domingo, 13 de fevereiro de 2011

Coração de Tinta - Capítulos 3 e 4

3. Rumo ao sul
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— Depois da Floresta Selvagem vem o vasto mundo — disse a ratazana. — E nós não temos nada a ver com ele, nem você nem eu. Nunca estive lá e também não irei, e você muito menos se tiver um pingo de bom senso.
Kenneth Grahame, O vento nos salgueiros
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Dedo Empoeirado devia estar esperando na estrada, atrás do muro. Centenas e mais centenas de vezes, Meggie se equilibrara em cima desse muro, do começo até as dobradiças enferrujadas do portão e de volta, com os olhos bem fechados, para que pudesse ver nitidamente o tigre de olhos cor de âmbar que espreitava nos bambus ao pé do muro, ou as cachoeiras espumantes à sua direita e à sua esquerda.
Agora somente Dedo Empoeirado estava lá. Mas nenhuma outra visão teria feito o coração de Meggie bater mais depressa. Ele apareceu tão de repente que Mo quase o atropelou; vestia apenas um pulôver e tiritava de frio, com os braços em volta do corpo para se aquecer. Seu sobretudo ainda devia estar molhado, mas seus cabelos já estavam secos.
Eram ruivos e eriçados, e caiam sobre o rosto marcado por cicatrizes.Mo xingou com voz abafada, desligou o motor e desceu do ônibus. Dedo Empoeirado deu um sorriso estranho e encostou-se no muro.
— Para onde vai, Língua Encantada? — ele perguntou. — Não tínhamos um encontro? Você já me esqueceu uma vez desse jeito, lembra?
— Você sabe por que estou com pressa — respondeu Mo. — Pelo mesmo motivo que daquela vez.
Ele ficou ao lado da porta aberta do ônibus, tenso, como se mal pudesse esperar que Dedo Empoeirado finalmente saísse do caminho. Mas Dedo Empoeirado fingiu não notar a impaciência de Mo.
— Posso saber para onde vai agora? — ele perguntou.
— Da última vez precisei procurá-lo durante quatro anos, e por pouco os homens de Capricórnio não o encontraram antes de mim.
Quando ele olhou para Meggie, ela respondeu com um olhar hostil.Mo ficou calado um tempo antes de responder.
— Capricórnio está no norte — ele disse finalmente.
— Portanto, vamos para o sul. Ou será que nesse meio-tempo ele levantou acampamento de novo?
Dedo Empoeirado olhou para a estrada. A chuva da noite anterior brilhava nas poças.
— Não! Não! — ele falou. — Não, ele ainda está no norte.  É o que ouvi dizer e, como você parece ter decidido mais uma vez não lhe dar o que ele quer, é melhor eu também me mandar depressa para o sul. Por nada neste mundo gostaria de ter que dar a má notícia aos homens de Capricórnio. Se vocês pudessem me dar uma carona... Estou pronto para viajar.
As duas sacolas que ele tirou de trás do muro pareciam já ter rodado o mundo dezenas de vezes. Além delas, Dedo Empoeirado levava apenas uma mochila.Meggie apertou os lábios.
“Não, Mo!”, ela pensou.  “Não, não vamos dar carona para ele!” Mas bastou olhar para o pai e ela soube qual seria a sua resposta.
— Ora, vamos! — disse Dedo Empoeirado. — O que vou dizer aos homens de Capricórnio se eles me pegarem?
Ele parecia perdido como um cão abandonado, do jeito que estava ali. E por mais que Meggie se esforçasse por descobrir algo suspeito nele, à luz pálida da manhã não conseguiu encontrar nada. Mesmo assim, ela não queria que ele fosse junto. Isso estava estampado claramente em seu rosto, mas nenhum dos dois homens lhe deu atenção.
— Acredite, eu não conseguiria esconder deles por muito tempo que o vi. E além disso... — Dedo Empoeirado hesitou antes de terminar a frase — ... além disso, você me deve um favor, certo?
Mo abaixou a cabeça. Meggie viu como a mão dele  agarrou mais firme a porta do ônibus.
— Se você vê desse modo — ele disse. — Certo, acho que devo um favor a você.
O alívio se espalhou no rosto de Dedo Empoeirado. Rapidamente, ele jogou a mochila nas costas e se pôs a andar com suas sacolas em direção ao ônibus.
— Esperem! — exclamou Meggie quando Mo foi ao encontro de Dedo Empoeirado para ajudá-lo com a bagagem.
— Se ele vai com a gente, eu também quero saber por que estamos indo embora. Quem é esse Capricórnio?
Mo virou-se para ela.
— Meggie... — ele começou naquele tom de voz que ela conhecia tão bem:  “Meggie, não seja boba. Meggie, pare com isso”.
Ela abriu a porta do ônibus e pulou para fora.
— Raios, Meggie! Volte para dentro. Temos que partir!
— Só depois que você responder.
Mo foi até ela, mas Meggie escapou de suas mãos e correu até o outro lado do portão.
— Por que você não me conta? — ela gritou.
Ali parecia tão deserto, era como se não houvesse mais ninguém no mundo. Uma brisa começou a soprar, acariciando o rosto de Meggie e fazendo crepitar as folhas das tílias na beira da estrada. O céu ainda estava cinzento e pálido, simplesmente não queria clarear.
— Quero saber o que está acontecendo! — exclamou Meggie. — Quero saber por que tivemos que acordar às cinco horas e por que não vou à escola. Quero saber se vamos voltar e quem é esse Capricórnio!
