quinta-feira, 28 de abril de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Capítulos 11 ao 20

CAPÍTULO XI

Às vezes, enquanto meditava sozinha em tudo isto,
levantava-me, tomada de súbito terror, punha a touca e ia ver
como estavam as coisas no Alto dos Vendavais. Estava
convencida de que era meu dever avisar Mr. Earnshaw do que
diziam do seu comportamento, mas lembrava-me dos seus
indiscutíveis maus hábitos e, sem esperança de o ajudar,
desistia de entrar de novo naquela casa lúgubre, duvidando que
me desse ouvido .
Uma vez, ao desviar-me do meu caminho habitual para
Gimmerton, passei junto à velha cancela. Foi mais ou menos na
altura em que se passou o que lhe acabei de contar. Era uma
tarde agreste, mas soalheira; a terra estava despida de
vegetação e a estrada poeirenta e dura.
A certa altura, cheguei junto de uma pedra colocada no
sítio onde, virando à esquerda, a estrada segue para o brejo.
Era um tosco marco de arenito, com as letras _A._V. gravadas
no lado virado a Norte, a letra G. virada a leste e as letras
_G._T. a sudoeste. Servia de poste de orientação para a Granja
dos Tordos, o Alto dos Vendavais e a vila.
O sol dourava o marco escuro e triste, relembrando o Verão.
Não sei explicar porquê, mas, de repente, o meu coração
encheu-se de recordações de infância. Hindley e eu havíamos
tido ali um esconderijo vinte anos atrás. Contemplei
longamente o bloco gasto pelo tempo e, inclinando-me, reparei
num buraco rente à base, ainda cheio de cascas dos caracóis e
seixos que gostávamos de armazenar juntamente com outras
coisas perecíveis. E, com uma incrível realidade, imaginei o
meu companheiro de outros tempos sentado na relva seca, com
aquela sua grande cabeça castanha inclinada para a frente e a
mãozita a escavar a terra com um pedaço de ardósia.
-- Pobre Hindley! -- exclamei involuntariamente.
E então apanhei um susto: os meus olhos corpóreos
fizeram-me crer, por momentos, que a criança levantava a
cabeça e me fitava. Mas tudo terminou num piscar de olhos,
pois logo senti uma vontade irresistível de ir ao Alto. A
superstição obrigou-me a ceder a este impulso. «_Será que já
morreu?», pensei, «ou estará a morrer?« Seria isto um
presságio de morte?
À medida que me aproximava da casa sentia-me cada vez mais
perturbada, e, quando a avistei, estremeci. A aparição
precedera-me. Lá estava ele, a olhar para mim por trás da
cancela; foi o que me ocorreu ao ver um rapazito de olhos
castanhos e cabelos encaracolados com o rosto rosado
encostado às grades. Reflecti melhor e cheguei à conclusão de
que devia ser Hareton, o meu Hareton. Não estava muito
diferente de quando o deixara, há dez meses atrás.
-- Deus o abençoe, meu filho! -- gritei, esquecendo por
momentos os meus estúpidos receios. -- Hareton, sou a Nelly.
A sua Nelly, a sua ama!
Mas ele afastou-se para longe dos meus braços e pegou numa
grande pedra.
-- Vim ver o seu pai, Hareton. -- Acrescentei, adivinhando
pela sua atitude que, se ainda se lembrava da Nelly, não a
reconhecia na minha pessoa.
Levantou a pedra para me agredir. Encetei então um longo
discurso para o acalmar, que não surtiu qualquer efeito. A
pedra acertou-me na touca e dos lábios titubeantes do menino
jorrou um chorrilho de palavrões que, entendesse-os ele ou
não, eram proferidos com um ênfase perfeito, e o seu rosto de
criança exibia uma agressividade que chocava.
Acredite, Mr. Lockwood, que me senti mais magoada que
ofendida.
Quase a chorar, tirei uma laranja do bolso para o acalmar.
Hesitou, mas arrancou-ma da mão como que se pensasse que eu
só o queria enganar e não lha quisesse dar.
Mostrei-lhe então outra que mantive longe do seu alcance.
-- Quem lhe ensinou essas palavras, meu menino? -- perguntei
-- Foi o senhor cura?
-- Rai.s te partam a ti mais ó cura! Dá-me isso! --
retorquiu.
-- Diga lá quem lhe ensinou essas palavras e eu dou-lhe a
laranja
-- Disse eu. -- Quem é o seu professor?
-- É o diabo do meu pai -- foi a resposta. :,
-- E que lhe ensina o seu pai? -- prossegui.
Tentou agarrar a laranja, mas eu levantei-a mais alto. --
Que lhe ensina ele? -- repeti.
-- Nada -- respondeu. -- Só que não lhe apareça à frente.
Não gosta de mim porque lhe rogo pragas.
-- Ah! Então é o diabo quem lhe ensina a rogar pragas
-- Não -- balbuciou.
-- Quem é, então?
-- É o Heathcliff.
Perguntei-lhe se gostava de Heathcliff.
-- Gosto -- replicou.
Quando lhe perguntei por que razão gostava de Heathcliff,
respondeu -- Não sei. Faz ao meu pai o que ele me faz a mim.
Amaldiçoa o meu pai quando ele me amaldiçoa a mim. E diz que
eu posso fazer o que muito bem me apetecer.
-- Então o senhor cura não o ensina a ler e a escrever? --
continuei.
-- Não. O Heathcliff corta-lhe as goelas se ele se atrever a
entrar por esta cancela. O Heathcliff jurou!
Dei-lhe a laranja e mandei-o avisar o pai de que uma
rapariga chamada Nelly o esperava na cancela do jardim para
lhe falar.
O garoto subiu a rampa e entrou em casa, mas quem apareceu
à porta foi Heathcliff em vez de Mr. Hindley. Dei meia volta e
corri pela estrada abaixo o mais depressa que pude, sem parar,
até alcançar o marco de orientação, como se o diabo viesse no
meu encalce.
Este acontecimento não tem muita relação com o caso de Miss
Isabella, mas estimulou-me para ficar alerta e fazer tudo o
que estivesse ao meu alcance para evitar que tal influência
se estendesse à Granja, ainda que isso pudesse desencadear
problemas domésticos, uma vez que ia contra os desejos de Mrs.
Linton.
Na próxima vez que Heathcliff apareceu, Isabella andava a
dar de comer aos pombos no pátio. Durante três dias não
dirigira a palavra à cunhada, mas deixara-se igualmente de
lamúrias, o que para nós era um alívio. Não era hábito de
Heathcliff dispensar atenções desnecessárias a Miss Linton.
Porém, desta vez, assim que a avistou, a sua primeira
preocupação foi correr o olhar pela fachada da casa. Eu estava
na janela da cozinha, mas escondi-me. Ele, então, atravessou o
pátio, foi ter com ela e disse-lhe qualquer coisa que a deixou
aparentemente envergonhada e com vontade de se afastar; mas
Heathcliff agarrou-lhe o braço, impedindo-a de o fazer, e ela
:, desviou a cara. Aparentemente, ele fizera-lhe alguma
pergunta a que ela não fazia tenção de responder. Olhou de
novo para a casa e, julgando que ninguém o estava a ver, o
patife teve o descaramento de a beijar.
-- Judas! Traidor! -- bradei. -- Com que então também és um
hipócrita? Um grande fingido!
-- Quem, Nelly? -- disse a voz de Catherine por trás das
minhas costas. (_Eu estava tão distraída a vigiar aqueles
dois, que não dera fé da sua entrada).
-- O seu amiguinho! -- respondi com veemência. -- Aquele
tratante! Ah, já nos viu. Vem para cá! Será que vai ter o
desplante de arranjar uma desculpa para fazer a corte à
menina, depois de ter dito que a odiava?
Mrs. Linton viu Isabella libertar-se e correr para o
jardim. Um minuto depois, Heathcliff abriu a porta.
Não consegui esconder a minha indignação; mas Catherine,
zangada, pediu silêncio e ameaçou pôr-me fora da cozinha se
eu tivesse o atrevimento de meter o bedelho onde não era
chamada.
-- Quem te ouvir, há-de pensar que és a dona da casa. --
Exclamou. -- Põe-te no teu lugar! E tu, Heathcliff, és capaz
de me dizer o que te passou pela cabeça? Já te disse para
deixares a Isabella em paz! Espero bem que o faças, a menos
que estejas farto de nós e queiras que o Edgar te proíba de
pores os pés nesta casa.
-- Deus o livre de fazer uma coisa dessas! -- ripostou o
vilão, por quem senti ódio naquele momento. -- Que Deus o
conserve assim, dócil e manso! Cada dia que passa tenho mais
vontade de o mandar desta para melhor!
-- Cala-te! -- disse Catherine, fechando a porta. -- Não me
afrontes. Por que não fizeste o que te pedi ? Por acaso, foi
ela quem se lançou nos teus braços propositadamente?
-- Que tens tu com isso? -- resmungou. -- Tenho o direito de
a beijar, se ela quiser, e tu nada podes fazer. Não sou teu
marido e, por isso, tu não precisas de ter ciúmes!
-- Eu não tenho ciúmes de ti -- contrapôs a patroa. -- Tenho
é medo de ti. E não me olhes com esse ar ameaçador! Se gostas
assim tanto da Isabella, casa com ela. Mas será que gostas
mesmo dela? Diz a verdade, Heathcliff! Ah, não respondes.
Decerto não gostas!
-- E será que Mr. Linton aprovaria tal casamento? --
perguntei.
-- Claro que aprovava -- respondeu a senhora com firmeza.
-- E nem precisava de se dar ao trabalho. -- interveio
Heathcliff :,
-- A autorização dele não me interessaria para nada. Quanto
a ti, Catherine, e já que estamos a falar nisso, deixa-me que
te diga uma coisa: fica sabendo que eu *sei* que me tens feito
das boas... das boas! Ouviste bem? E se te iludes a pensar que
eu não sei, é porque és louca... E se pensas que me consolas
com falinhas mansas, é porque és mesmo uma idiota. E se
imaginas que vou sofrer sem me vingar, provar-te-ei o
contrário muito em breve! Entretanto, obrigado por me
revelares o segredo da tua cunhada. Juro que tirarei dele o
máximo proveito. E não te metas nesse assunto!
