terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Coração de Tinta - Capítulos 9 ao 18

9. Uma troca ruim
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Um grande e doloroso mal de livros inunda a alma. Que ignominioso estar atado a essa pesada massa de papel, letras e sentimentos de homens mortos. Não seria melhor, mais nobre e mais heróico deixar esse lixo onde está e sair mundo afora — como um super-homem livre, desimpedido c analfabeto?
Solomon Eagle, A mudança de uma biblioteca
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Naquela noite, Meggie não dormiu na sua cama. Assim que os passos de Elinor silenciaram, ela correu para o quarto de Mo.
Ele ainda não havia desfeito a mala, que estava aberta ao lado da cama. Apenas seus livros já estavam no criado-mudo, junto com uma barra de chocolate que ele começara a comer. Mo era louco por chocolate. Nem mesmo o mais bolorento Papai Noel de chocolate estava a salvo dele. Meggie partiu um pedaço do que sobrara do doce e o pôs na boca, mas não tinha gosto de nada. A não ser de tristeza.
O cobertor de Mo estava frio quando ela se enfiou debaixo dele, e os lençóis também ainda não tinham seu cheiro, cheiravam a sabão em pó e amaciante de roupas. Meggie pôs a mão embaixo do travesseiro. Ali estava: não era um livro, era uma foto. Meggie pegou-a. Uma foto de sua mãe, Mo sempre a deixava debaixo do travesseiro. Quando era pequena, Meggie pensava que Mo simplesmente havia inventado uma mãe em algum momento, porque achava que ela gostaria de ter uma. Ele contava histórias maravilhosas sobre ela.  “Ela gostava de mim?”, Meggie perguntava. “Muito.” “Onde ela está?”
“Ela teve que ir embora quando você tinha três anos.” “Por quê?” “Ela teve que ir” “Para longe?” “Sim, para muito longe”
“Ela está morta?” “Não, com toda a certeza, não.” Meggie se acostumara a ouvir de Mo respostas estranhas para certas perguntas. E, aos dez anos, não acreditava mais numa mãe que Mo havia inventado, e sim numa que simplesmente se fora. Essas coisas aconteciam. E, enquanto Mo esteve lá, ela também não sentira especialmente a falta de uma mãe.
Mas agora ele se fora.
E ela estava sozinha com Elinor e seus olhos de pedra fria.
Ela tirou o pulôver de Mo da mala e pressionou o rosto contra ele. “A culpa é do livro”, ela não parava de pensar. “A culpa  é toda desse livro. Por que Mo não o entregou para
Dedo Empoeirado?” Ficar com raiva pode ajudar quando não se sabe o que fazer com tanta tristeza. Mas as lágrimas voltaram assim mesmo, e Meggie adormeceu com um gosto salgado nos lábios.
Quando ela despertou, de repente, com o coração aos pulos e os cabelos empapados de suor, estava tudo ali novamente: os homens, a voz de Mo e a estrada vazia. “Vou procurá-lo”, pensou Meggie.  “Sim,  é isso o que vou fazer.” Lá fora o céu se coloria de vermelho. Não demoraria muito para o sol nascer. Era melhor partir antes que o dia clareasse.
O casaco de Mo estava pendurado na cadeira debaixo da janela, como se ele tivesse acabado de despi-lo. Meggie tirou a carteira do bolso interno, poderia precisar do dinheiro.
Depois foi até o próprio quarto pegar algumas coisas, apenas o estritamente necessário: uma muda de roupa e uma foto dela e de Mo, para mostrar às pessoas quando perguntasse por ele.
O baú, naturalmente, ela não poderia levar. Sua primeira idéia foi escondê-lo debaixo da cama, mas depois ela decidiu escrever um bilhete para Elinor:
“Querida Elinor”, ela escreveu, embora na verdade não achasse que aquele fosse o tratamento adequado para Elinor, e a seguir se perguntou se deveria tratá-la por você ou usar o tratamento de senhora.  “Ah, imagina, tias a gente trata por você”, ela pensou, ”além disso, fica mais fácil.” “Tenho que ir procurar o meu pai”, ela continuou. “Estou escrevendo para você não ficar preocupada”, isso de qualquer forma ela não ficaria.  “Por favor, não diga nada à polícia, senão eles irão me procurar e me trazer de volta. No baú estão os meus livros favoritos. Infelizmente, não posso levá-los. Por favor, cuide deles, virei buscá-los assim que tiver encontrado o meu pai. Obrigada, Meggie.
P.S.: Eu sei exatamente quantos livros há no baú.”
Essa última frase Meggie riscou, pois só serviria para irritar Elinor e nesse caso ela poderia não querer cuidar bem dos livros. Ela quem sabe até os vendesse. Afinal, Mo fizera uma capa muito bonita para cada um deles. Não havia nenhum encadernado em couro — Meggie não queria ter que imaginar que um bezerro ou um porco fora esfolado por causa de seus livros. Felizmente, Mo era capaz de entender esse tipo de coisa. Havia muitos séculos, como certa vez ele contara a Meggie, as capas dos livros especialmente valiosos eram feitas de pele de bezerros ainda não nascidos: Charta virgineanon nata, um nome com um som tão bonito para uma coisa tão terrível. “E nesses livros”, dissera Mo, “havia muitas palavras sábias sobre o amor, o bem e a compaixão.”
Enquanto pegava suas coisas, Meggie fazia um esforço para não pensar, pois sabia que isso a levaria à pergunta: onde procurar. Ela punha o pensamento de lado a cada vez, mas em algum momento suas mãos começaram a ficar mais lentas, até que ao final ela estava ali, parada ao lado da sacola cheia, sem poder mais fingir que não ouvia aquela vozinha cruel dentro de si. “E agora diga: onde você pretende procurar, Meggie?”, ela sussurrava.  “Você vai pegar a estrada para a esquerda ou para a direita? Nem isso você sabe. Até onde você acha que vai chegar antes que a polícia a apanhe? Uma menina de doze anos com uma sacola na mão, uma história maluca sobre um pai desaparecido e nenhuma mãe para a qual possam levá-la de volta!” Meggie tapou os ouvidos. Mas de que adiantava, se ela lutava contra uma voz que vinha de sua própria cabeça ou de algum outro lugar dentro dela? Meggie ficou ali, com as mãos nas orelhas, por um bom tempo. Então sacudiu a cabeça até a voz finalmente se calar e arrastou a sacola para o corredor. Ela estava pesada, muito pesada. Meggie abriu-a novamente e jogou tudo de volta no quarto. Ficou somente com um pulôver (de um ela precisava, pelo menos um), a foto e a carteira de Mo. Assim ela poderia carregar a sacola, por mais longe que precisasse ir.
Desceu a escada de mansinho, com a sacola na mão e o bilhete para Elinor na outra. O sol da manhã já se infiltrava pelas frestas das janelas, mas na grande casa o silêncio era completo, como se os próprios livros estivessem dormindo nas estantes. Apenas do quarto de Elinor vinha um ronco suave. Meggie queria enfiar o bilhete por baixo da porta, mas ele não passava. Hesitou por um momento e então girou a maçaneta. O quarto de Elinor estava claro, apesar das janelas fechadas. O abajur ao lado da cama estava aceso, Elinor devia ter adormecido enquanto lia. Ela estava deitada de costas, virada para os anjos de gesso no teto, com a boca entreaberta, e tinha um livro no peito. Meggie o reconheceu imediatamente.
Com alguns passos, ela estava ao lado da cama.
— Onde você arranjou esse livro?  — ela gritou enquanto o arrancava dos braços frouxos da tia. — Ele pertence ao meu pai!
Elinor acordou sobressaltada, como se Meggie tivesse jogado água quente no seu rosto.
— Você o roubou! — gritou Meggie, fora de si de tanta raiva. — E trouxe esses homens! É isso mesmo! Você e esse Capricórnio estão mancomunados! Você mandou eles levarem o meu pai e sabe Deus o que fez com o pobre Dedo Empoeirado! Você queria ficar com o livro, desde o começo! Eu vi como você olhou para ele... como se fosse vivo! Ele deve valer um milhão ou dois ou três...
Elinor sentou-se na cama e ficou olhando para as flores de sua camisola sem dizer nada. Somente quando Meggie começou a respirar com dificuldade, ela se mexeu.
— Acabou? — ela perguntou. — Ou pretende gritar até ter uma síncope?
Sua voz soava rude como sempre, mas havia um outro tom: era o sentimento de culpa.
— Vou contar tudo à polícia! — exclamou Meggie. —
Vou contar que você roubou o livro e dizer a eles que perguntem para você onde está o meu pai.
— Eu salvei você! E salvei este livro também!
Elinor pôs as pernas para fora da cama, andou até a janela e abriu-a.
— Ah, é? E Mo? — A voz de Meggie se elevou novamente. — O que vai acontecer quando descobrirem que ele entregou o livro errado? Você é a culpada se acontecer alguma coisa com ele. Dedo Empoeirado disse que Capricórnio vai matar Mo se ele não der o livro. Ele vai matar Mo!
Elinor pôs a cabeça para fora da janela e respirou fundo. Então ela se virou novamente.
— Mas isso é um absurdo — ela disse, irritada. — Você leva muito a sério o que esse devorador de fósforos conta. E, sem dúvida nenhuma, andou lendo muitas histórias de aventura ruins. Matar o seu pai, meu Deus do céu, ele não é nenhum agente secreto ou qualquer outra coisa perigosa! Ele restaura livros antigos! Essa não é exatamente uma profissão de risco! Eu só queria dar uma olhada no livro sossegada. E apenas por isso o troquei. Como eu poderia adivinhar que essas figuras esquisitas apareceriam aqui no meio da noite para levar o livro e o seu pai junto? Ele me disse que não sei qual colecionador maluco o importunava havia anos por causa do livro. Como eu poderia saber que esse colecionador era chegado em assaltar casas e seqüestrar pessoas? Nem mesmo eu pensaria em fazer uma coisa dessas. Bem, a não ser talvez por um ou dois livros no mundo todo.
— Mas Dedo Empoeirado disse. Ele disse que Capricórnio mataria Mo! — Meggie segurou o livro com firmeza, como se somente assim pudesse impedir que acontecesse outra desgraça. Ela tinha a sensação de ouvir novamente a voz de Dedo Empoeirado, e repetiu sussurrando o que ele havia lhe dito sobre Capricórnio: — “Ele se deliciaria em ver o pobre bichinho estrebuchar, como se bebesse o mais puro mel”.
— O quê? De quem você está falando agora? — Elinor sentou-se na beira da cama e puxou Meggie para perto.  —Agora você vai me contar tudo o que sabe. Vamos lá, sem papas na língua!
Meggie abriu o livro. Ela começou a folhear, até que encontrou novamente o grande H onde estava sentado o animal que tanto se parecia com Gwin.
— Meggie! Ei, estou falando com você! — Elinor sacudiu seus ombros sem muita delicadeza. — De quem você estava falando?
— De Capricórnio.
Meggie apenas sussurrou o nome. Parecia haver perigo impregnado em cada letra dele.
— Capricórnio. E daí? Já ouvi você dizer esse nome algumas vezes. Mas quem  é, com mil demônios, esse Capricórnio?
Meggie fechou o livro, alisou a capa com a mão e examinou-o por todos os lados.
— Não tem título — ela murmurou.
— Não, nem na capa nem dentro, na folha de rosto. —
Elinor levantou-se e foi até o guarda-roupa. — Existem muitos livros dos quais você não fica sabendo o título logo de cara. Afinal de contas, escrevê-lo na capa  é um costume relativamente recente. Quando os livros ainda eram encadernados de forma que as lombadas se curvavam para dentro, no máximo o título aparecia por fora no corte lateral das páginas, porém na maioria  dos casos era necessário abrir o livro para conhecê-lo.
Apenas quando os encadernadores aprenderam a fazer lombadas arredondadas é que o título foi para lá.
— Eu sei!  — disse Meggie, impaciente.  — Mas este não é um livro antigo. Eu sei reconhecer um livro antigo.
Elinor lançou-lhe um olhar zombeteiro.
— Oh, desculpe! Esqueci que você é uma verdadeira especialista. Mas você tem razão: este livro não é muito antigo.
Ele foi publicado há trinta e oito anos, quase exatos. Uma idade verdadeiramente ridícula para um livro! — Elinor desapareceu atrás da porta do guarda-roupa. — Mas mesmo assim ele tem um título, é claro: chama-se Coração de tinta. Suponho que o seu pai o tenha encadernado dessa maneira com a intenção de que não se possa ver pela capa de que livro se trata.
Nem mesmo dentro, na primeira página, você encontra o título e, se olhar bem, vai perceber que a página foi arrancada.
A camisola de Elinor caiu no tapete, e Meggie viu como ela enfiou com dificuldade as pernas nuas numa meia-calça.
— Temos que ir à polícia de novo — disse Meggie.
— Para quê? — Elinor jogou um pulôver em cima da porta do armário. — O que você pretende dizer a eles? Você não viu como aqueles dois nos olharam ontem?
Ela falseou a voz e continuou:
— “Oh, como foi isso mesmo, senhora Loredan? Alguém entrou na sua casa depois de a senhora ter gentilmente desligado o alarme? Então esses invasores tão habilidosos roubaram um único livro, embora na sua biblioteca haja livros no valor de muitos milhões, e levaram o pai dessa garota, depois de ele próprio ter se oferecido para acompanhá-los! Sei. Muito interessante. E esses homens presumivelmente trabalham para um outro, que se chama Capricórnio. Como o signo do zodíaco.” Menina do céu!
Elinor saiu de trás da porta do armário. Ela vestia uma saia xadrez horrível e um pulôver cor de caramelo que a fazia parecer pálida como massa de pão.
— Todo mundo neste lago acha que sou doida e, se eu for mais uma vez à polícia com essa história, vai correr a notícia de que Elinor Loredan agora enlouqueceu definitivamente. O que, por sua vez, seria uma prova de que a paixão pelos livros não é uma coisa nada saudável.
— Você se veste como uma vovó — disse Meggie.
Elinor olhou para si mesma.
— Muito obrigada — ela disse.  — Mas comentários sobre a minha aparência não são bem-vindos. Além disso, eu poderia de fato ser a sua avó. Com um pouco de esforço.
— Você já se casou alguma vez?
— Não. Por que eu iria querer? E agora poderia me fazer o favor de parar de fazer perguntas pessoais? O seu pai não lhe ensinou que isso é falta de educação?
Meggie calou-se. Ela mesma não sabia por que tinha feito as perguntas.
— Ele é muito valioso, não é? — ela perguntou.
— Coração de tinta? — Elinor tirou o livro da mão de Meggie, alisou a capa e devolveu-o.  — Sim, acho que sim.
Embora você não encontre um único exemplar nos catálogos e índices que existem sobre livros valiosos. Eu descobri algumas coisas sobre esse livro. Pois é, existe um certo colecionador que ofereceria muito, mas muito dinheiro ao seu pai, caso se espalhasse a notícia de que talvez ele possua o único exemplar. Olha, não deve ser apenas um livro raro, mas também um livro bom. Eu não posso dizer nada a respeito, ontem à noite não consegui passar das primeiras páginas. Quando apareceu a primeira fada, eu peguei no sono. Nunca fui muito fã de histórias com fadas, anões e coisas do gênero. Embora não teria nada contra enfeitar meu jardim com alguns deles.
Elinor foi mais uma vez para trás da porta do armário, pelo jeito ela estava se observando num espelho. O comentário de Meggie sobre as suas roupas aparentemente fizera-a pensar.
— Sim, acho que  é muito valioso — ela repetiu num tom pensativo.  — Embora ele quase tenha sido esquecido. Parece que ninguém mais sabe do que se trata, ninguém o leu. Mesmo nas bibliotecas, ele não pode ser encontrado. Mas de vez em quando ainda se escutam umas histórias sobre ele: que não existem mais exemplares, porque todos os que ainda existiam teriam sido roubados. Isso provavelmente é besteira. Não são apenas animais e plantas que deixam de existir, livros também. Infelizmente não é raro que isso aconteça. Acho que seria possível encher uma centena de casas como esta com os livros que desapareceram para sempre.
Elinor fechou de novo a porta do guarda-roupa e afofou os cabelos com movimentos vigorosos.
— Pelo que sei, o autor ainda vive, mas ao que tudo indica nunca fez nada para que seu livro fosse reeditado, o que acho estranho, afinal quem escreve uma história quer que ela seja lida, não é? Bem, talvez o autor não goste mais da história, ou talvez ela venda tão pouco que ele não encontrou um editor que quisesse imprimi-la novamente. Bem, como vou saber?
— Mesmo assim, não acredito que tenha sido roubado apenas porque é valioso — murmurou Meggie.
— Ah, não?  — Elinor deu uma gargalhada.  — Meu Deus do céu, você realmente  é filha do seu pai. Mortimer também nunca conseguiu imaginar que as pessoas pudessem fazer algo censurável por dinheiro, porque para ele o dinheiro não tem uma importância especial. Você faz idéia de quanto pode valer um livro?
Meggie olhou irritada para ela.
— Sim, faço idéia. Mas mesmo assim não acho que o motivo seja o dinheiro.
— Bem, eu acho. E Sherlock Holmes pensaria a mesma coisa. Você já leu um desses livros alguma vez? São uma maravilha. Especialmente em dias chuvosos.
Elinor calçou os sapatos. Seus pés eram estranhamente pequenos para uma mulher tão robusta.
— Talvez haja algum segredo no meio disso — murmurou Meggie, pensativa, e passou a mão nas páginas cheias.
— Ah, já sei, você está pensando em algo como mensagens invisíveis escritas com suco de limão, ou um mapa do tesouro escondido numa das ilustrações. — A voz de Elinor soou tão sarcástica que Meggie sentiu vontade de torcer seu pescoço curto.
— Por que não? — ela fechou o livro novamente e o prendeu debaixo do braço. — Por que eles teriam levado Mo, se não fosse por alguma coisa assim? O livro teria bastado.
Elinor sacudiu os ombros.
“É claro, ela não consegue admitir que não imaginou isso”, pensou Meggie cheia de desprezo. “Ela sempre tem que ter razão.”
Elinor olhou para a menina como se tivesse ouvido seus pensamentos.
— Sabe de uma coisa? Leia o livro  — ela disse.  —
Quem sabe você não encontrará alguma coisa que, na sua  opinião, não se encaixa na história. Algumas palavras desnecessárias aqui, algumas letras inúteis ali... e pronto, você terá a sua mensagem secreta. O mapa do tesouro. Sabe lá quanto tempo o seu pai vai demorar para voltar, e afinal você precisa de alguma coisa para matar o tempo.
Antes que Meggie pudesse responder, Elinor curvou-se sobre uma folha de papel que estava no tapete ao lado de sua cama. Era a carta de despedida de Meggie, que ela devia ter deixado cair quando descobriu o livro nos braços de Elinor.
— E mais essa agora? — perguntou Elinor depois de ler o bilhete com o cenho franzido. — Você pretendia ir procurar o seu pai? Onde, pelo amor de Deus? Você é mais maluca do que pensei. Meggie apertou Coração de tinta contra o peito.— E se eu não for, quem vai? — disse, e seus lábios começaram a tremer, ela não conseguiu impedir.
— Bem, se  for o caso, vamos procurar juntas! — respondeu Elinor em tom áspero. — Mas antes vamos lhe dar a oportunidade de voltar. Ou você acha que ele gostaria de voltar e ver que você desapareceu para procurá-lo sabe Deus onde neste vasto mundo?
Meggie fez que não. O tapete de Elinor ficou embaçado, e uma lágrima deslizou pelo nariz da menina.
— Bem, então isso já está esclarecido — resmungou Elinor enquanto estendia um lenço de pano para Meggie. —Assoe esse nariz e vamos tomar o café-da-manhã.
Ela não deixou Meggie sair de casa antes de comer um pedaço de pão e tomar um copo de leite.
— O café-da-manhã é a refeição mais importante do dia — ela proclamou enquanto passava manteiga em sua terceira fatia de pão. — E, além disso, não quero correr o risco de, quando o seu pai voltar, você dizer a ele que a deixei passar fome. Você sabe, como aquela megera do conto de fadas.
Meggie engoliu a resposta que estava na sua língua junto com o último pedaço de pão e saiu com o livro.
10. A cova do leão
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Ouçam. (Adultos, por favor, pulem este parágrafo.) Não quero afirmar que este seja um livro trágico. Eu já lhes disse na primeira frase que ele é o meu favorito. Mas a partir de agora muitas coisas ruins estão para acontecer.
William Goldman, O noivo da princesa
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Meggie sentou-se no banco atrás da casa, ao lado do qual ainda estavam fincadas as tochas queimadas de Dedo Empoeirado. Ela nunca hesitara tanto antes de abrir um livro.
Tinha medo do que a esperava dentro dele. Era uma sensação totalmente nova. Nunca antes tivera medo do que um livro lhe contaria, ao contrário, na maior parte das vezes estava tão ansiosa por se deixar levar para um mundo desconhecido e inexplorado que começava a ler nas ocasiões mais inadequadas. Muitas vezes, no café-da-manhã, ela e Mo ficavam lendo, os dois, e várias vezes aconteceu de ela chegar atrasada a escola. Ela também lia com o livro debaixo da carteira da escola, no ponto de ônibus, em visitas a parentes, tarde da noite debaixo do cobertor, até que Mo tirava o livro dela e ameaçava recolher todos os outros que tinha em seu quarto para que ela finalmente pudesse dormir o suficiente. Naturalmente ele nunca faria isso, e sabia que ela sabia que não, mas depois dessas advertências ela punha o livro debaixo do travesseiro, lá pelas nove horas, e o deixava continuar a fluir em seus sonhos, para que Mo não deixasse de ter a sensação de ser real-mente um bom pai.
Aquele livro, porém, ela jamais colocaria embaixo do seu travesseiro, com medo do que ele poderia lhe sussurrar.
Todas as coisas ruins que haviam acontecido nos últimos três dias pareciam ter saído de suas páginas, e talvez fossem apenas uma amostra do que ainda esperava por ela dentro dele.
Apesar disso, ela tinha que entrar. Do contrário, como poderia procurar Mo? Elinor tinha razão, não fazia sentido simplesmente pôr o pé na estrada. Ela precisava tentar encontrar a pista do paradeiro de Mo entre as letras de Coração de Tinta.
Porém, mal acabara de virar a primeira página, ouviu passos atrás de si.
— Você vai ter uma insolação  se continuar aí sentada em pleno sol — disse uma voz familiar.
Meggie virou-se.
Dedo Empoeirado fez uma mesura. Naturalmente, seu sorriso também estava lá.
— Ah, mas olha só que surpresa!  — ele disse, inclinando-se sobre Meggie para examinar o livro que estava  aberto em seu colo. — Então ele ainda está aqui.  Você ficou com ele.
Meggie olhou desconcertada para aquele rosto marcado por cicatrizes. Como ele podia agir daquela maneira, como se nada tivesse acontecido?
— Onde você estava? — ela o censurou. — Eles não o levaram também? E onde está Mo? Para onde o levaram?
Ela simplesmente não conseguia dizer as palavras com a rapidez necessária.
Mas Dedo Empoeirado não teve pressa em responder.
Olhou para os arbustos ao seu redor, como se nunca tivesse visto algo semelhante antes. Ele vestia seu sobretudo, embora fizesse calor, tanto calor que em sua testa escorriam gotas brilhantes de suor.
— Não, eles não me levaram — ele disse finalmente, e voltou a olhar para Meggie. — Mas eu vi quando levaram o seu pai. Eu corri atrás deles pelo meio dos arbustos, várias vezes pensei que ia quebrar o pescoço naquela maldita ribanceira, mas cheguei lá embaixo no portão a tempo de ver que eles tomaram a direção sul. É claro que os reconheci imediatamente. Capricórnio mandou os seus melhores homens. O próprio Basta estava entre eles.