Quando ela pronunciou o nome, Mo olhou ao seu redor como se aquele estranho, que os dois homens pareciam temer tanto, de repente pudesse sair de dentro do estábulo vazio, assim como Dedo Empoeirado surgira de trás do muro.
Mas o lugar continuava vazio, e Meggie estava furiosa demais para ter medo de alguém de quem só sabia o nome.
— Você sempre me disse tudo! — ela gritou para o pai.
— Sempre.
Mas Mo não contou.
— Todo mundo tem segredos, Meggie — ele disse finalmente. — E agora suba de uma vez. Temos que ir.
Dedo Empoeirado olhou para ele e depois para ela, como se não acreditasse no que ouvira.
— Você não contou nada para ela? — Meggie o ouviu perguntar com a voz abafada.
Mo fez que não.
— Mas alguma coisa você tem que contar! É perigoso ela não saber de nada. Afinal, ela não é mais um bebezinho.
— Se ela souber, também é perigoso — respondeu Mo.
— E não faria diferença nenhuma.
Meggie ainda estava na estrada.
— Ouvi tudo o que vocês disseram! — ela gritou. — O que é perigoso? Não entro enquanto não souber.
Novamente Mo não respondeu.Por um momento, Dedo Empoeirado olhou indeciso para ele, então pôs as sacolas de volta no chão.
— Pois bem — ele disse. — Então eu mesmo contarei a ela sobre Capricórnio.
Ele andou até Meggie devagar. Involuntariamente, ela deu um passo para trás.
— Você já o encontrou uma vez. Faz muito tempo, você não vai se lembrar, pois ainda era deste tamanho — disse
Dedo Empoeirado, mostrando com a mão a altura do joelho.
— Como é que eu vou explicar quem ele é? Se você tivesse que ver um gato devorando um passarinho, provavelmente choraria, não é? Ou tentaria ajudá-lo. Capricórnio daria o pássaro para o gato comer, apenas para vê-lo destrinchar o pobre bichinho com os dentes, ele se deliciaria em vê-lo estrebuchar, como se bebesse o mais puro mel.
Meggie deu mais um passo para trás, mas Dedo Empoeirado aproximou-se novamente.
— Suponho que você não tenha prazer em amedrontar alguém até deixá-lo com os joelhos bambos, não é mesmo? —ele perguntou. — Pois não há nada que faça Capricórnio se divertir mais. Suponho também que você não ache que pode simplesmente pegar para si tudo aquilo que quer, não importa como, nem de onde. Pois Capricórnio acha. E, infelizmente, o seu pai possui uma coisa que ele quer a qualquer custo.
Meggie olhou para Mo, mas ele não se mexeu, apenas olhou de volta.
— Capricórnio não sabe encadernar livros como o seu pai — prosseguiu Dedo Empoeirado. — Ele não sabe fazer nada, a não ser uma coisa: fazer as pessoas sentirem medo.
Ele é um mestre nisso. Ele vive disso. Embora eu ache que ele próprio não sabe como uma pessoa se sente quando o medo paralisa os seus membros e a torna impotente. Mas sabe muito bem como despertar o medo e espalhá-lo, nas casas e nas camas, nos corações e nas mentes. Os homens dele distribuem o medo como correspondência indesejada, enfiam-no por baixo das portas e nas caixas de correio, penduram o medo nos postes e nas portas dos estábulos, até que ele comece a se alastrar por si só, silencioso e fétido como a peste.
Dedo Empoeirado estava bem perto de Meggie, e baixou a voz para continuar:— Capricórnio tem muitos homens. Quase todos estão com ele desde crianças e, se Capricórnio ordenar a um deles que corte a sua orelha ou o seu nariz, ele fará isso sem pestanejar. Eles gostam de se vestir de preto como corvos, só o chefe usa uma camisa branca sob o paletó retinto, e se acaso alguma vez você se encontrar com um deles, esconda-se e fique bem quietinha, torcendo para que não a vejam. Entendeu?
Meggie fez que sim. Ela quase não conseguia respirar, de tão forte que batia o seu coração.
— Compreendo que o seu pai nunca tenha lhe contado nada sobre Capricórnio — disse Dedo Empoeirado, e olhou para Mo. — Eu também preferiria contar aos meus filhos sobre pessoas legais.
— Eu sei que não existem só pessoas legais! — Meggie não conseguiu impedir que a sua voz tremesse de raiva. Talvez também houvesse um pouco de medo junto com a raiva.
— Ah, é? Como você sabe? — ali estava novamente aquele sorriso enigmático, triste e arrogante ao mesmo tempo.
— Alguma vez você já se deparou com uma pessoa verdadeiramente má?
— Eu li sobre elas.
Dedo Empoeirado deu uma gargalhada.
— Ah, bom, é verdade, é quase a mesma coisa — ele disse. Seu sarcasmo queimava como folha de urtiga. Ele se abaixou diante de Meggie e olhou em seus olhos. Depois disse em voz baixa: — Mesmo assim, desejo que você encontre esse tipo de gente somente nos livros.
Mo acomodou a bagagem de Dedo Empoeirado no fundo do ônibus.
— Espero que aí dentro não haja nada que possa voar no nosso pescoço — ele disse enquanto Dedo Empoeirado se sentava atrás da poltrona de Meggie. — Na sua profissão, isso não me surpreenderia.