-- Que nova faceta do teu caracter é esta? -- exclamou Mrs.
Linton. Com que então tenho-te feito a vida num inferno? E
vais vingar-te? Posso saber como, meu grande ingrato? Como
foi que eu te fiz a vida num inferno?
-- Não é em ti que me vou vingar -- retorquiu Heathcliff com
menos veemência. -- Não é esse o plano... O tirano maltrata os
escravos, e estes não se revoltam contra ele; esmagam os que
estão por baixo. Podes torturar-me até à morte, se te
apetecer, mas permite que me divirta também um pouco. E tenta
insultar-me o menos possível. Depois de arrasares o meu
palácio, não penses que podes construir uma cabana, e
vangloriares-te da tua generosidade ao ofereceres-ma para
morar. Se eu pensasse que querias mesmo que eu desposasse a
Isabella, cortava já as goelas.
-- O que te irrita é eu não ter ciúmes, não é? -- gritou
Catherine. -- Mas, também não voltarei a oferecer-te a
Isabella para esposa. É o mesmo que oferecer uma alma perdida
a Satanás. Tal como ele, a tua alegria é ver os outros sofrer.
E provas bem o que digo. O Edgar já recuperou do acesso de
fúria que o teu regresso lhe causou, e eu estava a começar de
novo a sentir-me segura e tranquila; mas tu, irritado por nos
saberes em paz, apareceste resolvido a provocar discussões.
Pois então discute com o Edgar e engana a irmã dele, se isso
te dá prazer. Se achas que é essa a melhor forma de te
vingares de mim...
O diálogo ficou por ali. Mrs. Linton sentou-se à lareira,
ruborizada e melancólica. O seu estado de espírito tornava-a
intratável. Não se conseguia dominar. Heathcliff manteve-se de
pé, de braços cruzados, entregue aos seus pensamentos
diabólicos. Foi assim que os deixei, para ir procurar o
patrão, que já estranhava a demora de Catherine.
-- Ellen -- disse ele quando entrei -- viste a senhora?
-- Vi. Está na cozinha, Mr. Linton -- respondi. -- Está :,
transtornada com o comportamento de Mr. Heathcliff. Na
verdade julgo que está na hora de pôr fim a estas visitas. Não
é sensato ser-se benevolente estando as coisas como estão. --
Relatei então a cena do pátio o melhor que pude e a discussão
que se seguiu. Não me pareceu que isso pudesse vir a
prejudicar Mrs. Linton, a menos que ela depois defendesse
Heathcliff.
Foi evidente a dificuldade que teve em ouvir o meu relato
até ao fim, e as primeiras palavras que proferiu mostravam bem
que não isentava a esposa de qualquer culpa.
-- Isto é intolerável! -- exclamou. -- É uma vergonha que
ela insista em tê-lo por amigo e queira obrigar-me a suportar
a sua presença! Ellen, vai lá fora chamar dois homens. Que
esperem lá em baixo. A Catherine não vai continuar a discutir
com aquele biltre... Já fui tolerante de mais com ela.
Edgar desceu as escadas e ordenou aos criados que
aguardassem no vestíbulo. Eu segui-o até à cozinha. Lá dentro
havia recomeçado violenta a discussão; Mrs. Linton, pelo
menos, repreendia Heathcliff vigorosamente; ele tinha-se
afastado para a janela, cabisbaixo, aparentemente envergonhado
com a reprimenda.
Heathcliff foi o primeiro a ver Edgar e fez sinal a
Catherine para que se calasse, ao que ela obedeceu
imediatamente, apercebendo-se da razão da intimação.
-- Que vem a ser isto? -- indagou Linton, dirigindo-se a
Catherine -- Que noção tens tu do decoro para permaneceres
aqui depois das palavras que este maldito te dirigiu? Ou lá
por ser esse o seu modo habitual de se exprimir, já não achas
mal? Talvez por estares já habituada a essa linguagem
grosseira, penses que me vou também habituar!
-- Edgar, estiveste a escutar à porta? -- perguntou a
senhora, mostrando desprezo e desinteresse pela irritação do
marido, com o propósito evidente de o provocar.
Heathcliff, que entretanto levantara a cabeça enquanto Mr.
Linton falava, deu uma gargalhada de escárnio ao ouvir as
palavras de Catherine, aparentemente destinada a chamar a
atenção de Mr. Linton, no que foi bem sucedido. Mas Edgar não
estava disposto a envolver-se com ele em altercações.
-- Até ao momento, tenho tido muita paciência para o aturar
-- disse ele, calmamente. -- Não porque ignorasse o seu
caracter miserável e degradado, mas porque achava que o
senhor só em parte era responsável por ele; e porque a
Catherine quis continuar a dar-se :, consigo e eu consenti.
Que insensato fui! A sua presença é moralmente tão pestilenta
que envenena o mais virtuoso dos homens. Por essa razão, e a
fim de evitar mais graves consequências, proíbo-o, de hoje em
diante, de pôr os pés nesta casa. Aproveito também para lhe
ordenar que saia imediatamente. Três minutos mais tornarão a
sua saída involuntária e ignominiosa!
Heathcliff mirou-o de alto a baixo com desprezo.
-- Cathy, o teu cordeirinho está bravo como um touro --
disse. -- Arrisca-se a partir a cabeça contra os meus punhos.
Porém, Mr. Linton, lamento muito, mas não o acho digno de tal
honra.
Mr. Linton olhou para o vestíbulo e fez me sinal para
mandar entrar os homens. Não arriscava qualquer contacto
físico.
Obedeci ao sinal, mas Mrs. Linton, desconfiada, veio atrás
de mim e, quando eu ia chamá-los, puxou-me para trás e fechou
a porta à chave.
-- Lindos métodos -- disse ela, em resposta ao olhar
surpreso e zangado do marido. Se não tens coragem de o atacar,
pede-lhe desculpa ou, pelo menos, dá-te por vencido. Assim,
aprendes a não ostentares qualidades que não possuis. Não, vou
mas é engolir a chave antes que ma consigas tirar! Bela
recompensa recebi pela minha bondade para com os dois. Depois
de ter sido indulgente para com a fraqueza de um e a maldade
do outro, recebo como recompensa duas provas da mais estúpida
e absurda ingratidão! Edgar, eu estava a defender-te, a ti e
aos teus; por isso, agora, gostava que o Heathcliff te desse
uma sova por teres pensado mel de mim!
Não foi precisa sova nenhuma para se obter o mesmo
resultado. Edgar tentou arrancar-lhe a chave, mas Catherine.
arremessou-a com ímpeto para a fogueira. Perante isto, Edgar
foi sacudido por um arrepio nervoso, ficando pálido como a
morte. Nem que a sua vida disso dependesse, teria sido capaz
de dominar aquele arrepio. Um misto de angústia e humilhação
apoderou-se dele e, apoiando-se ao espaldar de uma cadeira,
tapou a cara.
-- Oh, meu Deus, noutros tempos ter-te-iam armado
cavaleiro! -- exclamou Mrs. Linton. -- Fomos derrotados! Fomos
derrotados! Se Heathcliff levantasse um dedo contra ti, seria
o mesmo que o Rei lançar os seus exércitos contra um ninho de
ratos. Anima-te que ninguém te faz mal. Tu nem um cordeirinho
és; pareces antes um coelho recém-nascido!
-- Que esse cobardolas com aguadilha nas veias te faça bom
:, proveito, Cathy! -- disse Heathcliff. -- Dou-te os meus
parabéns pelo teu bom gosto. Com que então, foi por essa coisa
que se baba e não pára de tremer que tu me preteriste! Um
murro não lhe dava, mas deva-lhe um pontapé de boa vontade.
Está a chorar ou será que vai desmaiar de medo?
O valentão aproximou-se e deu um encontrão à cadeira a que
Mr. Linton se apoiava. Bem melhor teria sido manter-se à
distancia. O meu patrão endireitou-se num repente e
desferiu-lhe na garganta um golpe que o teria prostrado, fosse
ele um homem de compleição mais
fraca.
O soco deixou-o por momentos sem respiração. E, enquanto
ele se recompunha, Mr. Linton saiu para o pátio pela porta das
traseiras e, dirigiu-se para a entrada
principal.
-- Pronto! Conseguiste pôr fim às visitas -- choramingou
Catherine -- E agora vai-te embora antes que ele regresse com
um par de pistolas e meia-dúzia de ajudantes. Se ele realmente
nos ouviu, jamais nos perdoará. Pregaste-me uma linda partida,
Heathcliff! Mas agora vai... não percas tempo! Prefiro ver o
Edgar em maus lençóis do que tu.
-- Julgas porventura que ele me dá um soco e não leva o
troco? -- gritou Heathcliff. -- Não! Nunca! Antes de sair por
aquele portão meto-lhe dentro as costelas como se ele fosse
uma avelã chocha. Se não lhe bato hoje, qualquer dia mato-o.
Por isso, se dás algum valor à sua vida, deixa-me bater-lhe
agora!
-- Ele não vai voltar -- menti eu. -- Lá vem o cocheiro e
dois jardineiros. Não vai, com certeza, ficar à espera que
eles o escorracem! Vêm armados de cacetes e o patrão deve
estar a observá-los da janela para ver se cumprem as ordens
recebidas.
Os jardineiros e o cocheiro estavam de facto ali, mas Mr.
Linton vinha também com eles, e já tinham chegado ao pátio.
Heathcliff, após ponderar um pouco, achou melhor furtar-se a
uma luta com os três criados; pegou no atiçador, partiu a
fechadura da porta de dentro e escapuliu-se enquanto os outros
tentavam entrar.
Mrs. Linton, muito nervosa, pediu-me que a acompanhasse ao
andar de cima. Não desconfiava do meu contributo para o
desenrolar da situação e eu não fazia tenção de lhe contar.