Meggie não tirava os olhos dos lábios de Dedo Empoeirado, como se assim pudesse fazer as palavras saírem mais depressa.
— E daí? Você sabe para onde levaram Mo? — sua voz tremia de tanta impaciência.
— Para a aldeia de Capricórnio, eu pensei. Mas eu queria me certificar, então...
Dedo Empoeirado tirou o sobretudo e pendurou-o no banco.
— Então corri atrás deles. Sei que parece ridículo ir a pé atrás de um automóvel — ele disse quando Meggie franziu a testa, incrédula. — Mas é que eu estava tão furioso... Tudo havia sido em vão: eu ter advertido vocês, termos vindo para cá... em algum momento, consegui pegar uma carona até a próxima cidade. Eles haviam abastecido o carro deles ali, quatro homens, vestidos de preto e não muito gentis. Portanto eles não podiam estar muito longe. Então eu peguei uma lambreta... emprestada e tentei continuar atrás deles. Não me olhe assim, pode ficar tranqüila, eu devolvi a lambreta depois. Ela não era lá muito veloz, mas por sorte essas estradas aqui têm muitas curvas, e em algum momento eu vi o carro mais uma vez, lá embaixo num vale, enquanto eu ainda serpenteava montanha abaixo. E então tive certeza: eles estavam levando o seu pai para o quartel-general de Capricórnio. Não para o esconderijo no norte, mas direto para a cova do leão.
— Para a cova do leão? — repetiu Meggie. — Onde é isso?
— A cerca... de trezentos quilômetros ao sul daqui. —Dedo Empoeirado sentou-se ao lado dela no banco e piscou por causa do sol. — Não muito longe do mar.
Ele olhou novamente para o livro, que ainda estava no colo de Meggie.
— Capricórnio não vai ficar nem um pouco contente quando vir que seus homens levaram o livro errado. Só espero que ele não desconte a decepção no seu pai.
— Mas Mo não sabia que era o livro errado! Elinor trocou os livros sem ele ver!
Ali estavam outra vez as malditas lágrimas. Meggie passou a manga do casaco nos olhos.
Dedo Empoeirado franziu a testa e fitou-a como se não estivesse muito certo de poder acreditar nela.
— Elinor me disse que só queria dar uma olhada. O livro estava com ela no quarto. Mo conhecia o esconderijo onde ela o havia guardado e, como estava dentro do embrulho, não notou que era o livro errado! E os homens de Capricórnio também não conferiram.
— É claro que não, afinal para quê? — A voz de Dedo Empoeirado soou desdenhosa.  — Eles não sabem ler. Para eles, um livro não passa de papel impresso. Além disso, estão acostumados a que as pessoas lhes dêem o que eles querem.
A voz de Meggie ficou estridente de medo.
— Você tem que me levar para essa aldeia! Por favor!
— ela olhou suplicante para Dedo Empoeirado. — Explicarei tudo a Capricórnio. Darei o livro a ele, e ele deixará Mo ir embora. Está bem?
Dedo Empoeirado piscou os olhos novamente.
— Sim, claro — ele disse sem olhar para Meggie. — Essa parece ser a única solução...
Antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, a voz de Elinor ecoou vinda da casa.
— Mas olha só quem está aí! — ela exclamou, esticando-se para fora da janela. A cortina amarelo-clara tremulava ao vento como se um espírito tivesse se enroscado nela. — Mas não é o engolidor de fósforos em pessoa!
Meggie levantou-se de um salto e correu pela grama em sua direção.
— Elinor, ele sabe onde Mo está! — ela exclamou.
— Ah, é? — Elinor apoiou-se no batente e olhou para Dedo Empoeirado com os olhos apertados. E então gritou:
— Ponha o livro de volta onde estava! Meggie, tire o livro dele.
Meggie virou-se espantada. De fato, Dedo Empoeirado estava com Coração de Tinta na mão, mas colocou rápido de volta no banco quando Meggie olhou para ele. Então chamou a garota com um aceno, e lançou um olhar de poucos amigos para Elinor.
Hesitante, Meggie foi até ele.
— Tudo bem, vou levá-la até o seu pai, mesmo que isso possa ser perigoso para mim! — ele disse em voz baixa.
Depois apontou discretamente para Elinor com a cabeça. —Mas ela fica aqui, entendido?
Meggie olhou insegura para a casa.
— Posso tentar adivinhar o que ele está cochichando com você? — gritou Elinor do outro lado do gramado.
Dedo Empoeirado lançou um olhar de advertência para
Meggie, mas ela não lhe deu atenção.
— Ele quer me levar para onde está Mo! — ela exclamou.
— E ele pode muito bem fazer isso! — exclamou Elinor. — Só que eu vou junto! Mesmo sabendo que talvez os dois preferissem abrir mão da minha companhia!
— Sim, adoraríamos — sussurrou Dedo Empoeirado enquanto sorria inocentemente para Elinor. — Mas quem sabe não conseguimos trocá-la por Mo?  É bem possível que Capricórnio esteja precisando de mais uma criada. Ela não sabe cozinhar, mas talvez sirva para lavar a roupa, embora isso não se aprenda nos livros.
Meggie teve que rir. Embora não conseguisse ler no rosto de Dedo Empoeirado se ele estava brincando ou falando a sério.
11. Covarde
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Lar! Era o que diziam os ternos apelos, aqueles suaves afagos que vinham soprados pelo vento, as invisíveis mãozinhas que o puxavam e arrastavam numa direção bem definida.
Kenneth Grahame, O vento nos salgueiros
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Dedo Empoeirado só entrou no quarto de Meggie quando estava absolutamente certo de que ela dormia. Ela havia trancado a porta. Com certeza, Elinor a convencera a fazer isso, pois não confiava nele e Meggie se recusara a deixar
Coração de tinta  com ela. Dedo Empoeirado achou graça enquanto enfiava o fino arame na fechadura. Mas como era tola aquela mulher, mesmo tendo lido tantos livros! Será que ela realmente acreditava que uma fechadura comum como aquela era um obstáculo?  “Bem, talvez seja mesmo para uns dedos lerdos como os seus, Elinor!”, ele sussurrou enquanto abria a porta.  “Mas os meus dedos gostam de brincar com fogo, e isso os tornou muito rápidos e habilidosos.”
A afeição que ele sentia pela filha de Língua Encantada era um obstáculo mais sério, e sua consciência pesada não facilitava exatamente as coisas. Sim, Dedo Empoeirado estava com a consciência pesada quando entrou furtivamente no quarto de Meggie, embora não pretendesse fazer nada de ruim. Ele não estava lá para roubar o livro, em absoluto, embora naturalmente Capricórnio ainda o quisesse: o livro mais a filha de Língua Encantada, essa era a nova tarefa. Mas isso teria que esperar. Aquela noite, Dedo Empoeirado estava ali por outro motivo. Naquela noite, o que o levava ao quarto de Meggie era algo que corroia o seu coração havia anos.
Ele parou pensativo ao lado da cama e observou a garota dormindo. Entregar o pai dela a Capricórnio não fora muito difícil, mas com ela a coisa seria diferente. Embora ainda nenhum pesar tivesse deixado sombras escuras no rosto infantil de Meggie, ele lembrava a Dedo Empoeirado o de outra pessoa. Era estranho, sempre que a menina olhava para Dedo Empoeirado, ele sentia o desejo de lhe provar que não merecia a desconfiança que via nos olhos dela. E sempre havia um vestígio de desconfiança, mesmo quando ela sorria. Para o pai ela olhava de uma maneira totalmente diferente, como se ele pudesse protegê-la de todo o mal e de todas as ameaças do mundo. Mas que pensamento idiota. Idiota! Ninguém poderia protegê-la.
Dedo Empoeirado passou o dedo nas cicatrizes que tinha no rosto e franziu o cenho. De que serviam aqueles pensamentos inúteis? Ele levaria a Capricórnio o que ele queria: a menina e o livro. Mas não naquela noite. Gwin mexeu-se em seu ombro. Tentava tirar a coleira. Ele não gostava nada dela, assim como da guia que Dedo Empoeirado havia prendido à coleira. Ele queria caçar, mas
Dedo Empoeirado não o soltou. Na última noite, a marta escapara enquanto ele falava com os homens de Capricórnio. O diabinho peludo ainda tinha medo de Basta. Dedo Empoeirado não podia censurá-lo por isso.
Meggie dormia profundamente, com a cara enfiada num pulôver cinza, que provavelmente pertencia a Mo. Ela murmurou alguma coisa no sono, Dedo Empoeirado não conseguiu entender o quê. Mais uma vez a culpa apertou seu coração, mas ele espantou a sensação incômoda. Ela não lhe serviria de nada agora, nem agora nem mais tarde. A garota não lhe dizia respeito, e ele estava quite com o pai dela. Sim, quite. Não tinha motivos para se sentir um patife miserável, um dedo-duro. Ele olhou ao redor no quarto escuro. Onde ela pusera o livro? Ao lado da cama de Meggie havia um pequeno baú pintado de vermelho. Dedo Empoeirado ergueu a tampa. A corrente de Gwin tilintou suavemente quando ele se abaixou.
O baú estava repleto de livros. Eram livros belíssimos.
Dedo Empoeirado tirou a lanterna do bolso e iluminou o interior do baú.
— Mas olha só! — ele murmurou. — Que belezuras são estas? Parecem damas em vestidos de gala para o baile do príncipe.
Provavelmente Língua Encantada reencadernara cada um deles depois que os dedos infantis de Meggie haviam maltratado as velhas capas.  É claro, ali estava o seu ex-líbris: a cabeça de um unicórnio. Todos os livros o traziam estampado em seu traje, e cada um deles estava encadernado numa cor diferente. Todas as cores do arco-íris estavam reunidas no baú.
O livro que Dedo Empoeirado procurava estava embaixo de todos. Simples, com a capa verde-clara, quase parecia um mendigo no meio de todos aqueles senhores ricamente paramentados.Dedo Empoeirado não se espantou muito com o fato de Língua Encantada ter escolhido um traje tão discreto para aquele livro. Talvez o pai de Meggie o odiasse tanto quanto Dedo Empoeirado o amava. Com todo o cuidado, ele o tirou do meio dos outros livros. Já fazia quase nove anos desde a última vez que Dedo Empoeirado o tivera nas mãos. Na época, ele ainda tinha uma capa de papelão e uma sobrecapa de papel suja, rasgada na parte de baixo.
Dedo Empoeirado ergueu a cabeça. Meggie suspirou e virou-se, até que seu rosto ficou voltado para ele. Como ela parecia infeliz. Certamente, estava tendo um sonho ruim. Seus lábios tremiam, e suas mãos se agarravam ao pulôver como se buscassem apoio em alguma coisa... em alguém. Mas nos sonhos ruins, na maioria das vezes, a gente está sozinho, terrivelmente sozinho. Dedo Empoeirado lembrou-se de muitos sonhos ruins, e por um momento quase estendeu a mão para acordar Meggie... Que manteiga derretida ele era.
Ele deu as costas para a cama. Longe dos olhos, longe do coração. Então abriu o livro, depressa, antes que pudesse mudar de  idéia. Sua respiração estava pesada. Ele virou as primeiras páginas e continuou a folhear. No entanto, a cada página seus dedos hesitavam mais e, de repente, ele fechou o livro novamente. A luz da lua entrava pelas fendas da janela.
Ele não fazia idéia de quanto tempo ficara ali, com os olhos perdidos no labirinto das letras. Ele ainda era um leitor muito lento...
— Covarde! Oh, você é um covarde, Dedo Empoeirado! — ele sussurrou, e então mordeu os lábios até sentir dor.
— Ora, pense um pouco. Talvez esta seja a sua última oportunidade, seu tolo. Quando estiver com o livro, Capricórnio não o deixará dar mais nem uma olhada nele.
Ele abriu o livro outra vez, folheou até a metade e fechou-o novamente, fazendo tanto ruído que Meggie teve um sobressalto em seu sono e enfiou a cabeça debaixo do travesseiro. Dedo Empoeirado esperou imóvel ao lado da cama até que a respiração de Meggie se acalmasse novamente, então se debruçou sobre o baú do tesouro com um suspiro profundo, e pôs o livro de volta junto com os outros.
Sem fazer barulho, ele fechou a tampa.
— Você viu? — ele sussurrou para a marta. — Eu não tenho coragem. Você não quer procurar um dono mais corajoso? Pense bem.
Gwin lambeu sua orelha, mas se aquilo havia sido uma resposta, Dedo Empoeirado não conseguiu entendê-la.
Ainda por um momento, ele ficou escutando a respiração calma de Meggie, então voltou de mansinho para a porta.
— E daí? — ele murmurou quando estava outra vez no corredor. — Quem é que quer mesmo saber o final?Então ele subiu até o quarto que Elinor havia lhe destinado no sótão e deitou-se na cama estreita, ao redor da qual empilhavam-se caixas e caixas de livros. Mas Dedo Empoeirado não conseguiu pegar no sono até o amanhecer.
12. Mais ao sul
~
A estrada em frente vai seguindo
Deixando a porta onde começa
Agora longe já vai indo
Devo seguir, nada me impeça;
Por seus percalços vão meus pés,
Até a junção com a grande estrada,
De muitas sendas através
Que vem depois?
Não sei mais nada.
J. R. R. Tolkien, O senhor dos anéis
~
Na manhã seguinte, depois do café-da-manhã, Elinor abriu um mapa rodoviário todo amassado em cima da mesa da cozinha.
— Bem, trezentos quilômetros para o sul — ela disse, olhando desconfiada para a direção de Dedo Empoeirado. —
Que tal nos mostrar o lugar exato onde deveremos procurar o pai de Meggie?
Meggie olhou para Dedo Empoeirado com o coração palpitante. Seus olhos estavam envoltos em sombras profundas, como se ele tivesse dormido muito mal na noite anterior.
Hesitante, Dedo Empoeirado aproximou-se da mesa e coçou o queixo de barba rala. Então se debruçou sobre o mapa,  examinou-o durante uma pequena eternidade e finalmente  apontou com o dedo.
— Aqui — ele disse. — Exatamente aqui fica a aldeia de Capricórnio.
Elinor se pôs ao seu lado e olhou para ele por cima dos ombros.
— Ligúria — ela disse. — Sei. E como se chama essa aldeia, se me permite perguntar? Capricórnia?
Ela olhou para o rosto de Dedo Empoeirado como se quisesse maquiar suas cicatrizes com o olhar.
— Ela não tem nome. — Dedo Empoeirado revidou o olhar de Elinor com franca antipatia. — Em algum momento deve ter tido um nome, mas ele já havia sido esquecido antes que Capricórnio se estabelecesse por lá. A senhora não o  achará neste mapa nem em qualquer outro.
Para o resto do mundo, a aldeia não passa de um  amontoado de casas desmoronadas, ao qual se chega por uma estrada que não faz jus a esse nome.
— Hum.  — Elinor debruçou-se ainda mais sobre o mapa. — Nunca estive na região. Uma vez estive em Gênova, onde comprei num sebo um belíssimo exemplar de Alice no país das maravilhas,  muito bem conservado e pela metade do preço que o livro valia.
Ela lançou um olhar interrogativo para Meggie. — Você gosta de Alice no país das maravilhas?
— Não especialmente — disse Meggie com o olhar fixo no mapa. Elinor sacudiu a cabeça perante tamanha insensatez infantil, e virou-se para Dedo Empoeirado.
— O que faz esse Capricórnio quando não está roubando livros ou seqüestrando pais? — ela perguntou. — Se entendi Meggie direito, você o conhece bastante bem.
Dedo Empoeirado evitou seu olhar e seguiu com o dedo um rio que serpenteava em azul, cortando o verde e marrom do mapa.
— Bem, nós somos do mesmo lugar — ele disse. —Mas de resto não temos muita coisa em comum.
Elinor fitou-o de forma muito penetrante, como se quisesse cavar um buraco na testa dele.— Tem uma coisa que acho estranha — ela disse. —Mortimer queria pôr Coração de tinta a salvo desse Capricórnio. Então por que trouxe o livro para mim? Ele praticamente se atirou nos braços de Capricórnio.
Dedo Empoeirado sacudiu os ombros.
— Bem, talvez ele considerasse a sua biblioteca o esconderijo mais seguro.
Na cabeça de Meggie despontou uma lembrança, bastante vaga a princípio. Até que, num instante, a cena estava lá novamente, com toda a nitidez, como uma figura num livro.
Ela viu Dedo Empoeirado em pé, ao lado do ônibus de Mo, no portão do sítio, e quase podia ouvir sua voz...
Alarmada, ela olhou para ele.
— Você disse para Mo que Capricórnio morava no norte! — ela disse. — Ele ainda perguntou outra vez e você disse que tinha certeza absoluta.
Dedo Empoeirado olhou para as suas unhas.
— Bem... sim, isso é verdade — ele disse baixinho, sem olhar para Meggie nem para Elinor. Ficou fitando as unhas até que começou a esfregá-las em seu pulôver como se precisasse remover uma mancha terrível.  — Vocês não confiam em mim. Vocês duas não confiam em mim. Eu... eu entendo, mas não menti. Capricórnio tem dois quartéis-generais e ainda muitos outros esconderijos, para o caso de a situação se complicar para ele em algum lugar ou um de seus homens precisar ficar na moita por algum tempo. Normalmente ele passa os meses quentes lá no norte e vem para o sul somente em outubro, mas este ano, ao que parece, também vai passar o verão no sul. Como é que eu vou saber? Talvez ele tenha tido problemas com a polícia no norte. Talvez haja algum assunto que ele tenha que tratar pessoalmente no sul.
A voz de Dedo Empoeirado parecia ofendida, quase como a de uma criança que foi acusada injustamente de alguma coisa. Ele continuou:
— Seja lá como for, os homens de Capricórnio foram para o sul com o pai de Meggie, eu mesmo vi, e quando está no sul Capricórnio sempre resolve os assuntos importantes nessa aldeia! Ali ele se sente seguro como em nenhum outro lugar. Ali nunca teve problemas com a polícia, pode agir como um pequeno rei, como se o mundo lhe pertencesse. Ali faz as leis, determina o que acontece, e pode mandar e desmandar ao seu bel-prazer; seus homens providenciaram para que ele tivesse esses poderes. Pode acreditar em mim, eles sabem como fazer essas coisas.
Dedo Empoeirado sorriu. Foi um sorriso triste.  “Se vocês soubessem!”, ele parecia dizer.  “Mas vocês não sabem nada de nada. Vocês não entendem nada.”
Meggie sentiu novamente o medo abrir suas asas negras dentro dela. Ele não vinha do que Dedo Empoeirado dizia, vinha do que ele não dizia.
Elinor também parecia sentir isso.
— Pelo amor de Deus, pare de se expressar de forma tão misteriosa! — sua voz rude cortava as asas do medo. —
Vou perguntar novamente: o que faz esse Capricórnio? Como ele ganha dinheiro?
Dedo Empoeirado cruzou os braços.
— Por mim, vocês não saberão de mais nenhuma informação. Perguntem ao próprio. Só levá-las até a aldeia já pode me custar o pescoço, a senhora acha que ainda por cima eu vou lhe contar sobre os negócios de Capricórnio? De jeito nenhum. Não! Eu adverti o pai de Meggie, eu o aconselhei a levar o livro espontaneamente para Capricórnio, mas ele não quis me ouvir. Se eu não o tivesse advertido, os homens de Capricórnio o teriam achado ainda antes. Pergunte a Meggie!
Ela estava lá quando eu o adverti! Está bem, não contei a ele tudo o que sabia. Mas e daí? Eu costumo falar o menos possível sobre Capricórnio, até mesmo evito pensar nele e, acredite em mim, se a senhora o conhecesse, faria exatamente o mesmo.
Elinor torceu o nariz, como se tal hipótese fosse tão ridícula que não merecesse comentário algum.
— Suponho que também não possa me dizer por que ele quer tanto esse livro, não é mesmo? — ela disse enquanto dobrava o mapa. — Ele é uma espécie de colecionador?
Dedo Empoeirado passou o dedo pela borda da mesa.
— Apenas direi o seguinte: ele quer esse livro, e por isso vocês devem dá-lo a ele. Uma vez vi seus homens ficarem quatro noites seguidas na frente da casa de um homem só porque Capricórnio havia gostado do cão dele.
— E ele conseguiu o cão? — perguntou Meggie baixinho.
— É claro — respondeu Dedo Empoeirado, olhando pensativo para ela.  — Acredite,  é impossível dormir bem quando os homens de Capricórnio ficam diante da sua casa olhando a noite toda para a sua janela, ou para a dos seus filhos. Normalmente ele consegue o que quer em dois dias.
— Cruzes! — exclamou Elinor. — O meu cão ele não levaria. Dedo Empoeirado olhou novamente para suas unhas e sorriu.
— Não sorria assim!  — ralhou Elinor. Depois voltou-se para Meggie. — Faça uma mala pequena! Partiremos em uma hora. Já está na hora de você ter o seu pai de volta.
Embora não me agrade nem um pouco ter que dar o livro a esse sujeito, não importa como ele se chame. Eu odeio quando os livros não estão em boas mãos.
Eles foram na perua de Elinor, embora Dedo Empoeirado tivesse se declarado a favor do ônibus de Mo.
— Imagine, nunca dirigi um trambolho desses — disse
Elinor enquanto punha nos braços de Dedo Empoeirado uma caixa de papelão cheia de provisões para a viagem. — Além disso, Mortimer trancou o ônibus.
Meggie notou que Dedo Empoeirado tinha uma resposta na ponta da língua, mas a engoliu.
— E se precisarmos pernoitar? — ele perguntou, enquanto levava as provisões para a perua de Elinor.— Meu Deus do céu, quem falou em uma coisa dessas?
Pretendo estar de volta amanhã cedo o mais tardar. Odeio ter que deixar meus livros sozinhos por mais de um dia.
Dedo Empoeirado olhou para o céu, como se ali fosse encontrar mais compreensão do que na cabeça de Elinor, e já ia se ajeitando no banco de trás quando Elinor o deteve.
— Ei, ei, espere, é melhor o senhor dirigir — ela disse, e pôs a chave da perua na mão dele. — Afinal, sabe melhor para onde temos que ir.
Mas Dedo Empoeirado devolveu-lhe a chave.
— Eu não sei dirigir — ele disse. — Já é bastante desagradável viajar num calhambeque desses, quanto mais guiá-lo.
Elinor pegou a chave de volta e sentou-se atrás do volante, balançando a cabeça com um ar de reprovação.
— O senhor é mesmo um sujeito muito esquisito! —ela disse enquanto Meggie subia no banco do passageiro. — Espero que saiba realmente onde está o pai de Meggie, senão verá que não  é somente desse Capricórnio que precisa ter medo.
Quando Elinor ligou o motor, Meggie abriu sua janela e olhou para o ônibus de Mo. Era uma sensação ruim deixá-lo ali, pior do que ir embora de uma casa, e depois dessa para uma outra. Por mais desconhecido que fosse o novo lugar, com o ônibus Mo e ela sempre tinham um pedacinho de lar.
Agora isso também ficara para trás e nada mais era familiar, a não ser a roupa em sua mala. Ela pegara também algumas coisas para Mo, além de dois dos seus livros.
— Uma escolha interessante! — havia observado Elinor ao emprestar-lhe uma bolsa para os livros, uma sacola antiquada, de couro escuro, que podia ser carregada a tiracolo.
— Quer dizer que você está levando a távola redonda do rei
Artur, junto com Frodo e seus oito companheiros. Não é má companhia. São duas longas histórias, exatamente o necessário para uma viagem. Você já leu as duas?
Meggie fizera que sim com a cabeça.— Várias vezes — ela murmurara, e passara a mão nas capas mais uma vez antes de enfiar os livros na mala.
Ela ainda se lembrava exatamente do dia em que Mo reencadernara um deles.
