terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Coração de Tinta - Capítulos 55 a 59 (Últimos Capítulos)

55. Traição, tagarelice e estupidez

E então ele disse:
— Eu vou morrer, não há dúvida; não há nenhum meio de sair desta estreita prisão!
A história de Ali Babá e os quarenta ladrões

Elinor achou que estava de fato se comportando cora-josamente. Embora ainda não soubesse direito o que aconte-ceria com ela — se sua sobrinha sabia de mais alguma coisa, não lhe dissera —, não havia dúvida de que não era nada de bom.
Teresa também não deu aos homens que foram bus-cá-la na cripta o gosto de ver suas lágrimas. Praguejar ou xin-gá-los, de qualquer forma, ela não podia mais. Sua voz se fora como um vestido aposentado. Felizmente ela tinha consigo dois pedaços de papel, sujos e amassados, pequenos demais para tantas palavras, acumuladas durante nove anos, mas era melhor do que nada. Ela os preenchera até as bordas com le-trinhas minúsculas, sem que sobrasse espaço para uma única palavra. Sobre ela mesma e o que vivera ela não quis contar nada, apenas fez gestos impacientes de recusa quando Elinor lhe perguntou. Não, ela queria fazer perguntas, perguntas e mais perguntas, sobre sua filha e seu marido. E Elinor sussur-rava as palavras em seu ouvido, bem baixinho, para que Basta não soubesse que as duas mulheres que iriam morrer com ele se conheciam desde que a mais jovem dera seus primeiros passos... entre as longas estantes de Elinor, que na época es-
tavam recheadas de livros até não caber mais como se não houvesse outras pessoas além deles na aldeia de Capricórnio.
Basta não estava agüentando muito bem. Sempre que olhavam para ele, elas viam suas mãos agarradas às barras da grade, os nós dos dedos brancos sob a pele queimada de sol. Uma vez Elinor pensou tê-lo ouvido chorar, mas quando vie-ram buscá-lo na cela seu rosto estava tão inexpressivo como o de um defunto, e depois que o prenderam naquela jaula in-descritível ele se encolheu num canto e ali ficou, imóvel como um boneco com o qual ninguém queria mais brincar.
A jaula tinha cheiro de cachorro e de carne crua, e de fato se parecia com um canil. Alguns dos homens de Capri-córnio passavam o cano da espingarda nas grades cinzentas antes de se sentarem nos bancos a eles destinados. Basta, so-bretudo, ouviu tantos gracejos e injúrias que teriam sido de-mais até para dez homens. Apesar disso, ele não se mexeu uma única vez, e daí se via quão profundo era seu desespero.
Elinor e Teresa, apesar de tudo, mantinham distância dele dentro da jaula, tanto quanto era possível. Elas também ficaram afastadas das grades, e de todos os dedos que se enfi-avam ali, das caretas que faziam para elas, dos cigarros acesos que jogavam em sua direção. Ficaram ali de pé, perto uma da outra, contentes de estar juntas e ao mesmo tempo tristes por isso.
Na beira da praça, logo ao lado da entrada, cuidadosa-mente separadas dos homens, estavam sentadas as mulheres que trabalhavam para Capricórnio. Ali nada se via da excitação alegre e ruidosa que reinava entre os homens. Eram quase to-dos rostos aflitos, e a cada instante um olhar se voltava para Teresa, cheio de medo e compaixão.
Capricórnio chegou quando os longos bancos já esta-vam lotados. Para os garotos não havia lugar, eles se agacha-vam no chão, na frente dos casacos-pretos. Com o rosto i-móvel, Capricórnio passou por eles sem lhes dar atenção, como se fossem apenas um bando de corvos que haviam se
reunido a mando seu. Só diante da jaula em que estavam seus prisioneiros ele afrouxou o passo, para medir cada um deles com um breve olhar de satisfação consigo mesmo. Basta viu toda a sua vida voltar numa fração de segundo quando seu velho senhor e mestre parou diante da grade; então ergueu a cabeça e olhou para Capricórnio, suplicante, como um cão que pede perdão ao seu dono, mas Capricórnio passou sem dizer uma palavra. Depois que o grande vilão se acomodou em sua poltrona de couro preta, Cockerell postou-se de per-nas abertas atrás dele. Aparentemente, ele era o novo favorito.
— Pelo amor de Deus! Pare de olhar para ele desse jei-to! — Elinor ralhou com Basta quando notou que seu olhar ainda estava fixo em Capricórnio. — Ele planeja servir você como uma mosca para um sapo, que tal manifestar um pou-quinho de revolta? Afinal, você sempre teve uma dessas belas ameaças na ponta da língua: vou torcer o seu pescoço, vou picá-lo em pedacinhos... onde elas foram parar?
Mas Basta apenas baixou a cabeça novamente e ficou olhando para o chão entre suas botas. Ele pareceu a Elinor uma ostra da qual alguém sugara a carne e a vida.
Depois que Capricórnio tomou assento e silenciou a música que ecoara na praça o tempo todo, eles trouxeram Meggie. Haviam posto nela um vestido horroroso, mas ela mantinha a cabeça erguida, e a velha, que todos chamavam de gralha, estava tendo trabalho para arrastá-la até o tablado que os casacos-pretos haviam montado no meio do campo de fu-tebol. Em cima dele havia uma única cadeira, que parecia per-dida ali, como se alguém a tivesse esquecido. Uma forca e uma corda teriam parecido mais adequadas a Elinor. Meggie olhou na direção da jaula deles quando a gralha a puxou pela escada de madeira.
— Olá, meu bem! — exclamou Elinor quando Meggie a viu, aterrorizada. — Não se preocupe, só estou aqui porque não queria perder a sua leitura!
Estava tudo tão quieto após a chegada de Capricórnio
que a voz de Elinor ecoou por todo o campo. Ela soou ani-mada e corajosa. Felizmente, ninguém podia ouvir como o seu coração martelava contra suas costelas. Ninguém notou que ela quase sufocava de medo, pois havia vestido sua couraça, sua couraça impenetrável, bastante útil, sob a qual sempre se escondera em tempos difíceis. A cada golpe da dor, ela se tornava um pouco mais dura, e dor não faltara na vida de E-linor.
Alguns dos casacos-pretos riram com suas palavras, e mesmo no rosto de Meggie esboçou-se um sorriso pálido. E-linor pôs o braço no ombro de Teresa e a estreitou junto de si.
— Veja a sua filha! — ela sussurrou para Teresa. — Valente como... como...
Ela queria comparar Meggie a alguma heroína de livro, mas só lhe ocorriam homens, e além disso nenhum deles lhe parecia valente o bastante para se comparar com a menina que estava ali tão aprumada, olhando para os casacos-pretos de Capricórnio de queixo erguido, cheia de orgulho.
A gralha não trouxera apenas Meggie, mas também um homem velho. Elinor supunha que fosse o causador de toda aquela encrenca: Fenoglio, o inventor de Capricórnio, de Bas-ta e de todos os outros monstros, inclusive a criatura que de-veria tirar-lhes a vida naquela noite. Elinor sempre dera mais valor aos livros do que aos escritores, e olhou para o velho sem muita benevolência quando Nariz Chato passou com ele pela jaula. Havia uma cadeira destinada a ele, a apenas alguns passos da poltrona de Capricórnio. Elinor se perguntou se isso queria dizer que Capricórnio havia ganhado um novo amigo, mas, quando Nariz Chato se postou atrás do velho com uma cara enfezada, ela concluiu que na verdade se tratava de mais um prisioneiro.
Capricórnio ergueu-se assim que o senhor se sentou. Sem dizer uma palavra, ele correu os olhos pela longa fileira de seus homens, lentamente, como se evocasse na memória que serviço cada um havia prestado para ele, e também o que
havia feito de errado. O silêncio que se espalhou cheirava a medo. Todas as risadas sumiram, não se ouvia um só sussurro.
— A maioria de vocês — começou Capricórnio com a voz elevada — não precisa de explicações sobre a razão pela qual serão punidos os três prisioneiros que estão vendo ali! Para os demais, é suficiente que eu diga que se trata de traição, tagarelice e estupidez. Certamente é discutível se a estupidez é um crime que merece a morte. Eu penso que sim, pois ela pode ter as mesmas conseqüências que a traição.
Com essa última frase, fez-se um alvoroço nos bancos. De início Elinor pensou que ele havia sido provocado pelas palavras de Capricórnio, mas então ela ouviu os sinos. Até Basta ergueu a cabeça quando seu repicar ecoou pela noite. A um sinal de Capricórnio, Nariz Chato reuniu cinco homens com um aceno de cabeça e, escoltado por eles, retirou-se com passos pesados. Os que ficaram começaram a cochichar, in-quietos, alguns até mesmo se ergueram para olhar na direção da aldeia. Capricórnio, porém, ergueu a mão para dar um fim ao burburinho.
— Não é nada — ele exclamou, com voz tão alta e cortante que de repente todos fizeram silêncio novamente. — Um incêndio, nada mais. E de incêndios afinal de contas nós entendemos bastante, não é mesmo?
Uma risada irrompeu na platéia, mas alguns espectado-res, mulheres e homens, ainda olhavam preocupados para as casas.
Eles haviam conseguido, portanto. Elinor mordeu os lábios com tanta força que começaram a doer. Mortimer e o garoto haviam posto fogo na casa. Ainda não se via a fumaça sobre os telhados, e logo todos os rostos se voltaram tranqüi-lizados novamente para Capricórnio, que começava a contar algo sobre traição e falsidade, sobre disciplina e os perigos da displicência. Mas Elinor o escutava apenas com um ouvido. A todo instante ela olhava para as casas, mesmo sabendo que isso não era inteligente da sua parte.
— Já falei demais sobre os prisioneiros que aqui estão! — exclamou Capricórnio. — Passemos àqueles que escapa-ram.
Cockerell ergueu um saco que estava atrás da poltrona de Capricórnio e o entregou para ele. Capricórnio pôs a mão dentro dele com um sorriso e ergueu algo: um pedaço de te-cido, de uma camisa ou um vestido, rasgado e coberto de sangue.
— Eles estão mortos! — exclamou Capricórnio para a platéia. — É claro que eu preferiria vê-los aqui, mas infeliz-mente não foi possível deixar de atirar neles quando tentavam fugir. Bem, ninguém vai sentir falta do traidor que cuspia fo-go, e que quase todos vocês conheceram, e Língua Encantada por sorte deixou uma filha, que herdou o seu talento.
Teresa se virou para Elinor, os olhos vidrados de medo.
— Ele está mentindo! — sussurrou Elinor, embora ela também não conseguisse desgrudar o olho do pano ensan-güentado. — Está usando as minhas mentiras! Isso não é sangue, é tinta, algum tipo de tinta...
Mas ela viu que Teresa não acreditava nela. Acreditava no trapo ensangüentado, assim como sua filha. Elinor viu isso no rosto de Meggie e teve vontade de gritar que Capricórnio estava mentindo, mas queria que ele continuasse acreditando que todos estavam mortos e que ninguém viria estragar a sua festa.
— Sim, pode se gabar de um trapo sujo de sangue, seu incendiário miserável! — ela gritou pela grade. — Disso você realmente pode se orgulhar. Para que você precisa de mais um monstro? Vocês são todos monstros! Todos os que estão sentados aí! Assassinos de livros, seqüestradores de crianças!
Ninguém lhe deu atenção. Alguns dos casacos-pretos riram. Teresa aproximou-se da grade, agarrou com os dedos o arame fino e olhou para Meggie.
Capricórnio deixou o pano ensangüentado cair no bra-ço da sua poltrona. “Eu conheço esse trapo!”, pensou Elinor
cheia de orgulho. “Já o vi em algum lugar. Eles não estão mortos. Quem mais teria ateado o fogo? O devorador de fós-foros!”, algo sussurrou dentro dela, mas ela não quis ouvir. Não, a história tinha que ter um final feliz. Tinha que ter! Ela nunca gostara de histórias que não terminavam bem.

