiu os ombros.
— Só se o vento não for favorável. Mas Língua En-cantada sacudiu a cabeça.
— Não! — ele disse decidido. — Só brinco com o fogo nestas colinas se nada mais me ocorrer. Vamos entrar na al-deia hoje à noite. Talvez consigamos passar pelos guardas. Talvez eles se conheçam tão mal uns aos outros que me to-mem por um deles. Afinal de contas, já conseguimos escapar deles uma vez. Talvez consigamos de novo.
— São mesmo muitos talvezes — disse Farid.
— Eu sei — respondeu Língua Encantada. — Eu sei.

45. Algumas mentiras para Basta
— Cuidado! — ela gritou. — Eu cuspo no chão e o amaldiçôo. Que ele caia em grande desgraça! Se você vir Laird, então conte-lhe simplesmente que essa foi a milésima duocentésima décima nona vez que Jennet Clouston lançou uma praga contra ele e sua casa, seu palheiro e seu estábulo, seus criados e hóspedes, cavalheiros, senhoras, senhoritas e crianças. Que todos caiam em terrí-vel desgraça!
Robert L. Stevenson, Sequestrado

Fenoglio só precisou de algumas frases para convencer o vigia de que precisava falar imediatamente com Basta. O velho homem era um mentiroso de muito talento. Tramava histórias a partir do nada, mais rápido do que uma aranha com sua teia.
— O que você quer, velho? — perguntou Basta quan-do estava na porta. Ele trouxera o soldadinho de chumbo. — Aqui está. Tome, bruxinha! Por mim, ele teria ido para o fogo, mas ninguém mais me dá ouvidos.
Dizendo isso para Meggie, ele pôs o soldado na mão dela.
O soldadinho de chumbo estremeceu ao ouvir a palavra “fogo”, seu bigodinho arrepiou-se e seus olhos pareciam tão desesperados que partiram o coração de Meggie. Quando o envolveu em sua mão para protegê-lo, ela pensou ter sentido
o coraçãozinho bater e se lembrou do final da história: “Então o soldadinho derreteu, transformando-se num montinho de chumbo. No dia seguinte, quando foi limpar as cinzas, a criada o encontrou. 0 monte de chumbo tinha a forma de um coraçãozinho”.
— Sei, ninguém mais lhe dá ouvidos, eu também já re-parei! Fenoglio olhou com compaixão para Basta, como um pai para o filho, o que ele não deixava de ser, em certo senti-do.
— É justamente por esse motivo que eu queria falar com você — ele abaixou a voz em tom de cumplicidade. — Quero lhe propor um negócio.
— Um negócio? — Basta olhou para ele com uma mistura de medo e arrogância.
— Sim, um negócio — repetiu Fenoglio baixinho. — Estou muito entediado! Eu sou um escrevinhador, como você me chamou com toda a razão. Preciso de papel para viver, assim como os outros precisam de pão e vinho e sei lá mais o quê. Traga-me papel para escrever, Basta, e eu o ajudarei a recuperar as suas chaves. Você sabe, as chaves que a gralha tirou de você.
Basta pegou sua navalha. Quando ele a destravou, o soldadinho de chumbo começou a tremer tanto que a baione-ta escorregou das suas minúsculas mãozinhas.
— Ah, é? E como? — perguntou Basta enquanto lim-pava as unhas com a ponta da navalha.
Fenoglio curvou-se para falar com ele.
— Escreverei uma pequena maldição para você. Uma praga que obrigará Mortola a ficar semanas de cama, e lhe da-rá tempo para mostrar a Capricórnio que você é o verdadeiro mestre das chaves. É claro que esse tipo de encantamento não tem efeito imediato, leva um certo tempo, mas acredite: quando começa a surtir efeito...
Fenoglio ergueu as sobrancelhas num gesto expressivo. Mas Basta torceu o nariz com desprezo.
— Já tentei com aranhas, com sal e com salsinha. Nada
é capaz de derrubar a velha.
— Salsinha e aranhas! — Fenoglio riu baixinho. — Você é ingênuo, Basta. Não estou falando de simpatias infan-tis. Estou falando de letras escritas. Nada é mais poderoso do que as letras, no bem e no mal, pode acreditar.
Fenoglio baixou a voz e continuou num sussurro:
— Eu também o criei com palavras, Basta! Você e Ca-pricórnio. Basta deu um passo para trás. Medo e ódio são ir-mãos, e Meggie viu os dois no rosto de Basta. E ela viu mais uma coisa: ele acreditava no velho escritor. Acreditava em ca-da palavra.
— Você é um feiticeiro! — ele exclamou. — Você e a garota, os dois deveriam ser queimados como aqueles maldi-tos livros, e o pai dela também.
Rapidamente, ele cuspiu aos pés do velho, três vezes.
— Oh, cuspir. De que serve isso? É contra mau-olhado? — zombou Fenoglio. — Essa história de quei-mar na fogueira não é nenhuma idéia nova, Basta, mas você também nunca foi muito chegado a idéias novas. Bem, vamos fazer negócio ou não?
Basta ficou olhando para o soldadinho de chumbo, até que Meggie o escondeu em suas costas.
— Está bem! — ele rosnou. — Mas vou examinar dia-riamente o que você escrever, entendeu?
“E como você pretende fazer isso?”, pensou Meggie. “Se não sabe ler.” Basta olhou para ela como se tivesse ouvido seus pensamentos.
— Conheço uma das criadas — ele disse. — Ela vai ler para mim. Portanto, não tente nenhum truque, entendeu?
— É claro! — Fenoglio assentiu energicamente com a cabeça. — Ah, um lápis não seria mau. Preto, se for possível.
Basta trouxe o lápis e toda uma pilha de papel sulfite. Fenoglio sentou-se à mesa com uma pose importante, pôs a primeira folha à sua frente, dobrou-a e então rasgou em nove partes iguais. Em cada uma delas ele escreveu cinco letras,
floreadas, quase ilegíveis e sempre as mesmas. Então ele do-brou os papeizinhos com cuidado, cuspiu uma vez em cada um, e os entregou para Basta dizendo que ele precisava es-condê-los da seguinte maneira:
— Três onde ela dorme, três onde ela come, e três on-de ela trabalha. Somente assim, depois de três dias e três noi-tes, ocorrerá o efeito desejado. Contudo, se a pessoa amaldi-çoada encontrar um dos papeizinhos, o encantamento passará a agir imediatamente contra você.
— Mas o que significa isso? — Basta olhou para os papeizinhos de Fenoglio como se eles fossem lhe transmitir a peste instantaneamente.
— Bem, esconda-os de maneira que ela não encontre! — retrucou Fenoglio, e o empurrou para a porta.
— Se não funcionar, meu velho — resmungou Basta antes de fechar a porta atrás de si —, vou enfeitar o seu rosto da mesma maneira que fiz com Dedo Podre.