— Agora não faça mais essa cara feia! — dissera Elinor, olhando preocupada para ela.
— Você verá, nossa viagem não vai ser nem de longe tão ruim como a do coitado de pé peludo, e muito mais curta.
Meggie teria ficado feliz se pudesse ter a mesma certeza. O livro que era o motivo daquela viagem estava no porta-malas, debaixo do estepe. Elinor o pusera dentro de um saco plástico.
— Não deixe Dedo Empoeirado ver onde ele está! —ela recomendara expressamente antes de colocá-lo em sua mão. — Eu ainda não confio nele.
Mas Meggie decidira confiar em Dedo Empoeirado. Ela queria confiar nele. Tinha que confiar nele. Afinal, quem mais poderia levá-la até Mo?
13. A aldeia de Capricórnio
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Mas à última pergunta Selig respondeu: — Provavelmente ele fugiu para o país além das trevas, aonde nenhuma pessoa vai e nenhum bicho se perde, onde o céu é de cobre e a terra é de ferro e onde, debaixo de cogumelos petrificados e em tocas abandonadas pelas marmotas, habitam os poderes do mal.
Isaac B. Singer, Naftali, o contador de histórias, e seu cavalo Sus
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O sol já estava alto no céu límpido quando eles partiram. Não demorou muito para que o ar dentro do carro de
Elinor ficasse abafado a ponto de a camiseta de Meggie colar na pele, empapada de suor. Elinor, que vestia um casaco de tricô abotoado até o queixo, abriu a janela do seu lado e ofereceu uma garrafa d’água. Em algum momento, quando não estava pensando em Mo ou em Capricórnio, Meggie se perguntou como Elinor ainda não havia derretido debaixo do casaco.
Dedo Empoeirado estava sentado no banco de trás, tão calado que quase teria dado para esquecer que ele estava lá.
Ele pusera Gwin no colo. A marta dormia, enquanto as mãos agitadas de Dedo Empoeirado acariciavam seu pêlo sem cessar. De vez em quando, Meggie olhava para ele. A maior parte das vezes ele estava olhando pela janela, desinteressado, como se enxergasse através das montanhas e das árvores, das casas e das encostas que passavam do lado de fora. Seu olhar parecia completamente vazio, distante. Em certo momento Meggie olhou para trás e viu uma tristeza tão grande no rosto dele que voltou a cabeça para a frente bem depressa.
Ela também gostaria de ter um bichinho no colo naquela viagem longa, interminavelmente longa. Talvez ele espantasse os pensamentos sombrios que insistiam em tomar conta de sua cabeça. Lá fora, o mundo encrespava-se em montanhas cada vez mais altas, que às vezes pareciam querer esmagar a estrada entre as suas encostas rochosas cinzentas. Mas pior do que as montanhas eram os túneis. Dentro deles, espreitavam imagens que nem mesmo o calor do corpo de Gwin poderia espantar. Elas pareciam haver se escondido no escuro para ali esperar por Meggie: imagens de Mo num lugar frio e lúgubre e de Capricórnio... Meggie sabia que era ele, embora tivesse um rosto diferente a cada vez.
Durante um tempo ela tentou ler, mas logo notou que não retinha uma  única palavra na memória, então desistiu e ficou olhando pela janela como Dedo Empoeirado. Elinor decidira ir por estradas menores e com menos trânsito (“Senão, fica muito monótono guiar”, ela dissera). Para Meggie não fazia diferença. Ela apenas queria chegar. Olhava impaciente para as montanhas e para as casas onde outras pessoas moravam. Às vezes flagrava um olhar num rosto estranho na janela de um automóvel vindo da outra direção, mas ele sumia rápido, como um livro que alguém abre e logo fecha novamente. Ao passar por uma pequena aldeia, eles viram na beira da estrada um homem aplicando um curativo no joelho machucado de uma menina. Ela estava chorando, e ele passava a mão em seus cabelos tentando consolá-la. Meggie se lembrou de como Mo fazia o mesmo com ela, e também de como, às vezes, ele corria pela casa xingando quando não encontrava um curativo. A lembrança encheu os olhos dela de lágrimas.
— Meu Deus do céu! Aqui está mais quieto do que um mausoléu numa pirâmide! — disse Elinor. (Meggie achava que ela dizia “Meu Deus do céu” com muita freqüência.) — Será que ninguém poderia dizer pelo menos de vez em quando
“Oh, que paisagem bonita!” ou “Mas que castelo magnífico!”?
Com esse silêncio sepulcral, vou dormir ao volante no máximo em meia hora.
Ela não havia aberto um só botão de seu casaco até aquele momento.
— Não estou vendo nenhum castelo — murmurou Meggie. Mas não demorou muito para Elinor avistar um.
— Século dezesseis — ela anunciou quando as ruínas surgiram na encosta de uma montanha. — Uma história trágica. Amor proibido, perseguição, morte, corações partidos.
Entre áridos rochedos, Elinor contou sobre uma batalha que havia ocorrido exatamente ali havia mais de seiscentos anos. (“Se você escavar entre as pedras, com certeza vai achar algumas ossadas e elmos amassados.”) De cada torre de igreja, ela parecia conhecer uma história. Algumas eram tão estranhas que Meggie franzia a testa, desconfiada.  “Foi exatamente assim que aconteceu, pode acreditar!”, dizia Elinor a cada vez, sem desviar o olhar da estrada. As histórias mais escabrosas pareciam cativá-la mais do que tudo: histórias de amantes infelizes que haviam sido decapitados, de príncipes emparedados vivos.
— Claro, agora parece que está tudo em paz — ela observou, quando viu que Meggie empalidecera um pouco com uma dessas histórias. — Mas sempre há uma história escabrosa escondida em algum lugar, pode estar certa. É verdade, há alguns séculos a vida era bem mais emocionante.
Meggie não sabia o que havia de emocionante numa época em que, pelo que dizia Elinor, as pessoas só tinham a escolha entre morrerem de peste ou serem trucidadas por soldados errantes. Mas o rosto de Elinor adquiria manchas vermelhas de excitação ao avistar um castelo em ruínas, e em seus olhos normalmente frios como pedras esboçava-se um brilho romântico quando ela contava sobre os príncipes beligerantes e os bispos gananciosos que outrora haviam espalhado o medo e a morte pelas montanhas, as mesmas montanhas que agora eles atravessavam por estradas muito bem pavimentadas.
— Elinor, minha cara, você parece ter nascido na história errada — disse Dedo Empoeirado em algum momento.
Eram as primeiras palavras que ele dizia desde que haviam partido.
— Na história errada? Na época errada, você quer dizer. Sim, já pensei nisso muitas vezes.
— Chame como quiser — disse Dedo Empoeirado. —De qualquer forma, acho que você se entenderá às mil maravilhas com Capricórnio. Ele gosta das mesmas histórias que você.
— Por acaso isso foi um insulto? — perguntou Elinor, ofendida. Ela deve ter ficado encucada com aquela comparação, pois calou-se durante quase uma hora, deixando Meggie completamente entregue a seus pensamentos sombrios e  às imagens de horror que esperavam por ela em cada túnel.
Quando começou a anoitecer as montanhas recuaram e, atrás das colinas verdejantes, vasto como um segundo céu, surgiu o mar. O sol baixo o fazia brilhar como a pele de uma bonita serpente. Fazia tempo que Meggie não via o mar. Da última vez havia sido um mar frio, cinzento como ardósia e empalidecido pelo vento. Aquele mar era diferente, bem diferente.
O coração de Meggie se aqueceu ao ver esse mar, mas muitas vezes ele desaparecia atrás daqueles malditos edifícios altos. Eles brotavam por toda parte, na estreita faixa de terra entre a água e as colinas. Mas às vezes as colinas não deixavam lugar para as casas, e sim avançavam até o mar, deixando-o lamber seus pés verdes. Ali, à luz do sol poente, elas pareciam ondas que haviam se arrastado para a terra.
Enquanto eles serpenteavam ao longo da costa, Elinor voltou a contar alguma coisa sobre os romanos que teriam construído aquela estrada que eles percorriam agora, sobre o medo que tinham dos ferozes moradores daquela estreita faixa de terra...
Meggie escutava apenas com um ouvido. Na beira da estrada, cresciam palmeiras, com copas espinhosas empoeiradas. Entre elas cresciam agaves gigantescos, que, agachados ali com suas folhas carnudas, lembravam aranhas. O céu atrás deles tingia-se de rosa e amarelo-limão, enquanto o sol caía cada vez mais sobre o mar, e um azul-escuro se derramava lá de cima e se espalhava como um borrão de tinta. A visão era tão bonita que doía nos olhos.
Meggie havia imaginado de forma totalmente diferente o lugar onde Capricórnio morava. Beleza e medo são difíceis de conciliar.
Eles passaram por uma pequena aldeia com casas tão coloridas que pareciam ter sido desenhadas por uma criança.
Casas cor de laranja e cor-de-rosa, vermelhas e depois amarelas: amarelo-claro, amarelo-ocre, amarelo-areia, amarelo-sujo, com janelas verdes e telhados marrons – avermelhados. Mesmo o crepúsculo não era capaz de tirar seu colorido.
— O lugar não parece exatamente perigoso — observou Meggie, quando passou de novo por uma casa cor-de-rosa.
— É porque você está olhando o tempo todo para a esquerda! — disse Dedo Empoeirado atrás dela. — Mas sempre existe um lado claro e um lado escuro. Dê uma olhada para a direita.
Meggie obedeceu. Num primeiro momento, ali também havia apenas casas coloridas. Elas ficavam bem na beira da estrada, encostadas umas nas outras, como se estivessem de braços dados. Mas então, de repente, as casas desapareceram e as encostas escarpadas, em cujas fendas a noite já se instalava, começaram a cercar a estrada. Sim, Dedo Empoeirado tinha razão, ali tudo parecia sinistro, e as poucas casas pareciam se afogar na escuridão cada vez mais profunda.Logo já estava totalmente escuro — a noite cai depressa no sul —, e Meggie estava contente por Elinor continuar na estrada costeira, que era bem iluminada. Mas finalmente Dedo
Empoeirado fez um sinal para que ela pegasse uma estrada que se afastava da costa, do mar e das casas coloridas, e os levava para dentro da escuridão.
A estrada avançava cada vez mais na região das colinas, sempre serpenteando, ora morro acima ora morro abaixo, até que as encostas  à beira da estrada ficaram mais  íngremes. A luz dos faróis incidia em touceiras de giesta e vinhas abandonadas, e em oliveiras que se retorciam como anciãos à beira da estrada.
Apenas duas vezes eles cruzaram com um outro automóvel. Aqui e ali, as luzes de uma aldeia emergiam da escuridão. Mas as estradas que Dedo Empoeirado indicava para Elinor levavam para longe de todas as luzes e cada vez mais fundo na noite. Por diversas vezes os faróis iluminaram os restos desmoronados de uma casa, mas Elinor não conhecia nenhuma história sobre nenhuma delas. Entre aquelas paredes pobres, não haviam vivido príncipes, nem bispos em mantos vermelhos, apenas camponeses e agricultores, cujas histórias ninguém escrevera e que agora estavam perdidas, desaparecidas entre o tomilho e as flores selvagens.
— Tem certeza de que não erramos o caminho?  —perguntou Elinor com a voz abafada, como se o mundo ao redor dela fosse silencioso demais para o seu tom normal. — Onde, neste deserto abandonado por Deus, pode haver uma aldeia? Devemos ter pegado a estrada errada pelo menos duas vezes.
Mas Dedo Empoeirado apenas sacudiu a cabeça.
— Estamos exatamente no caminho certo — ele respondeu. — Só mais aquela colina ali e vocês já poderão ver as casas.
— Bem, assim espero!  — resmungou Elinor. — Por enquanto eu mal consigo ver a estrada. Meu Deus do céu, eu não imaginava que ainda existia um lugar tão escuro no mundo. Você não podia ter me avisado que era tão longe assim?
Eu teria abastecido mais uma vez. Agora não sei se teremos gasolina para voltar até a costa.
— E de quem é o carro? É meu por acaso? — retrucou Dedo Empoeirado, irritado.  — Mas eu avisei, não entendo nada dessas coisas. E agora olhe para a frente. Logo deve chegar a ponte.
— Ponte?
Elinor fez a próxima curva e pisou bruscamente no freio. No meio da estrada, iluminada por dois lampiões, havia uma espécie de bloqueio. Era uma grade de metal, que parecia enferrujada como se a barreira estivesse ali havia anos.
— Ora, vamos e venhamos! — exclamou Elinor, batendo as mãos no volante. — O caminho está errado. Eu não disse?
— Errado coisíssima nenhuma!
Dedo Empoeirado tirou Gwin do ombro e desceu do carro. Ele espreitou ao seu redor enquanto andava em direção à barreira. Então arrastou a grade para a beira da estrada.
Meggie quase riu ao ver o rosto pasmo de Elinor.
— Agora esse sujeito enlouqueceu de vez? — ela sussurrou. — Ele não pode estar achando que vou entrar numa estrada bloqueada nesta escuridão.
Apesar disso, ela ligou o motor quando Dedo Empoeirado acenou para ela, impaciente. Assim que ela passou, ele pôs a barreira de volta na estrada.
— Não me olhem assim!  — ele disse quando subiu novamente no carro. — Essa barreira está sempre aí. Capricórnio mandou colocá-la para deter visitantes indesejados.
Não é comum que alguém se atreva a vir até aqui. A maioria das pessoas se mantém afastada por causa das histórias que
Capricórnio manda espalhar sobre a aldeia, mas...
— Que histórias? — Meggie o interrompeu, embora na verdade não quisesse ouvi-las. — Histórias horripilantes — respondeu Dedo Empoeirado. — As pessoas aqui são supersticiosas, como em toda parte. A preferida é a de que o diabo em pessoa mora atrás da colina.
Meggie ficou irritada consigo mesma, mas não conseguia parar de olhar para o topo da escura colina.
— Mo diz que o diabo é uma invenção das pessoas — ela disse.
— Bem, pode ser  — Dedo Empoeirado pôs novamente seu sorriso enigmático nos lábios. — Mas você queria saber quais são as histórias. Dizem por aí que os homens que moram na aldeia não podem ser mortos por arma de fogo, que eles podem atravessar paredes, e que nas noites de lua nova pegam três meninos a quem Capricórnio vai ensinar a roubar, a incendiar e a matar.
— Céus, quem inventou tudo isso? As pessoas daqui ou esse Capricórnio?
Elinor curvou-se sobre o volante. A estrada estava cheia de buracos e ela tinha que dirigir bem devagar para não ficar atolada.
— As duas coisas. — Dedo Empoeirado recostou-se no assento e deixou Gwin mordiscar seus dedos. — Capricórnio dá uma recompensa a quem inventar uma nova história. O único que não participa desse jogo é Basta, pois ele próprio  é tão supersticioso que se desvia de todos os gatos pretos no seu caminho. Basta.  Meggie lembrou-se do nome, mas, antes que ela pudesse perguntar qualquer coisa, Dedo Empoeirado já estava falando novamente. Ele parecia se divertir contando aquelas coisas.
— Ah! Quase ia esquecendo! Naturalmente, todos os que moram na aldeia amaldiçoada sabem pôr mau-olhado, até mesmo as mulheres.
— Mau – olhado? — Meggie virou-se na direção dele.
— Ah, sim! Basta um olhar e você já está moribunda. E, no máximo em três dias, mortinha da silva.
— Mas quem acredita numa coisa dessas? — murmurou Meggie voltando a olhar para a frente.
— Imbecis acreditam nessas coisas — disse Elinor, e pisou no freio novamente.
A perua derrapou nas pedras da estrada. Diante deles, estava a ponte da qual Dedo Empoeirado falara. As pedras cinzentas brilhavam palidamente sob a luz dos faróis, e o  abismo debaixo dela parecia não ter fundo.
— Continue, continue!  — disse Dedo Empoeirado impaciente. — Ela agüenta, embora não pareça!
— Ela parece ter sido construída pelos romanos, na Antigüidade — resmungou Elinor. — E para asnos, não para automóveis.
Mas ela prosseguiu assim mesmo. Meggie fechou bem os olhos e só os abriu quando ouviu novamente as pedras da estrada rangerem sob os pneus.
— Capricórnio aprecia muito esta ponte — disse Dedo Empoeirado com voz baixa. — Um só homem bem armado é suficiente para bloqueá-la. Mas felizmente não há sentinelas aqui todas as noites.
— Dedo Empoeirado...  — Meggie virou-se para ele, hesitante, enquanto a perua de Elinor subia a custo a última colina. — O que vamos dizer quando nos perguntarem como encontramos a aldeia? Acho que não é bom Capricórnio ficar sabendo que foi você quem nos mostrou, não é?
— É, você tem razão — murmurou Dedo Empoeirado sem olhar para Meggie. — Embora ele vá receber o livro finalmente.
Ele apanhou Gwin, que escalava o encosto do banco traseiro, segurou-o de forma que  não pudesse receber uma mordida e atraiu-o para dentro da mochila com um pedaço de pão. A marta estava inquieta desde que escurecera. Ela queria caçar.
Eles haviam chegado ao topo da colina. Ao seu redor, o mundo desaparecera, engolido pela noite, mas não muito longe alguns retângulos pálidos começavam a se desenhar na escuridão. Eram janelas iluminadas.
— Aí está ela. A aldeia de Capricórnio. Ou, se vocês preferirem: a aldeia do diabo — disse Dedo Empoeirado, e riu baixinho.
Elinor virou-se para ele, irritada.
— Agora pare com isso! — ela ralhou. — Essas histórias parecem lhe agradar muito mesmo. Vai ver que foi você mesmo quem as inventou, e esse Capricórnio não passa de um colecionador de livros meio excêntrico.
Dedo Empoeirado não respondeu. Ele apenas olhava pela janela com aquele sorriso que Meggie  às vezes sentia vontade de apagar dos lábios dele. Também dessa vez ele parecia dizer apenas uma coisa: “Como vocês são bobas!”.
Elinor havia desligado o motor, e o silêncio que os envolveu a seguir foi tão completo que Meggie mal se atrevia a respirar. Ela olhou para as janelas iluminadas lá embaixo.
Normalmente, achava as janelas acesas na noite convidativas, mas aquelas pareciam mais ameaçadoras do que a escuridão ao redor.
— Essa aldeia tem algum morador normal?  — perguntou Elinor.  — Avós inofensivas, crianças inocentes, homens que não têm nada a ver com Capricórnio...
— Não. Apenas Capricórnio e seus homens moram ali
— sussurrou Dedo Empoeirado. — E as mulheres que cozinham para eles, fazem a limpeza e os outros serviços de mulher.
— E os outros serviços de mulher... Que maravilha! —Elinor ofegava de tão horrorizada que ficou.  — Estou achando esse Capricórnio cada vez mais simpático. Bem, vamos tratar de resolver logo isso. Quero voltar para casa, para os meus livros, para uma iluminação decente e uma xícara de café.
— É mesmo? Pensei que você estivesse querendo viver um pouco de aventura.
“Se Gwin pudesse falar”, pensou Meggie, “ele teria a voz de Dedo Empoeirado.”
— Prefiro as aventuras que acontecem à luz do sol — respondeu Elinor em tom rude. — Meu Deus, como odeio esta escuridão, mas se ficarmos parados aqui até o sol aparecer, meus livros vão embolorar antes que Mortimer possa cuidar deles. Meggie, vá lá atrás e pegue a sacola. Você já sabe.
Meggie fez que sim com a cabeça, e já ia abrindo sua porta quando foi ofuscada por um clarão. Havia alguém diante da porta do motorista, cujo rosto era impossível reconhecer, que iluminava o interior do carro com uma lanterna e que bateu com ela no vidro sem muita delicadeza.
Elinor levou um susto tão grande que bateu com o joelho no volante, mas logo se recompôs. Xingando, ela esfregou a perna dolorida e abriu a janela.
— Mas o que é isso?  — ralhou com o estranho.  —
Precisava nos matar de susto? É fácil ser atropelado perambulando assim na escuridão.
Como resposta, o estranho enfiou o cano de uma espingarda pela janela aberta.
— Isto aqui é uma propriedade particular! — ele disse.
Meggie pensou ter reconhecido a voz de gato que ouvira na biblioteca de Elinor. — E é fácil levar um tiro entrando assim no meio da noite em propriedades particulares.
— Eu explico! — Dedo Empoeirado apareceu por cima dos ombros de Elinor.
— Ah, olha quem está aí. Dedo Empoeirado! — O estranho recolheu a espingarda. — Você tinha que aparecer aqui no meio da noite?
Elinor virou-se e lançou um olhar mais do que desconfiado para Dedo Empoeirado.
— Não fazia a menor idéia de que o senhor tinha tanta intimidade com esses supostos demônios! — ela observou.
Mas Dedo Empoeirado já havia descido da perua. Meggie também achou estranha a intimidade com que os dois homens começaram a cochichar. Ela ainda se lembrava perfeitamente do que Dedo Empoeirado dissera sobre os homens de Capricórnio. Como ele podia falar daquele jeito com um deles? Meggie não conseguia entender uma só palavra do que eles falavam, por mais que afinasse os ouvidos. Somente uma coisa ela conseguira escutar: Dedo Empoeirado chamara o estranho de Basta.
— Não estou gostando nada disto!  — sussurrou Elinor. — Olhe só para os dois. Falam um com o outro como se o nosso amigo devorador de fósforos fosse aqui do pedaço!
— Vai ver que ele sabe que não lhe farão nada porque estamos com o livro! — sussurrou Meggie sem tirar os olhos dos dois homens.
O estranho tinha dois cães consigo, dois pastores alemães. Eles cheiraram as mãos de Dedo Empoeirado e enfiaram os focinhos em suas costelas abanando as caudas.
— Está vendo? — sussurrou Elinor. — Até mesmo os malditos cães o tratam como um velho amigo. E se...
Antes que ela pudesse continuar, Basta abriu a porta do motorista.
— Para fora vocês duas — ele ordenou.
Elinor pôs as pernas para fora do carro, renitente.
Meggie também desceu e se pôs ao lado dela. Seu coração parecia querer sair pela boca.
Ela nunca tinha visto um homem com uma espingarda.
Na televisão, sim, mas não na vida real.
— Escute aqui, não gosto desse seu tom! — Elinor ralhou com Basta. — Acabamos de fazer uma viagem cansativa, e só viemos para este fim de mundo para trazer uma coisa para o seu chefe ou patrão ou como quer que o chame, uma coisa que ele espera há muito tempo. Portanto, seja mais educado.
Basta lançou-lhe um olhar tão hostil que Elinor respirou fundo e Meggie apertou sua mão involuntariamente. — Onde você arranjou essa aí? — perguntou Basta virando-se novamente para Dedo Empoeirado, que estava parado com uma expressão de indiferença, como se não tivesse absolutamente nada a ver com tudo aquilo.
— Ela é a dona da casa, você sabe... — Dedo Empoeirado baixou a voz, mas Meggie conseguiu entender mesmo assim.  — Eu não queria trazê-la, mas ela  é teimosa. Como uma mula.
— Posso imaginar! — Basta olhou mais uma vez para
Elinor, e então olhou para Meggie. — E essa aí deve ser a filhinha de Língua Encantada, certo? Não é muito parecida com ele.
— Onde está o meu pai?  — perguntou Meggie.  —Como ele está? Eram as primeiras palavras que ela dizia. Sua voz soou rouca, como se não a usasse havia muito tempo.
— Oh, ele vai bem — respondeu Basta, lançando um olhar para Dedo Empoeirado. — Embora atualmente fosse melhor chamá-lo de Língua – de – chumbo, de tão pouco que ele fala.
Meggie mordeu os lábios.
— Viemos buscá-lo — ela disse. Agora sua voz saiu alta e aguda, embora ela tivesse se esforçado ao máximo para que parecesse adulta. — Trouxemos o livro, mas Capricórnio só vai recebê-lo quando soltar o meu pai.