-- Estou às portas da loucura, Nelly! -- exclamou
atirando-se para cima do sofá. Sinto a cabeça a latejar como
se mil martelos me batessem! Avisa a Isabella para que não me
apareça; todo este reboliço é culpa sua. Se ela, ou mais
alguém me irrita, perco a cabeça de :, vez. E, se vires o
Edgar ainda esta noite, faz-lhe saber que corro o risco de
adoecer gravemente. Oxalá isso aconteça! Foi ele quem me pôs
neste estado e, por isso, quero assustá-lo. Além disso, ele
era bem capaz de vir até aqui e desatar a recriminar-me ou a
lamuriar-se. Sabe Deus onde isso acabaria. Dás-lhe o meu
recado, minha boa Nelly? Sabes bem que eu não tenho culpa
nenhuma do sucedido. O que o teria levado a escutar à porta? O
Heathcliff foi muito injurioso depois de nos deixares. Mas eu
depressa arranjaria maneira de o afastar da Isabella e o
assunto ficaria por ali. Agora, a situação complicou-se por
causa da mania que alguns têm de escutar o que se diz a seu
respeito. Quando ele abriu a porta com aquele olhar
tresloucado, depois de eu ter aritado com o Heathcliff, para o
defender, até ficar rouca, pouco me importou o que pudessem
vir a fazer um ao outro. Principalmente quando me apercebi de
que, terminasse a discussão como terminasse, ficaríamos
separados ninguém sabe por quanto tempo. Bem, se o Heathcliff
não pode ser meu amigo, e se o Edgar se vai tornar mau e
ciumento, dilacerar-lhe-ei o coração dilacerando o meu. Será
a melhor forma de acabar com tudo, se for levada até aos
limites! Mas é algo que apenas farei em último recurso; o
Edgar não será apanhado de surpresa. Até agora não me tem
provocado muito. Tens de lhe mostrar o perigo de abandonar tal
procedimento e lembrares-lhe o meu temperamento impetuoso
que, quando espicaçado, toca as ralas do furor. Sabes, Ellen,
gostava que apagasses do rosto essa apatia e te mostrasses um
pouco mais preocupada comigo!
O ar impassível com que recebi as suas instruções era sem
dúvida exasperante, uma vez que haviam sido dadas com toda a
sinceridade. Pensei, porem, que quem conseguia prever tão bem
os seus acessos de fúria, conseguiria também, exercitando a
vontade, dominá-los. E também não era minha intenção
«assustar« Edgar, como ela disse, e aumentar as suas
preocupações apenas para lhe fazer a vontade.
Por isso, não comentei nada com o meu patrão ao cruzar-me
com ele quando se dirigia para a sala. Contudo, tomei a
liberdade de voltar atrás a fim de saber se recomeçariam a
discussão.
Foi Edgar quem falou primeiro:
-- Deixa-te ficar onde estás, Catherine -- disse, sem
raiva, mas evidenciando alguma tristeza. -- Não me demoro. Não
vim para discutir, tão pouco para fazer as pazes. Apenas quero
saber se, após :, os acontecimentos de hoje, ainda pretendes
da, continuidade a essa tua intimidade com...
-- Oh, por amor de Deus! -- interrompeu a senhora batendo o
pé. -- Por amor de Deus, não toquemos mais nesse assunto! O
teu sangue frio não consegue ficar febril; corre-te nas veias
água gelada, mas nas minhas está o sangue a ferver, e ver
tanta frieza à minha frente deixa-me desvairada.
-- Se te queres ver livre de mim, tens de responder à minha
pergunta -- insistiu Mr. Linton. -- Vá responde! E essa tua
violência não me assusta; descobri que, quando queres,
consegues ser tão estóica como qualquer outra pessoa. Escolhe:
cortas relações com o Heathcliff ou comigo? Não é possível
seres amiga dos dois ao mesmo tempo e exijo que me digas qual
dos dois vais escolher.
-- E eu exijo que me deixes -- exclamou Catherine, furiosa.
-- Exijo-o! Não vês que mal me tenho de pé? Edgar, vai-te
embora por favor!
Tocou a campainha com tanta impetuosidade que a quebrou. Eu
acorri, serena. Aqueles ataques de fúria eram de fazer perder
a paciência a um santo! Lá estava ela a bater com a cabeça no
braço do sofá e a ranger os dentes com tanta força que parecia
querer estilhaça-los!
Mr. Linton fitava-a, tomado de súbito pavor. Mandou-me
buscar água. Catherine, sem fôlego, não conseguia
falar.
Trouxe-lhe um copo cheio e, uma vez que ela não queria
beber, atirei-lhe umas gotas à cara. De repente,
inteiriçou-se, revirou os olhos e ficou com as faces lívidas,
cadavéricas.
Mr. Linton estava apavorado.
-- Isto não deve ser nada -- sussurrei. Não queria que ele
se preocupasse, embora, para dizer a verdade, eu estivesse um
pouco assustada.
-- Tem sangue nos lábios -- disse ele estremecendo.
-- Não se preocupe -- respondi. E dei-lhe a conhecer a sua
intenção de simular um ataque de nervos antes da chegada dele.
Sem querer, fiz este comentário em voz alta, e ela
ouviu-me, pois parou no mesmo instante, com o cabelo a
cair-lhe pelos ombros, os olhos flamejantes, e os músculos do
pescoço e dos braços inacreditavelmente retesados. Achei que
já não saía dali sem algum osso partido. Porém, ela limitou-se
a olhar a toda a volta, e saiu da sala
a correr.
O patrão fez-me sinal que a seguisse, ao que obedeci, mas
:, fazendo-o apenas até à porta do quarto, pois ela impediu-me
de avançar, fechando-me a porta na
cara.
Como na manhã seguinte Catherine não descesse para o
pequeno almoço, subi para perguntar se queria que lho levasse.
-- Não -- respondeu peremptória.
Ouvi a mesma resposta ao jantar, à hora do chá e na manhã
seguinte.
Mr. Linton, por seu turno, passava o tempo na biblioteca e
não me fazia quaisquer perguntas sobre as ocupações da esposa.
Isabella e ele tiveram uma breve troca de palavras, durante a
qual Edgar tentou fazer vir à tona alguns sentimentos de
horror em relação às atitudes de Heathcliff. Mas não
conseguiu saber nada de concreto, pois ela apenas dava
respostas evasivas. Viu-se, assim, obrigado a terminar a
conversa insatisfeito. Contudo, acrescentou que, se ela fosse
louca ao ponto de encorajar aquele pretendente desprezível,
cortaria todos os laços de parentesco com ela.
__Capítulo XII
Enquanto Miss Linton vagueava pelo parque, sempre em
silêncio e quase sempre a chorar, e o irmão se fechava na
biblioteca com livros que nunca abria, na vã esperança, julgo
eu, de que Catherine se arrependesse da sua conduta e se
dispusesse a pedir-lhe desculpa e a procurar uma
reconciliação, e Catherine continuava teimosamente a jejuar,
convencida talvez de que Edgar morria de saudades sem a sua
companhia às refeições e de que apenas o orgulho o impedia de
correr a rojar-se aos seus pés, eu continuava na minha lida,
convencida de que a Granja albergava apenas uma única alma
sensata entre as suas paredes e de que essa alma era a que
habitava o meu corpo.
Não me dava ao trabalho de lastimar a menina, nem de
repreender a minha patroa, nem tão-pouco ligava aos suspiros
do meu patrão, que ansiava por ouvir o nome da esposa, já que
não podia ouvir a sua voz.
Decidi que as coisas deveriam seguir o seu rumo sem a minha
interferência. Apesar de o processo se desenrolar com
enfadonha lentidão, comecei a ter uma vaga esperança de que
tudo se resolveria como eu a princípio imaginara.
Ao terceiro dia, Mrs. Linton abriu a porta. E, como se lhe
acabara a água no jarro e na garrafa, pediu-me que os
enchesse de novo e pediu também uma chávena de caldo, pois
julgava-se às portas da morte. Pensei que só dizia aquilo para
eu ir a correr contar ao marido e, como não acreditei numa só
palavra, não disse nada a Edgar, limitando-me a levar-lhe uma
chávena de chá e uma torrada.
Comeu e bebeu avidamente. Depois, deixou-se cair de novo na
almofada, gemendo e contorcendo as mãos. :,
-- Ai, que vou morrer! Ninguém quer saber de mim! Quem me
dera não ter comido isto! -- exclamou.
Pouco depois, ouvi-a murmurar: -- Não. Não vou nada morrer.
Isso queria ele. Não me ama e não sentiria a minha falta.
-- Quer alguma coisa, minha senhora? -- perguntei tentando
manter-me impassível, apesar do seu aspecto assustador e dos
seus modos estranhos e tresloucados.
-- O que faz aquele ser patético? -- indagou afastando da
cara as madeixas emaranhadas. -- Caiu em letargia ou já
morreu?
-- Nem uma coisa nem outra -- respondi. -- Se se refere a
Mr. Linton, acho que está muito bem, embora as leituras lhe
roubem mais tempo do que deviam. Passa o tempo enfronhado nos
livros já que não tem com quem falar.
Eu não teria dito aquilo se conhecesse o seu verdadeiro
estado. Mas não conseguia deixar de pensar que parte da sua
loucura era mera representação.
-- Enfronhado nos livros! -- repetiu, perturbada. -- E eu
às portas da morte! Meu Deus! Tens a certeza de que ele sabe
como estou transtornada? -- continuou, enquanto contemplava o
seu reflexo num espelho pendurado na parede oposta. -- É esta
a Catherine Linton? Julgará ele que é só mau-génio meu? Que
estou a fingir, talvez? Não lhe podes dizer que corro perigo,
Nelly? Se não for tarde demais, assim que souber o que ele
sente por mim, escolherei entre morrer de fome, o que apenas
será castigo se ele tiver coração, e recuperar-me para sair do
país. Estás mesmo a dizer a verdade? Não mintas! Ele é mesmo
assim tão indiferente ao que me possa acontecer?
-- Minha senhora -- respondi -- o patrão desconhece o seu
estado e é claro que nem sonha que está a tentar morrer de
fome.
-- Achas que não? E não lhe podes dizer que o farei? --
continuou. -- Convence-o. Diz-lhe que tens a certeza de que o
farei!
-- Não, Mrs. Linton. Esquece-se de que hoje à tarde já
comeu alguma coisa, e que, por sinal, lhe soube muito bem, e
que amanhã sentirá os seus bons efeitos.