Então ele se foi, e Fenoglio encostou-se na porta fe-chada com um sorriso de satisfação.
— Mas não vai funcionar! — sussurrou Meggie.
— E daí? Três dias são um longo tempo — respondeu Fenoglio enquanto se sentava à mesa novamente. — E espero que não precisemos deles. Afinal de contas, temos que impe-dir uma execução amanhã à noite, não é?
O resto do dia ele passou ora olhando para o ar, ora escrevendo como um possesso. Encheu folhas e mais folhas com sua letra graúda, que corria impaciente sobre o papel.
Meggie não o perturbou. Sentou-se à janela com o sol-dadinho de chumbo, ficou olhando para as colinas e se per-guntando onde naquela selva de folhas e de galhos Mo estaria escondido. O soldadinho de chumbo ficou sentado ao seu lado, com as pernas esticadas para a frente, observando com olhos assustados o mundo que lhe era totalmente estranho. Talvez ele pensasse na bailarina de papel por quem estava tão apaixonado, talvez não pensasse simplesmente em nada. Ele não disse uma única palavra.

46. Acordada na noite escura
Os criados também traziam flores, todos os dias, ao meio-dia. Braçadas de flores do carvalho e da giesta e da ulmária, as mais belas e delicadas que podiam ser colhidas na floresta e no campo.
Evangeline Walton, Os quatro ramos de Mabinogi

Lá fora já escurecera, mas Fenoglio continuava escre-vendo. Embaixo da mesa, amontoavam-se as folhas que ele havia amassado ou rasgado. Eram muito mais numerosas do que as que ele punha de lado, cuidadosamente, como se as letras pudessem escorregar do papel. Quando uma das criadas, uma menina magra e franzina, trouxe o jantar, Fenoglio es-condeu as folhas selecionadas debaixo de seu cobertor. Basta não voltou naquela noite. Devia estar muito ocupado em es-conder os papeizinhos mágicos.
Meggie só foi dormir quando lá fora estava tão escuro que as colinas se fundiam com o céu. Ela deixou a janela a-berta.
— Boa noite! — ela sussurrou para a escuridão, como se Mo pudesse ouvi-la.
Então pegou o soldadinho de chumbo, foi para a cama e o pôs sentado ao lado do seu travesseiro.
— Acredite, você teve mais sorte do que Sininho! — ela disse. — Basta ficou com ela porque acredita que as fadas trazem sorte, e sabe de uma coisa? Se conseguirmos sair daqui, prometo que farei uma bailarina de papel para você, igualzinha
à da sua história.
Ele continuou calado, olhando para ela com seus olhos tristes, e então assentiu com um aceno discreto da cabeça, quase imperceptível. “Será que ele também perdeu a voz?”, pensou Meggie. “Ou sempre foi mudo?” De fato, sua boca parecia ainda não ter sido aberta uma única vez. “Se o livro estivesse aqui”, ela pensou, “eu poderia mandá-lo de volta, ou então tentar trazer a dançarina para ele.” Mas o livro estava com a gralha. Ela também mandara levar dali todos os outros livros.
O soldadinho de chumbo encostou-se na parede e fe-chou os olhos. “Não, a bailarina só iria partir o seu coração!”, pensou Meggie antes de adormecer. A última coisa que ela ouviu foi o lápis de Fenoglio correndo no papel, de uma letra para a outra, rápido como um tecelão tramando uma imagem múltipla com um fio negro.
Nessa noite, Meggie não sonhou com monstros. Nem mesmo uma aranhinha se intrometeu em seus sonhos. Ela estava em casa simplesmente, sabia disso embora seu quarto se parecesse com o da casa de Elinor. Mo estava lá e sua mãe também. Ela se parecia com Elinor, mas Meggie sabia que era a mulher que estava pendurada na igreja ao lado de Dedo Empoeirado. Nos sonhos, sabemos de muitas coisas, sobre-tudo que não podemos confiar em nossos olhos. Sabemos e pronto. Quando ela ia se sentar ao lado da mãe, no velho sofá que ficava entre as estantes de Mo, de repente alguém sussur-rou seu nome: “Meggie!”. Várias vezes. “Meggie!” Ela não queria ouvir, queria que o sonho não terminasse nunca, mas a voz continuava a chamar, impiedosamente. Meggie a conheci-a. Relutante, ela abriu os olhos.
Fenoglio estava ao lado da cama, com os dedos pretos de tinta, pretos como a noite que aparecia na janela aberta.
— O que foi? Quero dormir.
Meggie virou-se de costas para ele. Queria voltar para o sonho dela. Talvez ele ainda estivesse ali em algum lugar atrás
de suas pálpebras. Talvez ainda tivesse sobrado um pouco de alegria em seus cílios, como ouro em pó. Nos contos de fada, os sonhos às vezes não deixavam algum vestígio? O soldadinho de chumbo ainda dormia, com a cabeça caída para a frente.
— Mas eu terminei! — Fenoglio sussurrou, embora pudesse ouvir perfeitamente o ronco do vigia do outro lado da porta. Na mesa, iluminada pela luz bruxuleante da vela, havia uma pilha fina de folhas escritas.
Meggie sentou-se bocejando.
— Temos que tentar fazer uma coisa esta noite! — co-chichou Fenoglio. — Vamos ver se é possível mudar uma história, com a sua voz e as minhas palavras. Vamos tentar mandar o nosso soldadinho de volta. Ele pegou as folhas, an-sioso, e as colocou no colo de Meggie.
— Não é o ideal tentar fazer isso com uma história que não fui eu que escrevi, mas o que fazer? O que temos a per-der?
— Mandar de volta? Mas eu não quero mandá-lo de volta! — disse Meggie, desapontada. — Ele morrerá. O me-nino o joga na lareira e ele derrete. E a dançarina pega fogo. Da bailarina restara apenas a lantejoula queimada, preta como carvão.
— Não, não! — Fenoglio bateu impaciente com o de-do nas folhas de papel. — Eu escrevi uma nova história para ele, com um final feliz. Essa foi a idéia que seu pai teve: mudar as histórias! Ele só queria trazer sua mãe de volta reescreven-do Coração de tinta de forma que o livro a cuspisse de volta. Mas se essa idéia realmente funcionar, Meggie, se for possível alterar uma história escrita acrescentando palavras, poderemos mudar tudo nela: quem sai, quem entra, como ela termina, quem fica feliz e quem fica infeliz. Você entende? É apenas uma tentativa, Meggie! Mas se o soldado de chumbo desapa-recer daqui, acredite, também poderemos alterar Coração de tintai Como isso vai acontecer, eu ainda preciso pensar, mas agora leia. Por favor!
Fenoglio tirou a lanterna de sob o travesseiro e a pôs na
mão de Meggie.