56. Sombra
Meu céu é latão
Minha terra ferro
Minha lua um bolo de barro
Pestilência o meu sol
Ardendo ao meio-dia
E um vapor de morte
A noite
William Blake, Segunda lamentação de Enion

Muitas vezes, consta nos livros que o ódio é quente, mas na festa de Capricórnio Meggie aprendeu que ele é frio, uma mão gelada que enrijece o coração e o pressiona contra as costelas como um punho fechado. O ódio a fez sentir frio, apesar do ar tépido que a acariciava como se quisesse fazê-la acreditar que o mundo ainda era bom e são, apesar do pano ensangüentado sobre o qual Capricórnio repousava sorridente sua mão cheia de anéis.
— Bem, era isso! — ele exclamou. — Agora vamos ao que nos trouxe aqui efetivamente. Esta noite não queremos apenas punir alguns traidores, mas também festejar a ocasião com o reencontro de um velho amigo. Alguns de vocês cer-tamente ainda se lembram dele, e os outros, eu prometo, ja-mais o esquecerão depois deste encontro.
Cockerell contraiu o rosto magro num sorriso sem gra-ça. Ele não parecia estar muito alegre com esse reencontro, e com as palavras de Capricórnio o medo se estampou também
em outros rostos.
— Bem, chega de conversa. Agora ouviremos uma lei-tura.
Capricórnio recostou-se em sua poltrona e fez um sinal para a gralha.
Mortola bateu palmas e Darius atravessou a praça a-pressado, trazendo o estojo que Meggie vira pela última vez no quarto da gralha. Ele parecia saber o que havia dentro. Seu rosto estava mais magro do que de costume quando ele abriu o estojo e o entregou para a gralha baixando a cabeça num gesto servil. As cobras deviam estar dormindo, pois dessa vez Mortola não calçou a luva para pegá-las. Ela até mesmo as pendurou no ombro enquanto tirava o livro do estojo. Depois ela pôs as cobras de volta, cuidadosamente, como se fossem jóias preciosas, fechou a tampa e devolveu o estojo para Da-rius, que ficou parado com um ar de constrangimento. Meggie viu o olhar de piedade do antigo leitor de Capricórnio quando a gralha a levou para a cadeira e pôs o livro em seu colo.
Ali estava ele novamente, em seu traje de papel colori-do, o causador daquela calamidade. Que cor ele teria por bai-xo? Meggie levantou a sobrecapa e viu um tecido verme-lho-escuro, vermelho como as chamas que envolviam o cora-ção negro. Tudo o que havia acontecido começara entre as páginas daquele livro, e agora a salvação só podia vir de seu autor. Meggie passou a mão na capa, como sempre fazia antes de abrir um livro. Ela copiara esse gesto de Mo. Desde que se entendia por gente, ela se lembrava deste movimento: como ele pegava um livro, passava a mão pela capa quase carinho-samente e então o abria, como se fosse uma caixa repleta de preciosidades nunca antes vistas. Naturalmente, as maravilhas que ele esperava encontrar muitas vezes não estavam atrás da capa, então ele fechava o livro de novo, desapontado com as promessas não cumpridas. Mas Coração de tinta não era desse tipo. Histórias ruins não despertavam para a vida. Nelas nunca havia um Dedo Empoeirado, nem mesmo um Basta.
— Tenho uma coisa a lhe comunicar! — o vestido da gralha tinha cheiro de lavanda. O perfume envolveu Meggie como uma ameaça. — Se você não fizer direito a sua tarefa, caso passe pela sua cabecinha a idéia de errar de propósito ou de torcer as palavras para que o convidado de Capricórnio não venha, então Cockerell — Mortola estava tão perto que Meg-gie sentiu seu hálito — vai cortar o pescoço do velho ali. Tal-vez Capricórnio não ordene que ele faça isso, pois acredita nas mentiras estúpidas do velho, mas eu não acredito e Cockerell fará o que eu mandar. Você me entendeu, anjinho?
Ela beliscou a bochecha de Meggie com seus dedos magros. Meggie empurrou a mão de Mortola e olhou para Cockerell. Ele estava atrás de Fenoglio, sorrindo para ela, e passou o dedo no pescoço do escritor num gesto de ameaça.
Fenoglio o empurrou e lançou para Meggie um olhar que deveria dizer tudo de uma vez só: incentivo e consolo, e uma risada muda perante todos os horrores que os cercavam. O êxito do plano dependeria dele, apenas dele e de suas pala-vras.
Meggie sentiu o papel em sua manga, ele pinicava a pe-le. Suas mãos lhe pareceram as mãos de uma outra pessoa quando ela começou a folhear o livro. O trecho onde deveria começar a leitura não estava mais marcado pelo canto dobra-do da página. Entre as páginas havia um marcador, preto co-mo carvão. “Tire o cabelo da testa!”, dissera Fenoglio. “Será o sinal para mim.” Mas justamente quando ela ia erguer a mão esquerda, começou um novo tumulto nos bancos.
Nariz Chato voltara, com o rosto coberto de fuligem. Ele correu até Capricórnio e disse algo em seu ouvido. Capri-córnio franziu a testa e ergueu o olhar na direção das casas. Meggie viu duas colunas de fumaça, ao lado da torre da igreja. Pálidas, elas subiam bem alto no céu.
Mais uma vez, Capricórnio ergueu-se da poltrona. Ele tentou falar de modo sereno e irônico, como um homem que se divertia com uma traquinagem infantil, mas seu rosto dizia
outra coisa.
— Sinto muito ter que estragar um pouco a festa para alguns de vocês, mas esta noite o galo vermelho também está cantando entre nós. E só um franguinho, mas teremos que torcer o pescoço dele assim mesmo. Nariz Chato, pegue dez homens.
Nariz Chato obedeceu e saiu dali com seus novos aju-dantes. Agora os bancos estavam visivelmente mais vazios.
— Não dêem as caras por aqui antes de ter encontrado o incendiário! — exclamou Capricórnio atrás deles. — Vamos ensinar para ele, aqui e ainda esta noite, o que significa pôr fogo na casa do Diabo.
Alguém riu. Mas quase todos os que haviam ficado o-lhavam inquietos na direção da aldeia. Algumas das criadas até mesmo haviam se levantado, porém a gralha chamou uma a uma pelo nome com sua voz cortante e elas logo se sentaram entre as outras, como estudantes que levaram palmadas nas mãos. Apesar disso, a inquietação permaneceu. Poucos olha-vam para Meggie, quase todos estavam de costas para ela, a-pontando para a fumaça e cochichando. Da torre da igreja subia um clarão avermelhado, e sobre os telhados erguia-se a fumaça cinzenta.
— O que é isso? O que tanto olham para um pouco de fumaça? — Agora a irritação na voz de Capricórnio era evi-dente. — Um pouco de fumaça, algumas chamas. E dai? Por acaso vamos deixar que isso estrague a festa? O fogo é o nos-so melhor amigo, esqueceram?
Meggie viu os rostos se voltarem hesitantes para ele novamente. E então ela ouviu um nome. Dedo Empoeirado. Uma voz de mulher o havia pronunciado.
— O que é isso? — a voz de Capricórnio soou tão cortante que Darius quase deixou cair da mão o estojo com as cobras. — Não existe mais nenhum Dedo Empoeirado. Ele está deitado nas colinas, com a boca cheia de terra e a marta no peito. Não quero mais ouvir o nome dele. Ele está esque-
cido, como se nunca houvesse existido...
— Não é verdade — a voz de Meggie ecoou tão alto na praça que ela própria se assustou. Ela ergueu o livro. — Ele está aqui. Não importa o que vocês façam com ele. Todos os que lerem esta história poderão vê-lo, até mesmo ouvir a sua voz, e também poderão vê-lo rir e cuspir fogo.
O campo de futebol ficou em silêncio, em silêncio completo. Apenas alguns pés raspavam inquietos o saibro, quando de repente Meggie ouviu algo atrás de si. Era um ti-quetaque, como o de um relógio, mas que ao mesmo tempo soava diferente, como a língua de uma pessoa imitando o ti-quetaque: tique, taque, tique, taque, tique, taque. O som vinha dos automóveis que estavam estacionados atrás do alambrado e iluminavam a praça com a luz de seus faróis. Meggie não pôde evitar, olhou em volta, apesar da gralha e de todos os olhares desconfiados que se voltavam para ela. Se achou tão insensata que merecia umas palmadas. E agora, se os outros também vissem a figura, a figura pequena que se erguera entre os automóveis e se agachara depressa novamente. Mas nin-guém pareceu ter notado, nem o olhar dela nem o tiquetaque.
— Foi um belo discurso! — disse Capricórnio lenta-mente. — Mas você não está aqui para fazer discursos fúne-bres para traidores mortos. Você está aqui para ler. E não vou repetir isso!
Meggie se obrigou a olhar para ele. Só para não olhar para os automóveis. E se realmente fosse Farid? E se o tique-taque não fosse imaginação dela?...
A gralha olhou desconfiada ao redor. Talvez ela tam-bém tivesse ouvido o tiquetaque, baixinho e inocente, nada mais do que uma língua que alguém batia contra os dentes. Mas o que significava aquilo? A não ser que alguém ali co-nhecesse a história do Capitão Gancho e de seu medo do crocodilo com o relógio na barriga... A gralha com certeza não conhecia. Mas Mo sabia que Meggie entenderia o seu sinal. Quantas vezes ele não a despertara com o tiquetaque, bem
pertinho de seu ouvido, tão pertinho que fazia cócegas? “Ca-fé-da-manhã, Meggie!”, ele sussurrava. “O crocodilo chegou!”
Sim, Mo sabia que ela reconheceria o tiquetaque que Peter Pan imitara para se aproximar do barco do Capitão Gancho e salvar Wendy. Foi um ótimo sinal.