Basta virou-se novamente para Dedo Empoeirado.
— Mas de alguma maneira ela lembra o pai, sim. Está vendo como aperta os lábios? E o olhar. Sim, não há dúvida quanto ao parentesco — a voz era divertida, mas quando
Meggie olhou para o rosto dele de novo, não tinha graça nenhuma. Era um rosto estreito e anguloso, com olhos juntos um do outro, que ele apertava como se assim pudesse ver melhor.
Basta não era um homem alto, seus ombros eram estreitos como os de um menino, e mesmo assim Meggie parou de respirar quando ele deu um passo em sua direção. Nunca antes ela sentira tanto medo de uma pessoa, e isso não se devia à espingarda que ele segurava. Era algo nele, algo colérico, cruel.
— Meggie, pegue a sacola no porta-malas — Elinor, irritada, se pôs entre os dois quando Basta fez menção de agarrar a menina. — Não há nada de perigoso dentro dela. Apenas aquela coisa importante que trouxemos.
Como resposta, Basta apenas tirou os cães do caminho.
Eles começaram a latir, de tão bruscamente que ele os puxou.
— Meggie, escute! — sussurrou Elinor quando haviam deixado a perua para trás e seguiam Basta por um caminho íngreme que levava na direção das janelas iluminadas. — Só entregue o livro quando eles nos mostrarem o seu pai, certo?
Meggie fez que sim e apertou a sacola de plástico contra o peito. Será que Elinor achava que ela era tão boba assim? Por outro lado, como ela faria para segurar o livro se Basta tentasse tirá-lo dela? Mas ela achou melhor não levar esse pensamento até o final...
A noite estava abafada. O céu sobre as colinas escuras estava salpicado de estrelas. O caminho pelo qual Basta os guiava era pedregoso e tão escuro que Meggie mal podia ver os seus pés, mas a cada vez que ela tropeçava havia uma mão ali para segurá-la, a de Elinor, que  ia bem pertinho, ou a de
Dedo Empoeirado, que a seguia com passos leves como se fosse sua sombra. Gwin ainda estava na mochila, e os cães de Basta erguiam os seus focinhos farejadores a todo instante, como se o forte cheiro da marta atiçasse o seu faro.
Lentamente, as janelas iluminadas se aproximaram.
Meggie distinguiu as casas, casas velhas feitas de pedras rústicas e cinzentas. Acima de seus tetos erguia-se a torre pálida de uma igreja. Muitas das casas pareciam desabitadas, e as vielas eram tão estreitas que Meggie tinha dificuldade de respirar.
Algumas delas não tinham teto, outras não passavam de um punhado de paredes desmoronadas. Estava escuro na aldeia de Capricórnio, e poucos lampiões, suspensos nos arcos de tijolos que havia sobre as vielas, estavam acesos. Finalmente, eles chegaram a uma pequena praça. De um lado erguia-se a torre da igreja que Meggie já avistara de longe e, não muito longe dali, separada apenas por uma estreita viela, havia uma grande casa de dois andares, que parecia até bem firme. A praça estava mais iluminada do que o restante da aldeia, e quatro lampiões lançavam sombras ameaçadoras sobre o calçamento.
Basta levou-os diretamente para a grande casa. Havia luz atrás de três das janelas do andar superior. Será que Mo estava lá? Meggie escutou dentro de si como se pudesse encontrar a resposta lá, mas o medo foi a única coisa que ela ouviu das batidas de seu coração. Medo e preocupação.
14. A tarefa cumprida
~
— Não vale a pena procurá-lo — disse o castor.
— O que você quer dizer? — perguntou Susana.
— Ele não deve estar muito longe! Temos que encontrá-lo! Por que o senhor acha que não vale a pena procurar?
— Porque já sabemos onde ele está — respondeu o castor. — Vocês não se deram conta? Ele foi se encontrar com ela, a Feiticeira Branca. Ele nos traiu!
C. S. Lewis, O leão, a feiticeira e o guarda-roupa
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Meggie havia imaginado o rosto de Capricórnio centenas de vezes, desde o momento em que Dedo Empoeirado lhe falara sobre ele: no caminho para a casa de Elinor, quando Mo ainda estava ao seu lado; na cama gigantesca da casa de Elinor e, finalmente, no caminho até ali; centenas de vezes, não, milhares de vezes ela tentara imaginá-lo apelando para a ajuda de todos os vilões que já havia encontrado nos livros: o Capitão Gancho, magro, com seu nariz curvo; Long John Silver, sempre com um sorriso falso nos lábios; Injun Joe com seu punhal e seus cabelos pretos sebosos, com quem ela se encontrara tantas vezes em pesadelos...
Mas Capricórnio não se parecia com nenhum deles.
Meggie logo desistiu de contar as portas pelas quais eles passaram antes que Basta finalmente parasse diante de uma delas. Mas os homens vestidos de preto ela contou. Eram quatro, com caras entediadas, espalhados pelos corredores. Ao lado de cada um, apoiada na parede pintada de branco, havia uma espingarda. Eles pareciam corvos em seus ternos justos, totalmente pretos. Somente Basta usava uma camisa branca, branca alvejada, como dissera Dedo Empoeirado, e uma flor vermelha na lapela do paletó, como se fosse uma advertência.
O roupão de Capricórnio também era vermelho. Ele estava sentado numa poltrona quando Basta entrou com os três visitantes noturnos. Uma mulher ajoelhada no chão cortava as unhas dos pés dele. A poltrona parecia pequena para aquele homem,  alto e esguio como se houvessem esticado demais a pele sobre seus ossos. Sua tez era clara como papel branco, os cabelos eram curtos e espevitados como uma escova. Meggie não saberia dizer se eram grisalhos ou loiros.
Ele ergueu a cabeça quando Basta abriu a porta. Seus olhos eram quase tão pálidos quanto tudo nele, claros e descorados como moedas de prata. A mulher que estava a seus pés também ergueu o olhar por um breve instante quando eles entraram, mas logo se debruçou novamente sobre seu trabalho.
— Desculpe interromper, mas a visita que estava sendo esperada chegou  — disse Basta.  — Pensei que você talvez quisesse falar logo com ela.
Capricórnio recostou-se na poltrona e lançou um breve olhar para Dedo Empoeirado. Então seus olhos inexpressivos voltaram-se para Meggie. Involuntariamente, ela apertou ainda mais a sacola de plástico com o livro contra o peito. Capricórnio olhou para a sacola, como se soubesse o que se  ocultava dentro dela. Ele fez um sinal para a mulher a seus pés. Ela se levantou contrariada, alisou seu vestido negro como carvão e lançou um olhar de poucos amigos para Elinor e Meggie. Parecia uma gralha velha, os cabelos grisalhos presos num coque aparador pesado. Não havia uma única lâmpada em toda a sala, apenas velas, dezenas de velas em pesados castiçais de prata.
Meggie teve a impressão de que elas enchiam a sala de sombras ao invés de luz.
— Onde ele está? — perguntou Capricórnio. Meggie recuou involuntariamente quando ele se ergueu da poltrona.
— Não me diga que desta vez você só trouxe a garota!
A voz dele era mais expressiva do que o rosto. Era uma voz arrastada e lúgubre, e Meggie a odiou já na primeira palavra.
— Está com ela. Na sacola! — Dedo Empoeirado respondeu antes que Meggie pudesse fazê-lo. Os olhos dele vagavam inquietos de uma vela para outra enquanto falava, como se estivesse interessado apenas pelas chamas bruxuleantes.
— O pai dela de fato não sabia que estava com o livro errado.
Essa pretensa amiga dele — Dedo Empoeirado apontou para Elinor — trocou-o por outro sem que ele soubesse! Eu acho que ela se alimenta de letras. Toda a casa dela está atulhada de livros. Ela os prefere à companhia de seres humanos.
As palavras saíam depressa da boca de Dedo Empoeirado, como se ele quisesse se livrar logo delas.
— Desde o começo, eu a achei insuportável, mas você sabe como  é o nosso amigo Língua Encantada. Ele sempre pensa o melhor das pessoas. Ele confiaria até no diabo em pessoa se ele lhe sorrisse amigavelmente.
Meggie virou-se para Elinor. Ela estava ali parada, como se tivesse engolido a língua. A consciência pesada estava claramente estampada em sua testa.
Capricórnio apenas inclinou a cabeça depois das explicações de Dedo Empoeirado. Ele apertou o cinto do roupão, cruzou os braços nas costas e andou até Meggie, lentamente.
Ela fez todo o esforço que pôde para não recuar, para olhar firme e sem medo para aqueles olhos sem cor, mas o medo apertava a sua garganta. Que covarde ela era! Tentou se lembrar de algum herói, de algum de seus livros, que ela pudesse encarnar para se sentir mais forte, maior e mais corajosa. Por que só lhe ocorriam histórias sobre o medo enquanto Capricórnio a observava? Para ela, sempre fora tão fácil se transportar para outros lugares, entrar na pele de animais e pessoas que existiam apenas no papel! Por que não naquele momento?
Porque ela estava com medo.  “Porque o medo mata tudo”, Mo lhe dissera um dia, “a razão, o coração e até mesmo a fantasia.”
Mo... Onde ele estava? Meggie mordeu os lábios para que eles não tremessem, mas sabia que o medo estava alojado em seus olhos e que Capricórnio podia vê-lo. Ela desejou ter um coração de gelo e lábios sorridentes, em vez dos lábios trêmulos de uma criança cujo pai fora roubado.
Capricórnio agora estava bem perto dela. Ele a examinou detidamente. Nunca alguém olhara para ela daquela maneira. Ela se sentia como uma mosca que já estava grudada no papel pega-moscas e apenas esperava pelo golpe fatal.
— Quantos anos ela tem? — Capricórnio olhou para Dedo Empoeirado como se julgasse Meggie incapaz de saber a resposta.
— Doze! — ela disse bem alto. Não era fácil falar com os lábios trêmulos. — Tenho doze anos. E agora quero saber onde está o meu pai.
Capricórnio reagiu como se não tivesse ouvido a última frase.
— Doze? — ele repetiu com sua voz cavernosa, que ressoou pesadamente nos ouvidos de Meggie. — Mais dois ou três anos e será uma belezinha realmente aproveitável. Contudo, será necessário alimentá-la um pouco melhor.
Ao dizer isso, ele apertava o braço dela com seus dedos longos. Ele usava anéis de ouro, logo três numa mão. Meggie tentou se soltar, mas Capricórnio a segurou firme enquanto a examinava com seus olhos pálidos. Como se ela fosse um peixe. Um pobre peixe se debatendo.
— Solte a menina!
Pela primeira vez, Meggie ficou contente de que a voz de Elinor pudesse soar tão rude. E de fato Capricórnio soltou seu braço. Elinor postou-se atrás dela e pôs as mãos em seus ombros num gesto protetor.
— Não sei o que está acontecendo aqui! — ela ralhou com Capricórnio. — Não sei quem  é o senhor, e tampouco me interessa o que todos esses homens com espingarda fazem nesta aldeia esquecida por Deus e o mundo. Estou aqui para que esta menina tenha o pai dela de volta. Nós lhe cederemos o livro que tanto quer, ainda que isso me cause uma dor na alma, mas você apenas o receberá quando o pai de Meggie estiver sentado no meu automóvel. E, se por algum motivo ele quiser ficar mais tempo aqui, gostaríamos de ouvir isso da própria boca dele.
Capricórnio deu-lhe as costas sem dizer uma palavra.
— Por que você trouxe a mulher?  — ele perguntou para Dedo Empoeirado. — Eu disse: a garota e o livro. Agora o que eu faço com essa mulher?
Meggie olhou para Dedo Empoeirado.
A garota e o livro. As palavras ecoavam em sua cabeça, repetidas vezes. “Eu disse: a garota e o livro.” Meggie tentou olhar nos olhos de Dedo Empoeirado, mas ele desviou o olhar, como se pudesse se queimar. Doía sentir-se tão boba. Tão terrivelmente boba.
Dedo Empoeirado sentou-se no canto da mesa e começou a esmagar uma das velas acesas, de mansinho, bem devagar, como se esperasse pela dor, pela mor discada da chama.
— Já expliquei a Basta: não foi possível dissuadir a digníssima senhora Elinor de vir também — ele disse. — Ela não quis deixar a menina viajar sozinha, e relutou muito em largar o livro.
— E daí? Eu não tinha razão? — a voz de Elinor soou tão alta que Meggie levou um susto. — Escute só o que está dizendo esse engolidor de fósforos hipócrita! Eu devia ter chamado a polícia quando ele reapareceu. Ele só voltou por causa do livro, só por isso.
“E por minha causa”, pensou Meggie. A garota e o livro.
Dedo Empoeirado fez como se estivesse extremamente ocupado em puxar um fio solto da manga de seu casaco. Mas suas mãos, sempre tão ágeis, agora estavam trêmulas.
— E o senhor! — Elinor encostou o dedo indicador no peito de Capricórnio.
Basta deu um passo para a frente, mas Capricórnio fez um sinal para que recuasse.
— De fato, já vi muitas coisas em se tratando de livros.
Eu mesma já tive alguns deles roubados, e não posso afirmar que todos os livros que estão nas minhas estantes tenham chegado lá por vias legítimas. Talvez o senhor conheça o ditado: “Todo colecionador de livros  é um abutre e um caçador”, mas o senhor me parece ser realmente o mais louco de todos. Muito me admira nunca ter ouvido falar do senhor.
Onde está a sua coleção? — Ela correu os olhos pela sala. —Não estou vendo um único livro.
Capricórnio pôs as mãos nos bolsos do roupão e fez um sinal para Basta.
Antes que Meggie entendesse como isso acontecera, Basta havia arrancado a sacola de plástico de suas mãos. Ele abriu-a, espiou dentro dela desconfiado, como se suspeitasse haver ali uma serpente ou algo que pudesse mordê-lo, e só então puxou o livro para fora.
Ele o entregou para Capricórnio. Meggie não conseguiu ver em seu rosto nada da ternura com que Elinor ou Mo observavam um livro. Não, no rosto de Capricórnio não havia outra coisa senão repulsa — e alívio.
— As duas não sabem de nada?
Capricórnio abriu o livro, folheou-o e fechou-o nova-mente. Era o livro certo, Meggie viu em seu rosto. Era exatamente o livro que ele estava procurando.
— Não, elas não sabem de nada. Nem mesmo a garota.
— Dedo
Empoeirado olhava pela janela tão concentrado, como se houvesse algo para ver além da noite escura como o breu.
— Seu pai não lhe contou nada. Por que eu deveria?
Capricórnio assentiu com a cabeça.
— Leve as duas lá para trás! — ordenou a Basta, que ainda estava diante dele com a sacola vazia na mão.
— O que significa isso? — começou Elinor, mas Basta já arrastava as duas consigo.
— Isso significa que esses dois lindos passarinhos passarão a noite trancados numa das nossas gaiolas — disse Basta, cutucando as duas nas costas com o cano da espingarda.
— Onde está o meu pai? — gritou Meggie. Sua voz soou estridente em seus próprios ouvidos.  — Você já está com o livro! O que ainda quer com o meu pai?
Capricórnio andou lentamente até a vela que Dedo
Empoeirado havia esmagado, passou o dedo indicador no pavio e observou a fuligem na ponta do dedo.
— O que eu quero com o seu pai? — ele disse sem se voltar para Meggie.  — Quero tê-lo aqui, o que mais seria? Você parece ignorar o extraordinário talento que ele possui. Até agora, Língua Encantada não quis pôr esse talento ao meu serviço, por mais que Basta tenha tentado convencê-lo. Mas agora que Dedo Empoeirado trouxe sua querida filhinha, ele vai fazer o que eu quero. Estou absolutamente certo disso.
Meggie tentou empurrar a mão de Basta quando ele a pegou pela nuca como a uma galinha cujo pescoço pretendia torcer. Quando Elinor tentou ajudá-la, ele apontou displicentemente a espingarda para o seu peito e empurrou Meggie para a porta.
Ao se virar mais uma vez, ela viu Dedo Empoeirado ainda encostado na grande mesa. Ele olhava para ela, mas dessa vez não estava sorrindo. “Desculpe!”, pareciam dizer os seus olhos. “Eu tive que fazer isso. Posso explicar tudo!”
Mas Meggie não queria entender nada. E muito menos perdoar.
— Tomara que você morra! — ela gritou quando Basta a puxou para fora da sala. — Tomara que você morra queimado e asfixiado pelo seu próprio fogo!
Basta riu enquanto fechava a porta.
— Olhem só a pequena fera mostrando as garras! —ele disse. — Acho que devo tomar cuidado com ela.
15. Sorte e azar
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Era madrugada; Bingo não conseguia dormir. O chão era duro, mas ele estava acostumado. Seu cobertor estava imundo e cheirava muito mal, mas ele também estava acostumado. Uma canção entrara em sua cabeça e ele não conseguia espantá-la de seus pensamentos. Era o hino da vitória dos Wendel.
Michael de Larrabeiti, Os Borribles 2 — No labirinto dos Wendel
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As gaiolas — como Basta as chamara —,  que Capricórnio mantinha para hóspedes impertinentes, ficavam atrás da igreja, numa praça asfaltada, onde latas de lixo e Contêineres repousavam ao lado de montanhas de entulho. Havia um leve odor de gasolina no ar, e os próprios vaga-lumes que voavam sem rumo pela noite pareciam não saber o que os atraíra para aquele local. Uma série de casas semi-desmoronadas erguia-se atrás dos Contêineres e do entulho. As janelas não passavam de buracos nas paredes cinzentas. Algumas venezianas apodrecidas pendiam tão inclinadas das dobradiças que davam a impressão de que a próxima rajada de vento as derrubaria. Apenas as portas no andar térreo pareciam ter recebido recentemente uma demão de tinta, de um marrom sujo, sobre o qual, torto como um garrancho infantil, fora pintado um número. A última porta, pelo que Meggie conseguiu distinguir na escuridão, tinha um sete.Basta empurrou Meggie e Elinor em direção ao número quatro. Por um momento, Meggie sentiu alívio por ele não estar de fato falando de uma gaiola, embora a porta na parede sem janelas não parecesse propriamente convidativa.
— Isso tudo é ridículo! — esbravejou Elinor enquanto
Basta destrancava a porta.
Ele trouxera reforços da casa, um rapazinho magro, que já usava o mesmo uniforme preto que os homens adultos da aldeia de Capricórnio, e tinha visível prazer em ameaçar
Elinor com sua espingarda assim que ela abria a boca. Isso não fez com que ela se calasse.
— O que acontece aqui? — ela vociferou sem tirar o olho do cano da espingarda. — Já ouvi falar que essas montanhas sempre foram um paraíso para salteadores, mas estamos no século vinte e um, meu amigo! E agora ninguém mais conduz uma visita com uma espingarda, muito menos um fedelho como esse aí...
— Pelo que ouvi falar, tudo o que se fazia antigamente se faz neste ilustre século também — retrucou Basta. — E esse fedelho está exatamente na idade certa para começar a aprender. Eu comecei ainda mais novo do que ele.
Ele abriu a porta. A escuridão atrás dela era mais negra do que a noite.
Basta empurrou Meggie e depois Elinor para dentro, e bateu a porta atrás delas.
Meggie ouviu a chave girar na fechadura, Basta dizer alguma coisa e o rapazinho rir, e então os passos se distanciaram. Ela esticou as mãos para o lado, até que a ponta de seus dedos tocou uma parede. Seus olhos eram inúteis como os de um cego, ela nem ao menos conseguia distinguir onde estava Elinor. Mas ela a ouviu xingar, em algum lugar à sua esquerda.
— Será que neste buraco não há pelo menos um maldito interruptor? Que diabos, estou me sentindo como se tivesse vindo parar num desses terríveis romances de aventura, insuportavelmente mal escritos, onde os vilões usam tapa-olhos e arremessam facas.
Elinor gostava de xingar, Meggie já notara. Quanto mais nervosa, mais ela xingava.
— Elinor? — a voz veio de algum lugar na escuridão.
Alegria, susto, surpresa, tudo transpareceu naquela palavra.
Meggie virou-se tão bruscamente que quase tropeçou nos próprios pés.
— Mo?
— Oh, não. Meggie! Como você veio até aqui?
— Mo!
Meggie cambaleou na escuridão em direção à voz de
Mo. Uma mão segurou seu braço, dedos apalparam seu rosto.
— Até que enfim! — No teto uma lâmpada nua se acendeu, e Elinor tirou o dedo de um interruptor empoeirado com um ar de satisfação consigo mesma. — A luz elétrica é realmente uma invenção fabulosa! — ela disse. — Pelo menos é um grande progresso em relação a outros séculos, não  acham?
— O que vocês estão fazendo aqui, Elinor?  — perguntou Mo enquanto estreitava Meggie em seu peito. — Como você pôde permitir que eles a trouxessem para cá?
— Como pude permitir? — a voz de Elinor soou quase esganiçada. — Eu não pedi para bancar a babá da sua filha.
Sei como tomar conta de livros mas, com os diabos, cuidar de crianças  é outra coisa! Além do mais, ela estava preocupada com você! Ela queria sair para procurá-lo. E o que fez a tonta da Elinor, em vez de ficar confortavelmente em sua casa?
“Não posso deixar a menina sair sozinha pelo mundo”, eu pensei. E agora  é isso que recebo pela minha generosidade!
Tive que ouvir grosserias, agüentar uma espingarda no meu peito e agora ainda por cima as suas censuras...
— Tudo bem, tudo bem! — Mo afastou Meggie e examinou-a da cabeça aos pés.
— Estou bem, Mo! — disse Meggie, embora sua voz tremesse um pouco. — Verdade. Mo assentiu com a cabeça e olhou para Elinor. — Vocês trouxeram o livro para Capricórnio?
— É claro! Você também o teria entregado se eu não...
— Elinor corou, e olhou para seus sapatos empoeirados.
— Se você não o tivesse trocado — Meggie terminou a frase por ela. Ela pegou a mão de Mo e segurou-a bem firme.
Quase não acreditava que ele estava novamente junto dela, são e salvo, com exceção do arranhão ensangüentado em sua testa, quase totalmente coberto por seus cabelos escuros.
— Eles bateram em você? — ela perguntou, preocupada, e passou o dedo sobre o sangue ressecado.
Mo sorriu de leve, embora certamente não estivesse muito animado.
— Não foi nada. Estou bem! Não se preocupe.
Meggie achou que isso não era uma resposta, mas não perguntou mais.
— Como vocês chegaram aqui? Capricórnio mandou os seus homens mais uma vez?
Elinor sacudiu a cabeça.
— Não foi necessário — ela lamentou. — O seu amigo Língua – de – trapo se encarregou disso. Que bela víbora você levou para minha casa. Primeiro ele o traiu, e depois, para completar, entregou o livro e a sua filha de bandeja para Capricórnio. “A garota e o livro”, como acabamos de ouvir do próprio
Capricórnio, era a missão do devorador de fósforos. E ele a cumpriu muito a contento.
Meggie pôs o braço de Mo em seu ombro e escondeu o rosto na camisa dele.
— A garota e o livro? — Mo estreitou Meggie em seus braços novamente.  — É claro. Agora Capricórnio pode ter certeza de que farei o que ele quer.
Ele se virou e andou com passos lentos até o monte de palha que havia num canto no chão. Com um suspiro, sentou-se ali, apoiou as costas na parede e fechou os olhos por um momento.— Pois  é, agora estamos quites, Dedo Empoeirado e eu — disse Mo. — Embora eu me pergunte como Capricórnio o recompensará pela traição. O que Dedo Empoeirado quer, ele não pode lhe dar.
— Quites? Do que você está falando? — Meggie agachou-se ao lado dele. — E o que Capricórnio quer que você faça? O que ele quer com você, Mo?