Hesitante, ela iluminou a primeira das páginas cheias de linhas escritas. De repente, seus lábios estavam secos.
— Termina bem de verdade? — ela Umedeceu os lá-bios com a língua e olhou para o soldadinho, que ainda dor-mia. Pensou ouvir um ronco muito suave.
Fenoglio fez que sim, impaciente.
— Sim, sim, eu escrevi um final feliz bem açucarado. Ele se muda para o palácio com a bailarina e ali os dois vivem felizes e despreocupados até o fim dos seus dias... Sem cora-ção fundido, sem papel queimado, nada além de amor e feli-cidade...
— Sua letra é difícil de entender.
— O quê? Eu fiz o maior esforço!
— Mesmo assim.
O velho escritor suspirou.
— Está bem — disse Meggie. — Vou tentar.
“Todas, todas as letras são importantes!”, ela pensou. “Deixe-as soar, retumbar, sussurrar, crepitar, estrondear.” Então ela começou a ler.
Na terceira frase, o soldadinho de chumbo sentou-se reto como uma tábua. Meggie viu pelo canto do olho. Por um instante, ela quase perdeu o fio da meada, tropeçou numa pa-lavra e leu-a novamente. Depois disso, ela prosseguiu sem ousar olhar novamente para o soldadinho, até que Fenoglio pôs a mão em seu braço.
— Ele se foi! — ele sussurrou. — Meggie, ele se foi! Ele tinha razão. A cama estava vazia.
Fenoglio apertou o braço dela com tanta força que do-eu.
— Você é mesmo uma pequena maga! — ele sussur-rou. — Mas eu também não me saí mal, não é? Não, real-mente não.
Ele ficou um tempo admirando seus dedos sujos de tinta. Então começou a bater palmas e a dançar pelo quarto
feito um velho urso. Quando Fenoglio finalmente parou ao lado da cama de Meggie, estava um pouco sem fôlego.
— Nós dois vamos preparar uma surpresa desagradável para Capricórnio! — ele disse enquanto um sorriso se espa-lhava por todas as rugas do seu rosto. — Vou começar a tra-balhar agora mesmo! Oh, sim! Ele vai ter o que quer: você vai lhe trazer Sombra. Mas o seu velho amigo vai ter se transfor-mado, eu cuidarei disso! Eu, Fenoglio, o mestre da palavra, o mago da tinta, o feiticeiro de papel. Eu criei Capricórnio, e eu o riscarei da história, como se ele nunca tivesse existido, o que, devo admitir, teria sido melhor! Pobre Capricórnio! Com ele acontecerá o mesmo que aconteceu com o mago que fez uma mulher de flores para o seu sobrinho. Você conhece a história, não é?
Meggie olhava para o lugar onde o soldadinho de chumbo estivera. Sentia falta dele.
— Não! — ela murmurou. — Que mulher de flores?
— É uma história muito antiga. Vou contar a versão reduzida. A mais longa é mais bonita, mas logo irá amanhecer. Bem, era uma vez um ma-go de nome Gwydion, que tinha um sobrinho a quem ele amava mais do que a tudo no mundo, mas a mãe do menino lançara uma maldição sobre ele.
— Por quê?
— Agora não importa o porquê. Ela o amaldiçoou. Se ele tocasse numa mulher, morreria. Isso cortava o coração do mago. Seu sobrinho predileto ficaria condenado eternamente à solidão? Não. Afinal, de que serviam suas habilidades mágicas senão para ajudar o sobrinho? Assim, ele se trancou por três dias e três noites em sua oficina de magia e criou uma mulher de flores, de nove flores para ser preciso. Nunca antes existira uma mulher tão bela, e o sobrinho de Gwydion apaixonou-se por ela à primeira vista. Mas Blodeuwedd, era esse o nome dela, trouxe a desgraça ao rapaz. Ela se apaixonou por um ou-tro, e juntos os dois mataram o sobrinho do mago.
— Blodeuwedd! — Meggie saboreou o nome como
uma fruta exótica. — Que triste. O que aconteceu com ela? O mago também a matou por vingança?
— Não. Gwydion a transformou numa coruja, e desde então todas as corujas piam como uma mulher em prantos.
— Bonito! Triste e bonito — murmurou Meggie. Por que as histórias tristes volta e meia eram tão bonitas? Na vida real era diferente. — Bom, agora conheço a história da mulher de flores. Mas o que ela tem a ver com Capricórnio?
— Bem, Blodeuwedd agiu contra as expectativas da-quele que a invocou. E é exatamente isso que vou cuidar para que aconteça: a sua voz e as minhas palavras, novas e bonitas, vão fazer com que Sombra não faça o que Capricórnio espera dele!
Fenoglio parecia satisfeito, como uma tartaruga que acabou de encontrar um folha de alface fresca num lugar to-talmente inesperado.
— E o que exatamente ele vai fazer?
Fenoglio franziu a testa. A satisfação desaparecera.
— Ainda estou trabalhando nisso — ele disse, irritado, e bateu com a ponta do dedo na testa. — Aqui. E isso leva tempo.
Lá fora ouviram-se vozes, vozes masculinas. Vinham do outro lado do muro. Meggie desceu depressa da cama e correu para a janela aberta. Ela ouviu passos, passos rápidos e tropeços, em fuga — e então tiros. Ela se esticou tanto ten-tando ver alguma coisa que quase caiu da janela, mas não conseguiu ver nada, naturalmente. O barulho parecia vir da praça da igreja.
— Ei, ei, cuidado! — sussurrou Fenoglio, segurando-a firme pelos ombros.
Tiros novamente. Os homens de Capricórnio gritavam alguma coisa uns para os outros. Suas vozes soavam enfureci-das, nervosas. Por que ela simplesmente não conseguia en-tender o que eles diziam? Ela olhou para Fenoglio apavorada, talvez ele tivesse conseguido entender alguma coisa da gritaria.
Palavras, nomes...
— Sei o que você está pensando, mas com certeza não era o seu pai — ele a tranqüilizou. — Ele não seria louco a ponto de tentar entrar à noite na casa de Capricórnio!
Delicadamente, ele a afastou da janela. As vozes silen-ciaram. A noite ficou quieta novamente, como se nada tivesse acontecido.
Com o coração aos pulos, Meggie voltou para a cama. Fenoglio ajudou-a a subir.
— Faça-o matar Capricórnio! — ela sussurrou. — Faça Sombra matá-lo.
Ela própria se assustou com suas palavras. Mas não mudou de idéia. Fenoglio esfregou a testa.
— Sim, acho que terei que fazer isso, não é? — ele murmurou.
Meggie pegou o pulôver de Mo e o abraçou. Em algum lugar da casa, ela ouviu bater portas e ecoar passos na direção deles. Depois tudo silenciou novamente. Aquele silêncio soava ameaçador. Silêncio mortal, pensou Meggie. A expressão não lhe saía mais da cabeça.