-- Se eu soubesse que isso o matava -- interrompeu --
suicidava-me já! Não preguei olho estas três noites e... Ah,
como sofri! Fui perseguida por fantasmas, Nelly! Começo a
pensar que não gostas de mim. É estranho! Julgava que, apesar
de todos se odiarem e desprezarem uns aos outros, não
conseguiam deixar de gostar de mim. E, em apenas algumas
horas, tornaram-se todos meus inimigos. Isso
:, é que tornaram! *_Todos* os que *aqui* moram. Que triste é
morrer rodeada pelos seus rostos de gelo! A Isabella, com
pavor de entrar neste quarto, pois seria terrível ver
Catherine morrer. E o Edgar, solenemente à espera de que tudo
acabasse. Depois agradeceria a Deus por ter restituído a paz à
sua casa e regressaria para o meio dos seus *livros*! Não me
dirás, em nome de tudo o que tem sentimentos, para que se vai
ele agarrar aos *livros*, estando eu a morrer?
Catherine não conseguia compreender a resignação filosófica
do marido. De tal forma se exaltou que agravou o seu estado de
febril loucura e desfez o travesseiro com os dentes. Depois,
levantando-se bruscamente, como se a
cama estivesse em chamas, pediu-me que abrisse a janela.
Estávamos em pleno Inverno e o vento soprava forte de
Nordeste; recusei-me por isso a cumprir a sua
ordem.
As múltiplas expressões que lhe perpassavam o rosto e as
suas mudanças súbitas de personalidade começaram a
preocupar-me seriamente. Traziam-me à lembrança a sua antiga
doença e as recomendações do médico para que não fosse
contrariada.
Momentos antes estava violenta. Agora, apoiada num dos
braços e sem estar lembrada de que eu a contrariara, parecia
divertir-se como uma criança a tirar as penas pelos rasgões
do travesseiro, alinhando-as no lençol segundo as suas
diferentes espécies. A sua mente já não se encontrava ali.
-- Esta é de peru -- disse, falando sozinha -- e esta de
pato selvagem; e esta de pomba. Ah, com que então põem penas
de pomba nos travesseiros; não admira que eu não consiga
morrer! Tenho de o atirar para o chão quando me deitar. E aqui
está uma de lagópode; e esta reconhecê-la-ia entre mil: é de
pavoncino. Que linda ave! Esvoaçando por cima de nós nos
brejos, de regresso ao ninho, pois as nuvens já tocavam os
montes e pressentia a chuva. Esta pena foi apanhada de uma
urze, a ave não foi alvejada. No Inverno, encontrámos o ninho
cheio de esqueletos pequeninos. O Heathcliff montara uma
armadilha por cima dele e os pais não se atreviam a
aproximar-se. Obriguei-o a prometer que, depois daquilo,
nunca mais atiraria sobre um pavoncino e ele obedeceu-me.
Olha! Cá estão mais! Ele atirou sobre os meus pavoncinos,
Nelly? Alguma delas está vermelha? Ora deixa ver.
-- Pare com essa criancice! -- interrompi, tirando-lhe o
travesseiro das mãos e voltando os rasgões para o colchão,
pois ela estava a tirar as penas às mancheias. -- Deite-se e
tente dormir, que está :, a delirar. Que grande confusão! As
penas voam como flocos de neve.
Apanhei algumas aqui e ali.
-- Nelly, agora estou a ver-te muito velhinha, de cabelos
brancos e toda curvada -- continuou, como se estivesse a
sonhar. Esta cama é a gruta das fadas, por baixo de Penistone
Crag, e tu estás a juntar setas para matares os nossos
vitelinhos, fingindo, enquanto estou por perto, que são apenas
flocos de lã. É no que te vais tornar daqui a cinquenta anos.
Sei que agora não és assim. Enganas-te. Não estou a delirar,
caso contrário acreditaria que eras mesmo a bruxa mirrada e
que eu estava por baixo de Penistone Crag. Estou certa de que
já é noite, e de que há duas velas acesas em cima da mesa que
fazem brilhar como azeviche o armário negro.
-- Que armário negro? -- perguntei. -- Está a sonhar!
-- Está encostado à parede, como sempre -- respondeu. -- Tem
um aspecto estranho e vejo lá uma cara!
-- Não há armário nenhum no quarto, nem nunca houve --
disse eu, voltando para o meu lugar e levantando as cortinas
da cama para a poder vigiar.
-- Não vês aquela cara? -- perguntou, olhando fixamente
para o espelho.
Por mais que eu tentasse não conseguia convencê-la de que
era a sua própria cara que ela estava a ver, e acabei por
cobrir o espelho com um xaile.
-- Continua ali escondida! -- prosseguiu inquieta. --
Mexeu-se. Quem será? Espero que não saia dali quando te fores
embora! Oh! Nelly, o quarto está assombrado! Tenho medo de
ficar sozinha!
Peguei-lhe na mão e tentei acalmá-la pois uma série de
estremecimentos sacudiram-lhe o corpo e os seus olhos não
paravam de fitar o espelho.
-- Não está lá ninguém! -- insisti. -- Era a sua imagem
reflectida, Mrs. Linton. Já lhe disse.
-- Era a minha imagem -- murmurou -- e o relógio bate as
doze badaladas! Então, é verdade. É assustador!
Os seus dedos arrepanharam o lençol e cobriu os olhos com
ele. Tentei sair sem fazer barulho para ir chamar Mr. Linton,
mas um grito lancinante obrigou-me a voltar para trás.
O xaile caíra do espelho.
-- Então, que se passa? -- exclamei. -- Que medricas! Veja
se :, percebe que isso é um espelho e que o que vê é o seu
reflexo. E quem lá está a seu lado sou eu.
Trémula e assustada, abraçou-se a mim com força, e o terror
foi-se dissipando a pouco e pouco e a palidez deu lugar a um
rubor de vergonha.
-- Meu Deus! Pensei que estava em casa -- suspirou. --
Pensei que estava deitada no meu quarto, no Alto dos
Vendavais. Como estou fraca, o meu cérebro ficou confuso e
gritei inconscientemente. Não digas nada, mas não me deixes.
Tenho medo de dormir por causa dos pesadelos.
-- Um bom sono só lhe faria bem, minha senhora -- respondi
-- E espero que depois de todo este sofrimento não mais deseje
morrer de fome.
-- Oh, se eu, pelo menos, estivesse na minha cama na minha
antiga casa! -- continuou amargamente, contorcendo as mãos. --
Com o vento a uivar por entre os abetos, rente à janela.
Deixa-me senti-lo, vem direitinho do brejo, deixa-me
respirá-lo!
Entreabri a janela por momentos a fim de a acalmar. Uma
rajada fria invadiu o quarto. Voltei a fechar a janela e
regressei ao meu lugar.
Agora estava sossegada, com o rosto banhado em lágrimas. O
cansaço físico havia dominado a mente. A nossa impetuosa
Catherine não passava agora de uma criança piegas!
-- Há quanto tempo me fechei aqui? -- perguntou, com uma
energia repentina.
-- Foi no domingo, ao fim da tarde -- respondi -- E hoje é
quinta-feira, ou melhor, sexta de madrugada.
-- Como? Da mesma semana? -- exclamou. -- Só passou tão
pouco tempo?
-- O suficiente para quem vive apenas de água fria e mau
humor -- observei.
-- Bom, a mim pareceu um número de horas infinito --
resmungou, em dúvida -- Deve ter passado mais tempo.
Lembro-me de estar na sala de visitas depois da discussão e de
o Edgar me ter provocado cruelmente e eu ter fugido
desesperada para este quarto. Assim que tranquei a porta, uma
escuridão total envolveu-me e caí no chão. Não conseguiria
explicar a Edgar que me sentia a desfalecer, ou a enlouquecer,
se ele persistisse em me arreliar! Não conseguia controlar o
que dizia nem o que pensava e ele talvez não se tenha
apercebido da minha agonia. Tive apenas o bom senso de :,
fugir dele e da sua voz. Quando recuperei a consciência era já
madrugada. Nelly, vou contar-te o que pensei, e o que me
ocorreu e me obcecou, ao ponto de temer pela minha sanidade
mental. Enquanto estava ali deitada com a cabeça encostada à
perna da mesa, e os meus olhos discerniam com dificuldade o
vão escuro da janela, pensei que estava em minha casa, fechada
na minha cama de painéis de madeira de carvalho e doía-me o
coração por alguma razão que não conseguia descortinar.
Reflecti e afligi-me na tentativa de arranjar uma explicação
para a angústia que eu sentia e, o que é mais estranho ainda,
os últimos sete anos da minha vida varreram-se-me da memória.
Não me lembrava absolutamente de nada. Era de novo criança. O
meu pai acabara de falecer e a minha dor advinha do facto de o
Hindlty ter ordenado que eu e o Heathcliff nos separássemos.
Via-me só pela primeira vez e, despertando de um sono
sobressaltado após uma noite de choro, estendi a mão para
desviar os cortinados da cama e toquei na mesa de cabeceira!
Arrastei a mão pelo tapete e, então, a minha memória
regressou. O meu último sofrimento transformou-se num acesso
de desespero. Não sei explicar por que razão me senti tão
infeliz. Deve ter sido um acesso momentâneo de loucura, uma
vez que não há razão que o justifique. Imaginei que tinha sido
arrancada do Alto aos doze anos, de tudo o que me era querido
naquela altura, como o Heathcliff, para me converter em Mrs.
Linton, a senhora da Granja dos Tordos, esposa de um estranho,
exilada e proscrita desde então do que fora o meu mundo. Podes
imaginar o abismo em que me afundei! Abana a cabeça se
quiseres, Nelly, mas tu contribuíste para me pores neste
estado! Devias ter falado com o Edgar, isso é que devias, para
o obrigares a deixar-me em paz! Oh, estou a arder em febre!
Quem me dera estar ao ar livre. Quem me dera ser de novo
aquela criança meio selvagem, audaciosa e livre... e rir-me
das ofensas em vez de me preocupar com elas! Por que estou tão
mudada? Por que ferve o meu sangue com tanta facilidade a umas
míseras palavras? Estou certa de que voltaria a ser eu própria
outra vez entre as urzes daqueles montes... Abre a janela,
escancara-a! Depressa, por que não te mexes?
-- Porque não a quero ver morrer de frio -- respondi.
-- Não queres é dar-me hipóteses de viver, isso sim! --
disse ela obstinada. -- Contudo, ainda não estou incapaz de me
mexer. Eu mesma a abrirei.