“Wendy!”, pensou Meggie. Como é que continuava a história? Por um momento ela quase esqueceu onde estava, mas a gralha a fez lembrar. Bateu em sua cabeça com a palma da mão.
— Comece de uma vez, sua bruxinha! — ela disse entre os dentes. E Meggie obedeceu.
Ela retirou depressa o marcador preto de cima das le-tras. Tinha que se apressar, tinha que ler antes que Mo fizesse alguma besteira. Afinal, ele não sabia o que ela e Fenoglio planejavam.
— Agora vou começar, e não quero que ninguém me atrapalhe! — ela gritou. — Ninguém! Entenderam?
“Por favor!”, ela pensou, “Por favor, não tente fazer nada!” Alguns dos homens de Capricórnio que ainda estavam ali riram, mas este encostou-se e cruzou os braços com grande expectativa.
— Sim, gravem bem o que a menina falou! — ele ex-clamou. — Quem perturbar será servido para Sombra como aperitivo de boas-vindas!
Meggie enfiou dois dedos na manga do vestido. Ali es-tavam elas, as palavras de Fenoglio. Ela olhou para a gralha.
— Ela está me atrapalhando! — ela disse em voz alta. — Não consigo ler se ela ficar atrás de mim.
Capricórnio fez um sinal impaciente para a gralha. Mortola fez uma careta, como se ele tivesse lhe ordenado que comesse sabão, mas deu um passo para trás, dois, três passos hesitantes. Devia bastar.
Meggie ergueu a mão e tirou o cabelo da testa.
O sinal de Fenoglio.
Imediatamente, ele deu início à sua representação.
— Não! Não! Não! Ela não vai ler — ele exclamou, dando um passo em direção a Capricórnio, antes que Cocke-rell pudesse detê-lo. — Não posso admitir uma coisa dessas! Sou o inventor dessa história, e não a escrevi para que fosse usada para matar e assassinar!
Cockerell tentou tapar a boca de Fenoglio com a mão, mas ele mordeu seus dedos e esquivou-se com uma destreza que Meggie jamais esperaria do velho escritor.
— Eu o criei! — ele bradou enquanto Cockerell o per-seguia ao redor da poltrona de Capricórnio. — E me arre-pendo! Oh, criatura torpe com cheiro de enxofre!
Então ele correu para a praça. Antes de chegar à jaula com os prisioneiros, Cockerell o alcançou. Para se vingar da zombaria vinda dos bancos que a cena lhe rendeu, ele girou com tanta força o braço de Fenoglio que o velho deu um grito de dor. Mas ele parecia satisfeito quando Cockerell o arrastou de volta para o lado de Capricórnio, muito satisfeito, pois sa-bia que tinha dado tempo suficiente a Meggie. Eles haviam treinado bastante. Seus dedos tremeram quando ela puxou a folha de dentro da manga, mas ninguém percebeu que ela a enfiou entre as páginas do livro. Nem mesmo a gralha.
— Mas que velho mais fanfarrão! — exclamou Capri-córnio. — Por acaso eu tenho cara de quem foi inventado por alguém como ele?
Mais uma vez, irromperam as gargalhadas. A fumaça sobre a aldeia parecia ter sido esquecida. Cockerell tapou a boca de Fenoglio com a mão.
— Mais uma vez, e espero que seja realmente a última! — gritou Capricórnio para Meggie. — Comece! Os prisionei-ros já esperaram demais por seu carrasco.
Mais uma vez o silêncio se espalhou, mais uma vez ele cheirava a medo.
Meggie curvou-se sobre o livro em seu colo.
As letras pareciam dançar nas páginas.
“Venha!”, pensou Meggie. “Venha e nos salve. A todos
nós: Elinor e minha mãe, Mo e Farid. Salve Dedo Empoeira-do se ele ainda estiver aqui e, por mim, salve até mesmo Bas-ta.”
Ela sentia sua língua como um animalzinho que havia se refugiado em sua boca e agora batia com a cabeça em seus dentes.
— “Capricórnio tinha muitos homens”, ela começou. “E to-dos eles eram temidos nos vilarejos vizinhos. Eles fediam a fumaça fria, a enxofre e a tudo que cheirava afogo. Quando um deles aparecia nos cam-pos ou nas ruas, todos trancavam as portas e escondiam suas crianças. ‘Mãos-de-fogo’ era como as pessoas os chamavam, cães sanguinários. Os homens de Capricórnio tinham muitos nomes. Eram temidos durante o dia, e à noite entravam nos sonhos das pessoas para assustá-las. Mas havia alguém que era mais temido do que todos os outros homens de Ca-pricórnio.”— Meggie tinha a impressão de que sua voz crescia a cada palavra. Ela parecia estar por toda parte. — “Eles o cha-mavam de Sombra.”
Mais duas linhas, então virar a página. As palavras de Fenoglio esperavam ali. “Dê só uma olhada, Meggie!”, ele sussurrara ao lhe mostrar a folha. “Não sou um artista? Existe algo mais belo neste mundo do que as letras? Sinais mágicos, vozes dos mortos, peças de mundos maravilhosos, melhores do que este. Elas consolam e espantam a solidão. São guardiãs de segredos, arautos da verdade...”
“Saboreie cada palavra, Meggie”, a voz de Mo sussur-rava dentro dela. “Deixe-as derreter na boca. Está saboreando as cores? O vento e a noite? O medo e alegria? E o amor. Sa-boreie, Meggie, e tudo despertará para a vida.”
— “Eles o chamavam de Sombra. Ele aparecia apenas quando Capricórnio o evocava”— ela leu. Como o s sibilara, e que escuro saíra o o! — “Ora ele era vermelho como o Jogo, ora da cor das cinzas em que transformava tudo o que devorava. Como as chamas de uma fo-gueira, ele se erguia da terra em labaredas. Seus dedos, e até mesmo o seu hálito, traziam a morte. Ele se erguia dos pés do senhor dele,furtivo e sem rosto como um cão farejador, esperando que sua vítima fosse apontada.
Dizia-se que Capricórnio mandara que um duende (ou um dos anões que entendiam de tudo o que o fogo e a fumaça são capazes de produzir) cri-asse Sombra a partir das cinzas de suas vítimas. Ninguém sabia ao cer-to, pois dizia-se que Capricórnio mandara matar aquele que havia dado vida a Sombra. Apenas uma coisa se sabia: que ele era imortal e invul-nerável, e cruel como seu senhor.”
A voz de Meggie sumiu como se o vento a tivesse apa-gado dos lábios.
Algo se ergueu do cascalho que cobria a praça, cresceu nas alturas, estendeu seus membros cinzentos. A noite recen-dia a enxofre. O cheiro ardia tanto nos olhos de Meggie que todas as letras ficaram embaçadas, mas ela tinha que continuar a ler, enquanto a medonha criatura crescia, cada vez mais para o alto, como se quisesse tocar o céu com seus dedos de enxo-fre.
“Uma noite, porém, uma noite tépida e estrelada, quando Som-bra apareceu, ele não ouviu a voz de Capricórnio, e sim a voz de uma menina. Quando ela pronunciou seu nome, ele se lembrou de todas aque-las pessoas de cujas cinzas era formado, de toda a dor e toda a triste-za...”
A gralha apareceu atrás dos ombros de Meggie.
— O que é isso? O que você está lendo?
Mas Meggie levantou-se e esquivou-se antes que ela pudesse lhe arrancar a folha.
— “Ele se lembrou” — ela continuou a ler com voz bem alta — “e resolveu se vingar, se vingar de todos os que eram a causa daquela infelicidade, dos que haviam assombrado o mundo com sua cru-eldade.”
— Faça ela parar!
Era a voz de Capricórnio? Meggie quase tropeçou na borda do tablado ao tentar se esquivar da gralha. Darius estava ali, com o estojo na mão, como que embasbacado. E de re-pente, devagar como se tivesse todo o tempo do mundo, ele pôs o estojo no chão e agarrou a gralha por trás com seus braços finos. E não a largou, por mais que ela xingasse e se
debatesse. E Meggie continuou a ler, com o olhar voltado para Sombra, que estava diante dela e a encarava do alto. Ele real-mente não tinha rosto, mas tinha olhos, olhos terríveis, ver-melhos como o brilho que ardia entre as casas, como as brasas de um fogo oculto.
— Tirem o livro dela! — gritou Capricórnio. Ele estava de pé diante de sua poltrona, como se estivesse com medo de que as próprias pernas se recusassem a obedecer-lhe se ele desse um só passo em direção a Sombra. — Tirem o livro de-la!
Mas nenhum dos seus homens se mexeu, nenhum dos jovens, nenhuma das mulheres tentou ajudá-lo. Todos olha-vam apenas para Sombra, que estava ali imóvel e escutava a voz de Meggie como se ela lhe contasse uma história esqueci-da havia muito tempo.
— “Sim, ele queria se vingar” — Meggie continuou a ler. Se pelo menos sua voz não tremesse tanto, mas não era fácil matar, mesmo que alguém fizesse isso por ela. — “£ assim Sombra foi até o seu senhor e estendeu sua mão cinzenta...”
Como se movia com silêncio a figura assustadora e gi-gantesca! Meggie olhou para a próxima frase de Fenoglio: “E Capricórnio caiu de bruços e seu coração negro parou de bater.
Ela não conseguia dizer, não conseguia.
Tudo tinha sido em vão.
Então de repente havia alguém atrás dela, ela absoluta-mente não notara quando ele subira no tablado. O garoto que estava com ele carregava uma espingarda, que apontava para o banco de forma ameaçadora, mas ninguém se mexeu. Nin-guém mexeu um só dedo para salvar Capricórnio. E Mo tirou o livro da mão de Meggie, correu os olhos pelas linhas que Fenoglio havia acrescentado e, com voz firme, leu até o fim o que o velho homem escrevera.
— “E Capricórnio caiu de bruços e seu coração negro parou de bater, e todos que haviam incendiado e assassinado a seu serviço desapa-receram, como cinzas levadas pelo vento.