— O que acontecerá se Sombra não obedecer a você também? — ela disse. — Como a mulher de flores? O que acontecerá?
— Nisso — respondeu Fenoglio lentamente — é melhor nem pensar.

47. Sozinha
— Ah, por que eu não fiquei simplesmente na minha toca de hobbit? — disse o pobre senhor Bolseiro, enquanto sacolejava nas costas de Bombur.
J. R.R.Tolkien, O hobbit

Quando ouviu os tiros no escuro, Elinor levantou-se tão depressa que tropeçou no próprio cobertor. Ela caiu de comprido na relva cheia de tufos espinhentos, que picaram suas mãos quando ela se apoiou para levantar.
— Oh, meu Deus, oh, meu Deus, eles foram pegos! — ela balbuciou, enquanto cambaleava pela noite à procura do vestido estúpido que o garoto havia roubado para ela. Estava tão escuro que ela mal conseguia ver os próprios pés.
— Eu sabia, eu sabia — ela sussurrava sem parar. — Por que eles não me levaram, aqueles malditos cabe-ças-de-vento, eu poderia vigiar, eu teria prestado atenção.
Mas quando finalmente encontrou o vestido e começou a vesti-lo por cima da cabeça, ela parou de repente.
Silêncio. Silêncio mortal.
“Eles foram baleados!”, algo sussurrava dentro dela. “Por isso esse silêncio. Estão mortos. Mortos da silva. Estão estendidos no chão daquela praça na frente da casa, numa po-ça de sangue, os dois, oh, meu Deus. E agora?” Ela começou a chorar. “Não, Elinor, nada de lágrimas. O que é isso? Vá procurá-los, vá de uma vez.”
Ela se pôs a caminho. Aquela era a direção certa?
— Você não pode ir junto, Elinor! — dissera Morti-mer.
Ele ficara tão diferente no terno que Farid havia rou-bado para ele, parecia um dos capangas de Capricórnio, mas afinal era esse o objetivo do disfarce. Até mesmo uma espin-garda o garoto arranjara.
— Por que não? — ela respondera. — Eu até concordo em pôr esse vestido idiota!
— Uma mulher chamaria muito a atenção! Você mes-ma viu. A noite, não há mulheres na rua. Apenas os guardas. Pergunte ao garoto.
— Não quero perguntar! Por que ele não roubou um terno para mim? Eu poderia me disfarçar de homem!
Para isso eles não tinham resposta.
— Elinor, por favor, precisamos de alguém que fique com as nossas coisas!
— Com as nossas coisas? Você se refere à mochila i-munda de Dedo Empoeirado?
Ela a chutara de raiva. Como eles se achavam espertos! Mas seu disfarce de nada lhes servira! Quem os reconhecera? Basta, Nariz Chato, o perna-de-pau? “Ao amanhecer estare-mos de volta, Elinor! Com Meggie.” Mentiroso! Ela percebera em sua voz que nem ele mesmo acreditava no que dizia. Eli-nor tropeçou na raiz de uma árvore, agarrou-se em algo espi-nhento e ajoelhou-se aos prantos. Assassinos! Assassinos e incendiários. Por que ela tinha que se meter com aquela gente? Ela deveria ter percebido, naquele dia em que Mortimer apa-recera tão repentinamente diante da sua porta e lhe pedira que escondesse o livro. Por que ela simplesmente não se recusara? Ela não tinha percebido na hora que o devorador de fósforos tinha “encrenca” escrito na testa com tinta vermelha? Mas o livro... sim, o livro. É claro que ela não pudera resistir...
“A marta fedorenta eles levaram”, ela pensou, enquanto se reerguia. “Mas a mim não. E agora eles estão mortos.”
“Vamos chamar a polícia!” Quantas vezes ela não dissera is-so?! Mas a resposta de Mortimer era sempre a mesma. “Não, Elinor, Capricórnio daria sumiço em Meggie assim que o pri-meiro policial pisasse na aldeia. E a navalha de Basta é mais rápida do que toda a polícia do mundo, pode crer.”Aquela pequena ruga formara-se em sua testa, ela o conhecia bem o bastante para saber o que ela significava.
O que ela ia fazer agora que estava tão sozinha?
“Não se faça de boba, Elinor!”, ela ralhou consigo mesma. “Você sempre esteve sozinha, já se esqueceu? Use a cabeça. Você precisa ajudar a menina, não importa o que te-nha acontecido com o pai dela. Você precisa tirá-la desta mal-dita aldeia, não há mais ninguém que possa fazer isso além de você, ou você quer que ela se transforme numa dessas criadas acanhadas que não se atrevem a erguer a cabeça e estão ali apenas para limpar e cozinhar para os gentis cavalheiros? Tal-vez ela obtenha permissão para de vez em quando ler algo para Capricórnio, quando ele tiver vontade, e então quando ela ficar mais velha... ela é uma belezinha... Elinor sentiu um enjôo no estômago.
— Preciso de uma daquelas espingardas — ela sussur-rou —, ou uma faca, uma grande faca afiada, com ela eu entro escondida na casa de Capricórnio. Quem é que vai me reco-nhecer neste vestido indescritível?
Mortimer sempre achara que ela só sabia se virar num mundo que estivesse entre duas capas de papelão, mas agora ela iria mostrar a ele!
“Mas como?”, algo dentro dela sussurrou. “Ele se foi, Elinor, assim como os seus livros.”
Ela começou a chorar tão alto que ela mesma se assus-tou e tapou a boca com a mão. Um galho se quebrou sob os seus pés e, atrás de uma das janelas da aldeia de Capricórnio, a luz se apagou. Ela tinha razão. O mundo era terrível, cruel, impiedoso, negro como um sonho mau. Não havia um lugar para viver. Os livros eram o único lugar onde havia compai-
xão, consolo, alegria... e amor. Os livros amavam a todos que os abriam, ofereciam proteção e amizade sem exigir nada em troca, e nunca iam embora, nunca, mesmo quando não eram bem tratados. Amor, verdade, beleza, sabedoria e consolo perante a morte. Quem dissera isso? Algum outro bibliomaníaco como ela, de cujo nome não conseguia se lembrar, só das palavras. As palavras são imortais... a não ser que venha alguém e po-nha fogo nelas. E mesmo assim...
Ela continuou a se arrastar. A luz vinda da aldeia de Capricórnio se derramava na noite como uma água leitosa. No estacionamento, entre os automóveis, três dos assassinos es-tavam cochichando.
— Podem falar! — sussurrou Elinor. — Podem se ga-bar com os seus dedos cheios de sangue e o seu coração de pedra, vocês ainda vão se arrepender de tê-los matado.