Antes que Meggie pudesse perguntar qual era a profissão, Dedo Empoeirado abriu a mochila e, com muito cuidado, tirou de dentro um animalzinho de pêlo sedoso, que estava dormindo.
— Ao que tudo indica, temos uma longa viagem juntos pela frente — ele disse para Mo —, por isso gostaria de apresentar alguém à sua filha.
O animal era quase do tamanho de um coelho, mas muito mais magro, e tinha uma cauda peluda que parecia uma estola de pele no peito de Dedo Empoeirado. Ele enfiou suas garrinhas na manga de Dedo Empoeirado, enquanto Meggie o observava com os olhos arregalados, e, quando bocejou, seus dentes afiados ficaram à mostra.
— Este é Gwin — declarou Dedo Empoeirado. — Se você quiser, pode fazer cafuné nas orelhas dele. Agora ele está com tanto sono que não vai morder.
— Senão ele morderia? — perguntou Meggie.
— É claro — disse Mo, ajeitando-se novamente atrás do volante.
— Se eu fosse você, manteria os dedos longe dessa pequena fera.
Mas Meggie não conseguia manter os dedos longe de um bicho, nem mesmo de um com dentes tão afiados.
— É uma marta ou algo do gênero, não é? — ela perguntou enquanto acariciava suavemente com as pontas dos dedos uma das orelhas redondas do bichinho.
— Algo do gênero.
Dedo Empoeirado pegou um pedaço de pão seco do bolso e o pôs entre os dentes de Gwin. Enquanto ele comia,
Meggie coçava sua cabecinha. Então ela sentiu uma coisa dura sob o pêlo sedoso: uns chifrinhos minúsculos, ao lado das orelhas. Assustada, ela tirou a mão.
— Martas têm chifres?
Dedo Empoeirado deu uma piscada para ela e fez
Gwin voltar para dentro da mochila.
— Esta aqui tem — ele disse.
Perplexa, Meggie ficou observando enquanto ele fechava as fivelas. Parecia que ela ainda sentia os chifrinhos de
Gwin nas pontas dos dedos.
— Mo, você sabia que martas têm chifres? — ela perguntou.
— Ah, que nada, foi Dedo Empoeirado que colou os chifres no seu pequeno diabinho mordedor. Para as apresentações.
— Que apresentações?
Meggie olhou para Mo e depois para Dedo Empoeirado à espera de uma resposta, mas Mo ligou o motor sem dizer nada e Dedo Empoeirado tirou as botas, que pareciam tão viajadas quanto suas sacolas, e se esticou na cama de Mo com um suspiro profundo.
— Fique quieto, Língua Encantada — ele disse antes de fechar os olhos. — Eu não revelo nada sobre os seus segredos e, em troca, você não espalha os meus por aí. Além do mais, para este precisa estar escuro.
Meggie cismou por pelo menos uma hora sobre o que poderia significar aquela resposta. Mas estava mais preocupada ainda com outra questão.
— Mo — ela perguntou, quando Dedo Empoeirado começou a roncar —, o que esse... Capricórnio quer com você?
Ela baixou a voz antes de pronunciar o nome, como se assim pudesse torná-lo menos ameaçador.
— Um livro — respondeu Mo sem tirar o olho da estrada.
— Um livro? E por que você não dá o livro para ele?
— Não posso. Vou lhe explicar tudo, mas não agora.
Está bem? Meggie olhou pela janela do ônibus. O mundo que passava lá fora já parecia desconhecido — casas desconhecidas, estradas desconhecidas, campos desconhecidos, mesmo as árvores e o céu pareciam desconhecidos —,  mas Meggie estava acostumada com isso. Ela nunca se sentira realmente em casa. Mo era o seu lar, Mo e seus livros e talvez também aquele ônibus, que os levava de um lugar estranho para outro.
— Essa tia que vamos ver — ela disse quando passavam por um túnel interminavelmente longo —, ela tem filhos?
— Não — respondeu Mo.  — E receio que ela não goste muito de crianças. Mas, como já disse, você vai se dar bem com ela.
Meggie suspirou. Ela se lembrava de algumas tias, e com nenhuma delas se dera lá muito bem.
As colinas foram se transformando em montanhas, as encostas dos dois lados da estrada foram ficando cada vez mais íngremes, e em algum momento as casas não eram apenas desconhecidas, mas também diferentes. Meggie tentou passar o tempo contando os túneis, mas, quando o nono os engoliu com uma escuridão que parecia não ter fim, adormeceu. Ela sonhou com martas, com casacos pretos e com um livro embrulhado em papel pardo.

4. Uma casa cheia de livros
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— Meu jardim continua sendo o meu jardim — disse o Gigante. — Todo mundo entende isso, e ninguém pode brincar nele além de mim.
Oscar Wilde, O gigante egoísta
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Meggie acordou com o silêncio.
O ronco monótono do motor que embalara seu sono havia cessado, e o banco do motorista ao seu lado estava vazio. Meggie precisou de algum tempo para se lembrar por que não estava em sua cama. Algumas mosquinhas estavam grudadas no pára-brisa do ônibus, estacionado diante de um portão de ferro de aspecto amedrontador: com todas aquelas pontas de brilho pálido, como lanças, parecia que estava ali apenas esperando que alguém tentasse pulá-lo e ficasse espetado lá em cima. A visão do portão lembrou Meggie de uma de suas histórias preferidas, a do gigante egoísta que não deixava as crianças brincarem em seu jardim. Ela sempre imaginara o portão do gigante exatamente daquele jeito.