57. Apenas uma aldeia abandonada

Nos livros encontro os mortos como se estives-sem vivos, nos livros vejo o que está por vir.
Tudo se deteriora e desaparece com o tempo, toda a glória cairia no esquecimento se Deus não tivesse dado aos mortais o recurso dos livros.
Richard de Bury, citado por Alberto Manguel

Assim morreu Capricórnio, exatamente como Fenoglio descrevera. Cockerell desapareceu no mesmo instante em que seu senhor caiu no chão, e com ele mais da metade dos ho-mens que estavam nos bancos. Os demais fugiram, todos saí-ram correndo, os garotos e as mulheres também. Ao seu en-contro, vinham os homens que Capricórnio enviara para apa-gar o fogo e os que deveriam procurar o incendiário. Seus rostos estavam sujos de fuligem e cheios de horror, não por causa das chamas na casa de Capricórnio... eles já as haviam apagado. Não. Nariz Chato havia se dissolvido no ar diante de seus olhos, e com ele ainda outros. Eles haviam sumido como se tivessem sido engolidos pela escuridão, como se nunca ti-vessem existido, e talvez fosse isso mesmo. O homem que os havia criado também os havia destruído, apagado como erros num desenho, manchas no papel branco. Eles haviam desa-parecido, e os outros, que não eram fruto das palavras de Fe-noglio, correram de volta para relatar a Capricórnio o terrível fenômeno. Mas Capricórnio estava deitado de bruços, com seu terno vermelho sobre o cascalho, e nunca mais alguém lhe
contaria nada sobre fogo e fumaça, sobre medo e morte. Nunca mais.
Apenas Sombra estava ali, tão grande que os homens que haviam corrido para o estacionamento puderam vê-lo de longe, cinzento diante do céu negro da noite, com olhos feito duas estrelas incandescentes, e esqueceram o que tinham para contar. Todos dispararam em direção aos automóveis esta-cionados, tudo o que queriam era ir embora, para bem longe, antes que o ser que havia sido convocado como um cão de-vorasse todos eles.
Meggie só voltou a si quando todos haviam ido embo-ra. Ela enfiara a cabeça debaixo do braço de Mo, como sem-pre fazia quando não queria mais ver o mundo. Mo havia posto o livro debaixo do casaco, que de fato o fazia parecer um dos homens de Capricórnio, e a segurara enquanto tudo ao seu redor corria e gritava. Apenas Sombra estava ali, em silêncio completo, como se matar seu senhor tivesse exaurido suas forças.
— Farid — Meggie ouviu Mo dizer em algum mo-mento. — Você pode abrir a jaula ali?
Só então ela tirou a cabeça de sob o braço de Mo e viu que a gralha ainda estava ali. Por que ela não desaparecera? Darius ainda a segurava, como se tivesse medo do que acon-teceria se a soltasse. Mas ela não chutava nem se debatia mais. Olhava para Capricórnio, e as lágrimas escorriam pelo seu rosto anguloso e pelo seu queixo fino e pingavam como chuva em seu vestido.
Farid pulou do tablado, ágil como Gwin, e correu para a jaula sem tirar os olhos de Sombra. Mas ele não se mexia mais, estava apenas ali, como se nunca mais fosse se mexer.
— Meggie — sussurrou Mo em seu ouvido. — Vamos até os prisioneiros, está bem? A pobre Elinor parece meio a-balada, e além disso eu gostaria de lhe apresentar alguém.
Farid ainda não havia conseguido abrir a jaula, e as duas mulheres olhavam para ele.
— Não precisa me apresentar — disse Meggie, aper-tando sua mão. — Eu sei quem ela é. Eu já sei faz tempo, e gostaria tanto de ter lhe contado, mas você não estava aqui. Agora temos que ler mais uma coisa. As últimas frases.
Ela tirou o livro do casaco de Mo, e folheou até encon-trar a página escrita com a letra de Fenoglio.
— Ele escreveu no verso, não cabia mais. Ele não con-segue escrever com letra miúda.
Fenoglio.
Ela deixou cair a folha e olhou ao redor à procura dele, mas não conseguiu descobri-lo em nenhum lugar. Será que os homens de Capricórnio o haviam levado ou...
— Mo, ele não está aqui! — ela disse, atônita.
— Já irei procurá-lo — Mo a tranqüilizou. — Mas ago-ra leia, depressa! Ou prefere que eu leia?
— Não!
Sombra começou a se mexer novamente e deu um passo em direção ao corpo de Capricórnio, cambaleou para trás e virou-se, pesado como um urso dançarino. Meggie pensou ter ouvido um gemido. Farid agachou-se ao lado da jaula, quando os olhos vermelhos se voltaram em sua direção. Também a mãe de Meggie e Elinor recuaram. Meggie, porém, começou a ler. Com voz firme:
— “Sombra estava ali, e as lembranças lhe doíam tanto que quase o dilaceravam. Ele os ouvia em sua cabeça, todos os gritos e gemi-dos, e pensou ter sentido lágrimas em sua pele cinzenta. Seu medo quei-mava como fumaça em seus olhos. E então, deforma totalmente repentina, ele teve uma sensação diferente. Ela o fez cair ao chão, obrigou-o a se ajoelhar, e toda a sua tétrica figura desintegrou-se. De repente todos esta-vam ali novamente, todos de cujas cinzas ele fora criado: mulheres e ho-mens, crianças, cães, gatos, duendes,fadas e muitos outros.”
Meggie viu a praça vazia se encher, cada vez mais. Eles se apinhavam no lugar onde Sombra havia caído, olhavam ao seu redor como dorminhocos que tivessem acordado de um longo sono, e então Meggie leu a última frase de Fenoglio.
“Eles acordaram como que de um sonho ruim, e finalmente tudo ficou bem.”
— Ele não está aqui! — disse Meggie, quando Mo tirou a folha de Fenoglio de sua mão e a pôs de volta dentro do li-vro. — Ele se foi, Mo! Ele está no livro. Eu sei.
Mo examinou o livro e o pôs de volta debaixo do ca-saco.
— Acho que você tem razão — ele disse. — Mas, se for assim, não podemos mudar isso por enquanto.
Então ele puxou Meggie para perto de si, os dois des-ceram do tablado e passaram por todas as pessoas e seres es-tranhos que se aglomeravam na praça de Capricórnio, como se sempre tivessem estado ali. Darius os seguiu, ele havia fi-nalmente soltado a gralha, que estava de pé ao lado da cadeira na qual Meggie se sentara, com a mão nodosa no encosto, e chorava em silêncio, com o rosto imóvel como se consistisse apenas em lágrimas.
Uma fada minúscula, de pele azul, voou até os cabelos de Meggie e se desculpou com mil palavras, enquanto ela an-dava com Mo em direção à jaula onde estavam Elinor e sua mãe. Um sujeito cabeludo, parecendo meio gente, meio bicho, tropeçou nos pés de Meggie, e ela quase pisou num homen-zinho muito pequeno que parecia ser todo feito de vidro. A aldeia de Capricórnio recebera alguns estranhos novos mora-dores.
Farid ainda tentava abrir a fechadura quando eles che-garam. Irritado, ele enfiava alguma coisa nela sem parar de resmungar. Dedo Empoeirado lhe mostrara direitinho como se fazia, mas aquela era uma fechadura muito especial.
— Pois é, que maravilha! — disse Elinor com ironia, encostando o rosto na grade diante deles. — Infelizmente, como esse Sombra não nos comeu no jantar, teremos que morrer de fome nesta jaula. O que você me diz da sua filha, Mo? Não é uma garota muito corajosa? Eu não teria conse-guido dizer uma palavra, nem uma única palavra. Meu Deus, o