O que era melhor? Ir para lá agora mesmo ou esperar que amanhecesse? Ambas as opções eram insanas, ela não passaria por duas esquinas. Um dos três homens olhou para os lados, e por um momento Elinor pensou que ele poderia vê-la. Ela se precipitou de volta, escorregou e se agarrou num galho exatamente na hora em que seus pés iam perder o apoio outra vez. Então ouviu um farfalhar atrás de si e, antes que pudesse se virar para ver o que era, uma mão tapou sua boca. Ela quis gritar, mas não saiu som algum, de tão firme que os dedos pressionavam seus lábios.
— Então você está aqui. Sabe há quanto tempo estou atrás de você? Não podia ser. Ela tinha certeza de que nunca voltaria a ouvir aquela voz.
— Desculpe, mas eu sabia que você iria gritar! Venha!
Mortimer tirou a mão de sua boca e fez um sinal para que ela o seguisse. Ela não sabia o que preferiria fazer: abra-çá-lo ou bater nele com força até doer.
Somente quando quase não se viam mais as casas da aldeia de Capricórnio atrás das árvores, ele parou.
— Por que você não ficou no acampamento? Sair assim
feito doida pela escuridão... Você sabe o quanto isso é peri-goso?
Aquilo era demais. Elinor ainda estava sem fôlego de tão depressa que ele andara.
— Perigoso? — era difícil falar baixo estando tão furi-osa. — Você está falando de perigo? Eu ouvi os tiros e a gri-taria! Pensei que vocês estavam mortos! Pensei que vocês ti-nham sido fuzilados... Ela passou a mão no rosto.
— Ah, que nada, eles não têm pontaria — ele disse. — Felizmente. Ela ficou com vontade de sacudi-lo por ter dito aquilo com tanta calma.
— Ah, é? E cadê o garoto?
— Ele também está bem, só teve um arranhão na testa. Quando eles atiraram, a marta fugiu e ele foi atrás dela. O tiro o atingiu de raspão. Eu o deixei lá em cima no acampamento.
— A marta? Essa é a única preocupação de vocês, a marta dentuça e fedorenta? Esta noite me custou dez anos da minha vida! — Elinor voltou a falar alto, mas rapidamente baixou a voz. — E eu com este vestido medonho! Vi vocês dois na minha frente, com sangue, feridas e tudo... Isso, olhe para mim com essa cara de santo. É um milagre que eu não esteja morta. Eu não podia ter dado ouvidos a você. Devía-mos ter procurado a polícia... desta vez eles têm que acreditar em nós, nós...
— Foi só um azar, Elinor! — ele a interrompeu. — Acredite em mim. Era justamente aquele tal de Cockerell que estava vigiando a casa. Os outros não teriam me reconhecido.
— E o que vai acontecer amanhã? Talvez seja Basta ou Nariz Chato! O que adianta para a sua filha se você estiver morto?
Mortimer lhe deu as costas.
— Mas eu não estou morto, Elinor! — ele disse. — E vou tirar Meggie de lá, antes que ela desempenhe o papel principal numa execução.
Quando chegaram ao acampamento, Farid já estava
dormindo. O lenço ensopado de sangue que Mortimer havia atado ao redor da cabeça do garoto quase parecia o turbante que ele usava quando surgira atrás das colunas da igreja de Capricórnio.
— Não é tão ruim quanto parece — sussurrou Mo. — Mas, acredite em mim, se eu não o tivesse segurado, ele teria corrido pela aldeia atrás da marta. E se eles não tivessem nos descoberto, com certeza ele também teria entrado na igreja para ver Dedo Empoeirado.
Elinor apenas balançou a cabeça e enrolou-se no co-bertor. A noite estava amena, em outro lugar certamente seria uma noite pacífica.
— Como vocês os despistaram? — ela perguntou.
Mortimer sentou-se ao lado de Farid. Só então Elinor viu que ele estava com a espingarda que o garoto roubara. Ele a tirou do ombro e a pôs na grama ao seu lado.
— Eles não nos seguiram por muito tempo — ele res-pondeu. — E para quê, afinal? Eles sabem que voltaremos. Só precisam esperar.
E Elinor estaria com eles, ela jurou para si mesma. Ela não queria nunca mais se sentir como naquela noite, tão a-bandonada por tudo e por todos.
— O que vocês pretendem fazer a seguir? — ela per-guntou.
— Farid propôs que ateássemos fogo. Até agora eu a-chei isso muito perigoso, mas estamos correndo contra o tempo.
— Fogo? — Elinor sentiu como se a palavra queimasse sua língua. Desde que encontrara as cinzas de seus livros, a simples visão de um palito de fósforo a fazia entrar em pâni-co.
— Dedo Empoeirado ensinou algumas coisas ao garo-to, além disso qualquer idiota sabe fazer fogo. Se pusermos fogo na casa de Capricórnio...
— Você ficou louco? E se o fogo se alastrar pelas coli-
nas? Mo abaixou a cabeça e passou a mão no cano da espin-garda.
— Eu sei — ele disse. — Mas não vejo outro jeito. O fogo vai provocar um tumulto, os homens de Capricórnio es-tarão ocupados em apagá-lo, e na confusão eu tentarei me aproximar de Meggie. Farid cuidará de Dedo Empoeirado.
— Isso é loucura! — desta vez Elinor não conseguir evitar que sua voz se elevasse.
Farid murmurou alguma coisa no sono, passou a mão sem cuidado pela atadura e virou-se para o outro lado.
Mo ajeitou o cobertor e encostou-se no tronco da ár-vore novamente.
— Mesmo assim, é o que faremos, Elinor — ele disse. — Acredite, eu quebrei a cabeça até pensar que estava louco. Não temos outra saída. E, se não adiantar, vou pôr fogo tam-bém naquela igreja cretina. Vou derreter o ouro e transformar toda a maldita aldeia em escombros e cinzas. Quero a minha filha de volta.
Elinor não respondeu. Ela se deitou e fez de conta que dormia, embora não conseguisse pregar um olho. Quando rompeu a manhã, ela convenceu Mortimer a dormir um pouco e deixá-la vigiando. Não demorou muito para que ele ador-mecesse. Assim que a respiração dele entrou num ritmo cons-tante, ela tirou aquele vestido idiota, vestiu suas próprias rou-pas, penteou os cabelos desgrenhados e escreveu um bilhete. “Vou buscar ajuda. Volto ao meio-dia. Por favor, não façam nada até eu voltar. Elinor.”
Ela deixou o bilhete na mão entreaberta de Mo, para que ele o encontrasse logo ao acordar. Quando passou pelo garoto, ela viu que a marta voltara. Estava encolhida ao seu lado lambendo as patinhas, e fitou Elinor com seus olhos ne-gros quando ela se curvou sobre Farid para ajeitar a atadura. Aquele diabinho! Ela jamais gostaria daquele bicho, mas o ga-roto o amava como a um cachorro. Com um suspiro, ela se ergueu novamente.