Mo estava lá fora com Dedo Empoeirado. Meggie saiu do  ônibus e andou até eles. Do lado direito da estrada, uma ribanceira coberta por uma mata fechada descia até a margem de um grande lago, lá embaixo. As colinas que despontavam da água do outro lado pareciam montanhas que haviam se afogado. A água era quase negra, a noite já começava a se espalhar pelo céu e se refletia nas ondas escuras. Nas casas da margem, as luzes que começavam a se acender pareciam vaga-lumes ou estrelas cadentes.— Bonito, não  é? — Mo pôs o braço no ombro de
Meggie. — Você gosta de histórias de salteadores. Está vendo as ruínas daquele castelo? Uma vez um famoso bando de salteadores se escondeu ali. Preciso perguntar para Elinor. Ela sabe tudo sobre esse lago.
Meggie apenas fez que sim e apoiou a cabeça no ombro dele. Ela estava tonta de sono, mas o rosto de Mo, pela primeira vez desde que haviam partido, não estava com uma expressão aflita.
— Onde é que ela mora, afinal? — Meggie perguntou e reprimiu um bocejo. — Atrás daquele portão de lanças é que não deve ser.
— Mas é. Esta é a entrada para o terreno. Não é muito convidativa, é? — Mo riu e puxou Meggie para o outro lado da estrada.  — Elinor tem muito orgulho desse portão. Ela mesma mandou construí-lo, de acordo com a figura de um livro.
— Uma figura do jardim do gigante egoísta? — murmurou Meggie, enquanto espiava através das barras de ferro retorcidas artisticamente.
— O gigante egoísta? — Mo riu. — Não, acho que era uma outra história, mas essa até que combinaria bem com Elinor.
Dos dois lados do portão erguia-se uma cerca viva alta que, com seus galhos espinhentos, impedia a visão do interior.
Mas mesmo o portão sendo vazado Meggie não pôde ver nada muito revelador, além dos pés de azaléias e de um largo caminho de pedregulhos, que logo desaparecia no meio das flores.
— Parece a casa de uma família muito rica, não é? —
Dedo Empoeirado cochichou no ouvido de Meggie.
— Sim, Elinor  é muito rica  — disse Mo, puxando
Meggie de volta.  — Mas a qualquer hora dessas vai acabar sem um tostão furado, pois gasta todo o dinheiro que tem com livros. Receio que ela não hesitaria em vender a alma ao diabo, se ele oferecesse o livro certo em troca.
Com um solavanco, ele empurrou o portão para trás.
— O que você está fazendo? — perguntou Meggie, alarmada. — Não podemos simplesmente ir entrando.
Ainda era possível ler claramente a placa ao lado do portão, mesmo com algumas letras escondidas atrás dos galhos da cerca viva. PROPRIEDADE PARTICULAR. PROIBIDA A ENTRADA DE PESSOAS NÃO AUTORIZADAS. Para
Meggie, isso realmente não soava muito convidativo.
Mas Mo apenas riu.
— Não se preocupe — ele disse, empurrando mais o portão. — A única coisa que está protegida com alarme nesta casa é a biblioteca. Elinor não se importa a mínima com quem passa pelo seu portão. Ela não  é  exatamente o que poderíamos chamar de uma mulher medrosa. E de qualquer forma não recebe muitas visitas.
— E se houver cães? — Dedo Empoeirado, com uma expressão aflita, espreitou o jardim estranho. — Por esse portão, eu diria que há pelo menos três, ferozes e do tamanho de bezerros.
Mas Mo sacudiu a cabeça.
— Elinor detesta cães  — ele disse enquanto voltava para o ônibus. — E agora subam.
O terreno da tia de Meggie mais parecia um bosque do que um jardim. Logo depois do portão, o caminho fazia uma curva, como se quisesse tomar impulso antes de subir a ladeira, e depois se perdia entre castanheiras e pinheiros escuros.
As árvores o cercavam tão de perto que seus galhos formavam um túnel, e Meggie já estava achando que ele nunca terminaria, quando de repente elas recuaram e o caminho desembocou numa área coberta de cascalho, cercada por canteiros com roseiras muito bem cuidadas.
Havia uma perua cinza estacionada no cascalho, na frente de uma casa que era maior do que a escola que Meggie freqüentara no último ano. Ela tentou contar as janelas, mas logo desistiu. Era uma casa muito bonita, porém parecia tão pouco convidativa quanto o portão lá embaixo na estrada.
Talvez o reboco de cor ocre parecesse assim sujo apenas à luz do crepúsculo. E talvez as janelas de madeira pintadas de verde apenas estivessem fechadas porque a noite já tinha chegado atrás das montanhas que cercavam a casa. Talvez. Mas Meggie poderia apostar que também durante o dia elas raramente se abriam. A porta da entrada, de madeira escura, sugeria tanta repulsa quanto uma boca com os lábios apertados, e Meggie segurou involuntariamente a mão de Mo quando eles se dirigiram para ela.
Dedo Empoeirado seguiu-os com certa hesitação, levando nos ombros a mochila esfarrapada onde Gwin ainda dormia. Quando Mo e Meggie chegaram diante da porta, ele parou a alguns passos de distância dos dois e olhou com desconforto para as janelas fechadas, como se suspeitasse que a dona da casa os observava de alguma delas.