meu coração quase parou quando aquela velha quis tirar o li-vro dela.
Mo pôs a mão no ombro de Meggie e sorriu, mas olhou para outra pessoa. Nove anos são um tempo longo, muito longo.
— Consegui! Consegui! — exclamou Farid, empurran-do a porta da jaula.
Mas, antes que as duas mulheres pudessem dar um passo em direção à porta, uma figura se ergueu no canto mais escuro do canil, avançou com um salto e agarrou a primeira que estava no seu caminho: a mãe de Meggie.
— Parem! — disse Basta entre os dentes. — Parem, para que tanta pressa? Aonde você quer ir, Resa? Para a sua querida família? Você acha que eu não ouvi os cochichos lá embaixo na cripta? Ah, mas eu ouvi muito bem.
— Solte-a! — gritou Meggie. — Solte-a!
Por que ela não havia prestado atenção naquela trouxa escura, tão imóvel num canto? Como pudera pensar que Basta estaria morto como Capricórnio? Mas por que não estava? Por que ele não desaparecera, como Nariz Chato e Cockerell e todos os outros?
— Solte-a, Basta! — Mo disse em voz baixa, como se não tivesse forças para mais nada. — Você não sairá daqui, não com ela. Ninguém o ajudará, todos se foram.
— Oh, eu vou sair, sim! — retrucou Basta com voz maldosa. — Eu a estrangularei se você não me deixar passar. Vou quebrar seu pescocinho fino. Você sabia que ela é muda? Ela não pode dar nenhum pio, porque o charlatão do Darius a leu assim. Ela é um peixe mudo, um belo peixe, mas mudo. No entanto, pelo que conheço de você, sei que a quer assim mesmo, não é?
Mo não respondeu, e Basta riu.
— Por que você não está morto? — gritou Elinor. — Por que você não caiu morto como o seu senhor nem se dis-solveu no ar? Diga logo!
Basta sacudiu os ombros.
— Sei lá eu — ele rosnou, enquanto apertava o pesco-ço de Resa com a mão. Ela tentou chutá-lo, mas ele apenas apertou ainda mais. — Afinal de contas, a gralha também está aqui. Bem, mas ela sempre deixou o trabalho sujo para os ou-tros e, quanto a mim, talvez eu agora faça parte dos bons porque eles me puseram na jaula. Talvez eu ainda esteja aqui porque fazia tempo que eu não aprontava nada e Nariz Chato tinha muito mais prazer em matar. Talvez, talvez, talvez... seja lá como for, ainda estou aqui... e agora me deixe passar, sua devoradora de livros!
Mas Elinor não se mexeu.
— Não! — ela disse. — Você não sai daqui se não a soltar! Nunca pensei que esta história acabaria bem, mas aca-bou. E não vai ser um cretino como você que vai estragá-la no último minuto. Ou eu não me chamo Elinor Loredan!
Com um ar decidido, ela se plantou diante da porta da jaula.
— Desta vez você não está com a sua navalha! — ela continuou em tom ameaçador. — Você só tem essa sua boca suja, e acredite que ela não vai ajudar muito. Enfie os dedos nos olhos dele, Teresa! Chute e morda esse sujeitinho ordiná-rio!
Mas, antes que Teresa pudesse obedecer, Basta a em-purrou para a frente, com tanta força que ela tropeçou em E-linor e a derrubou. Elinor e também Mo, que estava indo so-corrê-la.
Basta correu para a porta aberta da jaula, empurrou Fa-rid e Meggie para o lado e saiu em disparada pelo meio de to-das as criaturas que vagueavam feito sonâmbulos pela praça da festa de Capricórnio. Antes que Farid e Mo pudessem cor-rer atrás de Basta, ele desaparecera.
— Bem, fabuloso! — murmurou Elinor, enquanto se arrastava com Teresa para fora da jaula. — Agora esse tipo vai me perseguir nos meus sonhos e, sempre que eu ouvir algum
ruído lá fora no meu jardim, vou imaginar que a navalha dele está no meu pescoço.
* * *
Não apenas Basta, mas também a gralha desapareceu sem deixar vestígios naquela noite. E quando eles se arrasta-ram cansados para o estacionamento em busca de um veículo que pudesse levá-los para fora da aldeia de Capricórnio, todos haviam desaparecido. Não havia mais um único automóvel no estacionamento escuro.
— Oh, não, por favor, diga que isso não é verdade! — gemeu Elinor. — Isso significa que teremos que ir a pé de novo, por todo esse maldito caminho cheio de espinhos?
— A não ser que por acaso você tenha um telefone — disse Mo. Ele não se afastara um só passo de Teresa desde que Basta se fora.
Olhara preocupado para o pescoço dela, onde ainda se viam as manchas vermelhas que os dedos de Basta haviam deixado. Ele tomara uma mecha de seus cabelos nos dedos e dissera que, escuros daquele jeito, eles eram quase mais boni-tos. Mas nove anos são de fato um longo tempo, e Meggie observou como eles se aproximavam um do outro com cui-dado, como duas pessoas em cima de uma ponte estreita que cruza um vasto nada.
Naturalmente, Elinor não tinha um telefone. Capricór-nio mandara confiscar o dela, e, embora Farid tivesse se ofe-recido imediatamente para procurá-lo na casa incendiada de Capricórnio, ele não foi encontrado.
Assim, eles finalmente decidiram passar uma última noite na aldeia, junto com todos os outros que Fenoglio havia resgatado da morte. A noite ainda estava maravilhosamente amena, e eles poderiam dormir muito bem entre as árvores.
Junto com Mo, Meggie arranjou cobertores em número suficiente. Não foi difícil encontrá-los na aldeia mais uma vez
abandonada. Eles só não entraram na casa de Capricórnio. Meggie não queria pisar novamente naquela soleira, e não era por causa do cheiro penetrante de queimado que ainda saía pelas janelas, nem das portas carbonizadas, mas sim das recordações que, só de olhar para a casa, a assaltavam como animais ferozes.
Quando estava deitada junto com Mo e sua mãe de-baixo dos velhos carvalhos à margem do estacionamento, ela não parava de pensar em Dedo Empoeirado, e se perguntava se Capricórnio realmente mentira no caso dele e se ele de fato não estaria enterrado em algum lugar nas colinas. “Provavelmente nunca saberei o que foi feito dele”, ela pensou, en-quanto uma fada azul balançava num dos galhos com uma expressão enigmática.
Toda a aldeia parecia encantada naquela noite. O ar estava cheio de murmúrios, e as figuras que vagavam pelo estacionamento pareciam ter saído de sonhos de crianças, e não das palavras de um velho homem. Meggie também se perguntou várias vezes naquela noite onde andaria Fenoglio e se ele estava gostando de fazer parte de sua própria história. Ela desejava muito que ele estivesse satisfeito, mas sabia que o escritor sentiria falta de seus netos e das brincadeiras de esconde-esconde no armário da cozinha.
Antes de fechar os olhos, Meggie viu Elinor perambu-lando entre os duendes e as fadas, com uma expressão tão feliz como ela nunca vira antes. A esquerda e a direita de Meggie, porém, estavam seus pais, e sua mãe escrevia, em folhas de árvores, no tecido de seu vestido e na areia. Havia tantas palavras que queriam ser contadas...