A palha estava úmida. Aquele não era um bom lugar para dormir, mas sem dúvida melhor do que o chão frio de pedra.
Mo permaneceu calado por uma pequena eternidade, fitando as paredes nuas, a porta fechada, o chão sujo.
— Acho que está na hora de contar a história toda — ele disse finalmente. — Embora na verdade eu quisesse contá-la a você num lugar menos desolado, e só quando você fosse um pouco mais velha...
— Eu tenho doze anos, Mo!
Por que os adultos achavam que as crianças suportavam melhor os segredos do que a verdade? Será que não faziam idéia das histórias tenebrosas que elas inventam para explicar os mistérios? Somente muitos anos depois, quando
Meggie já tinha os filhos dela, entendeu que existem verdades que enchem completamente o coração de desespero e das quais não é agradável falar, muito menos com os filhos, a não ser que se tenha alguma coisa que ofereça esperança perante o desespero.
— Sente-se, Elinor!  — disse Mo, movendo-se um pouco para o lado.
Elinor suspirou e sentou-se de mau jeito na palha úmida.
— Isto tudo não é verdade! — ela murmurou. — Não pode ser verdade.
— É o que eu penso há nove anos, Elinor — disse Mo.
E então ele começou a contar.
16. Naquele tempo
~
Ele ergueu o livro.
— Lerei para você. Como distração.
— Fala de esporte?
— Duelos. Lutas corpo a corpo. Tortura. Veneno. Amor verdadeiro. Ódio. Vingança. Gigantes. Caçadores. Pessoas más. Pessoas boas. Mulheres belíssimas. Serpentes. Aranhas. Dor. Morte. Homens corajosos. Covardes. Homens fortes como ursos. Perseguições. Fuga. Mentiras. Verdades. Paixões. Milagres.
— Soa bem — eu disse.
William Goldman, A princesa noiva
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— Você tinha acabado de fazer três anos, Meggie — começou Mo. — Ainda me lembro de como comemoramos o seu aniversário. Nós demos um livro de figuras de presente para você. Aquele da serpente marinha que tinha dor de dente e se enroscou num farol...
Meggie confirmou com a cabeça. Ele ainda estava em seu baú e já recebera roupa nova duas vezes.
— Nós? — ela perguntou.
— Sua mãe e eu. — Mo tirou um pouco de palha da calça dele. — Já naquela época, eu não podia passar na frente de uma livraria. A casa em que morávamos era muito pequena. Nós a chamávamos de caixa de sapatos, ou casa do ratinho, nós lhe demos muitos nomes. Mas naquele dia eu tinha comprado uma caixa cheia de livros num sebo. Elinor — ele olhou para ela e sorriu — teria gostado muito de alguns deles. O livro de Capricórnio também estava lá.
— O livro era dele? — Meggie olhou espantada para Mo, mas ele sacudiu a cabeça. — Não, isso não, mas... uma coisa de cada vez. Sua mãe suspirou quando viu os novos livros e perguntou onde iríamos guardá-los, mas depois, é claro, me ajudou a desempacotar todos eles. Naquela época eu sempre lia para ela.
— Você lia em voz alta?
— Sim. Todas as noites. Sua mãe gostava muito. Naquela noite, ela escolheu Coração de tinta. Ela sempre gostou de histórias de aventuras, histórias cheias de mistério e esplendor. Ela sabia de cor os nomes de todos os cavaleiros do rei Artur e conhecia tudo sobre Beowulf e Grendel, sobre os deuses da Antigüidade e outros heróis não tão antigos. Ela também gostava de histórias de piratas, mas preferia aquelas em que aparecia pelo menos um cavaleiro e um dragão ou uma fada. Ali-ás, ela sempre ficava do lado do dragão. Em Coração de tinta parecia não haver nenhum, mas em compensação não faltavam mistérios e esplendor, além de fadas e duendes... Sua mãe também gostava muito de duendes: dos brownies, bucca boos, fenoderees, dos foltetti com as suas asas de borboleta, ela conhecia todos eles. Então demos uma pilha de livros de figuras para você, nos sentamos confortavelmente ao seu lado no tapete, e eu comecei a ler.
Meggie encostou a cabeça no ombro de Mo e olhou para a parede nua. Ela viu a si mesma no branco sujo da parede, do jeito como aparecia em fotos antigas: pequenina, de pernas roliças, os cabelos loiros bem claros (eles haviam escurecido desde então), folheando os livros de figuras com seus dedinhos curtos. Sempre que Mo contava alguma coisa, era isto que acontecia: Meggie via imagens, imagens vivas.
— Nós gostamos da história — prosseguiu seu pai. —
Ela era cheia de suspense, bem escrita e povoada pelos mais estranhos seres. Sua mãe adorava quando um livro a transportava para o desconhecido, e o mundo para o qual Coração de tinta a levava era bem ao seu gosto. As vezes a história ficava um tanto tenebrosa e, sempre que a tensão era muito grande, sua mãe punha o dedo nos lábios e eu passava a ler mais baixo, embora soubéssemos que você estava ocupada demais com os seus livros para prestar atenção numa história cujo sentido você de qualquer forma não teria entendido. Lá fora já estava escuro, eu me lembro como se tivesse sido ontem, era outono, e o vento soprava na janela. Havíamos acendido o fogo, pois nossa caixinha de sapatos não possuía aquecimento central, e sim uma estufa a lenha em cada cômodo, e eu estava começando o sétimo capítulo. Foi então que aconteceu...
Mo calou-se. Ficou olhando para a frente, como se tivesse se perdido em seus próprios pensamentos.
— O quê? — sussurrou Meggie. — O que aconteceu, Mo?
O pai olhou para ela.
— Eles saíram — ele disse. — De repente eles estavam lá, na porta do corredor, como se tivessem vindo de fora. Quando eles se viraram para nós, eu ouvi um ruído que era como se alguém desdobrasse uma folha de papel. Seus nomes ainda estavam em meus lábios: Basta, Dedo Empoeirado, Capricórnio. Basta segurava Dedo Empoeirado pelo colarinho como quem sacode um cachorrinho que fez algo proibido. Naquela época, Capricórnio já gostava de se vestir de vermelho, mas era nove anos mais jovem e ainda não era tão magro. Ele possuía uma espada, eu nunca tinha visto uma de perto. Basta também trazia uma pendurada no cinto, uma espada e uma navalha, enquanto Dedo Empoeirado... — Mo sacudiu a cabeça. — Bem, ele não tinha nada além da marta de chifres, e ganhava o seu pão com as exibições dela. Acho que nenhum dos três entendeu o que havia acontecido. Eu mesmo só entendi muito depois. A minha voz os fizera escorregar do livro, como um marcador que alguém tivesse esquecido entre as páginas. Como eles poderiam entender isso? Basta deu um empurrão tão violento em Dedo Empoeirado que o derrubou no chão. Então ele quis sacar a espada, mas suas mãos, pálidas como papel, pareciam ainda não ter forças. A espada escorregou de seus dedos e caiu no tapete. Parecia haver sangue na lâmina, mas talvez fosse apenas o fogo que se refletia nela. Capricórnio ficou parado, olhando ao redor. Parecia sentir tonturas, e cambaleava como um urso dançarino que girou demais. Provavelmente isso foi a nossa salvação, pelo menos foi o que Dedo Empoeirado sempre afirmou. Se Basta e seu chefe estivessem em pleno uso de suas forças, certamente teriam nos matado. Mas eles mal haviam chegado a este mundo, e eu peguei aquela espada horrível que estava jogada entre os livros no tapete. Ela era pesada, muito mais pesada do que eu imaginara. Devo ter parecido terrivelmente ridículo com ela na mão. Eu provavelmente a empunhava como um aspirador de pó ou uma bengala, mas quando Capricórnio veio cambaleando em minha direção e eu lhe apontei a lâmina, ele parou. Comecei a gaguejar tentando explicar o que acontecera, embora eu mesmo não soubesse, mas Capricórnio simplesmente olhou para mim com seus olhos azuis, claros como água, enquanto Basta se mantinha ao seu lado com a navalha na mão, e parecia esperar a ordem do chefe para cortar nosso pescoço.
— E o devorador de fósforos?  — A voz de Elinor também soou rouca.
— Ele ainda estava sentado no tapete, como que entorpecido, sem ter emitido ainda um som sequer. Não me preocupei com ele. Quando você abre uma cesta e de dentro saem duas serpentes e um lagarto, primeiro você se ocupa das serpentes, certo?
— E a minha mãe? — Meggie conseguiu apenas sussurrar. Não estava acostumada a dizer essa palavra.
Mo olhou para ela.
— Ela tinha sumido! Você ainda estava ajoelhada entre os seus livros, e olhava com os olhos arregalados para os estranhos que estavam ali com aquelas armas e botas pesadas. Eu temia terrivelmente por vocês duas, mas, para meu alívio, nem Basta nem Capricórnio deram atenção alguma a você. “Chega de conversa mole!”, disse Capricórnio finalmente, quando comecei a me atrapalhar ainda mais com minhas próprias palavras.  “Não estou interessado em saber como vim parar neste lugar deplorável. Leve-nos de volta, seu mago infeliz, ou Basta cortará essa sua língua tagarela.” Isso não soou exatamente reconfortante e, nos primeiros capítulos, eu lera o suficiente sobre os dois para saber que Capricórnio estava falando sério. Tive vertigens de tão desesperado que fui ficando enquanto pensava em como poderia pôr fim àquele pesadelo. Peguei o livro do chão, talvez se eu lesse o mesmo trecho mais uma vez... eu tentei. Eu tropeçava nas palavras, enquanto Capricórnio me observava e Basta sacava sua navalha. Nada aconteceu. Os dois estavam ali, na minha casa, e não pareciam nem um pouco dispostos a voltar para a história deles. E de repente tive a certeza de que eles nos matariam. Deixei cair o livro, esse malfadado livro, e ergui a espada que havia jogado no tapete. Basta tentou se adiantar, mas eu fui mais rápido. Precisei das duas mãos para segurar aquela coisa horrível, ainda me lembro de como seu punho era frio. Não me pergunte como, mas consegui impelir Basta e Capricórnio para o corredor. Brandi a espada com tanta fúria que algumas coisas se espatifaram no chão com um estrondo. Você começou a chorar, e eu queria me virar para você e dizer que aquilo tudo era apenas um sonho ruim, mas estava muito ocupado em manter afastadas a navalha de Basta e a espada de Capricórnio. “Agora aconteceu”, eu pensava a todo instante, “agora você está dentro de uma história como sempre desejou, e é terrível.” O medo tem um sabor muito diferente quando não se está lendo sobre ele, Meggie, e bancar o herói não estava sendo nem um pouco divertido, nada parecido com o que eu imaginara. Se os dois ainda não estivessem meio fracos das pernas, com certeza teriam me matado. Capricórnio gritava comigo, seus olhos quase saltavam das  órbitas de tão irado que ele estava. Basta vociferava e me ameaçava, e fez um corte feio no antebraço com a navalha, mas de repente a porta da casa se abriu e os dois desapareceram na noite, cambaleando feito bêbados. Quase não consegui fechar o trinco, pois meus dedos tremiam de forma incontrolável. Eu me encostei na porta, prestei  atenção nos ruídos do lado de fora, mas só consegui ouvir o meu próprio coração disparado. Então escutei você chorando na sala e me lembrei de que havia um terceiro. Voltei depressa, ainda com a espada na mão, e encontrei Dedo Empoeirado em pé no meio da sala. Ele não tinha uma arma, apenas a marta em seu ombro, e recuou, o rosto lívido como a morte, quando andei na direção dele. Eu devia estar com um aspecto medonho, o sangue escorria do meu braço e todo o meu corpo tremia, não sei se de medo ou de fúria.  “Por favor!”, ele sussurrou. “Não me mate! Não tenho nada a ver com os dois. Sou apenas um saltimbanco, um inofensivo cuspidor de fogo. Posso provar.” E eu respondi:  “Está bem, está bem. Eu sei, você é Dedo Empoeirado”. E ele fez uma reverência respeitosa diante de mim. Eu, o mago todo-poderoso, que sabia tudo sobre ele e que o havia colhido de seu mundo como uma maçã de uma árvore. A marta desceu de seu braço, pulou no tapete e correu até você. Você parou de chorar e estendeu a mão para ela. “Cuidado, ela morde”, disse Dedo Empoeirado, espantando o animal. Não prestei atenção nele. De repente, percebi como a sala estava silenciosa. Silenciosa e vazia. Vi o livro jogado no tapete, aberto, como eu o deixara cair, e a almofada na qual sua mãe estava sentada. Ela não estava lá. Onde estaria? Eu chamei o nome dela, chamei várias vezes. Corri por todos os quartos. Mas ela não estava mais ali.
Elinor estava sentada, rígida como uma tábua, olhando para ele.
— Pelo amor de Deus, que história é essa? — ela exclamou. — Você me contou que ela partiu numa dessas viagens estúpidas de aventuras e não voltou mais!Mo encostou a cabeça na parede.
— Alguma coisa eu tinha que inventar, Elinor — ele disse. — Você há de convir que seria muito difícil contar a verdade.
Meggie passou a mão no braço dele, no ponto onde a camisa escondia uma grande cicatriz pálida.
— Você sempre me disse que cortou o braço pulando uma janela quebrada.
— Isso mesmo. Porque a verdade era absurda demais. Não é?
Meggie fez que sim. Ele tinha razão, ela teria achado que era mais uma de suas histórias.
— Ela nunca voltou? — sussurrou, embora soubesse a resposta.
— Não — respondeu Mo.  — Basta, Capricórnio e Dedo Empoeirado saíram do livro e ela entrou, junto com os nossos dois gatos, que sempre ficavam no colo dela quando eu lia. Provavelmente também sumiu alguém em troca de Gwin, talvez uma aranha ou mosca ou algum pássaro que estava voando perto da casa naquele momento...
Mo calou-se. Às vezes, quando ele inventava uma história tão boa que Meggie acreditava que era verdade, de repente ele começava a rir e dizia: “Enganei um bobo na casca do ovo”. Como naquela vez, em seu aniversário de sete anos, em que ele disse que havia descoberto umas fadas lá fora no meio dos pés de açafrão. Mas dessa vez o sorriso não veio.
— Depois de procurar em vão por sua mãe na casa toda — ele prosseguiu —, voltei para a sala, mas Dedo Empoeirado havia desaparecido junto com seu amiguinho de chifres. Apenas a espada ainda estava lá, e parecia tão real ao toque que decidi não duvidar da minha lucidez. Levei você para a cama, acho que lhe disse que sua mãe tinha ido dormir, e comecei a ler Coração de tinta em voz alta mais uma vez. Li todo o maldito livro, até que fiquei rouco e o sol nasceu lá fora, mas tudo o que saiu dele foi um morcego e uma capa de seda, com a qual eu mais tarde forrei o seu baú de livros. Nos dias e noites seguintes eu tentei novamente, diversas vezes, até que meus olhos começaram a arder e as letras a dançar feito bêbadas nas páginas. Eu não comia, não dormia, a cada vez lhe inventava uma nova história sobre o paradeiro da sua mãe, e sempre tomava cuidado para que você não estivesse no mesmo aposento onde eu lia, com medo de que você também pudesse desaparecer. Comigo eu não me preocupava. Era estranho, mas eu tinha a sensação de que, como leitor, não corria o perigo de sumir entre as páginas. Não sei até hoje se isso era verdade.
Mo espantou um mosquito com a mão, depois prosseguiu:
— Eu lia em voz alta, até não agüentar mais ouvir a minha própria voz. Mas sua mãe não voltou, Meggie. Em compensação, no quinto dia, surgiu na minha sala um estranho homenzinho, transparente, como se fosse de vidro, e o carteiro, que acabara de pôr algumas cartas na nossa caixa de correio, desapareceu. Encontrei a bicicleta dele lá fora no pá-tio. A partir daí, eu soube que nem paredes, nem portas fechadas poderiam mantê-la a salvo de desaparecer também, nem você nem mais ninguém. Então decidi nunca mais ler um livro em voz alta. Nem Coração de tinta, nem qualquer outro.
— O que aconteceu com o homenzinho de vidro? — perguntou Meggie.
Mo deu um suspiro.
— Ele se estilhaçou, poucos dias depois, quando um caminhão passou na frente da nossa casa. Ao que tudo indica, são muito poucos os que suportam mudar de mundo tão bruscamente. Nós dois sabemos como pode ser bom mergulhar num livro e viver nele por um tempo, mas ser arrancado de uma história e de repente se encontrar no nosso mundo não parece deixar a pessoa exatamente feliz. Isso partiu o coração de Dedo Empoeirado.
— Ele tem coração? — perguntou Elinor com amargura.
— Ele estaria melhor se não tivesse — respondeu Mo.
— Mais de uma semana se passou até ele aparecer de novo na minha porta. Foi à noite, é claro; ele sempre prefere a noite.
Eu estava fazendo as malas, pois decidira que era mais seguro ir embora. Não queria ter que expulsar Basta e Capricórnio da minha casa com uma espada novamente. Dedo Empoeirado confirmou minhas preocupações. Já era bem mais de meia-noite quando ele apareceu, mas de qualquer forma eu não estava conseguindo dormir.
Mo acariciou os cabelos de Meggie e continuou:
— Naquela época, você também não dormia bem. Tinha sonhos ruins, por mais que eu tentasse espantá-los com minhas histórias. Eu estava justamente pegando minhas ferramentas na oficina quando alguém bateu na porta, baixinho, quase furtivamente. Daquela vez, Dedo Empoeirado também surgiu de repente da escuridão, como fez há quatro dias, quando voltou a aparecer na frente da nossa casa. Dá para acreditar que só faz quatro dias? Quando ele reapareceu naquela noite, tive a impressão de que ele não comia havia muito tempo, estava magro como um gato de rua, com os olhos completamente turvos.  “Mande-me de volta”, ele balbuciou.
“Mande-me de volta, por favor! Este mundo está me matando. Ele é muito rápido, muito cheio e muito barulhento. Se eu não morrer de saudades, vou morrer de fome. Não sei do que viver. Não sei absolutamente nada. Sou como um peixe fora d’água.” Ele custava a acreditar que eu não podia mandá-lo de volta. Ele quis ver o livro, quis tentar ele mesmo, embora mal soubesse ler, mas naturalmente eu não podia lhe dar o livro.
Teria sido como se eu jogasse fora a  última coisa que ainda possuía de sua mãe. Felizmente, eu o havia escondido muito bem. Deixei Dedo Empoeirado dormir no sofá e, quando desci do quarto no dia seguinte, ele ainda estava remexendo as estantes. Nos dois dias seguintes ele apareceu de novo e começou a andar atrás de nós, me seguindo para onde quer que eu fosse, até que não agüentei mais e fugi com você no meio da noite. Depois disso, nunca mais o vi. Até quatro dias atrás.
Meggie olhou para ele.
— Você ainda tem pena dele — ela disse.
Mo ficou calado.
— Às vezes — ele disse finalmente. Ouvindo isso Elinor bufou, cheia de desprezo.
— Você é mais louco do que eu pensava — ela disse.
— Esse cretino é o culpado por estarmos neste buraco, por causa dele talvez cortem o nosso pescoço, e você ainda tem pena dele?
Mo sacudiu os ombros e olhou para o teto, onde algumas traças voavam ao redor da lâmpada.
— Capricórnio deve ter prometido a Dedo Empoeirado que o faria voltar — ele disse. — Ele percebeu o que eu não percebi: que uma promessa dessas convenceria Dedo
Empoeirado a fazer qualquer coisa. Voltar para a própria história é só o que ele deseja. Ele nem sequer pergunta se a história termina bem para ele!
— Bem, na vida real também é assim — observou Elinor com uma expressão melancólica. — Ninguém sabe se a coisa vai dar certo. No nosso caso, tudo leva a crer que o final não será nada bom.
Meggie estava sentada com os braços em volta das pernas, o rosto apoiado nos joelhos, o olhar perdido nas paredes sujas. Ela via diante de si o H, o H no qual a marta de chifres estava sentada, e tinha a sensação de que sua mãe olhava para ela de trás daquela grande letra maiúscula. Sua mãe, como ela conhecia pela foto desbotada que ficava debaixo do travesseiro de Mo. Então ela não havia ido embora. Como estaria lá naquele outro mundo? Ela ainda se lembrava da filha? Ou Meggie e Mo também eram para ela somente uma imagem meio apagada? Ela também tinha saudades de seu próprio mundo, como Dedo Empoeirado?
E Capricórnio, tinha saudades? Era isso o que ele queria de Mo?Que ele o fizesse voltar? O que aconteceria quando Capricórnio notasse que Mo não tinha a menor idéia de como fazer isso? Meggie sentiu um calafrio.
— Parece que agora Capricórnio tem um outro leitor — prosseguiu Mo, como se tivesse lido os pensamentos de
Meggie. — Basta me falou dele, provavelmente para deixar claro que não sou de todo indispensável. Parece que ele tirou de um livro, diversos ajudantes úteis para Capricórnio.
— Ah, é? Então o que ele quer de você? — Elinor levantou-se ofegante e esfregou os quadris com um gemido. — Não estou entendendo mais nada. Apenas espero que tudo isto seja um desses sonhos dos quais a gente acorda com torcicolo e um gosto ruim na boca.
Meggie tinha suas dúvidas de que Elinor realmente tivesse essa esperança. A palha úmida sobre a qual eles estavam sentados parecia muito real, assim como a parede fria em suas costas. Ela se encostou novamente no ombro de Mo e fechou os olhos. Lamentava ter lido tão pouco de Coração de tinta. Ela nada sabia sobre a história na qual sua mãe desaparecera. Conhecia apenas as histórias de Mo, todas as histórias que ele havia contado sobre o que mantinha sua mãe longe deles nos anos em que ficaram sozinhos, histórias de aventuras que ela vivia em países longínquos, sobre inimigos terríveis que impediam seu regresso e histórias sobre um baú que ela enchia só para Meggie, colocando dentro dele, em cada malfadado lugar por onde passava, algo novo e absolutamente maravilhoso.
— Mo? — ela perguntou. — Você acha que ela está gostando de estar nessa história?
Mo demorou para responder.
— Das fadas com certeza está gostando — ele disse finalmente —, embora sejam criaturinhas temperamentais. E os duendes, pelo que conheço de sua mãe, devem estar sendo alimentados com leite por ela. Sim, acho que dessa parte ela está gostando...— E... de que parte ela não está gostando? — Meggie olhou para ele preocupada.
Mo hesitou.
— Do mal  — ele disse finalmente.  — Acontecem muitas coisas ruins nesse livro, e ela não sabe que tudo termina razoavelmente bem, afinal nunca li a história para ela até o fim... Disso ela não deve estar gostando.
— Não, não está mesmo — disse Elinor. — Mas como você sabe que a história não mudou? Afinal de contas, você tirou dela Capricórnio e o seu amigo da navalha. E os dois agora estão ocupados em pegar no nosso pé.
— É verdade — disse Mo. — Mas, mesmo assim, acho que eles ainda estão no livro também! Acredite, eu já o li muitas vezes desde que eles saíram. A história continua tratando deles: de Dedo Empoeirado, Basta e Capricórnio. Isso não significa que tudo permaneceu como estava? Que Capricórnio ainda está lá, e que nós aqui nos defrontamos apenas com a sombra dele?
— Para uma sombra, ele é bastante assustador — disse Elinor.
— Sim, é verdade — disse Mo. Ele suspirou. — Talvez tudo tenha se alterado. Talvez atrás da história impressa haja uma outra, muito maior, que se modifica como acontece no nosso mundo. E talvez as letras não nos revelem mais do que aquilo que vemos quando espiamos pelo buraco de uma fechadura. Talvez elas sejam somente a tampa de uma panela que contém muitas coisas além das que podemos ler.
Elinor deu um gemido.