Ao lado da porta havia uma janelinha gradeada, a única que não estava escondida pelas folhas verdes. Atrás dela, mais uma placa:
CASO PRETENDA DESPERDIÇAR O MEU
TEMPO COM BOBAGENS, É MELHOR IR EMBORA
AGORA MESMO.
Meggie lançou um olhar preocupado para Mo, mas ele apenas fez uma careta para encorajá-la e tocou a campainha.
Meggie ouviu um som estridente ecoar dentro da grande casa. Então, por um bom tempo, nada aconteceu. Apenas uma gralha grasniu ao levantar vôo de um dos pés de azaléia que cresciam em volta da casa, e alguns pardais gordos ciscavam freneticamente no cascalho em busca de insetos invisíveis. Meggie estava justamente jogando para eles alguns farelos de pão que haviam sobrado no bolso de seu casaco — de um piquenique num dia já esquecido — quando a porta se abriu de supetão.A mulher que saiu de dentro da casa era mais velha do que Mo, um bom tanto mais velha — embora Meggie nunca tivesse muita certeza no que dizia respeito à idade dos adultos.
Seu rosto sugeriu a Meggie a fisionomia de um buldogue, mas talvez isso tivesse mais a ver com a expressão do que com o próprio rosto. Ela vestia um pulôver cinza como o pêlo de um rato, com uma saia cinzenta como cinzas propriamente ditas, um colar de pérolas ao redor do pescoço curto e, nos pés, chinelinhos de pano como os que Meggie tivera que usar uma vez num castelo que ela e Mo visitaram. Os cabelos de Elinor já eram grisalhos, ela os prendera no alto da cabeça, mas caíam mechas por todos os lados, como se ela os tivesse prendido com muita pressa e impaciência. Elinor não parecia gastar muito tempo na frente do espelho.
— Meu Deus do céu, Mortimer! Mas  que surpresa  enorme! — ela disse, sem perder tempo com cumprimentos.
— Que ventos o trazem aqui?
Seu tom de voz era rude, mas seu rosto não conseguia esconder o fato de que ela estava contente por ver Mo.
— Olá, Elinor — disse Mo, pondo a mão no ombro de
Meggie. — Você se lembra de Meggie? Ela cresceu bastante, como você está vendo.
Elinor lançou um breve olhar irritado para Meggie.
— Sim, estou vendo — ela disse. — Afinal de contas, as crianças possuem a peculiaridade de crescer, não é? E, pelo que me lembro, faz alguns anos que não vejo a sua cara nem a da sua filha. A que devo a inesperada honra desta visita, justamente hoje? Finalmente você resolveu se compadecer dos meus pobres livros?
— Exatamente  — Mo confirmou com a cabeça.  —
Um dos meus trabalhos foi adiado, era numa biblioteca, e você sabe como é, as bibliotecas estão sempre com falta de verbas.
Meggie fitou-o inquieta. Ela não sabia que ele era capaz de mentir tão bem.— Com a pressa — prosseguiu Mo — não tive tempo de arrumar um lugar para Meggie  ficar, por isso a trouxe comigo. Sei que você não gosta de crianças, mas Meggie não lambuza os livros com marmelada e também não arranca as páginas para embrulhar sapos mortos.
Elinor bufou desconfiada e mediu Meggie com o olhar, como se esperasse dela todos os tipos de infâmias, por mais que seu pai afirmasse o contrário.
— Da última vez que você a trouxe aqui, pelo menos podíamos prendê-la no cercado — ela observou com voz fria.
— Agora acho que isso não é mais possível.
Ela mediu Meggie novamente, da cabeça aos pés, como se fosse um animal perigoso que tinha de admitir em sua casa.
Meggie sentiu o sangue ferver em seu rosto, de raiva.
Ela queria voltar para casa ou para o ônibus, ir para um outro lugar qualquer, tudo menos ficar na casa daquela mulher detestável, cujos olhos de pedra fria abriam buracos em seu rosto.
O olhar de Elinor deixou-a e voltou-se para Dedo
Empoeirado, que ainda se mantinha no fundo da cena, encabulado.
— E esse aí? — ela perguntou para Mo. — Eu já o conheço?
— Este é Dedo Empoeirado, um... um amigo meu. —
Talvez apenas Meggie tenha notado a hesitação de Mo. — Ele está indo mais para o sul, mas talvez você possa hospedá-lo por uma noite num dos seus inúmeros quartos.
Elinor cruzou os braços.
— Apenas com a condição de que o nome dele não tenha nada a ver com a forma como lida com os livros — ela disse. — Assim mesmo, ele terá que se contentar com acomodações bastante precárias no sótão, pois nos últimos anos a minha biblioteca cresceu muito e engoliu quase todos os meus quartos de hóspedes.
— Mas quantos livros você tem? — perguntou Meggie.Ela crescera entre pilhas de livros, porém mesmo com toda a sua boa vontade não conseguia imaginar que houvesse livros guardados atrás de todas as janelas daquela casa imensa.
Elinor mediu Meggie com o olhar novamente, dessa vez sem disfarçar o desprezo.
— Quantos? — ela repetiu. — Por acaso você acha que eu conto os meus livros como se fossem botões ou ervilhas?