58. Nostalgia

Mas Bastian sabia que não poderia ir embora sem o livro. Agora ele se dava conta de que en-trara ali somente por causa daquele livro, que o livro o havia chamado de alguma forma misteri-osa, pois queria chegar até ele, pois na verdade sempre lhe pertencera!
Michael Ende, A história sem Jim

Dedo Empoeirado assistiu a tudo, de cima de um te-lhado, a uma distância que permitiu que ele se sentisse seguro contra Sombra e ao mesmo tempo acompanhasse tudo o que acontecia — com o binóculo que encontrara na casa de Basta. Inicialmente, ele pretendia ficar em seu esconderijo. Já vira Sombra matar tantas vezes! Mas uma sensação estranha, irra-cional como os amuletos de Basta, o impelia: a de que ele po-deria proteger o livro com sua simples presença. Enquanto se esgueirava pela rua, ele também sentiu outra coisa, algo que apenas admitia a contragosto: Dedo Empoeirado queria ver Basta morrer, com o mesmo binóculo que ele usara tantas ve-zes para observar suas futuras vítimas.
E então ele estava ali, sentado em cima de um telhado esburacado, com as costas apoiadas na chaminé fria e o rosto coberto de fuligem (pois o rosto é um clarão denunciador na noite), observando a fumaça subir no ponto onde ficava a casa de Capricórnio. Ele viu Nariz Chato sair correndo com alguns homens para apagar o fogo. Viu como Sombra se ergueu do
chão, como o velho homem desapareceu, com um espanto indescritível no rosto, e como Capricórnio morreu da morte que ele mesmo evocara. Basta infelizmente não morrera, o que era realmente irritante. Dedo Empoeirado o viu fugir. A gralha o seguiu, ele também viu.
Ele viu tudo: Dedo Empoeirado, o espectador.
Tantas vezes ele fora somente um espectador, e aquela nem era a história dele. O que ele tinha a ver com Língua En-cantada e sua filha, o garoto, aquela doida dos livros e a mu-lher que agora pertencia a um outro? Ela poderia ter fugido com ele, mas ficara na cripta, com sua filha. E ele a expulsara de seu coração, como sempre fazia quando alguém queria se acomodar ali de forma duradoura. Estava feliz por Sombra não a ter levado, mas ela não tinha mais nada a ver com ele. A partir de agora, Resa contaria a Língua Encantada todas as maravilhosas histórias que haviam espantado a solidão, as saudades e o medo. O que isso lhe importava?
E as fadas e os duendes que agora perambulavam pela aldeia de Capricórnio? Tinham tanto a fazer naquele mundo quanto ele, e também não o deixariam esquecer que ele estava ali apenas por um motivo. Apenas o livro ainda o interessava, apenas o livro. Quando ele viu como Língua Encantada o guardou no casaco, decidiu recuperá-lo. Pelo menos o livro seria dele, tinha que ser.
O velho agora estava lá dentro, o velho de rosto enru-gado. Louco. “Sim, o seu medo, Dedo Empoeirado!”, ele pensou, amargurado. “Você é e sempre será um covarde. Por que você não estava ao lado de Capricórnio? Por que você não se arriscou a ficar atrás dele, talvez então você tivesse desapare-cido no lugar do velho.”
A fada com asas de borboleta e rosto branco como leite voara atrás dele. Ela era uma criaturinha vaidosa. Toda vez que via o próprio reflexo em alguma janela, ficava ali um tempo, sorrindo esquecida da vida, virando e girando no ar, ajeitando os cabelos com os dedos, contemplando a si mesma
como se a cada vez se encantasse novamente com sua própria beleza. As fadas que ele conhecia não eram especialmente vaidosas, ao contrário, às vezes tinham um prazer especial em besuntar seus minúsculos rostinhos com lama ou pólen e en-tão perguntar entre risadinhas qual delas se escondia atrás de toda aquela sujeira.
“Talvez eu devesse capturar uma para mim”, pensou Dedo Empoeirado. Ela poderia me tornar invisível. Seria ma-ravilhoso poder voltar a ficar invisível. E um duende desses — eu poderia me exibir com ele. Todos acreditariam que ele não passava de um homem minúsculo, vestindo uma roupa de pele. Ninguém sabia plantar bananeira por tanto tempo quan-to um duende, ninguém sabia fazer caretas tão bem, e as suas danças divertidas então... Sim, por que não?
Quando a lua já havia percorrido metade do céu e De-do Empoeirado ainda estava no telhado, a fada com asas de borboleta começou a ficar impaciente. Seu tilintar soava estri-dente e furioso quando ela voava ao redor dele. O que ela queria? Que ele a levasse de volta para o lugar de onde viera, para o lugar onde todas as fadas tinham asas de borboleta e entendiam a língua dela?
— Você está falando com a pessoa errada — ele disse baixinho para ela. — Está vendo lá embaixo a menina e o homem que está sentado ao lado da mulher com os cabelos loiros escuros? Eles são as pessoas certas para levá-la ao seu mundo. Mas já vou lhe adiantando: eles são ótimos para tirar alguém do seu lugar, só que não entendem muito de mandar de volta. Mas tente mesmo assim! Talvez você tenha mais sorte do que eu!
A fada virou-se, olhou para baixo, lançou-lhe um último olhar indignado e saiu voando. Dedo Empoeirado viu como o seu brilho se misturou ao das outras fadas que voa-vam e brincavam entre os galhos das árvores. Elas esqueciam tão facilmente. Nenhuma preocupação durava mais do que um dia na cabecinha delas. E quem sabe talvez o ar tépido da
noite a tivesse feito esquecer que aquela não era a história dela.
Já estava amanhecendo quando finalmente todos dor-miram lá embaixo. Apenas o garoto vigiava. Era um garoto desconfiado, sempre de orelhas em pé, sempre alerta, exceto quando brincava com o fogo. Dedo Empoeirado sorriu quando se lembrou de seu rosto atento e de como ele havia chamuscado os lábios quando pegara escondido as tochas de sua mochila. O garoto não seria um problema. Não. Com certeza não.
Língua Encantada e Resa dormiam debaixo de uma ár-vore, Meggie estava no meio dos dois, protegida como um passarinho num ninho quente. A apenas um passo deles, dormia Elinor. Ela sorria no sono. Dedo Empoeirado nunca a vira tão feliz. Em seu peito estava deitada uma das fadas, en-colhida como num casulo; Elinor a envolvera com a mão. O rosto da fada quase não era maior do que a ponta de seu po-legar, e a luz da fada vazava através dos dedos fortes de Elinor como uma estrela aprisionada.
Farid levantou-se quando viu Dedo Empoeirado se aproximar. Ele tinha na mão uma espingarda, que com certeza pertencera a um dos homens de Capricórnio.
— Você... não está morto? — ele sussurrou, abismado.
O garoto ainda não usava sapatos. Também pudera, vi-via tropeçando nos cadarços e amarrá-los sempre lhe causara grandes problemas.
— Não, não estou morto. — Dedo Empoeirado parou diante de Língua Encantada e olhou para ele e para Resa. En-tão perguntou ao garoto: — Onde está Gwin? Espero que você tenha cuidado bem dele!
— Ele fugiu depois que atiraram contra nós, mas depois ele voltou! — havia orgulho na voz do garoto.
— Ótimo. — Dedo Empoeirado agachou-se ao lado de Língua Encantada. — Pois é, ele sempre soube a hora de se mandar, exatamente como o seu dono.
— Ontem à noite, nós o deixamos no acampamento, lá em cima na casa incendiada, porque sabíamos que as coisas iriam ser bem perigosas aqui — prosseguiu o garoto. — Mas eu ia buscá-lo, assim que acabasse o meu turno de vigia.
— Bem, eu mesmo posso fazer isso. Não se preocupe, ele deve estar bem. Uma marta como ele sabe se virar.
Dedo Empoeirado estendeu a mão e a enfiou debaixo do paletó de Língua Encantada.
— O que você está fazendo? — a voz do garoto soou preocupada.
— Apenas pegando o que me pertence — respondeu Dedo Empoeirado.
Língua Encantada não se mexeu quando ele tirou o li-vro de seu casaco. Ele dormia como uma pedra. O que pode-ria perturbar seu sono agora? Ele tinha tudo o que desejava.
— Não é seu!
— É, sim.
Dedo Empoeirado levantou-se. Olhou para os galhos em cima dele. Bem ali dormiam três fadas; ele sempre se per-guntara como elas podiam dormir em árvores sem despencar de lá de cima. Com cuidado, ele colheu duas delas de um ga-lho fino, soprou suavemente em seus rostos quando elas abri-ram os olhos bocejando e as enfiou no bolso.
— O sopro lhes dá sono — ele explicou ao garoto. — Apenas uma dica, caso você tenha que lidar com elas. Mas acho que funciona apenas com as azuis.
Ele não acordou nenhum duende. Os duendes eram um povo teimoso, demoraria muito tempo para convencê-los a ir com ele, e podia ser que Língua Encantada acordasse an-tes disso.
— Leve-me com você! — o garoto se pôs no seu ca-minho. — Aqui, estou com a sua mochila.
Ele a ergueu, como se com ela quisesse comprar a companhia de Dedo Empoeirado.
— Não. — Dedo Empoeirado pegou a mochila, pendurou-a nos ombros e lhe deu as costas.
— Sim! — O garoto correu atrás dele. — Você tem que me levar. Senão o que vou dizer a Língua Encantada quando ele notar que o livro sumiu?
— Diga que você pegou no sono.
— Por favor.
Dedo Empoeirado parou.
— E ela? Você gosta da garota. Por que você não fica com ela?
O garoto enrubesceu. Ele olhou por um longo tempo para a menina, como se quisesse gravar sua imagem. Então virou-se de novo para Dedo Empoeirado.
— Eu não sou como eles. — Também não é como eu.
Dedo Empoeirado deixou-o para trás mais uma vez, mas, quando já se encontrava a alguns metros do estaciona-mento, o garoto estava atrás dele. Ele tentava andar bem de-vagar para que Dedo Empoeirado não o ouvisse e, quando este finalmente se virou, o garoto parou como um ladrão a-panhado em flagrante.
— O que é isso? Não vou ficar aqui por muito tempo — ralhou Dedo Empoeirado. — Agora que tenho o livro, vou procurar alguém que possa me mandar de volta. E se for um gago como Darius e me mandar de volta com a perna manca ou com a cara achatada? O que você vai fazer então? Você estará sozinho.
O garoto sacudiu os ombros e olhou para ele com seus olhos negros como carvão.
— Eu já sei cuspir fogo muito bem! — ele disse. — Treinei bastante depois que você foi embora. Mas engolir a-inda não dá muito certo.
— E é mais difícil mesmo. Você é muito afobado. Eu já lhe disse mil vezes.
Eles encontraram Gwin nas ruínas da casa incendiada, dormindo, com penas grudadas no focinho. Ele pareceu satis-feito de ver Dedo Empoeirado, até mesmo lambeu sua mão,
mas logo foi atrás do garoto. Eles andaram até o dia raiar, sempre em direção ao sul, onde em algum lugar ficava o mar. Então eles pararam para descansar e se alimentar, com provi-sões da despensa de Basta: um pouco de salame picante, um pedaço de queijo, pão e azeite. O pão já estava um tanto duro e eles o mergulharam no azeite e comeram em silêncio, sen-tados na grama, e depois prosseguiram. Entre as árvores, flo-rescia uma sálvia selvagem azul e rosa-claro. No bolso de Dedo Empoeirado, as fadas começaram a se mexer, e o garoto ia atrás dele como uma segunda sombra.