— Pelo amor de Deus, Mortimer! — ela disse. — Pare com isso, estou ficando com dor de cabeça.
— Acredite, eu também fiquei quando comecei a pensar sobre isso — respondeu Mo.
Depois disso os três se calaram, e continuaram assim por um bom tempo, cada qual preso aos seus próprios pensamentos. Elinor foi a primeira a falar novamente, mas soou quase como se ela falasse consigo mesma.
— Meu Deus do céu — ela murmurou enquanto descalçava os sapatos. — Quando penso em quantas vezes desejei entrar em um dos meus livros favoritos! Mas o bom dos livros  é justamente isto: podemos fechá-los quando quisermos.
Gemendo, ela mexeu os dedos dos pés e começou a andar de um lado para o outro. Meggie teve que conter o riso.
Elinor estava muito engraçada, mancando com os pés doloridos da parede para a porta e vice-versa, para lá e para cá, como um brinquedo de corda.
— Elinor, você está me deixando maluco! Sente-se de novo — disse Mo.
— Não sento! — ela esbravejou. — Se sentar, eu é que vou ficar maluca.
Mo fez uma careta e pôs o braço no ombro de Meggie.
— Bem, deixe ela andar! — ele cochichou no ouvido da filha. — Quando ela tiver percorrido uns dez quilômetros, vai cair de canseira. Mas você deveria dormir agora. Deite na minha cama. Ela não é tão ruim quanto parece. Se você fechar bem os olhos, pode imaginar que é o porquinho Wilbur, deitado confortavelmente no seu estábulo...
— ...ou Wart, dormindo na relva com os gansos selvagens. Meggie não conseguiu reprimir um bocejo. Quantas vezes ela havia jogado aquele jogo com o pai!  “Que livro isso lembra, que livro esquecemos? Ah, este! Fazia tempo que eu não pensava nele...!” Sonolenta, Meggie se estendeu sobre a palha pinicante.
Mo tirou o pulôver e cobriu a filha com ele.
— De qualquer forma, você precisa de um cobertor —ele disse. — Mesmo sendo um porco ou um ganso.
— Mas você vai ficar com frio.
— Que nada.
— E onde vocês vão dormir, você e Elinor?Meggie bocejou mais uma vez. Ela não tinha notado como estava cansada.
Elinor continuava mancando de uma parede para a outra.
— Quem falou em dormir?  — ela disse.  — Vamos montar guarda, é claro.
— Está bem — murmurou Meggie, e enfiou o nariz no pulôver de Mo.
“Ele está comigo de novo”, ela pensou, enquanto o sono deixava pesadas as suas pálpebras.  “Todo o resto não importa.” E então ela pensou: “Se pelo menos eu pudesse ler o livro”. Mas Coração de tinta estava com Capricórnio, e ela não queria pensar nele, senão o sono não chegaria nunca. Nunca...
Mais tarde, ela não soube dizer por quanto tempo dormira. Talvez seus pés frios a tivessem despertado, ou talvez fosse a palha que pinicava a sua cabeça. Seu relógio de pulso marcava quatro horas. Nada naquele quarto sem janelas  revelava ser dia ou noite, mas Meggie não conseguia imaginar que a noite já tivesse acabado. Mo estava sentado com Elinor ao lado da porta. Os dois pareciam cansados, cansados e preocupados, e conversavam aos sussurros.
— Sim, eles ainda acham que eu sou um mago — dizia Mo. — Eles me deram este nome ridículo: Língua Encantada. E Capricórnio possui a firme convicção de que sou capaz de fazer tudo de novo, a qualquer momento e com qualquer livro.
— E... você é capaz?  — perguntou Elinor.  — Você ainda não contou tudo, não é?
Mo demorou algum tempo para responder.
— Não! — ele disse finalmente. — Porque não quero que Meggie também ache que eu sou mago ou coisa parecida.
— Então já aconteceu muitas vezes de você... ler coisas?
Mo fez que sim.
— Sempre gostei de ler em voz alta, desde menino, e uma vez, quando estava lendo Tom Sawyer para um amigo, de repente apareceu um gato morto no tapete, duro como uma tábua. Somente mais tarde notei que, em troca, um dos meus bichos de pelúcia desaparecera. Acho que o nosso coração quase parou, e juramos um ao outro, selando o juramento com sangue como Tom e Huck, que jamais contaríamos a ninguém sobre o gato. Depois disso tentei várias vezes em segredo, sem testemunhas, mas parecia nunca acontecer quando eu queria. Na verdade parecia não haver uma regra, quando muito a de que só acontecia com histórias das quais eu gostava. Naturalmente, guardei tudo o que saía, com exceção da nabobrinha que O bom gigante amigo me deu de presente.
Ela tinha um fedor insuportável. Quando Meggie ainda era bem pequena, às vezes saíam algumas coisas dos seus livros de figuras, uma pena, um sapatinho minúsculo... sempre colocamos as coisas no seu baú de livros, mas nunca lhe contei de onde elas vinham. Provavelmente ela nunca mais teria pegado um livro, com medo de que a serpente gigante com dor de dente ou outro ser ameaçador pudesse sair de dentro dele! Mas nunca, Elinor, de fato nunca havia saído nada vivo de um livro. Até aquela noite.Mo examinou as palmas das mãos, como se visse ali todas as coisas que sua voz havia tirado dos livros.
— Por que não podia ser alguém simpático, já que tinha que acontecer, alguém como... o rei Babar, o elefante?
Meggie teria ficado encantada.
“Oh, sim, com certeza eu teria ficado encantada”, pensou Meggie. Ela se lembrou do sapatinho e da pena. Era verde-esmeralda, como as penas de Polinésia, o papagaio do Dr. Dolittle.
— Pois é, saiba que poderia ter sido muito pior.
Isso era típico de Elinor. Como se ficar longe do mundo, aprisionado numa casa em ruínas, cercado por homens vestidos de preto com cara de abutre e faca no cinto não fosse ruim o suficiente. Mas pelo jeito Elinor era mesmo capaz de imaginar coisa pior.— Imagine só se de repente Long John Silver tivesse aparecido na sua sala e atacado você com a sua muleta mortífera — ela sussurrou. — Acho que eu prefiro esse Capricórnio. Sabe de uma coisa? Quando tivermos voltado para casa, digo, para a minha casa, vou lhe dar um desses livros simpáticos: O ursinho Pooh, por exemplo, ou talvez Onde vivem os monstros.  Contra um monstro desses, eu não teria absolutamente nada a objetar. Deixarei a minha melhor poltrona para você, farei um café e então você lerá para mim. Que tal?
Mo riu baixinho, e por um momento o seu rosto não pareceu tão carregado de preocupações.
— Não, Elinor. Não farei nada disso. Embora soe muito atraente. Jurei a mim mesmo nunca mais ler em voz alta. Sabe lá quem desapareceria da próxima vez, e até mesmo na história do ursinho Pooh pode existir algum malfeitor no qual não reparamos. E se eu tirar o próprio Pooh do livro? E como ele iria fazer por aqui sem os seus amigos e sem o Bosque dos Cem Acres? Seu coração mole se partiria, assim como o de Dedo Empoeirado.
— Mas que coisa! — Elinor fez um gesto de impaciência. — Quantas vezes vou ter que lhe dizer que esse cretino não tem coração? Mas tudo bem. Vamos a uma outra pergunta cuja resposta me interessa muito.Elinor baixou a voz, e Meggie precisou fazer um grande esforço para continuar ouvindo.
— Quem era afinal esse Capricórnio na sua história? Provavelmente o vilão, é claro, mas será que eu poderia saber um pouco mais sobre ele?Sim, Meggie também gostaria de saber mais sobre Capricórnio, mas Mo de repente ficou bastante lacônico.
— Quanto menos vocês souberem sobre ele, melhor — ele se limitou a dizer.
E não disse mais nada. Elinor insistiu ainda por um tempo, mas ele se esquivou de todas as perguntas. Mo parecia não ter vontade alguma de falar sobre Capricórnio. Seus pensamentos estavam em outro lugar, Meggie via isso no rosto dele. Em algum momento Elinor adormeceu, encolhida no chão frio, como se quisesse aquecer a si mesma. Mas Mo continuou ali sentado, com as costas apoiadas na parede.
O rosto dele observou Meggie enquanto ela adormecia novamente. Ele apareceu nos sonhos dela como uma lua escura. A lua abria a boca e de dentro dela saíam figuras grossas, finas, grandes, pequenas, uma longa seqüência delas. No nariz da lua, porém, como uma simples sombra, dançava a figura de uma mulher. E de repente a lua começou a sorrir.
17. O traidor traído
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Era um prazer especial ver como algo se consumia, como enegrecia e se transformava.  [...] Ele gostaria de esquentar um espeto de marshmallow no calor da fornalha, enquanto os livros morriam, como o bater das asas de pombo, nas chamas diante da casa. Enquanto os livros subiam em redemoinhos de fagulhas e eram levados por um vento preto carregado de fumaça.
Ray Bradbury, Fahrenheit 451
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Em algum momento, pouco antes de romper o dia, aquela lâmpada que com uma luz pálida os ajudara a atravessar a noite começou a piscar. Mo e Elinor dormiam, ao lado da porta trancada, mas Meggie estava deitada de olhos abertos no escuro, e sentia o medo rastejar das paredes frias em sua direção. Ela escutou a respiração de Elinor e de seu pai, e tudo o que desejou foi uma vela  — e um livro, que mantivesse o medo afastado. Ele parecia estar em toda parte, um ser mau e sem corpo que apenas esperara a lâmpada se apagar e agora se esgueirava na escuridão para apanhá-la com seus braços frios.
Meggie sentou-se, respirou fundo e engatinhou até Mo. Ela se encolheu ao lado do pai, como fazia antigamente, quando era pequena, e ficou esperando que a luz da manhã se infiltrasse pela porta.
Com a luz, vieram dois dos homens de Capricórnio.
Mo acabara de se sentar ainda com sono, e Elinor esfregava as costas doloridas sem parar de xingar. Então eles ouviram os passos.
Basta não estava com eles. Um dos homens, grande como um armário, tinha o rosto achatado, como se um gigante o tivesse esmagado com o polegar. O segundo, baixo e magro, com um cavanhaque no queixo recuado, mexia o tempo todo em sua espingarda e os examinava com um olhar hostil, como se estivesse com muita vontade de fuzilar os três ali mesmo naquele instante.
— Andem logo. Para fora! — ele vociferou enquanto os três cambaleavam para a rua, ofuscados pela luz clara do dia.
Meggie tentou recordar se também ouvira aquela voz na biblioteca de Elinor, mas não tinha certeza. Capricórnio possuía muitos homens.
Era uma manhã quente e bonita. O céu estendia-se límpido e azul sobre a aldeia de Capricórnio. Pintassilgos cantavam entre algumas roseiras abandonadas que cresciam perto das velhas casas, como se, afora alguns gatos famintos, nada houvesse de ameaçador no mundo. Mo segurou Meggie pelo braço quando eles saíram. Elinor ainda precisou calçar os sapatos e, quando o barba-de-bode quis arrastá-la  à força para fora, pois ela não estava indo depressa como ele queria, empurrou a mão dele de volta e cobriu-o com uma avalanche de palavrões. Isso só fez os dois homens rirem, ao que Elinor apertou os lábios e resolveu não fazer nada além de lançar alguns olhares hostis.
Os homens de Capricórnio estavam com pressa. Eles conduziram os três de volta pelo mesmo caminho que Basta havia feito com Meggie e Elinor na noite anterior. O cara-achatada ia na frente, o barba-de-bode atrás deles, com a espingarda engatilhada. Ele era manco de uma perna, e a lançava para a frente a toda hora, como se quisesse provar que apesar de tudo era mais rápido que os outros.
Mesmo durante o dia, a aldeia de Capricórnio parecia estranhamente abandonada, e isso não se devia apenas às muitas casas vazias, que à luz da manhã pareciam ainda mais tristes. Quase não havia vivalma nas ruazinhas estreitas, apenas alguns dos casacos-pretos, como Meggie os batizara secretamente, ou então um ou outro garoto franzino que seguia esses homens feito um cachorrinho. Por duas vezes, Meggie viu uma mulher passar apressada por eles. Não havia crianças brincando ou andando atrás de suas mães, havia apenas gatos.
Pretos, brancos, ferrugem, malhados, listrados, em cima de muros, nos batentes das portas, em cima dos telhados.
Estava tudo quieto nas ruas da aldeia de Capricórnio, e o que acontecia parecia acontecer às ocultas. Somente os homens com suas espingardas não se escondiam. Eles vagavam pelas esquinas e portais, cochichavam e apoiavam-se na espingarda com uma pose apaixonada. Não havia flores na frente das casas, como Meggie vira nas cidadezinhas da costa.
Em vez disso, havia casas com telhados desmoronados e touceiras de plantas agrestes que assomavam dos buracos vazios das janelas. Algumas tinham um cheiro tão forte que Meggie sentiu tonturas.
Quando chegaram  à praça em frente  à igreja, Meggie pensou que os dois homens fossem levá-los mais uma vez para a casa de Capricórnio, mas a casa ficou à esquerda e eles foram conduzidos diretamente para o grande portal da igreja.
A torre do templo parecia ameaçada, como se o vento e as intempéries já viessem corroendo suas paredes por muito tempo. O sino suspenso sob o telhado pontudo estava enferrujado, e, menos de um metro abaixo, alguma semente trazida pelo vento dera origem a uma  árvore franzina, que agora se agarrava às pedras cor de areia lá em cima.
No portal havia olhos pintados, olhos estreitos e vermelhos, e na entrada, um de cada lado, dois horríveis diabos de pedra, da altura de uma pessoa, que arreganhavam os dentes como cães ferozes.
— Bem-vindos à casa do Diabo!  — disse o barba-de-bode, fazendo uma mesura debochada antes de abrir o portal.
— Deixe disso, Cockerell — repreendeu-o o cara-achatada, e cuspiu três vezes no piso empoeirado. — Isso dá azar.
O barba-de-bode apenas riu e deu uma palmadinha na barriga gorda de um dos diabos de pedra.
— Ah, que é isso, Nariz Chato! Você está quase tão mal quanto Basta. Daqui a pouco, vai começar a andar com uma pata de coelho fedorenta pendurada no pescoço.
— Sou precavido, só isso — resmungou Nariz Chato.
— Dizem cada coisa por ai.
— Dizem. E quem inventou as histórias? Nós, seu paspalho!
— Alguma coisa já existia antes.
— Aconteça o que for — sussurrou Mo para Elinor e
Meggie, enquanto os dois homens discutiam —, deixem que eu fale. Uma língua afiada pode ser perigosa aqui. Basta é rápido para sacar sua navalha, e ele faz uso dela, acreditem.
— Não é só Basta que tem uma navalha aqui, Língua Encantada! — disse Cockerell, e empurrou Mo para dentro da igreja. Meggie foi depressa atrás dele.
A igreja estava fria e escura. A luz da manhã penetrava apenas através das poucas janelas que havia no alto e pintava manchas pálidas nas paredes e colunas. Em algum momento elas deviam ter sido cinzentas como as pedras do chão, mas agora havia uma única cor na igreja de Capricórnio. As paredes, as colunas, até mesmo o teto, tudo estava pintado de vermelho, de um vermelho carregado, como carne crua ou sangue seco, e por um momento Meggie teve a sensação de penetrar nas entranhas de um monstro.
Num canto, ao lado da entrada, havia uma estátua de anjo. Uma asa estava quebrada e, na outra, um dos homens de Capricórnio pendurara o paletó preto. Na cabeça haviam sido colocados dois chifres demoníacos, como os que as crianças costumam usar no Carnaval, e no meio deles ainda pairava a auréola do anjo. Provavelmente, em alguma época ele ficava no pedestal de pedra que havia diante da primeira coluna, porém teve que ceder o lugar a uma outra figura. Seu rosto, magro e pálido como cera, olhava entediado para Meggie. O criador daquela estátua parecia não entender muito de seu ofício.
O rosto estava pintado como o de um boneco de plástico, com lábios de um vermelho estranho e olhos azuis que nada possuíam do horror presente nos olhos incolores com os quais o verdadeiro Capricórnio examinava o mundo. Em compensação, a estátua tinha pelo menos o dobro da altura de seu modelo, e quem passava por ela tinha que deitar a cabeça para trás se quisesse enxergar seu rosto pálido.
— Isso é permitido, Mo? — Meggie perguntou baixinho. — Exibir uma estátua de si mesmo numa igreja?
— Oh, esse é um costume muito antigo!  — Elinor sussurrou para ela. — As estátuas nas igrejas raramente são de santos. É que a maioria dos santos não podia pagar escultores. Na catedral de...
Cockerell deu um empurrão tão violento em Elinor que ela tropeçou.
— Andem! — ele rosnou. — E da próxima vez, façam uma reverência quando passarem na frente dele, entendido?
— Uma reverência? — Elinor quis parar, mas Mo puxou-a bem depressa.
— Mas como é que eu vou levar a sério um disparate desses?! — esbravejou Elinor.
— Se você não ficar quieta — sussurrou Mo em resposta — vai sentir na pele o quanto tudo aqui é levado a sério, entendeu?
Elinor olhou para o arranhão na testa de Mo e calou-se.
Na igreja de Capricórnio não havia assentos como os que Meggie vira em outras igrejas, apenas duas mesas de madeira com bancos compridos, uma de cada lado da nave central. Havia pratos usados em cima delas, canecas sujas de café, tábuas com restos de queijo, facas, fatias de salame, cestas de pães vazias. Algumas mulheres estavam justamente ocupadas em recolher tudo. Elas apenas ergueram brevemente o olhar quando Cockerell e Nariz Chato passaram com seus três prisioneiros, e logo se debruçaram de novo sobre seu trabalho.
Para Meggie, elas lembravam pássaros com a cabeça encolhida entre os ombros, se protegendo de pancadas.
Não faltavam somente assentos na igreja de Capricórnio, o altar também havia desaparecido. Ainda se podia ver onde ele ficava antes. Agora havia apenas uma cadeira no final da escada que antigamente conduzia ao altar, uma pesada peça de madeira, estofada em vermelho, com entalhes grosseiros nas pernas e nos braços. Quatro largos degraus levavam até essa cadeira, Meggie os contara por algum motivo. Estavam cobertos por um tapete negro e, no último deles, a poucos metros da cadeira, com aqueles cabelos ruivos desgrenhados como sempre, Dedo Empoeirado estava sentado. Com um ar ausente, fazia Gwin andar em seu braço estendido. Quando Meggie chegou com Mo e Elinor pela nave central, ele ergueu rapidamente a cabeça. Gwin subiu em seu ombro e arreganhou os pequenos dentes, afiados como cacos de vidro, como se tivesse notado a repulsa com que Meggie olhava para o seu dono. Agora ela sabia por que a marta tinha chifres e por que aparecia um bicho igual a ela numa página do livro. Agora ela sabia tudo: por que Dedo Empoeirado  achava aquele mundo rápido e barulhento demais, por que ele não entendia nada de automóveis e, algumas vezes, dava a impressão de estar em outro lugar. Mas ela não sentia pena dele, como Mo. Seu rosto marcado por cicatrizes apenas a lembrava de que ele a enganara, atraindo-a como o flautista de Hamelin. De como ele zombara dela com seu fogo, com suas bolinhas coloridas: “Venha, Meggie... por aqui, Meggie... confie em mim, Meggie”. Ela teve vontade de subir os degraus e dar uma bofetada na boca dele, na boca mentirosa dele.Dedo Empoeirado pareceu adivinhar os  pensamentos de Meggie. Ele desviou o olhar, e também não encarou Mo nem Elinor. Em vez disso, pôs a mão no bolso e pegou uma caixa de fósforos. Com um ar distraído, tirou um palito da caixa, acendeu-o e, absorto em seus pensamentos, ficou observando a chama e passando o dedo por ela. Quase como uma carícia, até chamuscar a ponta do dedo.
Meggie desviou o olhar. Ela não queria ver, queria esquecer que ele estava ali. À sua esquerda, ao pé da escada, havia dois tonéis de ferro, marrons de ferrugem, e dentro deles havia lenha. Achas claras, recém-cortadas, cuidadosamente empilhadas. Meggie estava se perguntando para que serviria aquela lenha quando novamente ecoaram passos na igreja.
Basta vinha pela nave central, segurando um galão de gasolina.
Quando passou por Cockerell e Nariz Chato, os dois abriram caminho, mal-humorados.
— Ora, ora, Dedo Podre está brincando de novo com
o seu melhor amigo? — ele perguntou enquanto subia os degraus.
Dedo Empoeirado abaixou o palito de fósforo e levantou-se.
— Tome — disse Basta, pondo o galão de gasolina a seus pés. — Mais um brinquedinho. Faça fogo para nós. É o que você mais gosta de fazer.
Dedo Empoeirado jogou o palito de fósforo queimado no chão e acendeu um outro.
— E você? — ele perguntou baixinho enquanto segurava o palito aceso diante do rosto de Basta. — Você ainda tem medo dele, não é mesmo?
Basta deu um tapa em sua mão e o palito caiu no assoalho.
— Oh, você não deveria fazer isso!  — disse Dedo Empoeirado. — Isso dá azar. Você sabe como o fogo se ofende fácil.
Por um momento, Meggie pensou que Basta fosse bater nele, e não parecia ser a  única a pensar assim. Todos os olhos estavam voltados para os dois. Mas alguma coisa parecia proteger Dedo Empoeirado.Talvez fosse mesmo o fogo.
— Você tem sorte de eu ter acabado de limpar a minha navalha! — disse Basta entre os dentes. — Agora, outra brincadeirinha dessas e você vai ganhar mais uns belos riscos nessa sua cara horrorosa. E a sua marta vai virar uma estola.
Gwin emitiu um rosnado, baixo mas ameaçador, e  aconchegou-se na nuca de Dedo Empoeirado. Ele abaixou-se, recolheu o palito de fósforo apagado e o pôs de volta na caixa.
— Sim, com certeza você se divertiria — ele disse, ainda sem olhar para Basta. — Para que você quer que eu acenda o fogo?
— Para quê? Acenda e pronto. Depois cuidaremos de alimentá-lo. Mas que seja um fogo grande e voraz, e não manso como o fogo com o qual você gosta de brincar.
Dedo Empoeirado pegou o galão e subiu os degraus lentamente. Ele mal chegara diante dos tonéis enferrujados quando o portal da igreja se abriu uma segunda vez.
Meggie virou-se no momento em que a pesada porta de madeira rangeu, e então viu Capricórnio aparecer entre as colunas vermelhas. Ele lançou um rápido olhar para sua própria estátua ao passar por ela, e entrou na nave com passos rápidos. Vestia um terno vermelho, no tom das paredes da igreja, apenas a camisa era preta — e a pena que trazia enfiada na lapela. Pelo menos meia dúzia de seus homens o seguiam, como corvos atrás de um papagaio. O eco de seus passos parecia chegar até o teto.
Meggie segurou a mão de Mo.
— Ah, nossos hóspedes já estão aqui — disse Capricórnio ao parar diante deles. — Dormiu bem, Língua Encantada?
Seus lábios tinham uma forma estranha, eram ligeiramente arqueados, quase como os de uma mulher; ao falar, ele passava o dedo mínimo sobre eles de vez em quando, como se precisasse esticá-los. Eram tão descorados quanto o resto de seu rosto.
— Não foi gentil da minha parte enviar a menina logo ontem à noite? Inicialmente eu pretendia mostrá-la a você só hoje, como surpresa, mas então eu pensei: “Capricórnio, acho que você deve alguma coisa à menina, já que ela trouxe por livre e espontânea vontade aquilo que você buscava havia tanto tempo”.
Ele tinha Coração de tinta na mão. Meggie notou como o olhar de Mo pousou no livro. Capricórnio era alto, mas Mo o sobrepujava em alguns centímetros. Isso visivelmente desagradava a Capricórnio. Ele se mantinha aprumado, como se assim pudesse compensar a diferença.