São muitos, muitos. Provavelmente, nos quartos desta casa existem mais livros do que você vai ler em toda a sua vida, e alguns são tão valiosos que eu não hesitaria em fuzilá-la se você se atrevesse a encostar neles. Mas, como o seu pai garantiu, você é uma menina inteligente e não vai fazer isso, não émesmo?
Meggie não respondeu. Em vez disso, imaginou que subia nas pontas dos pés e cuspia três vezes na cabeça daquela bruxa velha.
Mas Mo deu uma risada.
— Você não mudou nada, Elinor — ele observou. —
Tem uma língua afiada como um corta-papel. Mas fique sabendo que, se fuzilar Meggie, farei  o mesmo com os seus livros favoritos.
Os lábios de Elinor se esticaram num sorrisinho discreto.
— Boa resposta — ela disse, dando um passo para o lado. — Pelo visto você também não mudou. Entrem. Vou lhe mostrar os livros que precisam da sua ajuda. E mais alguns outros.
Meggie sempre achara que Mo possuía muitos livros.
Depois que entrou na casa de Elinor, deixou de pensar assim.
Ali não havia pilhas de livros espalhadas por todos os cantos, como na casa de Meggie. Aparentemente, cada livro tinha seu lugar. Mas, nos lugares onde na casa das outras pessoas havia papel de parede, quadros ou simplesmente um pedaço de parede nua, na casa de Elinor havia estantes abarrotadas de livros. No Vestíbulo eram estantes brancas, de ma-deira clara, que subiam até o teto; nos aposentos que atravessaram a seguir, elas eram escuras como o assoalho, assim como no corredor em que entraram depois.
— Estes aqui — anunciou Elinor, fazendo gestos desdenhosos enquanto passava na frente das lombadas espremidas umas contra as outras — foram se juntando no decorrer dos anos. Não são muito valiosos, a maior parte é de qualidade inferior, nada de extraordinário. Caso alguns dedinhos não consigam se controlar e em algum momento peguem um deles
— ela lançou um breve olhar para Meggie — não haverá conseqüências graves. Contanto que esses dedinhos, depois de saciada sua curiosidade, coloquem cada livro de volta no seu lugar sem deixar nenhum marcador nojento dentro deles.
Com essas palavras, Elinor virou-se para Mo.
— Você não vai acreditar, mas num dos últimos livros que comprei, uma magnífica primeira edição do século XIX, eu encontrei uma fatia seca de salame como marcador de leitura!
Meggie deu uma risadinha, o que lhe rendeu instantaneamente mais um olhar pouco amigável.
— Isso não tem graça, minha senhorita — disse Elinor.
— Alguns dos livros mais incríveis que já foram impressos se perderam porque alguma besta quadrada de um feirante arrancou suas páginas para embrulhar peixes fedidos. Na Idade
Média, milhares de livros foram destruídos porque as pessoas cortavam as capas para fazer solas de sapatos ou então queimavam as páginas para aquecer seus banhos de vapor.
A lembrança de infâmias tão terríveis, ainda que datadas de muitos séculos, fez Elinor perder o fôlego.
— Bem, deixe isso para lá! Senão vou ficar muito agitada, e tenho pressão alta.
Ela havia parado diante de uma porta de madeira clara, na qual havia um desenho, uma âncora com um golfinho enroscado.
— Este é o símbolo de um famoso impressor — explicou Elinor, e passou o dedo no nariz pontudo do golfinho.
— Perfeito para a entrada de uma biblioteca, não é?
— Eu sei — disse Meggie. — Aldus Manutius. Ele viveu em Veneza e fazia livros do tamanho certo para caberem nos alforjes dos seus clientes.
— Ah, é? — Elinor franziu o cenho, irritada. — Eu não sabia. De qualquer forma, sou a feliz proprietária de um livro que ele próprio imprimiu. No ano de 1503.
— Você quer dizer, um livro que foi impresso na oficina dele — corrigiu Meggie.
— É claro que é isso o que eu quis dizer. — Elinor pigarreou e lançou um olhar repreensivo para Mo, como se ele fosse o único culpado pelo fato de sua filha saber coisas tão extravagantes. Então ela pôs a mão na maçaneta. Enquanto a girava com um ar quase solene, disse: — Por esta porta nunca passou uma criança, mas como o seu pai parece ter lhe incutido um certo respeito perante os livros, farei uma exceção.
Contudo, apenas com a condição de que mantenha pelo menos três passos de distância das estantes. Você aceita essa condição?
Por um momento, Meggie quis recusar. Como ela gostaria de surpreender Elinor, mostrando que desprezava seus livros! Mas não conseguiu. Sua curiosidade era simplesmente grande demais. Meggie tinha a impressão de quase ouvir os livros sussurrar pela porta entreaberta. Milhares de histórias desconhecidas prometiam abrir milhares de portas para mundos nunca antes vistos. A tentação foi maior do que o orgulho.
— Aceito  — ela murmurou, cruzando os dedos nas costas. — Três passos.
Suas mãos estavam ansiosas.
— Garota esperta — disse Elinor num tom tão arrogante que quase fez Meggie voltar atrás em sua decisão.
Então eles entraram no santuário de Elinor.
— Você fez uma reforma! — Meggie ouviu Mo dizer.Ele disse mais alguma coisa, mas ela não estava mais escutando. Apenas olhava para os livros. As estantes cheiravam a madeira recém-cortada e iam até o teto azul-celeste, do qual, como estrelas enfileiradas, pendiam pequenas lâmpadas.