59. Para casa

E ele navegou de volta
quase um ano inteiro,
e durante muitas semanas
e mais um dia,
até chegar ao seu quarto, onde era noite
e o jantar esperava por ele
e ainda estava quente.
Maurice Sendak, Onde vivem os monstros

De manhã, quando Mo notou que o livro sumira, a primeira coisa que Meggie pensou foi que Basta o havia leva-do, e ela se sentiu mal com a idéia de que ele estivera ali à noi-te enquanto eles dormiam. Mas Mo tinha outra suspeita.
— Farid também se foi, Meggie! — ele disse. — Você acha que ele teria ido com Basta?
Não, ela não achava. Farid teria ido apenas com uma pessoa. Meggie podia imaginar muito bem Dedo Empoeirado surgindo da escuridão, exatamente como naquela noite em que tudo havia começado.
— Mas e Fenoglio? — ela disse. Mo apenas suspirou.
— Não sei se eu teria tentado trazê-lo de volta, Meggie — ele disse. — Já saíram tantas desgraças desse livro, e eu não sou um escritor que saiba escrever as palavras que quer ler. Sou apenas uma espécie de médico de livros. Posso lhes dar novas capas, posso torná-los um pouco mais jovens, livrá-los das traças e impedir que com os anos as suas páginas caiam,
como pode acontecer com os cabelos de um homem. Mas continuar a tramar suas histórias, encher novas páginas com as palavras certas, isso eu não sei. Este é um ofício diferente, to-talmente diferente. Um escritor famoso escreveu uma vez: “O escritor pode ser visto como uma tríade: como contador de histórias, como professor ou como mago... mas o que predomina é o mago, o feiticeiro”. Sempre achei que ele tinha razão.
Meggie não sabia o que dizer. Só sabia que sentia falta do rosto de Fenoglio.
— E Sininho? — ela perguntou. — O que aconteceu com ela? Ela também vai ter que ficar aqui?
Quando acordara, a fada estava deitada na grama ao seu lado. Agora estava voando com as outras fadas. Olhando de relance, elas pareciam um bando de borboletas. Nem com to-da a boa vontade Meggie conseguia imaginar como ela fugira de Basta. Ele não a havia trancado num jarro?
— Bem, pelo que me lembro, em algum momento Peter Pan esqueceu que ela existia, por assim dizer — disse Mo. — Não é verdade?
Sim, ela também se lembrava desse detalhe.
— Mesmo assim! — ela murmurou. — Pobre Fenoglio!
Mas, no instante em que disse isso, sua mãe sacudiu energicamente a cabeça. Mo procurou papel em seus bolsos, mas tudo o que encontrou foi a conta de um posto de gasolina e uma caneta hidrográfica. Teresa pegou as duas coisas de sua mão com um sorriso. Então ela escreveu, enquanto Meggie se sentava na grama ao seu lado: “Não sinta pena dele. Ele não caiu numa história ruim”.
— Capricórnio ainda está lá? Você se encontrou com ele? — perguntou Meggie.
Quantas vezes ela e Mo haviam se perguntado isso? Afinal, Coração de tinta continuava a contar sobre ele. Mas tal-vez houvesse de fato algo atrás da história impressa, todo um mundo que se transformava como o mundo deles fazia a cada
dia.
“Só ouvi falar dele”, escreveu sua mãe. “As pessoas falavam dele como se ele tivesse viajado. Mas havia outros, tão ruins quanto ele. Era um mundo cheio de horrores e belezas e...”, as letras foram fi-cando tão pequenas que Meggie mal conseguiu decifrá-las, “... eu sempre entendi perfeitamente a saudade de Dedo Empoeirado.”
A última frase inquietou Meggie, mas, quando ela olhou preocupada para a sua mãe, ela riu e pegou a mão da menina. “Eu sempre tive mais saudade de vocês, muito mais”, ela escreveu na palma da mão, e Meggie fechou os dedos sobre as palavras como se dessa maneira pudesse retê-las. Ela ainda as lia no longo caminho para a casa de Elinor, e levou vários dias até que elas se apagassem.
Elinor não conseguia se conformar com o fato de te-rem que se aventurar a pé novamente pelas colinas cheias de cobras e espinhos.
— Estão loucos? — ela vociferou. — Só de pensar meus pés já estão doendo.
Então ela e Meggie puseram-se mais uma vez em busca de um telefone. Era uma sensação estranha andar pela aldeia agora realmente abandonada, passar em frente à casa de Ca-pricórnio, enegrecida pela fumaça, e pelo portal quase carbo-nizado da igreja. A praça em frente estava coberta pela água. O céu azul que se espelhava ali fazia parecer que ela havia se transformado num lago durante a noite. As mangueiras que os homens de Capricórnio haviam usado para salvar a casa de seu chefe estavam enroladas ali como serpentes gigantescas. De fato, o fogo se alastrara somente pelo andar térreo, mas mesmo assim Meggie não se atreveu a entrar e, depois de procurarem em vão em dezenas de casas, Elinor desapareceu sozinha atrás da porta queimada. Meggie lhe explicou como ela encontraria o quarto da gralha, e Elinor levou uma espin-garda para o caso de a velha ter voltado para salvar pelo me-nos alguns dos tesouros saqueados por seu filho. Mas a gralha desaparecera, assim como Basta, e Elinor voltou com um sorriso triunfante nos lábios e um telefone na mão.
Eles chamaram um táxi. Foi difícil explicar ao motorista que a barreira que ele encontraria na estrada não devia ser respeitada, mas pelo menos ele não acreditava nas histórias diabólicas que se contavam sobre a aldeia. Mo e Elinor o es-peraram na estrada para que ele não se deparasse com os du-endes e as fadas. Meggie ficou na aldeia com sua mãe, en-quanto os dois foram até a cidade mais próxima. Algumas ho-ras depois, eles voltaram com dois carros alugados, mais exa-tamente dois microônibus. Sim, pois Elinor decidira oferecer um lar a todos os estranhos seres que tinham ido parar em seu mundo. “Asilo”, como ela chamou. “Afinal de contas, o nosso mundo não tem tolerância nem muita compreensão com as pessoas que são um pouco diferentes. Que dirá daquelas que são azuis e voam?”
Demorou um tempo até que todos compreendessem a oferta de Elinor. Naturalmente, ela também valia para as pes-soas, mas a maior parte delas decidiu ficar na aldeia de Capricórnio. Ela as fazia lembrar de um lar que a morte deixara quase esquecido, e além disso Meggie contara às crianças so-bre os tesouros que ainda deviam estar no porão de Capricór-nio. Eles deveriam ser suficientes para sustentar todos os no-vos habitantes da aldeia de Capricórnio até o fim de suas vi-das. Os pássaros, cães e gatos que haviam fugido de Sombra já tinham desaparecido nas colinas, mas algumas das fadas e dois dos homenzinhos de vidro também decidiram — encantados com as flores da região, o cheiro de alecrim e as estreitas vie-las, em que cada pedra parecia sussurrar uma história antiga — ficar e fazer da outrora maldita aldeia o seu lar.