— Deixe Elinor levar minha filha para casa  — disse
Mo. — Deixe que as duas partam e lerei para você tudo o que quiser.
O que ele estava dizendo? Perplexa, Meggie olhou para ele.
— Não — ela disse. — Não, Mo, eu não quero ir! Mas ninguém lhe deu atenção.
— Deixá-las ir? — Capricórnio voltou-se para os seus homens.  — Vocês ouviram isso? Por que eu deveria fazer uma loucura dessas, agora que elas já estão aqui?
Os homens riram, mas Capricórnio voltou-se novamente para Mo. — Você sabe tão bem quanto eu que, de  agora em diante, fará tudo o que eu quiser — ele disse. — Agora que ela está aqui, estou certo de que você vai deixar de ser teimoso e não vai mais nos negar uma demonstração de sua arte.
Mo apertou a mão de Meggie, tão forte que seus dedos doeram.
— E quanto a este livro — Capricórnio examinou Coração de tinta com um olhar de reprovação, como se o objeto tivesse mordido seus dedos pálidos  —,  este livro extremamente enfadonho, tolo e verborrágico, posso lhe assegurar que tenho a intenção de jamais deixar que me aprisionem novamente em sua história. Todas essas criaturas desnecessárias, essas fadas esvoaçantes com suas vozinhas estridentes, aquele tititi e bafafá por toda parte, o fedor de pêlo e de esterco, os mercados onde a gente tropeçava em duendes de pernas tortas, os gigantes que espantavam a caça com seus  pés de chumbo. Arvores sussurrantes, lagoas murmurantes. .. Não havia no mundo coisa alguma que não falasse! E aqueles caminhos lamacentos e intermináveis até a cidade mais próxima?
Se é que se podia chamar aquilo de cidade... e aquela cambada de príncipes com suas roupas finas em seus castelos, os camponeses fétidos, tão pobres que não se podia roubar nada deles, os vagabundos e os mendigos com seus cabelos infestados de bichos pestilentos... Eu já estava farto de todos eles. Capricórnio fez um sinal, e um de seus homens trouxe uma grande caixa de papelão. Pela forma como ele a carregava, devia ser muito pesada. Com um suspiro de alívio, ele a depositou no piso cinzento diante de Capricórnio. Capricórnio passou para Cockerell, que estava a seu lado, o livro que
Mo escondera dele por tanto tempo. Então abriu a caixa. Ela estava cheia de livros, até a borda.
— Foi muito trabalhoso encontrar todos eles — declarou Capricórnio enquanto punha a mão na caixa e tirava dois livros de dentro. — Por fora eles são diferentes, mas o conteúdo é o mesmo. Como essa história foi copiada em diversas línguas, a busca foi especialmente difícil. Aliás, é uma peculiaridade bastante inútil deste mundo, todas essas línguas diferentes. Isso era muito mais simples no nosso mundo, não é verdade, Dedo Empoeirado?
Dedo Empoeirado não respondeu. Estava ali com o galão de gasolina na mão, e olhava fixamente para a caixa. Capricórnio andou lentamente até ele e jogou os dois livros no tonel.
— O que vocês estão fazendo? — Dedo Empoeirado quis pegar os livros, mas Basta os empurrou de volta.— Os livros ficam onde estão — ele disse.
Dedo Empoeirado recuou e escondeu o galão nas costas, mas Basta arrancou-o das mãos dele.
— Parece que o nosso cuspidor de fogo quer dar a um outro a honra de fazer o fogo — ele disse em tom de deboche.
Dedo Empoeirado lançou-lhe um olhar cheio de ódio.
Então voltou-se novamente para os tonéis, dentro dos quais os homens de Capricórnio jogavam cada vez mais livros. Ao final, havia dezenas de exemplares de Coração de tinta sobre as pilhas de lenha, as páginas dobradas, as capas abertas como asas partidas.
— Sabe que outra coisa me deixava maluco no nosso antigo mundo, Dedo Empoeirado? — perguntou Capricórnio, enquanto tomava o galão de gasolina da mão de Basta. — A dificuldade de se fazer fogo. Para você era fácil, é claro, vocêaté podia falar com ele, provavelmente foi um daqueles duendes rabugentos quem lhe ensinou...mas para nós era um negócio complicado. A lenha estava sempre  úmida ou o vento entrava pela chaminé. Eu sei que você morre de saudades dos velhos tempos e sente falta dos seus amigos esvoaçantes e sussurrantes, mas eu não vou derramar uma lágrima por eles.
Este mundo é infinitamente mais bem equipado do que aquele com o qual tivemos que nos contentar durante anos e anos.
Dedo Empoeirado parecia não ouvir uma palavra do que Capricórnio lhe dizia. Seu olhar estava fixo na gasolina malcheirosa que se derramava sobre os livros. As páginas a sugavam avidamente, como se desejassem a sua própria destruição.
— De onde vieram todos eles?  — ele balbuciou.  —Você sempre me disse que só restava um exemplar, o de Língua Encantada.
— Sei, sei, eu lhe disse algumas coisas. — Capricórnio pôs a mão no bolso da calça. — Você é um sujeito tão ingênuo, Dedo Empoeirado. É divertido contar mentiras para você. A sua falta de malícia sempre me espantou, afinal de contas você próprio mente com grande habilidade. Mas você prefere acreditar no que quer, é isso. Bem, agora você pode acreditar em mim: estes aqui — ele encostou de leve  o dedo na pilha de livros ensopados — são de fato os últimos exemplares do nosso mundo de tinta preta. Basta e todos os outros levaram anos para encontrá-los em sebos e míseras bibliotecas de bairro.
Dedo Empoeirado olhava para os livros como alguém morrendo de sede olha para o último copo d’água.
— Mas você não pode queimá-los! — ele balbuciou. —Você prometeu que me levaria de volta se eu conseguisse o livro de Língua Encantada. Em troca eu lhe contei onde ele estava, trouxe a filha...
Capricórnio apenas sacudiu os ombros e pegou o livro da mão de Cockerell: o livro com capa verde-clara que Meggie e Elinor lhe entregaram de tão boa vontade. O livro que causara o rapto de Mo, e que fizera Dedo Empoeirado trair a todos.
— Eu também teria prometido buscar a lua no céu para você, se me fosse útil — disse Capricórnio enquanto, com um ar entediado, jogava  Coração de tinta  na pilha de seus semelhantes. — Gosto de fazer promessas, principalmente as que não posso cumprir.
Então ele tirou um isqueiro do bolso da calça. Dedo
Empoeirado queria pular em cima dele, tirar o isqueiro de sua mão, mas Capricórnio fez um sinal para Nariz Chato.
Nariz Chato era tão alto e corpulento que, ao seu lado,
Dedo Empoeirado quase parecia uma criança. E foi exatamente dessa maneira que  ele o  agarrou: como uma criança malcriada. Com o pêlo arrepiado, Gwin pulou do ombro de
Dedo Empoeirado. Um dos homens de Capricórnio começou a persegui-lo quando ele passou entre suas pernas, mas a marta conseguiu escapar e desapareceu atrás das colunas vermelhas. Os demais homens ficaram ali, rindo enquanto Dedo Empoeirado tentava desesperadamente livrar-se das garras inflexíveis de Nariz Chato. Nariz Chato divertia-se em deixá-lo se aproximar dos livros encharcados de gasolina, mas sóo necessário para que pudesse tocar com os dedos os que estavam por cima.
Meggie sentiu-se muito mal vendo toda aquela maldade, e Mo deu um passo  à frente, como se quisesse ajudar Dedo
Empoeirado, mas Basta se pôs no seu caminho. De repente ele estava com a sua navalha na mão. A lâmina era estreita e brilhante, e parecia terrivelmente afiada quando ele a encostou no pescoço de Mo.
Elinor deu um grito e cobriu Basta com uma avalanche de palavrões que Meggie nunca ouvira antes. Ela não conseguia se mexer, e ficou como que petrificada olhando para a lâmina no pescoço do pai.
— Deixe-me ficar com um, Capricórnio, somente um!
— Mo balbuciou, e só então Meggie compreendeu que ele não queria ajudar Dedo Empoeirado, mas que o que importava para ele era o livro. — Prometo que não pronunciarei uma só frase em que apareça o seu nome.
— Deixá-lo ficar com um? Você ficou louco? Você é a última pessoa a quem eu daria um exemplar  — respondeu
Capricórnio. — Quem me garante que um dia você não perderia o controle da sua língua, me fazendo voltar para dentro dessa história ridícula? Não, obrigado!
— Nada disso! — gritou Mo. — Eu não poderia fazê-lo voltar, mesmo que quisesse. Quantas vezes vou ter que repetir? Pergunte a Dedo Empoeirado, já expliquei isso a ele mais de mil vezes. Eu mesmo não entendo como e quando a coisa acontece, acredite em mim de uma vez por todas!
A resposta de Capricórnio foi apenas um sorriso.
— Sinto muito, Língua Encantada, não acredito em ninguém por princípio, você já deveria saber. Somos todos mentirosos quando nos convém.
Com essas palavras ele acendeu o isqueiro e encostou a chama num dos livros. A gasolina deixara as páginas quase transparentes, parecendo pergaminhos, e elas pegaram fogo imediatamente. Até mesmo a capa, dura e coberta de tecido, queimou com a maior facilidade. O tecido ficou preto sob as labaredas vorazes.
Quando o terceiro livro pegou fogo, Dedo Empoeirado deu um pontapé tão forte no joelho de Nariz Chato que ele o soltou com um grito de dor. Ágil como Gwin, Dedo Empoeirado escapou daqueles braços fortes e precipitou-se em direção aos tonéis. Sem hesitar, ele pôs a mão nas chamas, mas o livro que trouxe para fora já ardia como uma tocha. Dedo Empoeirado deixou-o cair no chão e, desta vez com a outra mão, tentou resgatar outro livro do fogo, mas Nariz  Chato agarrou-o pelo colarinho e sacudiu-o de forma tão brutal que ele perdeu o fôlego.
— Vejam só este louco!  — zombou Basta enquanto Dedo Empoeirado olhava para as próprias mãos com o rosto desfigurado pela dor.  — Alguém aqui pode me explicar do que ele tem tanta saudade? Será que é daquelas fadas horrorosas que ficavam babando quando ele se exibia nos mercados com as bolas dele? Ou talvez dos buracos nojentos onde se escondia com os outros vagabundos? Diabos, o cheiro ali era ainda pior do que dentro da mochila em que ele carrega essa marta fedorenta.
Os homens de Capricórnio riam, enquanto os livros lentamente se transformavam em cinzas. A igreja vazia ainda cheirava a gasolina, um cheiro tão penetrante que Meggie teve que tossir. Mo pôs o braço no ombro dela num gesto protetor, como se não fosse ele que Basta tivesse ameaçado, e sim ela. Mas e o próprio Mo, quem poderia protegê-lo?
Elinor olhou preocupada para o pescoço de Mo, como se temendo que Basta tivesse deixado marcas de sangue nele.
— Esses sujeitos são totalmente loucos! — ela sussurrou. — Você deve conhecer a frase:  “Onde se queimam livros, em breve passarão a queimar pessoas”. E se formos nós os próximos a cair numa pilha de lenha como essa?
Basta olhou para Elinor, como se tivesse ouvido o queela dissera. Lançou-lhe um olhar zombeteiro e beijou a lâmina de sua navalha. Elinor emudeceu, parecia que tinha engolido a língua.
Capricórnio havia tirado do bolso da calça um lenço impecavelmente branco como a neve. Limpou as mãos com esmero, como se quisesse remover de seus dedos até mesmo as lembranças de Coração de tinta.
— Muito bem, parece que isso finalmente está liquidado — observou, lançando um último olhar para as cinzas fumegantes.
Então, com um ar de satisfação consigo mesmo, ele subiu os degraus até a cadeira que tomara o lugar do altar. Com um suspiro profundo, deixou-se cair sobre o estofado vermelho desbotado.
— Dedo Empoeirado, vá cuidar das suas mãos com Mortola na cozinha! — ele ordenou com voz entediada. — Sem as suas mãos, você é completamente inútil.
Dedo Empoeirado lançou um olhar demorado para Mo antes de obedecer. Cabisbaixo e com o andar inseguro, ele passou pelos homens de Capricórnio. O caminho até o portal parecia interminavelmente longo. Por um breve instante, quando Dedo Empoeirado o abriu, a luz clara do sol brilhou dentro da igreja. Então as portas se fecharam atrás dele, e Meggie, Mo e Elinor estavam sozinhos com Capricórnio e seus homens, e com o cheiro de gasolina e de papel queimado.
— Agora vamos a você, Língua Encantada!  — disse Capricórnio esticando as pernas. Ele usava sapatos pretos.
Com grande prazer, observou o couro lustroso e tirou um pedaço de papel queimado da ponta do sapato. — Até agora, eu e Basta e o lastimável Dedo Empoeirado somos a  única prova de que você é capaz de extrair coisas realmente espantosas de um amontoado de letras pretas. Você mesmo parece não confiar muito no seu dom, se dermos crédito às suas pa-lavras, o que, como eu já disse, não é o meu caso. Ao contrá-rio, acredito que você é um mestre da sua arte, e mal posso esperar que finalmente nos forneça algumas amostras da sua capacidade. Cockerell! Onde está o leitor? Eu não disse para trazê-lo aqui?
Cockerell passou a mão no cavanhaque com um certo nervosismo.
— Ele ainda estava escolhendo os livros — balbuciou.
— Mas vou buscá-lo agora mesmo.
Cockerell fez uma mesura apressada e saiu arrastando a perna.
Capricórnio começou a tamborilar os dedos no braço da cadeira.
— Como você já deve ter ouvido falar, precisei recorrer aos serviços de um outro leitor durante o tempo em que vocêconseguiu se manter escondido de mim — ele disse para Mo.
— Faz cinco anos que o encontrei, mas ele é um tremendo incompetente. É só olhar para a cara de Nariz Chato.
Nariz Chato abaixou a cabeça encabulado, quando todos os olhares se voltaram para ele.
— A perna manca de Cockerell também é obra dele. E você precisava ter visto a garota que ele tirou para mim de um dos livros dele. Eu tinha pesadelos só de olhar para ela. No final, passei a deixá-lo ler apenas quando queria me divertir com as aberrações dele, e comecei a procurar os meus homens neste mundo mesmo. O que eu fiz foi pegá-los enquanto ainda eram jovens. Em quase toda aldeia existe um menino solitário que gosta de brincar com fogo. Ele examinou as unhas de suas mãos com um sorriso nos lábios, como um gato que contempla suas garras satisfeito.
— Eu incumbi o leitor de procurar os livros certos para você. De livros o pobre-diabo entende mesmo, vive enfiado neles como esses vermes brancos que se alimentam de papel.
— Ah, é? E o que você quer que eu extraia dos seus livros? — A voz de Mo soou irritada. — Quem sabe alguns monstros, algumas aberrações humanas como aquela?
E Mo apontou na direção de Basta.
— Pelo amor de Deus, não lhe dê essas idéias! — sussurrou Elinor, olhando preocupada para Capricórnio.
Mas este apenas limpou as cinzas de sua calça e sorriu.
— Não, obrigado, Língua Encantada — ele disse. — Já tenho homens suficientes e, quanto aos monstros, talvez tratemos deles mais tarde. Por enquanto, estamos nos arranjando muito bem com os cães que Basta adestrou, e com as cobras aqui da região. Elas funcionam perfeitamente como lembrancinhas letais. Não, Língua Encantada, tudo o que exijo hoje como prova da sua capacidade é ouro. Eu sou um ganancioso incorrigível.  Meus homens fazem realmente o melhor que podem para espremer desta região tudo o que ela pode dar.
Com essas palavras de Capricórnio Basta acariciou sua navalha, e seu mestre concluiu:
— Mas o que conseguimos não é suficiente para todas as coisas maravilhosas que há para comprar neste vasto mundo. Este mundo de vocês tem tantas páginas, Língua Encantada, tem páginas sem fim, e eu adoraria escrever o meu nome em todas elas.
— Com que tipo de letra você quer escrevê-lo?  — perguntou Mo. — Basta irá riscá-las no papel com a navalha?
— Oh, não, Basta não sabe escrever — respondeu Capricórnio serenamente. — Nenhum dos meus homens sabe ler nem escrever. Eu os proibi. Sou o  único que aprendeu, uma das minhas criadas me ensinou. Sim, acredite, estou perfeitamente em  condições de estampar a minha marca neste mundo. E quando há alguma coisa para escrever, quem cuida disso é o meu leitor.
O portal da igreja se abriu, como se Cockerell estivesse esperando apenas por uma deixa. O homem que ele trazia estava com a cabeça encolhida entre os ombros, e não olhou nem para a direita nem para a esquerda enquanto o seguia. Era um homem baixo e magro, e não devia ser mais velho do que Mo, mas tinha as costas curvas como um ancião e sacudia os membros ao andar, como se não soubesse o que fazer com eles. Ele usava uns  óculos que erguia nervoso a cada passo; em cima do nariz a armação estava colada com fita adesiva, como se ele já a tivesse quebrado muitas vezes. Com o braço esquerdo ele segurava firme uma pilha de livros contra o peito, como se eles lhe oferecessem proteção contra os olhares que se voltavam para ele vindos de todos os lados, e contra o sinistro local para onde fora arrastado.
Quando os dois finalmente chegaram ao pé da escada, Cockerell deu uma cotovelada nas costelas de seu acompanhante, que então fez uma mesura. Estava tão afoito que dois de seus livros caíram ao chão. Ele os recolheu rapidamente e curvou-se uma segunda vez diante de Capricórnio.
— Já o aguardávamos, Darius! — disse Capricórnio. — Espero que tenha encontrado aquilo que o incumbi de trazer.
— Oh, sim, sim! — balbuciou Darius, enquanto lançava para Mo um olhar que era quase de veneração. — É ele?
— É. Mostre-lhe os livros que escolheu.
Darius inclinou a cabeça e curvou-se novamente, desta vez diante de Mo.
— Todas estas são histórias em que aparecem grandes tesouros. Encontrá-las não foi tão fácil como eu pensava, afinal — ele balbuciou, com um leve tom de censura na voz —não há muitos livros nesta aldeia. E por mais que eu repita isso, nunca me trazem livros novos, e quando trazem eles não prestam para nada. Mas seja lá como for... agora eles estão aqui. Acho que apesar de tudo você vai ficar contente com a seleção.
Ajoelhou-se no chão diante de Mo e começou a espalhar seus livros sobre o piso de pedras, um ao lado do outro, até que Mo pudesse ler todos os títulos.
Já o primeiro fez Meggie sentir um arrepio. A ilha do tesouro.  Ela olhou inquieta para Mo.  “Este não!”, ela pensou. “Este não, Mo!” Mas Mo já tinha um outro na mão: Histórias das mil e uma noites.
— Acho que este é o livro certo  — ele disse. — Al dentro certamente haverá ouro suficiente. Mas vou lhe dizer mais uma vez: não sei o que acontecerá. Nunca acontece quando quero. Sei que todos vocês aqui me consideram um mago, mas eu não sou. A magia vem dos livros, e eu não sei como ela funciona, não mais do que você e seus homens.
Capricórnio recostou-se na cadeira e examinou Mo com um olhar inexpressivo.
— Quantas vezes você ainda pretende me dizer isso, Língua Encantada? — ele disse em tom de enfado. — Pode repetir quantas vezes quiser, eu não vou acreditar. No mundo cujas portas hoje fechamos definitivamente, eu lidava com feiticeiros de vez em quando, com feiticeiros e bruxas, e muitas vezes tive que enfrentar a teimosia deles. Acho que Basta já lhe mostrou de forma convincente como costumamos dobrar a teimosia. Mas no seu caso esses métodos dolorosos não serão mais necessários, agora que sua filha é nossa hóspede.Com essas palavras, Capricórnio lançou um breve olhar para Basta. Mo quis segurar Meggie, mas Basta foi mais rápido. Ele a puxou para junto de si e pôs o braço ao redor de seu pescoço.
— A partir de hoje, Língua Encantada — prosseguiu Capricórnio, e sua voz ainda soava tão indiferente como se ele estivesse conversando sobre o tempo —, Basta será a sombra pessoal e exclusiva de sua filha. Isso com certeza a protegerá de cobras e cães ferozes, mas naturalmente não do próprio Basta, que será gentil com ela enquanto eu quiser que ele seja. E isso, por sua vez, depende do quanto eu estiver satisfeito com os seus serviços. Será que consegui me fazer entender?
Mo olhou primeiro para ele e depois para a filha. Meggie, que sempre soubera mentir melhor do que ele, se esforçava por parecer tranqüila para convencer o pai de que não precisava se preocupar com ela. Mas dessa vez ele não acreditou. Sabia que o medo que Meggie sentia era tão grande quanto o que ela própria via nos olhos dele.
“Talvez tudo isso seja apenas uma história!”, pensou Meggie desesperada.  “E daqui a pouco alguém vai simplesmente fechar o livro, de tão terrível e asqueroso que ele é, e Mo e eu estaremos de novo em casa e eu farei um café para ele.” Ela fechou os olhos com força, como se dessa maneira seus pensamentos pudessem se tornar realidade. Mas, quando espiou pelas pálpebras entreabertas, Basta ainda estava atrás dela e Nariz Chato esfregava seu nariz amassado, enquanto olhava para Capricórnio com seu olhar canino.
— Muito bem — disse Mo, rompendo o silêncio com a voz cansada.  — Lerei para você. Mas Meggie e Elinor não ficarão aqui.
Meggie sabia exatamente no que ele estava pensando.
Ele pensava na mãe de Meggie, e em quem desapareceria dessa vez.
— Nada disso.  É claro que as duas ficarão aqui — a voz de Capricórnio não soou mais tão serena. — E comece de uma vez, antes que o livro se transforme em pó nas suas mãos.
Mo fechou os olhos por um momento.
— Está bem, mas Basta tem que guardar a navalha — ele disse com voz rouca. — Se ele encostar num só fio de cabelo de Meggie ou de Elinor, juro que mandarei a peste dos livros para cima de você e dos seus homens.
Cockerell lançou um olhar assustado para Mo, e mesmo pelo rosto de Basta passou uma sombra, mas Capricórnio  apenas riu.
— Devo lembrá-lo de que está falando de uma doença contagiosa, Língua Encantada — ele disse. — E ela também não se detém perante menininhas. Portanto, pare com essas ameaças vãs e comece a ler. Agora. Neste instante. E, como aperitivo, quero ouvir alguma coisa deste livro aqui!
E apontou para o livro que Mo descartara de imediato.
A ilha do tesouro.
18. Língua Encantada
~
O fidalgo Trelawney, o Dr. Livesey e os outros senhores insistiram muito para que eu escrevesse toda a história da ilha do tesouro, do princípio ao fim, sem nada omitir exceto a posição exata da ilha; assim, neste ano da graça de 17..., pego na pena e começo com a  época em que meu pai possuía a estalagem Almirante Benbow e quando o velho lobo-do-mar, de rosto queimado de sol e marcado por uma cicatriz de sabre, hospedou-se sob nosso teto.
Robert L. Stevenson, A ilha do tesouro
~
E, assim, foi numa igreja que Meggie ouviu seu pai ler em voz alta pela primeira vez depois de nove anos. Ainda muitos anos mais tarde, a cada vez que abria um dos livros que Mo lera naquela manhã, ela sentia no ar o cheiro de papel queimado.
Estava frio na igreja de Capricórnio, como mais tarde Meggie também se lembraria, embora lá fora o sol certamente já estivesse quente e alto no céu, quando Mo começou a ler.
Ele sentou-se onde estava, no chão, com as pernas cruzadas, um livro no colo, os outros ao seu lado. Meggie ajoelhou-se perto dele antes que Basta pudesse segurá-la.