Estreitas escadas de madeira, equipadas com rodinhas, ficavam diante das estantes, prontas para levar qualquer leitor curioso até as prateleiras mais altas. Havia púlpitos de leitura, onde repousavam livros abertos, atados por correntinhas de latão dourado. Havia vitrines, nas quais livros com páginas manchadas pela velhice mostravam figuras maravilhosas a quem se aproximasse. Meggie não pôde evitar. Um passo, um rápido olhar para Elinor, que para sua sorte estava virada de costas, e já estava diante da vitrine. Ela foi se inclinando mais e mais, até que bateu com o nariz no vidro.
Folhas espinhosas serpenteavam ao redor de letras marrons desbotadas. Uma minúscula cabeça vermelha de dragão cuspia flores no papel manchado. Cavaleiros montados em cavalos brancos olhavam para Meggie, como se não tivesse se passado um só dia desde que alguém os pintara com finos pincéis de pêlo de marta. Ao lado deles havia um casal, talvez um casal de noivos. Um homem de chapéu vermelho cor de fogo olhava para os dois com uma expressão hostil.
— Isso são três passos?
Meggie teve um sobressalto, mas Elinor não parecia estar zangada de verdade.
— Sim, a arte da iluminura!  — ela disse.  — Antigamente, apenas os ricos sabiam ler. Por isso, para que os pobres pudessem entender as histórias, existiam as figuras desenhadas em cima das letras. Naturalmente, eles não faziam isso pensando no prazer dos pobres, afinal eles estavam no mundo para trabalhar, não para serem felizes ou para verem belas figuras. Isso estava reservado aos ricos. Não, eles queriam doutriná-los. A maior parte eram histórias bíblicas, que todos já conheciam de qualquer forma. Os livros ficavam nas igrejas, e a cada dia se virava uma página e se exibia uma figura diferente.
— E este livro aqui? — perguntou Meggie.
— Oh, esse aí acho que nunca entrou numa igreja. Ele certamente serviu mais ao deleite de um homem muito rico, mas já tem quase seis séculos. — Não era possível ignorar o orgulho na voz de Elinor. — Por causa de um livro desses já houve morte e assassinato. Felizmente eu só  precisei comprá-lo.
Ao dizer as últimas palavras, ela se virou de repente e olhou para Dedo Empoeirado, que os seguia silencioso como um gato à espreita de uma presa. Por um momento, Meggie pensou que Elinor fosse mandá-lo de volta para o corredor, mas Dedo Empoeirado estava parado diante das estantes com as mãos cruzadas nas costas, numa pose respeitosa que não dava nenhum motivo para fazer isso. Assim, ela lançou um último olhar de desprezo para ele e se voltou para Mo.
Ele estava diante de um púlpito de leitura, e tinha nas mãos um livro cuja lombada estava presa apenas por alguns fios. Segurava-o com muito cuidado, como a um passarinho com a asa partida.
— E então? — perguntou Elinor, preocupada. — Você pode salvá-lo? Sei que ele se encontra num estado terrível, e os outros... receio que não estejam em melhor estado, mas...
— Posso dar um jeito em todos eles — Mo pôs o livro de lado e examinou um outro. — Mas acho que vou precisar de duas semanas pelo menos. Se não precisar comprar mais material. Isso poderia prolongar um pouco mais a coisa. Você suportará nossa presença por tanto tempo?
— Mas é claro. — Elinor assentiu com a cabeça.
Meggie notou o olhar que ela lançou nesse momento na direção de Dedo Empoeirado. Ele ainda estava na frente das estantes e parecia completamente absorto na contemplação dos livros, mas Meggie teve a impressão de que não deixavaescapar nada do que se falava em suas costas.
Na cozinha de Elinor não havia livros, nem um sequer, mas ali eles tiveram um excelente jantar, numa escrivaninha de madeira que, conforme garantira a dona da casa, provinha de um mosteiro na Itália. Meggie duvidava disso. Que ela soubesse, antigamente os monges trabalhavam em mesas com superfícies inclinadas, mas ela decidiu guardar essa informação para si. Em vez de falar disso, pegou mais um pedaço de pão, e estava justamente se perguntando se o queijo que estava sobre a suposta escrivaninha era saboroso quando viu Mo cochichar alguma coisa com Elinor. Esta arregalou os olhos, cheia de curiosidade, do que Meggie concluiu que o assunto só podia ser um livro e imediatamente se lembrou do papel de embrulho, da capa de tecido verde-claro e da voz furiosa de
Mo.
Ao lado dela, Dedo Empoeirado fez um pedaço de presunto escorregar discretamente para dentro de sua mochila: o jantar de Gwin. Meggie viu um focinho redondo assomar para fora da mochila e farejar o ar na esperança de ganhar outras iguarias. Dedo Empoeirado sorriu para Meggie quando notou seu olhar, e mandou mais um pedaço de toucinho para
Gwin. Ele parecia não ligar a mínima para o cochicho de Mo e
Elinor; Meggie porém não tinha dúvidas de que os dois tramavam algo secreto.
Depois de um tempo, Mo se levantou e saiu. Meggie perguntou a Elinor onde ficava o banheiro e foi atrás dele.