Apesar disso, ao final, dentro dos ônibus, pousadas nos encostos dos assentos cinzentos ou voando para lá e para cá, estavam quarenta e três fadas azuis de asas de libélula. Pelo jeito, Capricórnio havia matado fadas a torto e a direito, como outros fazem com mosquitos. Sininho estava entre as que ficaram, o que não deixou Meggie especialmente desapontada,
pois ela observara que a fada de Peter Pan era bastante volun-tariosa. Além disso o seu tilintar era mesmo irritante, e Sini-nho tilintava sem parar sempre que não conseguia o que que-ria.
Além dos quatro duendes, ainda subiram no ônibus de Elinor treze homens e mulheres de vidro, e também Darius, o infeliz leitor gago. Nada mais o prendia à antiga aldeia aban-donada, agora habitada novamente. Ali moravam muitas lem-branças dolorosas para ele. Ele se ofereceu para ajudar Elinor a reconstruir a sua biblioteca, e ela aceitou (Meggie tinha a le-ve suspeita de que ela secretamente aventava a idéia de fazer Darius voltar a ler, agora que a presença ameaçadora de Ca-pricórnio não o fazia mais tropeçar na língua).
Meggie olhou para trás por um longo tempo quando eles deixaram a aldeia de Capricórnio. Ela sabia que nunca esqueceria aquela visão, assim como não esquecemos certas histórias, mesmo que tenham nos dado medo, ou talvez jus-tamente por isso.
Antes de partir, Mo perguntara preocupado mais uma vez se para ela estava tudo bem se antes fossem para a casa de Elinor. Estranhamente, ela tinha mais saudade da casa de Eli-nor do que do velho sítio onde ela e Mo haviam passado os últimos anos.
No gramado atrás da casa, no ponto em que os homens de Capricórnio haviam incinerado os livros, ainda se via a mancha deixada pelo fogo, mas Elinor mandara remover as cinzas — depois de ter enchido um pote de geléia com o fino pó cinzento. Ele ficava no seu criado-mudo.
Muitos dos livros que os homens de Capricórnio ha-viam apenas arrancado das estantes já estavam de volta no lugar, outros esperavam para ser reencadernados na mesa de trabalho de Mo, mas as estantes da biblioteca ainda estavam vazias e, embora ela as tenha enxugado depressa, Meggie viu as lágrimas nos olhos de Elinor quando as duas estavam dian-te delas.
Nas semanas seguintes, Elinor fez compras. Comprou livros. Viajou por toda a Europa. Darius estava sempre com ela, e às vezes Mo também acompanhava os dois. Meggie, po-rém, ficou com a mãe na grande casa. Elas se sentavam juntas perto de uma janela e olhavam para o jardim lá fora, onde as fadas construíam seus ninhos, estruturas esféricas que ficavam penduradas nos galhos das árvores feito bolas de Natal. As criaturas de vidro acomodaram-se no sótão de Elinor, e os duendes cavaram suas moradias entre as grandes árvores ve-lhas que existiam em abundância no jardim de Elinor. Ela in-sistia para que eles saíssem o mínimo possível de seu terreno. Ela os advertia enfaticamente contra os perigos do mundo que havia além de sua cerca viva, mas não demorou muito e as fadas começaram a voar até o lago à noite, os duendes esguei-ravam-se pelas aldeias adormecidas à sua margem e os ho-mens de vidro desapareciam na relva alta que cobria as encos-tas das montanhas ali perto.
— Não se preocupe tanto — disse Mo, quando Elinor reclamou mais uma vez de tamanha falta de bom senso. — O mundo de onde eles vieram também não era um mundo exa-tamente inofensivo.
— Mas era diferente! — retrucava Elinor. — Não havia automóveis. E se as fadas voarem contra um pára-brisa? Também não havia caçadores com espingardas que atiram em tudo o que se mexe apenas para se divertir.
Entrementes, Elinor sabia tudo sobre o mundo de Co-ração de tinta. A mãe de Meggie havia usado muito papel para escrever suas lembranças. Toda noite Meggie lhe pedia que contasse mais, e elas se sentavam juntas. Teresa escrevia e Meggie lia. Às vezes, ela tentava desenhar o que sua mãe des-crevera.
Os dias se passavam e as estantes de Elinor se enche-ram com novos livros maravilhosos. Muitos estavam em es-tado lastimável, e Darius, que havia começado a fazer um ca-tálogo dos tesouros impressos de Elinor, interrompia muitas vezes seu trabalho para assistir ao de Mo. Com os olhos arregalados, ele se sentava ao seu lado, enquanto Mo libertava um livro de sua capa estragada, costurava páginas soltas, colava lombadas e fazia todo o necessário para conservar os livros por muitos anos.
Mais tarde, Meggie não saberia dizer em que momento, eles decidiram ficar para sempre com Elinor. Talvez tenha sido somente depois de muitas semanas, mas talvez eles já soubessem desde o primeiro dia. Meggie ficou com o quarto da cama muito grande, embaixo da qual ainda estava o seu baú de livros. Ela adoraria ter lido seus livros preferidos para sua mãe, mas agora entendia por que Mo lia em voz alta apenas muito raramente. E uma noite, quando mais uma vez ela não conseguia dormir porque pensara ter visto o rosto de Basta lá fora, ela se sentou à mesa que havia diante de sua janela e começou a escrever, enquanto as fadas tremeluziam no jardim de Elinor e os duendes farfalhavam pelos arbustos.
O plano de Meggie era o seguinte: ela queria aprender a inventar histórias, como Fenoglio fazia. Queria aprender a escolher as palavras, para que pudesse ler para sua mãe sem se preocupar que dali saísse alguém que olharia para ela com o-lhos cheios de saudades. As palavras apenas poderiam fazê-los voltar, todos aqueles que não eram feitos de outra coisa senão de palavras, e por isso Meggie decidiu que as palavras seriam o seu ofício. E onde se podia aprender isso melhor do que nu-ma casa em cujo jardim as fadas faziam seus ninhos e à noite os livros sussurravam histórias das estantes?
Como Mo dissera: o ofício de escrever histórias tem algo a ver com a magia.

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