Escorregando da cama, antes que a pudesse impedir,
atravessou :, o quarto a cambalear, abriu a janela e
debruçou-se, sem querer saber do vento gélido que lhe cortava
o colo, afiado como uma lâmina.
Implorei-lhe que voltasse para a cama e, como a minha
tentativa não surtisse efeito, tentei obrigá-la. Mas depressa
descobri que, com o delírio, a sua força era muito superior à
minha; o delírio apoderara-se dela. As suas acções e
desvarios não me deixavam sobre isso qualquer dúvida.
Não havia luar e tudo estava imerso em escuridão. Não se
via luz em qualquer casa, nem perto, nem longe; todas as luzes
haviam sido apagadas há muito e as do Alto dos Vendavais não
eram visíveis... Contudo, Mrs. Linton assegurava que as
conseguia ver brilhar.
-- Olha! -- disse ela ansiosa. -- Lá está o meu quarto e as
árvores em frente a balouçar; e a outra vela é do sotão do
Joseph. O Joseph deita-se sempre muito tarde. Está à minha
espera para ir fechar a cancela. Pois vai ter muito que
esperar. A caminhada é longa e é preciso atravessar o
cemitério de Gimmerton! Muitas vezes provocamos os fantasmas e
nos desafiámos mutuamente a andar a evocar os mortos por entre
as sepulturas. Mas tu, Heathcliff, se te desafiar agora,
ainda terás coragem de o fazer? Se tiveres, ficarei contigo.
Não quero jazer ali sozinha. Podem enterrar-me a sete palmos
de fundura e fazer desabar a igreja sobre mim, mas não
descansarei enquanto não estivermos juntos. Jamais!
Fez uma pausa e prosseguiu, com um sorriso estranho: --
Está a ponderar a questão... Preferia que fosse eu a ir ter
com ele! Pois então procura um caminho! Mas não pelo meio do
cemitério... Oh, como és lento! Alegra-te! Afinal, tu sempre
me seguiste!
Apercebendo-me de que era impossível argumentar contra a
sua insanidade, procurei uma maneira de lhe pôr um agasalho
pelos ombros sem a largar, pois não me atrevia a deixá-la
sozinha à janela. Nesse instante, para meu grande pesar, ouvi
rodar a maçaneta da porta e Mr. Linton entrou. Só agora saíra
da biblioteca e, ao passar no corredor, escutara as nossas
vozes e fora atraído pela curiosidade, ou pelo medo, de saber
o que poderia estar a acontecer àquelas horas.
-- Oh, meu senhor! -- gritei eu, antecipando-me à
exclamação que ele soltaria ao deparar com aquele espectáculo
e ao sentir a atmosfera gélida do quarto.
-- A pobre senhora está muito mal e faz o que quer de
mim. :, Não a consigo controlar. Peço-lhe que a convença a
voltar para a cama. Ponha de lado a sua raiva, pois é difícil
fazê-la desistir do que se lhe mete na cabeça.
-- A Catherine está doente? -- disse ele, correndo para
nós. -- Ellen, fecha a janela! Catherine, por que...
Calou-se. O rosto desfigurado de Mrs. Linton prostrou-o sem
fala. Conseguia apenas olhar para mim, com um esgar de horror
e surpresa.
-- Está há dias nesta consumição -- prossegui -- Sem comer
quase nada e sem se queixar. Só esta noite abriu a porta e,
por isso, não pudemos informá-lo mais cedo do seu estado, uma
vez que nós também não o conhecíamos. Mas não é nada de grave!
Avaliando bem a estupidez das minhas afirmações, Mr. Linton
franziu as sobrancelhas, mostrando desagrado.
-- Com que então não é nada de grave, Ellen Dean? --
ripostou. -- Hás-de explicar-me por que não me avisaste do
seu estado! -- Abraçou a esposa e olhou-a com ansiedade.
A princípio, ela parecia não o reconhecer... ele era
invisível para o seu olhar abstracto. Contudo, o delírio tinha
intermitências. Gradualmente, desviando os olhos da
escuridão, centrou a atenção em Edgar e descobriu quem a
abraçava.
-- Ah, afinal, sempre vieste, Edgar Linton! -- disse ela
com animosidade... -- És daquelas coisas que, quando se
querem nunca aparecem e, quando não se querem... Presumo que
agora vamos ter choradeira... Vejo que sim... Mas nem isso me
pode afastar da minha exígua morada lá adiante... O meu lugar
de repouso, para onde partirei antes de a Primavera acabar! Lá
está ele; mas não será entre os Linton, sob a abóbada da
capela; será ao ar livre, debaixo de uma lápide. Depois, podes
escolher o que preferires: ficares com eles ou comigo!
-- Que fizeste, Catherine? -- começou Edgar. -- Então, eu
já não significo nada para ti? Amas aquele malvado do Heath...
-- Cala-te! -- bradou Mrs. Linton. -- Cala-te
imediatamente! Se pronuncias esse nome, acabo já com tudo.
Atiro-me desta janela! O meu corpo pode pertencer-te, mas a
minha alma estará no cimo daqueles montes antes que voltes a
tocar-me. Já não te desejo, Edgar. Volta para os teus livros.
Alegra-me que tenhas essa consolação, pois tudo o que de mim
possuías desapareceu para todo o sempre.
-- Está a delirar, meu senhor -- intervim. -- Só tem dito
:, disparates. Mas, se descansar e receber os cuidados
necessários, depressa se curará. Daqui em diante não a devemos
irritar.
-- Dispenso os teus conselhos -- respondeu Mr. Linton. --
Conhecias o temperamento da tua senhora e incitaste-me a
contrariá-la. E não me avisaste de como ela tem passado estes
três dias! Foi uma desumanidade! Nem meses de doença
conseguiriam provocar uma mudança destas!
Comecei a defender-me, pois achava errado ser censurada por
causa de mais um capricho maldoso!
-- Eu já sabia que o comportamento de Mrs. Linton era
obstinado e arrogante, mas o que eu não sabia é que o senhor
desejava alimentar o seu génio feroz! Não sabia que, para
agradar à senhora, deveria fechar os olhos ao que Mr.
Heathcliff fez. Procedi como uma criada de confiança ao
avisá-lo, e levei a paga de uma criada de confiança! Pois bem,
aprendi que, para a próxima, deverei ter mais cuidado. Para a
próxima, descubra o senhor sozinho o que se passa!
-- Da próxima vez que me vieres com histórias, Ellen Dean,
estás despedida -- respondeu.
-- Então, o senhor prefere ficar na ignorância, Mr. Linton!
-- disse eu. -- Heathcliff tem a sua permissão para cortejar a
menina, e vir cá sempre que o senhor não estiver, para
envenenar a sua relação com a senhora?
Catherine, apesar de muito confusa, escutava a nossa
conversa.
-- Ah! Então a Nelly traiu-me! -- exclamou. -- É a Nelly o
meu inimigo misterioso. Sua bruxa! Afinal, sempre é verdade
que procuravas flechas para nos ferires! Larga-me, que eu
faço-a arrepender-se! Há-de pagar-mas!
Nos seus olhos acendeu-se uma fúria flamejante e começou a
debater-se desesperadamente para se livrar dos braços de Mr.
Linton. Achei melhor não me demorar ali mais tempo, e,
resolvida a procurar ajuda médica por minha conta e risco, saí
do quarto. Ao atravessar o quintal, a caminho da estrada,
passei num sítio onde havia uma argola de amarrar cavalos e vi
algo branco a baloiçar descompassadamente, impelido por outra
coisa que não o vento. Apesar de estar com pressa, parei para
ver o que era, não fosse eu, depois, ficar com a impressão de
que se tratava de alguma alma do outro
mundo.
Foi com grande surpresa e perplexidade que descobri, mais
pelo :, tacto do que pela visão, a cadelinha perdigueira da
menina Isabella, a Fanny, enforcada com um lenço e quase
sufocada.
Soltei o animal o mais depressa que pude e deixei-o no
quintal. Eu tinha visto a cadelinha seguir a dona para o
quarto e admirei-me por ir encontrá-la ali. Não fazia ideia de
quem poderia ter cometido uma malvadez daquelas.
Enquanto desapertava o nó da argola, pareceu-me ouvir ao
longe o galope de cavalos, mas eu tinha já tanto em que pensar
que não lhe dei muita importância. Na verdade, porém, era
estranho ouvir cavalos naquele sitio às duas da madrugada.
Por sorte, o Dr. Kenneth preparava-se para sair de casa a
fim de ir ver um doente quando eu subia a rua. Contei-lhe o
que se passava com Catherine e ele veio comigo imediatamente.
Era um homem simples e rude, e, portanto, não teve qualquer
escrúpulo em me dizer que tinha fortes dúvidas de que
Catherine escapasse a este segundo ataque, a menos que
seguisse as suas instruções melhor do que fizera até
então.
-- Nelly Dean -- começou ele -- estou certo de que alguma
coisa provocou esta recaída. O que foi que se passou na
Granja? Correm certos boatos... Uma rapariga forte como
Catherine não adoece sem mais nem menos. Apenas algo de muito
grave lhe provocaria essa febre. Como é que principiou?
-- Mr. Edgar lhe dirá -- respondi. -- O senhor doutor está
a par do génio violento dos Earnshaw, e Mrs. Linton excede-os
a todos. Posso adiantar-lhe apenas que tudo começou com uma
discussão. Foi durante um acesso de cólera que ela teve uma
espécie de desmaio. Pelo menos, é o que ela diz, porque no
auge da discussão, trancou-se no quarto. Depois, recusou-se a
comer e agora tem delírios e vive meio a dormir. Conhece as
pessoas, mas tem a mente cheia de pensamentos estranhos e
ilusórios.
-- Mr. Linton deve estar preocupadíssimo!? -- exclamou o
médico interrogativamente.
-- Preocupadíssimo? Se lhe acontece o pior ele não vai
resistir! -- respondi. -- Não o alarme mais do que o
necessário.
-- Bom, eu disse-lhe para ter cuidado -- observou. -- Agora
tem de arcar com as consequências por não me ter levado a
sério! Ele ultimamente não se tem encontrado com Mr.
Heathcliff?
-- Mr. Heathcliff visita a Granja frequentemente, mas por
ser amigo te infância da senhora e não porque Mr. Linton preze
a sua companhia. E, agora, essas visitas terminaram, pois Mr.