Era estranho espionar Mo. Ela não se lembrava de ter feito isso alguma vez  — a não ser na noite em que Dedo
Empoeirado chegara. E  quando ela tentara descobrir se Mo era Papai Noel. Ela sentia vergonha de segui-lo daquela maneira. Mas a culpa era dele mesmo. Por que escondera o livro dela? E agora, ao que tudo indicava, pretendia dá-lo a Elinor
— um livro que ela própria não podia ver! Desde que Mo o escondera tão depressa, Meggie não o tirara mais da cabeça.
Ela até mesmo o procurara na sacola com as coisas de Mo, antes que ele a levasse para o ônibus, mas não conseguira encontrá-lo.Meggie simplesmente tinha que vê-lo, antes que ele desaparecesse numa das vitrines de Elinor! Tinha que saber por que ele era tão importante para Mo a ponto de tê-la arrastado até ali...
No Vestíbulo, Mo olhou mais uma vez para os lados antes de sair da casa, mas Meggie abaixou-se a tempo, atrás de uma cesta de roupas que exalava um cheiro de naftalina e lavanda. Decidiu ficar escondida ali até Mo voltar. Lá fora no pátio, ele certamente a descobriria. O tempo a torturava passando devagar, como acontece sempre que se espera por alguma coisa com o coração acelerado. Os livros nas prateleiras de madeira clara pareciam observar Meggie, mas ficaram calados como se sentissem que naquele momento ela podia pensar apenas num exemplar.
Finalmente Mo voltou, trazendo na mão um pequeno pacote em papel de embrulho.  “Talvez ele queira apenas escondê-lo aqui!”, pensou Meggie.  “Existe lugar melhor para esconder um livro do que no meio de dez mil outros?” Era isso, Mo iria deixá-lo ali e eles voltariam para casa.  “Mas eu gostaria de vê-lo, uma só vez”, pensou Meggie, “antes que ele vá parar numa estante da qual tenho que manter três passos de distância.”
Mo passou tão perto que poderia tê-la tocado, mas não a viu. “Meggie, não me olhe assim!”, ele dizia às vezes. “Vocêestá lendo os meus pensamentos de novo.” Agora ele parecia preocupado, como se não estivesse seguro de que iria fazer a coisa certa. Meggie contou até três bem devagar antes de ir atrás dele, mas Mo parou tão repentinamente algumas vezes que ela quase esbarrou nele. Em vez de voltar para a cozinha, ele foi direto à biblioteca. Sem olhar mais para os lados, abriu a porta com o símbolo do impressor veneziano e fechou-a com cuidado atrás de si.
Meggie ficou ali, no meio de todos aqueles livros calados, perguntando a si mesma se deveria ir atrás dele... se deveria pedir a ele que lhe mostrasse o livro. Ele ficaria muito zan-gado? Ela estava começando a criar coragem para segui-lo quando ouviu passos. Passos rápidos e decididos, apressados e impacientes. Só podia ser Elinor. E agora?
Meggie abriu a porta mais próxima e entrou. O cômodo tinha uma cama com dossel, um armário, fotos com molduras de prata, uma pilha de livros no criado-mudo, um catálogo aberto em cima do tapete, as páginas cheias de reproduções de livros antigos. Ela estava no quarto de Elinor. Com o coraçãoaos pulos, parou para escutar, ouviu os passos enérgicos de Elinor e o barulho da porta da biblioteca se fechando umasegunda vez. Cautelosamente, Meggie se esgueirou de novo pelo corredor. Ela ainda estava indecisa diante da porta da biblioteca quando de repente uma mão atrás dela pousou em seu ombro. Uma segunda mão abafou o seu grito de pavor.
— Sou eu — cochichou Dedo Empoeirado em seu ouvido. — Fique bem quietinha, senão nós dois teremos problemas, entendeu?
Meggie concordou com a cabeça, e Dedo Empoeirado tirou lentamente a mão de sua boca.
— O seu pai quer dar o livro para essa bruxa, não é? —ele sussurrou. — Ele foi buscar o livro? Diga logo. Ele está com o livro ou não?
Meggie empurrou-o.
— Não sei! — ela sussurrou, irritada. — Mas o que o senhor tem a ver com isso?
— O que tenho a ver com isso? — Dedo Empoeirado riu baixinho. — Bem, talvez algum dia eu lhe conte o que tenho a ver com isso. Mas agora só quero saber se você viu o livro.
Meggie sacudiu a cabeça. Ela mesma não sabia por que estava mentindo para Dedo Empoeirado. Talvez porque a mão dele tivesse apertado um pouco demais a sua boca.
— Meggie! Ouça!  — Dedo Empoeirado fitou-a com um olhar penetrante. Suas cicatrizes pareciam pinceladas pálidas que alguém havia traçado em sua face, duas pinceladas no lado esquerdo, no lado direito uma terceira, maior do que as outras, da orelha até o nariz. — Capricórnio vai matar o seu pai se não obtiver o livro! Ele vai matá-lo, entendeu? Não lhe contei como ele é? Ele quer o livro, e sempre consegue o que quer. É ridículo achar que estará seguro aqui.
— Mo não acha isso!
Dedo Empoeirado se pôs de pé e ficou olhando para a porta da biblioteca.
— É verdade, eu sei disso. É esse o problema. E por isso — ele pôs as duas mãos nos ombros de Meggie e a empurrou em direção à porta fechada — você vai entrar aí dentro inocentemente e descobrir o que os dois pretendem fazer com o livro. Certo?
Meggie ia protestar. Mas antes que ela pudesse pensar,
Dedo Empoeirado havia aberto a porta e a empurrara para dentro da biblioteca.

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