— Vamos, para a escada todos vocês! — ordenou Capricórnio a seus homens. — Nariz Chato, leve a mulher. Apenas Basta fica onde está.Elinor debateu-se, mas Nariz Chato apenas precisou agarrá-la pelos cabelos e arrastá-la. Um após o outro, os homens de Capricórnio sentaram-se na escada aos pés de seu senhor. Junto deles, Elinor parecia uma pomba estufada no meio de um bando de corvos.
O único que parecia tão perdido quanto ela era o magro leitor, que se sentara bem no fim daquela fileira negra e não parava de mexer em seus óculos.
Mo abriu o livro que estava em seu colo e começou e folheá-lo com o cenho franzido, como se procurasse em suas páginas o ouro que deveria extrair para Capricórnio.
— Cockerell, se alguém der um pio enquanto Língua
Encantada estiver lendo, corte a língua do infeliz!  — disse Capricórnio.
Cockerell tirou uma faca do cinto e olhou para a fileira de homens como se já procurasse a primeira vítima. Um silêncio sepulcral espalhou-se pela igreja pintada de vermelho, um silêncio tão grande que Meggie pensou ouvir Basta respirar atrás dela. Mas talvez fosse apenas seu próprio medo.
Os homens de Capricórnio, a julgar por seus rostos, também pareciam não estar se sentindo confortáveis na própria pele. Eles olhavam para Mo com um misto de hostilidade e temor. Meggie conseguia entender isso tranqüilamente. Talvez fosse um deles o próximo a desaparecer no livro que Mo folheava tão indeciso. Será que Capricórnio havia lhes contado que isso podia acontecer? Será que ele próprio sabia? E se acontecesse o que Mo temia: que ela própria desaparecesse? Ou
Elinor?
— Meggie!  — ele sussurrou, como se tivesse ouvido seus pensamentos. — Segure firme em mim, de algum jeito, está bem?
Meggie fez que sim e agarrou-se em seu pulôver com uma mão. Como se isso adiantasse!
— Acho que encontrei a passagem certa — disse Mo rompendo o silêncio.Ele lançou um  último olhar para Capricórnio, olhou mais uma vez para Elinor, deu um pigarro... e começou.
Tudo desapareceu. As paredes vermelhas da igreja, os rostos dos homens de Capricórnio e o próprio Capricórnio em sua cadeira. Havia apenas a voz de Mo e as imagens que as letras iam formando como um tapete num tear. Se fosse possível Meggie odiar Capricórnio ainda mais, ela teria odiado naquele momento. Afinal, ele era o único culpado pelo fato de
Mo não ter lido para ela uma só vez em todos aqueles anos.
Quantas coisas ele poderia tê-la feito ver com sua voz, que dava outro sabor a cada palavra e uma nova melodia a cada frase! O próprio Cockerell parecia ter se esquecido de sua faca e das línguas que deveria cortar, e escutava com atenção e de olhar ausente. Nariz Chato fitava o ar arrebatado, como se um navio pirata com as velas infladas viesse singrando diretamente por uma das janelas da igreja. Todos estavam calados.
Não se ouvia um som além da voz de Mo, que dava vida a letras e palavras.
Apenas uma pessoa parecia imune ao encanto. Com um ar inexpressivo, os olhos pálidos voltados para Mo, Capricórnio continuava sentado e esperava: pelo tilintar de moedas em meio aos sons harmoniosos das palavras, por pesados baús de madeira úmida, cheios de ouro e prata.
Mo não o fez esperar muito. Enquanto lia o que Jim Hawkins, o garoto que era só um pouco mais velho do que
Meggie, vira numa caverna escura durante suas terríveis aventuras, aconteceu:
Moedas de ouro, cunhadas com a efígie do rei George ou de um dos Luíses, dobrões, guinéus, moidores e cequins, as efígies de todos os reis da Europa no decorrer dos últimos cem anos, estranhas peças orientais, cujas inscrições pareciam um emaranhado de fios ou um pedaço de uma teia de aranha, moedas redondas, quadradas, moedas perfuradas no meio, como se houvessem sido usadas penduradas no pescoço — toda sorte de ouro cunhado parecia ter seu lugar naquela coleção, e eram tantas peças quantas as folhas no outono, deforma que tive dores nas costas de tanto que precisei me curvar, e meus dedos doíam de separá-las.
As criadas ainda estavam limpando as últimas migalhas das mesas quando de repente as moedas começaram a cair sobre a madeira lustrosa. As mulheres recuaram assustadas, soltaram os panos de limpeza e puseram as mãos na boca, enquanto as moedas pululavam aos seus pés, moedas douradas, prateadas, cor de cobre, repicavam no chão de pedra, amontoavam-se tilintantes sob os bancos, mais e mais moedas. Algumas rolaram até o pé da escada. Os homens de Capricórnio levantaram-se sobressaltados, curvaram-se para pegar as pecinhas cintilantes que batiam em suas botas... e recolheram as mãos novamente. Nenhum deles ousou tocar no dinheiro enfeitiçado. Sim, o que era aquilo senão ouro feito de papel e tinta preta e do som de uma voz humana?
Quando a chuva de ouro cessou — no exato momento em que Mo fechou o livro —, Meggie viu que aqui e ali, em meio a todo aquele brilho e fulgor, misturava-se também um pouco de areia. Alguns besouros azulados reluzentes fugiram atarantados e, de um monte de moedinhas minúsculas, despontou a cabeça de um lagarto verde-esmeralda. O réptil  olhou atônito ao seu redor. A língua dançava fora de sua boca angulosa. Basta arremessou a navalha contra ele, como se junto com o lagarto pudesse espantar o temor que acometera a todos, mas Meggie soltou um grito de advertência e o lagarto escapuliu dali tão depressa que a lâmina bateu sua ponta afiada nas pedras. Basta deu um pulo, recolheu a navalha e apontou-a num gesto ameaçador na direção de Meggie.
Capricórnio, porém, levantou-se da cadeira, o rosto  inexpressivo como se ainda nada de muito interessante houvesse acontecido e, com um ar de superioridade, bateu palmas com suas mãos cheias de anéis.
— Nada mau para um começo, Língua Encantada! —ele disse. — Dê uma olhada, Darius! Ouro é isso, e não aqueles cacarecos tortos e enferrujados que você leu para mim.
Mas agora você ouviu como se faz, e espero que tenha apren-dido alguma coisa para o caso de eu precisar novamente dos seus serviços.
Darius não respondeu. Seus olhos estavam voltados para Mo, tão maravilhados que Meggie não teria se espantado caso ele tivesse se lançado aos pés de seu pai. Quando Mo se levantou, Darius andou até ele, hesitante.
Os homens de Capricórnio ainda estavam de pé olhando para o ouro como se não soubessem o que aconteceria com ele.
— O que vocês estão fazendo ai parados feito vacas no pasto? — exclamou Capricórnio. — Recolham o ouro.
— Foi maravilhoso! — sussurrou Darius para Mo enquanto os homens de Capricórnio começavam, com certa relutância, a recolher as moedas e a colocá-las em sacos e baús.
Os olhos atrás de seus óculos brilhavam como os de uma criança que acabara de receber um presente pelo qual ansiara durante muito tempo.
— Já li esse livro muitas vezes — ele disse com voz insegura. — Mas nunca vi tudo tão nitidamente como hoje. E não só vi... eu também senti o cheiro, do sal e do alcatrão, e o cheiro podre que pairava sobre a ilha amaldiçoada...
— A ilha do tesouro! Céus, minhas pernas ainda estão bambas de tanto medo que senti! — Elinor apareceu atrás de Darius e empurrou-o com indelicadeza para o lado. Pelo jeito, Nariz Chato esquecera-se dela temporariamente. — “Logo ele vai aparecer”, eu pensei o tempo todo.  “Logo o velho Silver vai aparecer e bater nas nossas orelhas com sua muleta.”
Mo apenas inclinou a cabeça, mas Meggie viu o alívio em seu rosto.
— Aqui, pegue-o! — ele disse para Darius pondo o livro em suas mãos. — Espero nunca mais ter que ler alguma coisa deste livro. Não se deve abusar da sorte.
— Todas as vezes que ele apareceu, você pronunciou o nome dele um pouco errado — Meggie cochichou em seu ouvido.Mo passou o dedo no nariz dela.
— Ah, você notou! — ele respondeu num sussurro. —Pois é, pensei que isso pudesse ajudar. Talvez dessa maneira o velho pirata malvado não se sentisse mencionado e ficasse quieto no seu canto. Por que você está me olhando assim?
— O que você acha? — respondeu Elinor no lugar de Meggie. — Por que ela está olhando tão admirada para o pai dela? Porque ninguém jamais leu dessa maneira, mesmo se as moedas não tivessem saído. Eu vi tudo, o mar e a ilha, tudo mesmo, como se pudesse tocá-los, e com a sua filha não deve ter sido diferente.
Mo sorriu. Empurrou com o pé algumas moedas que estavam na sua frente. Um dos homens de Capricórnio recolheu-as e enfiou no bolso furtivamente. Ao fazer isso, lançou um olhar aflito para Mo, como se temesse que ele, apenas com um estalido de sua língua, o transformasse num dos sapos ou besouros que ainda rastejavam entre o ouro.
— Eles têm medo de você, Mo! — sussurrou Meggie.
Mesmo no rosto de Basta ela podia ver o medo, embora ele fizesse um grande esforço para ocultá-lo tentando se mostrar especialmente entediado.
Apenas Capricórnio parecia manter-se totalmente frio com o que acontecera. Com os braços cruzados, ele observou seus homens apanharem as últimas moedas.
— Quanto tempo isso ainda vai demorar?  — ele exclamou finalmente. — Deixem o dinheiro miúdo e sentem-se novamente. E você, Língua Encantada, pegue o próximo livro!
— O próximo? — a voz de Elinor saiu esganiçada de indignação. — Mas o que é isso? O ouro que os seus homens estão recolhendo  é suficiente para pelo menos duas vidas.
Agora nós vamos para casa!
Elinor ia se virar, mas Nariz Chato se lembrou dela. Ele segurou seu braço com brutalidade.
Mo ergueu o olhar na direção de Capricórnio.Basta, porém, pôs a mão no ombro de Meggie com um sorriso malvado.
— Vamos logo, Língua Encantada!  — ele disse.  —
Você ouviu muito bem. Ainda há uma pilha de livros aí.
Mo olhou demoradamente para Meggie, antes de se  abaixar e pegar o livro que já tivera na mão uma vez: Os contos das mil e uma noites.
— O livro sem fim — ele murmurou enquanto o abria.
— Sabia que os árabes dizem que ninguém pode lê-lo até o final, Meggie?
Meggie fez que não com a cabeça enquanto se sentava ao lado dele no chão frio. Basta permitiu, mas sentou-se bem atrás dela. Meggie não sabia muitas coisas sobre as Mil e uma noites. Apenas sabia que o livro, na verdade, consistia em vá-rios volumes. O exemplar que Darius dera a Mo só podia ser uma pequena compilação. Será que ali estavam os quarenta ladrões e Aladim com sua lâmpada maravilhosa? O que Mo leria?
Dessa vez, Meggie pensou ter identificado dois sentimentos conflitantes no rosto dos homens de Capricórnio: o medo do que Mo traria  à  vida e ao mesmo tempo o desejo quase ansioso de serem mais uma vez transportados para longe por sua voz, para bem longe, para lugares onde poderiam se esquecer de tudo, até de si mesmos.
Quando Mo começou a ler pela segunda vez, não havia mais cheiro de sal e de rum. Agora estava quente na igreja de
Capricórnio. Os olhos de Meggie começaram a arder e, quando ela os esfregou, havia areia grudada em seus dedos. Mais uma vez, os homens de Capricórnio escutavam extasiados a voz de Mo, como se ele os tivesse transformado em pedras. E novamente Capricórnio era o  único que parecia não sentir nada do encantamento. Só nos seus olhos se via que ele também estava fascinado. Eles estavam fixos no rosto de Mo feito os olhos de uma serpente. O terno vermelho fazia as pupilas de Capricórnio parecer ainda mais descoradas. Seu corpo parecia estar tenso como o de um cão que farejou sua presa.
Mas dessa vez Mo o decepcionou. As palavras não liberaram os baús de tesouros, as pérolas e os sabres incrustados de pedras preciosas que a voz de Mo fizera reluzir e fulgurar, até que os homens de Capricórnio acreditassem poder colhê-los do ar. Uma outra coisa saiu das páginas, uma coisa que respirava, feita de carne e osso.
De repente, havia um garoto no meio dos tonéis ainda fumegantes onde Capricórnio mandara incendiar os livros.
Meggie foi a única que o notou. Todos os outros estavam absortos demais na história. O próprio Mo não percebeu, estava longe, em algum lugar entre a areia e o vento, enquanto os seus olhos tateavam no labirinto de letras.
O garoto devia ser três ou quatro anos mais velho do que Meggie. O turbante em sua cabeça estava sujo, e os olhos no rosto moreno estavam escuros de medo. Ele esfregou-os como que para apagar a imagem falsa, o lugar falso que tinha diante de si. Olhou ao seu redor na igreja vazia, como se nunca tivesse visto uma edificação como aquela. E como poderia?
Em sua história certamente não havia igrejas de torres pontudas nem colinas verdejantes como as que esperavam por ele láfora. O traje, que lhe chegava quase até os pés, era azul e brilhava como um pedaço do céu.
“O que vai acontecer se eles o virem?”, pensou Meggie.
“Certamente ele não é o que Capricórnio estava esperando.”
Mas nesse momento Capricórnio também já o havia notado.
— Espere! — ele gritou tão alto que Mo interrompeu a frase no meio e ergueu a cabeça.
De forma brusca e um tanto contrafeitos, os homens de Capricórnio voltaram à realidade. Cockerell foi o primeiro a se pôr de pé.
— Ei, de onde é que ele veio? — rosnou.
O jovem abaixou-se, olhou em volta com o rosto paralisado pelo medo e saiu correndo em ziguezague como um coelho. Mas não foi muito longe. Imediatamente, três homens correram atrás dele e o apanharam ao pé da estátua de Capricórnio.
Mo pôs o livro no chão ao seu lado e cobriu o rosto com as mãos.
— Ei! Fulvio sumiu! — exclamou um dos homens de Capricórnio.
— Ele simplesmente evaporou.
Todos olharam para Mo. O medo estava de volta no rosto deles, só que dessa vez não se tingia apenas de admiração, mas também de cólera.
— Leve o garoto embora, Língua Encantada — ordenou, irritado.
— Iguais a ele já tenho mais do que o suficiente. E traga-me Fulvio de volta.
Mo tirou as mãos do rosto e levantou-se.
— Pela centésima milésima vez: eu não posso trazer ninguém de volta! — ele exclamou. — E isso não é mentira sóporque você não quer acreditar. Eu não posso. Não posso determinar o que ou quem sai do livro, nem quem entra.
Meggie segurou sua mão. Alguns dos homens de Capricórnio se aproximaram, dois deles seguravam o garoto. Eles puxavam os braços dele como se fossem arrancá-los. Com os olhos arregalados de pavor, o menino examinava os rostos estranhos.
— Voltem para os seus lugares! — Capricórnio gritou para os homens furiosos. Alguns deles já estavam ameaçadoramente perto de Mo. — Por que tanto alvoroço? Vocês já se esqueceram das besteiras que Fulvio fez no  último serviço, colocando a polícia nos nossos calcanhares? Era justamente o homem certo para ir embora. E quem sabe esse garoto aí não é um incendiário talentoso? Mesmo assim, agora eu gostaria de ver pérolas, ouro, jóias. Afinal é disso que trata essa história toda, portanto desembuche!
Começou um burburinho entre os homens. A maioria deles, porém, voltou para a escada e sentou-se novamente nos velhos degraus. Apenas três ainda ficaram na frente de Mo, encarando-o com um olhar hostil. Um deles era Basta.
— Muito bem! Fulvio não é insubstituível! — ele exclamou sem despregar o olho de Mo.  — Mas quem será o próximo que esse bruxo maldito vai fazer sumir pelos ares?
Não quero terminar numa história estúpida qualquer, e me ver de turbante no meio de um deserto!
Os homens que estavam com ele balançaram a cabeça concordando, e olharam para Mo com cara tão feia que Meggie quase esqueceu de respirar.
— Basta, não vou repetir outra vez — a voz de Capricórnio soou tranqüila e ameaçadora. — Deixem Língua Encantada continuar a leitura! E se algum de vocês começar a bater os dentes de medo, é melhor ir logo lá para fora ajudar as mulheres a lavar roupa.
Alguns homens olharam sequiosos para o portal da  igreja, mas nenhum deles se atreveu a sair. Finalmente, os dois que estavam com Basta também se viraram em silêncio e sentaram-se junto com os outros.
— Você ainda vai me pagar por Fulvio! — Basta disse entre os dentes para Mo, antes de se postar novamente ao lado de Meggie.
“Bem que o próprio Basta podia ter desaparecido”, pensou Meggie. O garoto ainda não havia dito uma palavra.
— Prendam-no, mais tarde veremos se podemos aproveitá-lo — ordenou Capricórnio.
O garoto nem mesmo tentou resistir quando Nariz
Chato o arrastou consigo; ele o seguiu como que entorpecido, cambaleante, como se esperasse finalmente despertar. Em que momento compreenderia que aquele sonho não teria fim?
Quando a porta se fechou atrás dos dois, Capricórnio voltou para sua cadeira.
— Continue a ler, Língua Encantada — ele disse. — O dia mal começou.Mo, porém, olhou para os livros a seus pés e sacudiu a cabeça.
— Não! — ele disse.  — Você viu que aconteceu de novo. Estou cansado. Contente-se com o que eu trouxe da ilha do tesouro. Essas moedas valem uma fortuna. Quero ir para casa e nunca mais ver a sua cara.
A voz de Mo soou mais rouca do que de costume, como se tivesse lido em demasia.
Por um momento, Capricórnio olhou para ele com desprezo. Depois olhou para os sacos e baús que seus homens haviam enchido com moedas, como se calculasse em pensamento por quanto tempo aquele ouro lhe adoçaria a vida.
— Você tem razão — ele disse finalmente. — Amanhã continuaremos. Senão ainda pode surgir por aqui um camelo fedorento ou um garoto esfomeado.
— Amanhã? — Mo deu um passo em sua direção. — Que história é essa? Como se não bastasse! Um dos seus homens já desapareceu, você quer ser o próximo?
— Eu aceito correr o risco — respondeu Capricórnio sem se deixar impressionar.
Seus homens levantaram-se de supetão quando ele se ergueu da cadeira e começou a descer lentamente os degraus do altar. Ficaram ali feito garotinhos, embora fossem consideravelmente maiores do que Capricórnio, com as mãos cruzadas nas costas, como se temessem que a qualquer momento ele verificasse o asseio de suas unhas. Meggie lembrou-se do que Basta dissera: de como ele era novo quando começou a trabalhar para Capricórnio. Então ela se perguntou se era medo ou admiração que fazia os homens baixar a cabeça.
Capricórnio parara diante de um dos sacos abarrotados.
— Acredite, Língua Encantada, ainda tenho muitos planos para você — ele disse, enfiando a mão dentro do saco e deixando as moedas deslizarem entre seus dedos. — Hoje foi apenas um teste. Afinal, eu tinha que me convencer de seu talento com meus próprios olhos e ouvidos, não  é mesmo? Com certeza vou aproveitar muito bem todo este ouro, mas amanhã você lerá algo diferente para mim.
Capricórnio andou lentamente até as caixas onde antes estavam os livros, que agora não passavam de cinzas e pedaços de papel queimado, e pôs a mão dentro de uma delas.
— Surpresa! — anunciou sorridente, erguendo um livro. Era um exemplar bem diferente daquele que Elinor e
Meggie haviam levado para ele. Ainda possuía uma sobrecapa de papel, colorida, com uma figura que Meggie não conseguiu distinguir de longe.
— Sim, senhor, ainda tenho um! — declarou Capricórnio, enquanto observava os rostos estupefatos com um ar de satisfação.  — Meu exemplar pessoal e exclusivo, por assim dizer. E amanhã, Língua Encantada, é ele que você vai ler para mim. Como já disse, este mundo me agrada imensamente, mas aí dentro há um amigo dos velhos tempos do qual sinto falta por aqui. Nunca permiti que o seu substituto testasse a sua arte com ele, pois sempre receei que o trouxesse para mim sem cabeça ou com uma perna só. Mas agora você está aqui, e é um mestre da feitiçaria!
Mo olhava incrédulo para o livro na mão de Capricórnio, como se esperasse que no instante seguinte ele se dissolvesse no ar.
— Descanse, Língua Encantada — disse Capricórnio.
— Poupe sua preciosa voz. Você terá muito tempo para isso,
pois tenho que me ausentar e só estarei de volta amanhã ao meio-dia. Levem os três de volta para o alojamento!  — ele ordenou aos seus homens. — Levem comida suficiente e alguns cobertores para a noite. Ah, e digam a Mortola que leve um chá para ele, uma dessas coisas que fazem milagres por uma voz rouca e cansada. Não foi chá com mel que você sempre recomendou, Darius?
Darius apenas confirmou com a cabeça e olhou para Mo cheio de compaixão.— De volta para o alojamento? Por acaso o senhor está falando do buraco onde o seu capanga nos meteu ontem à noite? — o rosto de Elinor encheu-se de manchas vermelhas, que Meggie não conseguiu adivinhar se eram de horror ou indignação. — Isso que o senhor está fazendo se chama privação de liberdade! Ah, qual o quê, seqüestro! Isso mesmo, seqüestro. Sabe quantos anos de cadeia isso dá?
— Seqüestro!  — Basta deixou a palavra derreter na língua. — Isso soa bem, realmente.
Capricórnio sorriu para ele. Então olhou para Elinor, como se a estivesse vendo pela primeira vez.
— Basta, essa senhora tem alguma serventia para nós?
— ele disse.
— Não que eu saiba — respondeu Basta, sorrindo como um garotinho que acabou de receber permissão para destruir um brinquedo.
Elinor empalideceu. Quis dar um passo para trás, mas
Cockerell se pôs em seu caminho e a segurou.
— O que costumamos fazer com o que não tem serventia, Basta? — perguntou Capricórnio em voz baixa.
Basta ainda sorria.
— Pare com isso! — Mo ralhou com Capricórnio. — Pare imediatamente de assustá-la, ou não lerei mais uma única palavra.
Capricórnio deu-lhe as costas com um ar entediado. E Basta continuava sorrindo. Meggie viu como Elinor pôs a mão nos lábios trêmulos. Ela correu para o seu lado.
— Ela tem serventia, sim. Ela entende de livros melhor do que ninguém! — Meggie disse enquanto apertava a mão de Elinor.
Capricórnio virou-se. Seu olhar fez Meggie sentir um arrepio, como se alguém passasse os dedos gelados em suas costas. As pestanas eram claras como teias de aranha.
— Elinor com certeza conhece mais histórias de tesouros do que esse seu leitor de meia-tigela! — ela balbuciou.— Com certeza.
Elinor apertou os dedos de Meggie com tanta força que quase os esmagou. Seus próprios dedos estavam empapados de suor.
— Sim, com certeza! — ela disse com a voz sumida. —
Acabam de me ocorrer várias delas.
— Sei, sei — disse Capricórnio e apertou seus lábios delicados. — Bem, vamos ver.
Então ele fez um sinal para seus homens, que empurraram Elinor, Meggie e Mo: eles passaram pelas mesas, pela estátua de Capricórnio e pelas colunas vermelhas, e finalmente pelo pesado portal, que gemeu quando foi aberto.
A igreja lançava sombra na praça cercada de casas. O ar tinha cheiro de verão, e o sol brilhava no céu azul como se nada tivesse acontecido.

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