Heathcliff :, manifestou umas certas pretensões a respeito de
Miss Linton, e julgo que não voltará à
Granja.
-- E a menina mostrou interesse nele? -- foi a pergunta
seguinte.
-- Ela não me faz confidências -- respondi, relutante em
prosseguir a conversa.
-- Sim, de facto ela é reservada -- e meneou a cabeça,
aquiescente. -- Guarda para si as suas opiniões! Mas é uma
tontinha! Sei de fonte segura que a noite passada (e que linda
noite esteve!) ela e Mr. Heathcliff andaram a passear os dois
na plantação por trás da vossa casa por mais de duas horas. E
que ele tentou convencê-la a não voltar a casa e a fugir com
ele a cavalo! Disseram-me também que ela apenas o conseguiu
dissuadir dando a sua palavra de honra de que estaria
preparada no próximo encontro. Para quando estava marcado esse
encontro, não conseguiram ouvir, mas avisa Mr. Linton para
que tenha cuidado!
Estas notícias só me vieram apoquentar ainda mais. Passei à
frente do Dr. Kenneth e desatei a correr durante quase todo o
caminho de regresso. A cadelinha continuava a ladrar no
jardim. Abri-lhe o portão, mas, em vez de ir para casa,
começou a andar de cá para lá, farejando a relva. Teria fugido
para a estrada se eu não a agarrasse e a levasse comigo.
Quando subi ao quarto de Miss Isabella, as minhas suspeitas
confirmaram-se. O quarto estava vazio. Se eu tivesse chegado
umas horas mais cedo e lhe tivesse falado da doença de
Catherine, isso tê-la-ia impedido de dar aquele passo
insensato. Que poderia fazer eu agora? Tinha ainda uma vaga
esperança de os alcançarmos, se agíssemos sem demora. Contudo,
não podia ir no seu encalce e não me atrevia a acordar a
criadagem e pôr a casa em polvorosa. Também não podia contar
o sucedido a Mr. Edgar, pois já tinha problemas de sobra e o
seu coração não ia aguentar esta nova aflição!
A única coisa a fazer era ficar calada e deixar que as
coisas seguissem o seu rumo. Quando o Dr. Kenneth chegou, fui
anunciá-lo, ainda com as roupas em desalinho.
Catherine dormia um sono perturbado. Mr. Linton havia
conseguido acalmar o seu acesso de loucura e debruçava-se
agora sobre o travesseiro, observando todas as suas mudanças e
expressões de dor.
Ao examiná-la, o médico mostrou-se bastante seguro de que
melhoraria, se houvesse à sua volta tranquilidade absoluta. :,
Confidenciou-me que o perigo real que a ameaçava não era a
morte, mas sim uma alienação permanente do cérebro.
Nem eu, nem Mr. Linton pregamos olho toda a noite. De
facto, nem chegámos a ir para a cama, e todos os criados se
levantaram muito antes da hora habitual. Andavam pela casa em
bicos de pés e falavam uns com os outros em segredo, enquanto
cumpriam as suas obrigações. Todos estavam a pé, excepto Miss
Isabella, cujo sono profundo começou a provocar comentários. O
irmão perguntou-me se ela já se havia levantado, parecendo
inquieto com a sua ausência e magoado por ela mostrar tão
pouco interesse pela
cunhada.
Eu tremia só de pensar que ele podia mandar-me acordá-la.
Mas foi-me poupado o sofrimento de ser eu a anunciar que ela
fugira. Uma das criadas, uma moça irreflectida, que fora bem
cedo a Gimmerton a um recado, subiu as escadas ofegante e
precipitou-se para o quarto a chorar.
-- Meu Deus, meu Deus! Que mais poderá acontecer? Meu
senhor, meu senhor, a menina...
-- Pouco barulho! -- atalhei eu, irritada com tanto
espalhafato.
-- Fala mais baixo, Mary! Que se passa? -- perguntou Mr.
Linton. -- Que aconteceu à menina?
-- Fugiu... Fugiu com o tal Heathcliff! -- disse ofegante.
-- Não pode ser! -- exclamou Mr. Linton, levantando-se
perturbado. -- Não pode ser! Onde foste buscar tal ideia?
Ellen Dean, vai procurá-la. É impossível! Não pode
ser!
Enquanto falava, foi com a criada até à porta e
perguntou-lhe outra vez de onde havia ela tirado aquela ideia.
-- Encontrei na estrada um rapaz que entrega aqui o leite
-- gaguejou -- e que me perguntou se nós não estávamos
preocupados aqui na Granja. Pensei que se referisse à doença
da senhora e, por isso, disse-lhe que sim. E, depois, ele
perguntou-me se «foi alguém atrás deles». Fiquei espantada. O
rapaz viu logo que eu não sabia do que ele estava a falar e
contou-me então que vira um cavalheiro e uma senhora no
ferreiro a arranjar a ferradura de um cavalo, a duas milhas de
Gimmerton, pouco depois da meia-noite. A filha do ferreiro
levantou-se para ver quem era e reconheceu-os imediatamente.
Garantiu que era Mr. Heathcliff. Ninguém o podia confundir. De
mais a mais, tendo metido na mão do pai dela uma libra como
pagamento. A senhora trazia um manto pela cabeça, mas, o manto
caíu quando ela estava a beber água, deixando-lhe a :, cara a
descoberto. Heathcliff agarrou nas duas rédeas e partiram o
mais rápido que a estrada pedregosa permitia. Naquela altura a
rapariga não disse nada ao pai, mas esta manhã contou a toda a
gente!
Corri a ir espreitar ao quarto de Isabella, apenas por
descargo de consciência, e, quando regressei, confirmei as
declarações da criada Mr. Linton sentara-se de novo na cama.
Ergueu os olhos quando entrei e adivinhou a verdade na lividez
do meu rosto. Tornou a baixar os olhos, sem proferir palavra.
-- Devo tomar alguma providência para o interceptar e
trazer a menina de volta? -- perguntei. -- Que podemos nós
fazer?
-- Ela foi de sua livre vontade. Estava no seu direito. Não
falemos mais no assunto, pois de hoje em diante ela só é
minha irmã de nome. Não fui eu que a reneguei, foi ela que me
renegou a mim!
Foi tudo o que disse acerca deste assunto. Não voltou a
fazer qualquer pergunta, nem a mencionar o nome da menina,
excepto quando me ordenou que enviasse todos os seus pertences
para a nova morada, logo que se soubesse onde era.
CAPÍTULO XIII
Durante dois meses, nada se soube dos fugitivos. E, nesses
dois meses, Mrs. Linton sofreu e venceu o seu pior recontro
com a doença denominada febre cerebral. Nenhuma mãe teria
cuidado de um filho único mais extremosamente do que Edgar
cuidou de Catherine. Vigiava-a noite e dia, sofrendo
pacientemente todos os aborrecimentos que os nervos alterados
e uma razão abalada podem causar. Apesar de o médico o ter
avisado de que o gesto de a salvar da morte apenas teria como
recompensa uma permanente ansiedade no futuro, uma vez que a
saúde e as forças tinham de ser sacrificadas à preservação
deste mero farrapo humano, Edgar só descansou e ficou mais
animado quando a soube livre de perigo. Passava horas seguidas
à cabeceira da mulher, acompanhando as suas melhoras físicas e
acalentando esperanças ilusórias de que Catherine recuperasse
também mentalmente, para voltar a ser o
que era.
A primeira vez que saiu do quarto, estávamos já no
principio de Março. De manhã, Mr. Linton havia colocado uma
mancheia de crocos dourados sobre o travesseiro. Os olhos de
Catherine, indiferentes a qualquer vislumbre de prazer,
brilharam deliciados quando, ao acordar, viram os crocos e
apressou-se a juntá-los avidamente.
-- São as primeiras flores do Alto! -- exclamou. --
Lembram-me a brisa suave e relaxante e o sol ameno e a neve
há pouco derretida. Diz-me, Edgar, o vento não sopra agora do
Sul e a neve não está quase derretida?
-- A neve já derreteu toda, minha querida -- respondeu
Edgar. -- Só consigo lobrigar duas manchas brancas em todo o
brejo. O céu é azul, as cotovias cantam e os arroios correm
cheios. Catherine, na Primavera passada, desejava ter-te
debaixo deste tecto. Agora, :, desejava que pudesses estar no
alto daqueles montes. A brisa sopra tão doce que estou certo
de que ficarias curada.
-- Só lá voltarei mais uma vez! -- disse a enferma. -- E
será para sempre. Na próxima Primavera desejarás de novo
ter-me debaixo deste tecto, e então veras como hoje eras
feliz.
Mr. Linton tratava-a com o maior carinho, tentando
animá-la, mas ela olhava indiferente para as flores, com as
lágrimas a correrem-lhe pelas faces, sem lhes prestar a
mínima atenção.
Sabíamos que estava bastante melhor e achámos, por isso,
que ver-se confinada ao quarto faria aumentar decerto o seu
desanimo, e que poderíamos melhorar a situação se ela mudasse
de ambiente.
Mr. Linton mandou-me acender a lareira e colocar uma
cadeira ao sol, perto da janela, na sala onde há muitas
semanas ninguém entrava. Trouxe a senhora para baixo e
sentou-a, para desfrutar do calor do sol e da lareira. Como
era de prever, os objectos à sua volta deram-lhe novo alento.
Apesar de lhe serem familiares, não estavam associados a
lúgubres recordações como os do seu odiado quarto de enferma.
Ao pôr do sol, via-se que estava exausta, mas não havia
argumentos que a convencessem a voltar para cima. Por
conseguinte, vi-me obrigada a fazer-lhe a cama no sofá da
sala, até se lhe arranjar um outro quarto.
Para lhe poupar a canseira de subir e descer as escadas,
preparámos este, onde o senhor está agora, no mesmo andar da
sala. Depressa Catherine se sentiu com forças suficientes para
se deslocar de um lado para o outro apoiada ao braço de
Edgar.
Na minha opinião, a senhora tinha fortes hipóteses de se
recuperar, e eu tudo fazia por isso. E tinha duas razões para
desejar que assim fosse, pois da sua vida dependia uma outra;
nutríamos a esperança de que, dentro em breve, o coração de
Mr. Linton se alegrasse e de que as suas terras ficassem a
salvo das mãos gananciosas de um estranho com o nascimento de
um herdeiro.