— Cuide bem dos dois, está bem? — ela sussurrou, e então se pôs a caminho.
O automóvel ainda estava debaixo das árvores, no lugar onde eles o haviam escondido. Era um bom esconderijo, ela mesma passou por ele sem perceber, com tantos galhos que o fechavam. O motor pegou logo. Preocupada, Elinor escutou a manhã por um momento, mas a única coisa que ouviu foram os pássaros que saudavam a alvorada tão vivazes como se a-quele fosse o último dos dias.
A próxima aldeia, pela qual ela chegara com Mortimer, ficava a menos de meia hora de carro. Ali devia haver um posto policial.

48. A gralha
Mas eles o acordaram com palavras, suas armas afiadas e reluzentes.
T. H. White, O livro de Merlim

Ainda era muito cedo quando Meggie ouviu a voz de Basta no corredor. Ela não tocara no café-da-manhã que uma das criadas trouxera. Quando Meggie lhe perguntou o que ha-via acontecido durante a noite, o que significavam os tiros, a garota olhou para ela amedrontada, sacudiu a cabeça e saiu depressa pela porta. Provavelmente ela tomava Meggie por uma bruxa.
Fenoglio também não tomou o café-da-manhã. Ele es-crevia. Escrevia sem parar, enchia folha após folha, rasgava o que havia escrito, começava de novo, punha uma página de lado e começava a próxima, franzia a testa, amassava o papel... e recomeçava do início. Fazia horas que ele estava nessa lida, e de todas as folhas conservara apenas três. Apenas três. Ao ouvir a voz de Basta, ele as escondeu rapidamente debaixo do colchão, e as outras, amassadas, ele empurrou com o pé para baixo da cama.
— Meggie, depressa, me ajude a escondê-las — ele sussurrou. — Basta não pode achar as páginas. Nenhuma de-las.
Meggie obedeceu, mas só pensava numa coisa: por que Basta viera? Queria lhe dizer alguma coisa? Queria ver o rosto dela quando lhe dissesse que ela não precisava mais esperar
por Mo?
Fenoglio estava novamente sentado à mesa, diante de uma folha em branco onde rabiscara às pressas algumas pala-vras, quando a porta se abriu.
Meggie prendeu a respiração, como se assim também pudesse segurar as palavras — as palavras que logo sairiam da boca de Basta e lhe cortariam o coração.
Fenoglio largou o lápis e se pôs ao lado dela.
— O que foi? — ele perguntou.
— Vim buscar a menina — disse Basta. — Mortola quer vê-la.
Sua voz soou irritada, como se fosse indigno para ele realizar uma tarefa tão sem importância.
Mortola? A gralha? Meggie olhou para Fenoglio. O que significava aquilo? Mas o velho homem apenas ergueu os om-bros, desconcertado.
— A pombinha precisa dar uma olhada no que vai ler esta noite. Para depois não ficar gaguejando como Darius e estragar tudo — declarou Basta, fazendo um sinal impaciente para Meggie. — Venha de uma vez.
Meggie deu um passo em sua direção, mas então parou.
— Antes eu quero saber o que aconteceu esta noite — ela disse. — Eu ouvi tiros.
— Ah, isso! — Basta sorriu. Seus dentes eram quase tão brancos quanto a sua camisa. — Acho que o seu pai que-ria visitá-la, mas Cockerell não o deixou entrar.
Meggie continuou ali, como se tivesse criado raízes. Basta pegou o braço dela e puxou sem delicadeza nenhuma. Fenoglio tentou segui-los, mas Basta bateu a porta no nariz dele. Fenoglio gritou alguma coisa que Meggie não conseguiu entender. Havia um rumorejar em seus ouvidos, como se ela ouvisse o próprio sangue correr depressa demais nas veias.
— Ele conseguiu fugir, se isso a consola — disse Basta enquanto a empurrava para a escada. — Embora isso não queira dizer muita coisa, pensando bem. Várias vezes os gatos
conseguem escapar quando Cockerell atira neles, mas no final alguém sempre os encontra mortos em algum canto.
Meggie deu um chute na canela dele, com toda a força. Então ela disparou escada abaixo, porém Basta logo a alcan-çou. Com o rosto desfigurado pela dor, ele agarrou seus cabe-los e puxou-a para perto de si.
— Não tente fazer isso de novo, meu bem! — ele disse entre os dentes. — Você tem sorte de ser a atração principal da nossa festa hoje à noite, senão eu torceria o seu lindo pes-coço agora mesmo.
Meggie não tentou novamente. Mesmo se quisesse, não teria tido oportunidade. Basta não soltou mais seus cabelos. Ele a puxava atrás de si como a um cão desobediente. Lágri-mas de dor corriam dos olhos de Meggie, mas ela virou o rosto de forma que Basta não pudesse vê-las.
Ele a levou para o porão. Ela nunca havia estado na-quela parte da casa de Capricórnio. O teto era baixo, ainda mais baixo do que no estábulo em que ela, Mo e Elinor havi-am sido trancafiados pela primeira vez. As paredes estavam pintadas de branco como na parte superior da casa, e ali tam-bém tinha muitas portas. A maior parte delas parecia estar fe-chada havia muito tempo. Em algumas, havia fortes cadeados. Meggie lembrou-se dos cofres sobre os quais Dedo Empoei-rado contara, e do ouro que Mo havia lido na igreja de Capri-córnio. “Eles não atingiram Mo!”, ela pensou. “É claro que não. O perna-de-pau não tem pontaria.”
Finalmente, eles pararam diante de uma porta. Ela era de uma madeira diferente das outras, os veios eram bonitos como a pele de um tigre. A madeira adquiria um brilho aver-melhado à luz das lâmpadas nuas.
— Acredite em mim! — sussurrou Basta antes de bater na porta. — Se você for tão insolente com Mortola como é comigo, ela vai deixá-la pendurada numa das redes da igreja até você começar a morder as cordas de tanta fome. Compa-rado com o dela, o meu coração é mole como um desses bi-
chinhos de pelúcia que se põem na cama para as menininhas que não conseguem dormir.
Seu hálito de hortelã roçou o rosto de Meggie. Nunca mais ela conseguiria comer nada que cheirasse a hortelã.