Devo dizer-lhe que cerca de seis semanas após a fuga,
Isabella enviou um bilhete ao irmão anunciando o seu casamento
com Heathcliff. Era um bilhete seco e frio, mas trazia ao
fundo, escritos a lápis, uma vaga desculpa e um pedido de
reconciliação, caso o seu procedimento o tivesse ofendido.
Assegurava que não pudera evitar fazer o que fizera e que
agora era tarde para voltar atrás.
Julgo que Mr. Linton não respondeu a esse bilhete. Passados
quinze dias, recebi uma longa carta que achei estranho ter
sido escrita pela pena de uma recém-casada, e logo após a
lua-de-mel. :, Vou ler-lha, pois ainda a tenho em meu poder.
As relíquias dos mortos são para nós preciosas, se os
estimámos em vida.
«_Querida Ellen:
Cheguei ontem ao Alto dos Vendavais e ouvi dizer pela
primeira vez que a Catherine tem estado, e ainda está, muito
doente. Julgo que não lhe devo escrever, e o meu irmão ou está
muito zangado ou muito desgostoso para me responder. Mas eu
tinha de escrever a alguém, e tu foste o meu último recurso.
Diz a Edgar que eu dava tudo para voltar a vê-lo, e que o
meu coração regressou à Granja dos Tordos passadas vinte e
quatro horas da minha partida, e que aí continua, cheio de
amor por ele e por Catherine!
No entanto, *não posso fazer o que o meu coração manda*
(estas palavras estão sublinhadas). Escusam, portanto, de
esperar por mim e podem tirar as conclusões que quiserem, mas
não julguem que é por falta de vontade ou de afecto.
O resto da carta é dirigida apenas a ti. Quero fazer-te
duas perguntas. A primeira é a seguinte:
Como conseguiste preservar os sentimentos próprios da
natureza humana enquanto aqui viveste? Eu não partilho
qualquer sentimento com os que aqui me rodeiam.
A segunda pergunta interessa-me muito: diz-me, Heathcliff é
mesmo um ser humano? Se é, deve ser um louco. Se não é, deve
ser um demónio. Não te vou dizer por que faço estas perguntas,
mas gostaria que me explicasses, se puderes, como é o homem
com quem casei. Farás isso quando vieres visitar-me. Por
favor, vem visitar-me o mais depressa possível, Ellen. Não
escrevas, vem visitar-me e traz notícias do Edgar!
E, agora, contar-te-ei como fui recebida no meu novo lar,
isto é, no Alto dos Vendavais. Quando me referir à falta de
comodidades, não quer dizer que isso seja o que mais me
preocupa. Só me lembro delas quando sinto a sua falta.
Pularia de contente se fosse essa a causa de toda a minha
infelicidade, e tudo o mais não passasse de um sonho bizarro!
O sol punha-se por detrás da Granja quando virámos em
direcção ao brejo. Deviam ser umas seis horas. O meu
companheiro fez uma paragem de cerca de meia-hora para
inspeccionar :, o parque, os jardins e, provavelmente, a
própria casa. Era, portanto, já de noite quando nos apeámos
no pátio. O teu velho colega, o Joseph, veio ao nosso encontro
com uma vela de luz ténue. A cortesia com que me recebeu
confirmou a sua reputação O seu primeiro gesto foi colocar a
vela ao nível do meu rosto, olhar-me com ar hostil, espetar o
lábio inferior em sinal de desdém e virar-me as costas.
Depois, levou os dois cavalos para os estábulos. Em seguida
reapareceu a fim de fechar o portão, como que se estivesse
num castelo medieval.
O Heathcliff ficou a falar com ele e eu entrei para a
cozinha, um buraco imundo e desarrumado. Aposto que não a
reconhecerias. Mudou imenso desde que deixou de ser cuidada
por ti.
À lareira estava um garoto de ar rufião, robusto e mal
vestido. A boca e os olhos pareciam-se imenso com os da
Catherine.
Pensei que deveria ser o sobrinho de Edgar e, de certa
forma, meu também. Tive de o cumprimentar e, claro, dar-lhe um
beijo. É aconselhável causar boa impressão logo de início.
Aproximei-me dele, tentei pegar-lhe na mão e perguntei:
-- Como estás, meu querido?
Devolveu-me a saudação com um palavrão que não compreendi.
-- Vamos ser amigos, Hareton? -- disse eu, tentando manter
conversa.
Praguejou e ameaçou açular o cão contra mim se eu não me
*pusesse a andar*.
-- Hey, Throttler! -- chamou o patifório. E vindo de um
canto qualquer, surgiu um canzarrão de aspecto feroz. -- E,
agora, giras ou não giras daqui p.ra fora? -- disse ele, num
tom de voz autoritário.
Condescendi por amor à pele. Tornei a sair e esperei que os
outros voltassem. Do Heathcliff nem sombra e o Joseph, a quem
segui até aos estábulos para lhe pedir que me acompanhasse,
olhou-me muito sério e resmungou: -- Qu.é que vossemecê
disse? Nunc.um cristão ouviu tal linguajar! Vossemecê fala
como se tivesse a boca cheia de batatas quentes. Com. é que
quer qu.eu perceba?
-- Estava eu a dizer que desejava que me acompanhasse até
lá dentro! -- gritei, julgando que ele era surdo, e já
bastante ofendida com a sua falta de maneiras.
-- Eu não! Tenho mais que fazer! -- respondeu enquanto :,
continuava os seus afazeres, andando com a lanterna para cima
e para baixo, de forma a examinar bem o meu vestido e a minha
aparência (aquele bom demais e esta, sem dúvida, tão triste
como seria de esperar).
Contornei o pátio, passei por uma cancela e dei com uma
outra porta, à qual tomei a liberdade de bater, na esperança
de encontrar algum criado mais civilizado.
Após um momento de ansiedade, surgiu à porta um homem alto
e esquelético, sem laço ao pescoço e muito mal arranjado. As
suas feições escondiam-se por trás dos cabelos desgrenhados
que lhe chegavam aos ombros, e os olhos *dele* eram como
espectros dos de Catherine, com toda a sua beleza aniquilada.
-- O que deseja daqui? -- perguntou com agressividade. --
Quem é a senhora?
-- O meu nome *era* Isabella Linton -- respondi. -- O
senhor já me viu antes. Casei há pouco com Mr. HeatEcliff e
ele trouxe-me para cá, julgo que com o seu consentimento.
-- Então já regressaram? -- perguntou o eremita, olhando-me
com olhos penetrantes, qual lobo esfomeado.
-- Sim, acabámos de chegar -- respondi. -- Mas ele deixou-me
à porta da cozinha e, quando me preparava para entrar, o seu
filho pôs-se de sentinela e afugentou-me com a ajuda de um
cão.
-- O maldito sempre cumpriu a promessa! -- rosnou o meu
futuro anfitrião, procurando o Heathcliff por trás de mim, na
escuridão. Em seguida deu início a um solilóquio de
imprecações e ameaças do que tencionava fazer se aquele
«demónio» o ludibriasse.
Arrependi-me de ter batido à porta e estive quase a virar
costas antes de ele terminar as blasfémias. Contudo, e antesque
eu o pudesse fazer, mandou-me entrar e fechou a porta,
trancando-a.
Na sala ampla havia uma grande lareira, a única fonte de
luz naquele compartimento. O chão era num tom cinzento
uniforme. Os pratos de estanho, outrora reluzentes e que me
chamavam a atenção quando eu era criança, partilhavam da mesma
obscuridade, todos cobertos de manchas e de
pó.
Perguntei se podia chamar uma criada que me conduzisse ao
quarto, mas Mr. Earnshaw não me respondeu. Pôs-se a andar de
cá para lá, com as mãos nos bolsos, e parecia ter esquecido a
minha presença. A sua abstracção era de tal modo profunda, e o
seu :, aspecto tão misantropo, que eu tremia só de pensar em
importuna-lo de novo.
Decerto não te admirarás, Ellen, de eu me ter sentido tão
infeliz ao ver-me sozinha num lugar tão hostil. E pensar que a
quatro milhas estava a minha casa, com as únicas pessoas que
eu amo. Tanto fazia que a separar-nos estivesse o Atlântico ou
estas quatro milhas, pois não me era possível transpô-las!
Perguntava a mim própria onde poderia encontrar consolo
(não contes nada disto ao Edgar nem à Catherine) e, além de
toda esta tristeza, havia ainda o desespero de não ter nenhum
aliado contra o Heathcliff!
Foi quase contente que procurei abrigo no Alto dos
Vendavais, para não ter de viver sozinha com ele, mas ele
conhecia bem as pessoas que aqui vivem e não temia que elas
se intrometessem.
Fiquei, pois, sentada sozinha, na companhia dos mais
lúgubres pensamentos. O relógio bateu as oito e depois as
nove, e Mr. Earnshaw sempre a andar para trás e para a
frente, cabisbaixo e em silêncio. Só de quando em vez deixava
escapar um gemido ou uma exclamação
azeda.
Pus-me à escuta, a ver se detectava alguma voz feminina
dentro daquela casa, enquanto preenchia o tempo com remorsos
amargos e previsões sinistras que, por fim, se exprimiram em
lágrimas e soluços.
Só me apercebi de quão alto manifestava o meu sofrimento,
quando Mr. Earnshaw, interrompendo o seu vai-vem compassado,
parou à minha frente e me olhou com surpresa. Aproveitando a
atenção que me dispensava, exclamei: -- Estou exausta da
viagem e desejava deitar-me. Onde posso encontrar uma criada?
Vou procurá-la, já que não aparece nenhuma!
-- Não temos criadas -- respondeu. -- Terá de se haver
sozinha!
-- Então, diga-me onde posso dormir! -- volvi, entre
soluços. O cansaço e a angústia haviam-me feito perder toda a
dignidade.
-- O Joseph vai levá-la ao quarto do Heathcliff -- disse
ele. -- Abra essa porta. Ele está lá dentro.
Quando me preparava para obedecer, Mr. Earnshaw agarrou-me
o braço bruscamente e acrescentou num tom sinistro: --
Recomendo-lhe que feche a porta à chave e corra as trancas.