O quarto da gralha era tão grande que era possível dançar dentro dele. As paredes eram vermelhas como na igre-ja, mas não dava para ver muito delas. Estavam cobertas por fotos com molduras douradas, fotos de casas e de pessoas. Elas se apinhavam na parede como uma multidão numa praça muito pequena. No meio delas, numa moldura dourada como as outras, mas muito maior, havia um retrato de Capricórnio. Quem quer que o tivesse pintado era tão talentoso quanto o autor da estátua de Capricórnio na igreja. No retrato, o rosto de Capricórnio era mais redondo e mais suave do que na rea-lidade, e sua boca estranhamente feminina parecia uma fruta exótica sob o nariz, que saíra um pouco largo e curto demais. Só os olhos haviam sido bem retratados. Inexpressivos como na vida real, eles olhavam de cima para Meggie, como os olhos de um homem que observa um sapo que pretende dissecar para ver como é feito por dentro. Nenhum rosto, isso ela a-prendera na aldeia de Capricórnio, é mais assustador do que um rosto sem compaixão.
A gralha causava uma impressão estranha, empertigada numa poltrona de orelhas de veludo verde, bem embaixo do retrato do filho. Estava sentada como se não estivesse habi-tuada a isso, como uma mulher que sempre tinha algo para fazer e preenchia a calma com desconforto. Mas talvez seu corpo a forçasse algumas vezes a descansar naquela poltrona de mau gosto, que parecia grande demais para ela. Meggie viu que as pernas da velha mulher estavam inchadas. Disformes, elas se abaulavam dos pés até os joelhos pontudos. Quando notou o olhar de Meggie, a gralha cobriu os joelhos com a barra da saia.
— Você disse a ela por que pedi que a trouxesse aqui?
Ela teve que fazer um esforço para se levantar. Meggie
viu como ela apoiou a mão numa mesinha e apertou os lábios. Basta parecia apreciar essa fraqueza; um sorriso se esboçou em seus lábios, até que a gralha apagou seu contentamento com um olhar gélido. Impaciente, ela chamou Meggie com um gesto. Como a menina não se pôs em movimento imediata-mente, Basta deu um empurrão nas costas dela.
— Venha, quero lhe mostrar uma coisa.
A gralha começou a andar, com passos lentos porém firmes, em direção a uma cômoda, que parecia pesada demais para seus pés graciosamente arqueados. Em cima da cômoda, entre duas lâmpadas amareladas, havia um estojo de madeira. Ele era adornado com um desenho formado por diminutos furinhos.
Quando a gralha ergueu a tampa, Meggie recuou assus-tada. Havia duas cobras no estojo, finas como lagartos e não muito mais compridas do que o antebraço de Meggie.
— Mantenho o meu quarto sempre aquecido para que as duas não fiquem muito sonolentas! — declarou a gralha, enquanto abria a gaveta de cima da cômoda e tirava de dentro uma luva. Era uma luva firme, de couro preto, tão rígida que ela custou a conseguir calçá-la em sua mão pequena. — Seu amigo Dedo Empoeirado pregou uma peça de mau gosto na pobre Resa quando lhe pediu que procurasse o livro.
Enquanto dizia isso, Mortola pegava o cofre e agarrava com força uma das cobras, segurando atrás da cabeça chata do animal.
— Ora, venha cá! — ela disse rispidamente para Basta, estendendo-lhe a cobra ondulante. Meggie viu no rosto de Basta que tudo dentro dele se recusava a fazer isto, mas ele se aproximou e pegou a cobra, mantendo afastado de si o corpo escamoso, que serpenteava e se retorcia.
— Está vendo? Basta não gosta das minhas cobras! — a gralha observou com um sorriso. — Ele nunca gostou, mas isso não é grande coisa. Que eu saiba, Basta não gosta de ab-solutamente nada além da sua navalha. Além disso, ele acredi-
ta que as cobras dão azar, o que naturalmente é uma baita besteira.
Mortola entregou a segunda cobra para Basta. Meggie viu os minúsculos dentes venenosos quando a víbora abriu a boca. Por um momento, ela quase sentiu pena de Basta.
— Bem, o que você me diz? Não é um bom esconde-rijo? — perguntou a gralha, pondo a mão dentro do cofre pela terceira vez. Mas agora ela tirou um livro de dentro. Meggie saberia que livro era mesmo se não tivesse reconhecido a capa colorida.
— Já guardei muitas coisas valiosas neste cofre — prosseguiu a gralha. — Ninguém sabe da existência dele além de Basta e Capricórnio. A pobre Resa procurou o livro em muitos quartos, ela é uma mocinha corajosa, mas não chegou até o meu estojo. E olha que ela gosta de cobras, acho que não conheço ninguém que tenha tão pouco medo delas quan-to essa menina, embora já tenha sido mordida uma vez. Não é verdade, Basta?
A gralha tirou a luva e lançou-lhe um olhar debochado.
— Basta gosta de assustar com cobras as mulheres que o rejeitam. Com Resa ele não teve sucesso. Como é que foi mesmo? Ela pôs a cobra na sua porta, não foi, Basta?
Basta ficou calado. As cobras ainda se retorciam em suas mãos. Uma delas havia se enrolado no braço dele.
— Ponha-as de volta! — a gralha ordenou. — Mas te-nha cuidado. Então ela voltou com o livro para a sua poltrona.
— Sente-se! — ela ordenou, apontando para o pufe que havia ao lado da poltrona.
Meggie obedeceu. Ela olhou discretamente ao seu re-dor. O quarto de Mortola lembrava um desses baús de tesou-ro, muito abarrotado. Ali havia tudo em demasia, um excesso de castiçais dourados, abajures demais, tapetes, quadros, va-sos, estatuetas de porcelana, flores de seda, sininhos dourados.
A gralha lançou um olhar zombeteiro para Meggie. Ali sentada com seu vestido preto e feio, ela parecia um cuco que
invadira o ninho de outro pássaro.
— Um quarto luxuoso para uma criada, não é verdade? — ela observou, com ar de satisfação consigo mesma. — Ca-pricórnio sabe dar valor ao que tem.
— Ele deixa você morar num porão! — retrucou Meg-gie. — Embora seja a mãe dele.
Por que não é possível simplesmente engolir as pala-vras, apanhá-las bem depressa e mandá-las de volta para os lábios? A gralha olhou para ela com tanto ódio que Meggie já podia sentir os dedos nodosos dela em seu pescoço. Mas Mortola apenas ficou ali sentada, olhando para ela com aque-les olhos vidrados de passarinho.
— Quem lhe contou isso? O velho bruxo?
Meggie apertou os lábios e olhou para Basta. Prova-velmente ele não entendera uma só palavra, pois estava justa-mente pondo as cobras de volta no estojo. Será que ele sabia do segredinho de Capricórnio? Antes que ela pudesse refletir mais a respeito, Mortola pôs o livro em seu colo.
— Se você tocar nesse assunto com qualquer pessoa, aqui ou em outro lugar — disse a gralha entre os dentes —, eu prepararei pessoalmente a sua próxima refeição. Um pouco de extrato de acônito, umas pontas de teixo ou talvez algumas sementes de cicuta no molho, que tal? Garanto que a refeição não cairia muito bem. E agora comece a ler.
Meggie olhou para o livro em seu colo. Quando Capri-córnio o exibira na igreja, ela não distinguira a figura na so-brecapa. Agora tinha a oportunidade de vê-la de perto. O fundo era uma paisagem, que parecia uma representação um tanto alterada das colinas ao redor da aldeia de Capricórnio. Em primeiro plano havia um coração, um coração negro, en-volto em chamas vermelhas.
— Abra de uma vez! — ordenou a gralha.
Meggie obedeceu, e abriu o livro na página que come-çava com um H, onde estava sentada a marta de chifres. Quanto tempo fazia que ela tinha visto aquela mesma página
na biblioteca de Elinor? Uma eternidade, toda uma vida?
— Não é esta a página. Mais para a frente! — ordenou a gralha. — Até a página com o canto dobrado.
Meggie obedeceu sem dizer uma palavra. Não havia i-lustração naquela página, nem na página ao lado. Sem pensar, ela alisou o canto dobrado com a unha do polegar. Mo odiava páginas dobradas.
— O que é isso? Está querendo desmarcar a página? — zombou a gralha. — Comece no segundo parágrafo, mas não precisa ler em voz alta. Não estou com vontade de ver Som-bra de repente no meio do meu quarto.
— E até onde? Até onde vou ler hoje à noite?
— E eu sei? — A gralha curvou-se e esfregou a perna esquerda. — Quanto tempo você costuma levar normalmente para tirá-los dos livros, as suas fadas e soldadinhos de chumbo e sei lá mais o quê?
Meggie abaixou a cabeça. Pobre Sininho.
— Não dá para dizer — ela murmurou. — Cada vez é diferente. Às vezes é rápido, às vezes só acontece depois de muitas páginas ou nem mesmo acontece.
— Bem, então leia todo o capítulo, isso deve ser sufi-ciente! E não quero saber de “nem mesmo acontece”!
A gralha esfregou a outra perna. As duas estavam en-faixadas, Meggie podia ver as faixas sob as meias escuras.
— O que você está olhando? — ela ralhou. — Você pode ler alguma coisa contra isso de algum livro? Será que você conhece alguma história que tenha uma receita contra a velhice e a morte, hein, sua bruxinha?
— Não — sussurrou Meggie.
— Então pare de olhar feito boba e preste atenção no livro. Veja bem cada palavra. Hoje à noite não quero ouvir nem uma única palavra errada, gaguejada ou balbuciada, en-tendido? Desta vez Capricórnio terá que receber exatamente o que deseja. Eu cuidarei para que isso aconteça.
Meggie deixou correr os olhos pelas letras. Ela não en-
tendia uma palavra do que lia, só conseguia pensar em Mo e nos tiros na noite. Mas ela fingiu que continuava a ler, mais e mais, sob o olhar vigilante de Mor-tola. Finalmente, ergueu a cabeça e fechou o livro.
— Pronto — ela disse.
— Tão depressa? — a gralha olhou para ela incrédula. Meggie não respondeu. Ela olhou para Basta, que estava en-costado na poltrona de Mortola com uma cara entediada.
— Não vou ler isto hoje à noite — ela disse. — Vocês atiraram no meu pai ontem. Basta me disse. Não vou ler uma palavra.
A gralha se virou para Basta.
— O que significa isso? — ela perguntou, irritada. — Você acha que a menina vai ler melhor se você partir o seu coraçãozinho bobo? Diga a ela que vocês não conseguiram acertar, vamos.
Basta baixou o olhar como um garotinho cuja mãe a-panhou fazendo alguma travessura.
— Mas eu já disse — ele rosnou. — Cockerell não tem pontaria. O pai dela não sofreu um arranhão.
Meggie fechou os olhos de alívio. Sua agonia havia passado. Tudo estava bem, e o que ainda não estava logo iria ficar.
A felicidade lhe dava coragem.
— Tem mais uma coisa! — ela disse.
Do que ela deveria ter medo? Eles precisavam dela. Só ela podia ler o tal de Sombra, ninguém mais. Além de Mo, obviamente, e eles não haviam capturado Mo. Eles não o pe-gariam, jamais.
— O que mais? — a gralha passou os dedos nos cabe-los presos na nuca. Como ela teria sido quando tinha a idade de Meggie? Será que ela já tinha lábios tão estreitos naquela época?
— Só vou ler se puder ver Dedo Empoeirado mais uma vez. Antes que ele... — ela não terminou a frase.
— Por quê?
“Porque quero dizer a ele que vamos tentar salvá-lo”, pensou Meggie, “e porque eu acho que minha mãe está com ele”, mas naturalmente ela não disse isso.
— Quero dizer a ele que sinto muito — foi o que ela respondeu em vez disso. — Afinal de contas, ele nos ajudou uma vez.
Mortola torceu a boca com uma expressão de deboche.
— Que comovente! — ela disse.
“Eu só quero vê-la de perto uma vez”, pensou Meggie. “Talvez não seja ela. Talvez...”
— E se eu disser que não?
A gralha mediu-a com o olhar, como um gato que brincava com um ratinho jovem e inexperiente.
Mas Meggie já esperava essa pergunta.
— Então vou morder a minha língua — ela disse. — Vou morder com tanta força que ela vai ficar inchada e não poderei ler hoje à noite.
A gralha recostou-se em sua poltrona e riu. — Você ouviu isso, Basta? A pequena não é boba. Basta apenas fez que sim. Mas Mortola olhou para Meggie quase com benevo-lência.
— Vou lhe dizer uma coisa: seu pequeno desejo imbe-cil será satisfeito. Mas, quanto à sua leitura de hoje à noite, gostaria que você desse uma olhada nas minhas fotos.
Meggie olhou ao seu redor.
— Olhe bem para elas. Está vendo todos esses rostos? Todos eles tornaram-se inimigos de Capricórnio, e nunca mais se ouviu falar de nenhum deles. As casas que você está vendo nessas fotos não estão mais de pé, nenhuma delas, o fogo as devorou. Hoje à noite, quando você estiver lendo, pense nas fotos, sua bruxinha. Se começar a gaguejar ou tiver a idéia es-túpida de simplesmente fechar a boca, logo o seu rosto tam-bém vai olhar através de uma dessas belas molduras de ouro. Mas se fizer bem o seu trabalho, deixaremos você voltar para
o seu pai. Por que não? Leia como um anjo esta noite e você o verá novamente! Alguém me contou que a voz dele transfor-ma as palavras em seda e veludo, em carne e osso. É assim que você vai ler, sem tremer nem gaguejar como aquele desas-trado do Darius. Você me entendeu?
Meggie olhou para ela.
— Entendi — ela disse baixinho, embora soubesse que a gralha estava mentindo.
Eles nunca a deixariam voltar para Mo. Ele teria que vir buscá-la.

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