Não se esqueça de o fazer!
-- Está bem -- disse eu. -- Mas porquê, Mr. Earnshaw? --
Não :, me agradava nada a ideia de me fechar deliberadamente
no quarto com o Heathcliff.
-- Veja isto! -- respondeu, tirando do bolso uma pistola de
formato assaz singular, pois do cano saía uma navalha de
ponta e mola, de dois gumes. -- A tentação é grande demais
para um homem desesperado, não acha? Não resisto a ir lá acima
todas as noites ver se ele se esqueceu de fechar a porta. Se
isso acontecer, é um homem morto! Faço-o todas as noites; e
ainda que um minuto antes me ocorram mil razões para não o
fazer, tenho aqui no peito um demónio que me aconselha a
matá-lo. Hei-de lutar contra esse demónio enquanto puder, mas,
quando chegar a altura, nem todos os anjos do céu me
conseguirão deter!
Examinei a arma pormenorizadamente e tive uma ideia
terrível: como eu seria poderosa se possuísse aquele
instrumento! Tirei-lho da mão e toquei na lâmina. Ele estava
surpreendido com a expressão que detectou no meu rosto: não
de horror, mas de cobiça. Pegou na pistola, cioso, fechou a
navalha e voltou a guardá-la no bolso.
-- Não me importo que lhe vá contar tudo -- disse ele. --
Ele que se ponha a pau, e a senhora trate de velar por ele.
Pelo que vejo, está a par do que se passa entre nós, pois o
perigo que ele corre não a choca.
-- Que lhe fez o Heathcliff? -- indaguei. -- Que patifaria
lhe fez ele, para o odiar tanto? Não seria melhor obrigá-lo a
deixar esta casa?
-- Não! -- trovejou Earnshaw -- Ele que não pense em sair
daqui, ou será um homem morto. Convença-o a fazê-lo, e será
uma assassina! Terei eu de ficar sem todos os meus bens, e sem
hipótese de os reaver? Terá o Hareton de ser um vagabundo?
Maldição! Hei-de reaver tudo o que é meu e ficarei também com
o seu ouro e depois o seu sangue. O diabo que lhe fique com a
alma! O inferno será dez vezes mais tenebroso com tal hóspede!
Ellen, tu já me tinhas falado dos hábitos do teu antigo
patrão. Não há dúvida de que está a ficar louco. Pelo menos,
ontem à noite, estava. Toda eu tremia só de estar ao pé dele,
e achava que, apesar da grosseria do criado, a sua companhia
era bem mais agradável.
Earnshaw recomeçou o seu vai-vem. Eu abri o ferrolho e
escapuli-me para a cozinha.
Fui encontrar o Joseph debruçado sobre o lume, a espreitar
para :, dentro de uma grande panela balouçante. Ao lado,
pousada em cima de um banco, estava uma tigela de madeira
cheia de farinha de aveia. A panela começou a ferver e o
Joseph voltou-se para meter a mão na tigela. Imaginei que
aquilo fosse a nossa refeição e, uma vez que estava cheia de
fome, decidi tornar a mistela comestível.
-- Eu faço as papas! -- propus de chofre, colocando a
tigela fora do alcance do Joseph. Tirei o chapéu e a saia de
montar. -- Mr. Earnshaw disse-me para cuidar de mim mesma.
Pois é o que vou fazer. Se estou à espera de que me sirvam,
morrerei de fome -- prossegui.
-- Deus do céu! -- murmurou ele, sentando-se e cofiando as
meias listradas que lhe chegavam aos joelhos. -- S.eu vou ter
d.andar às ordens duma *patroa*, agora que já estava
acostumado a dois patrões, está na hora de me pôr a andar
daqui p.ra fora. Nunca pensei ver o dia de abandonar este
buraco, mas vejo qu.esse dia não tarda!
Sem fazer caso das suas lamúrias, meti mão à obra,
suspirando ao relembrar o tempo em que aquilo era para mim uma
alegre brincadeira. Contudo, tentei afugentar o pensamento.
Recordar alegrias passadas afligia-me e, para afastar tais
pensamentos fazia girar cada vez mais depressa o colherão
enquanto lançava para a água mancheias de farinha.
O Joseph observava as minhas artes culinárias com crescente
indignação.
-- Pronto! -- exclamou. -- Ai, Hareton, Hareton, esta noite
num podes comer as papas de tão encaroçadas qu.hão-de ficar.
Olhem-me só p.ra isto! Já agora, por qu.é que vossemecê não
atira lá p.ra dentro a tigela e tudo? Pimba, pimba. É milagre
o fundo .inda num ter caído.
Devo confessar que as papas não tinham lá muito bom aspecto
quando vazadas nos pratos. Enchemos quatro pratos e fomos
buscar um jarro de leite fresco à vacaria. O
Hareton assenhoreou-se logo do jarro e começou a beber
sofregamente, deixando escorrer o leite pelo
queixo.
Repreendi-o e disse-lhe que devia ter uma caneca só para
ele, pois não estava disposta a beber o leite depois de
conspurcado. Mas o cínico do velho mostrou-se indignado com
este meu preconceito de higiene e tratou de me dizer que «o
catraio era tão bom como eu e .inda mais saudável». Depois
perguntou-me como é que eu podia ser tão presunçosa. :,
Entretanto, o malvado do garoto continuou a sorver o leite,
olhando-me com ar de desafio e babando-se para dentro do
jarro.
-- Vou comer para outro lado -- disse eu. -- Não há nenhum
sítio a que se possa chamar uma *sala de estar*?
-- Uma *sala de estar*! -- arremedou-me o Joseph -- Uma
*sala de estar*! Não, aqui num há *salas de estar*. Se num
lh.agrada a nossa companhia tem a do patrão. E se num gosta da
do patrão, tem de se contentar c.a nossa.
-- Então vou lá para cima -- respondi. -- Leve-me a um
quarto qualquer. Pus o meu prato numa bandeja e fui eu própria
buscar mais leite. Sempre a resmungar, o Joseph levantou-se e
subiu as escadas à minha frente. Subimos até ao último andar.
De vez em quando, o Joseph abria uma porta e espreitava.
-- Cá está um quarto! -- disse, por fim empurrando uma
velha porta desengonçada. -- Serve muito bem p.ra vossemecê
comer as papas. Há um monte de grão já joeirado ali ao canto.
Se tiver medo de sujar as suas roupas de seda, abra um lenço e
assente-se.
*_O quarto* era uma espécie de arrecadação com um forte
cheiro a malte e cereais. Havia sacos empilhados a toda a
volta e um grande espaço livre no meio.
-- Deve estar louco! -- exclamei, olhando furibunda para o
velhaco do velho. -- Isto é lá sítio onde se durma! Leve-me
para um quarto decente.
-- *_Um quarto decente* -- arremedou ele, trocista. --
Vossemecê já viu todos os *quartos decentes* que temos. Olhe,
este aqui é o meu. -- E mostrou-me um outro compartimento que
só se diferençava do primeiro por ter as paredes mais nuas e
uma cama larga e baixa sem cortinas e com um cobertor azul aos
pés.
-- Quero lá saber do seu quarto? -- retorqui. -- Suponho
que Mr. Heathcliff não durma nas águas-furtadas, ou será que
dorme?
-- Ah! É o quarto do patrão que vossemecê quer? -- gritou
ele, como se tivesse feito uma descoberta. -- Não podia ter
dito isso há mais tempo? Já lhe teria dito qu.esse é o único
quarto que num lhe posso mostrar porque está sempre fechado à
chave e só Mr. Heathcliff é que lá entra.
-- Que bela casa esta, Joseph! -- Não pude deixar de
exclamar. -- E que simpáticos os seus ocupantes! Eu devia
estar doida varrida no dia em que me liguei a um deles. Mas
isso agora não interessa. Deve haver mais quartos. Por amor de
Deus, dê-me um qualquer!
Ele não respondeu à minha súplica. Limitou-se a descer os
:, degraus de madeira e a parar à porta de um quarto que, pela
qualidade superior da mobília, devia ser o melhor da casa.
Tinha no chão um tapete de boa qualidade, mas o desenho mal
se distinguia por baixo das camadas de poeira; havia também
uma lareira orlada com uma cercadura de papel recortado a cair
aos bocados, uma imponente cama de carvalho com amplas
cortinas carmesim de um tecido caro e modelo actual. Mas era
óbvio que tinham tido muito uso, pois as sanefas pendiam em
festões, arrancadas das argolas, e o varão de ferro estava
descaído para um dos lados, fazendo o tecido arrastar no chão.
As cadeiras estavam também muito mal tratadas e as paredes
apresentavam mossas profundas. Preparava-me já para entrar,
quando o palerma do meu guia anunciou: -- Este é o quarto do
patrão.
Nesta altura, a minha refeição tinha já arrefecido, o meu
apetite desaparecera e eu perdera a paciência. Insisti para
que me mostrasse um lugar qualquer onde eu pudesse repousar.
-- Deus nos acuda! -- resmungou o velho -- Onde diabo quer
qu.a meta? Sabe qu.é muito maçadora? Já viu tudo menos o
cubículo do Hareton. Num há mais buraco nenhum nesta casa.
Estava tão enervada que atirei com o prato ao chão. Depois,
sentei-me no cimo das escadas, escondi a cara entre as mãos e
desatei a chorar.
-- Bonito serviço! -- exclamou o Joseph -- C.ando o patrão
vir esta loiça quebrada vamos ouvir das boas! Que maldade a
sua! Devia fazer penitência até ó Natal por estragar as
dádivas de Deus Nosso Senhor c.os seus assomos de mau-génio!
Mas, ou muito me engano, ou vossemecê depressa há-de amansar!
Julga que Mr. Heathcliff lhe vai perdoar tais desmandos? Só
queria qu.ele a apanhasse nisto... Só queria...
E, depois, foi-se embora para a cozinha, deixando-me na
escuridão.
O período de reflexão que se seguiu a esta cena patérica
levou-me a admitir a necessidade de dominar o meu orgulho e a
minha raiva e de fazer desaparecer todos os vestígios do meu
impensado acto de desespero. Uma ajuda inesperada apareceu-me
sob a forma de Throttler, que reconheci como sendo filho do
nosso velho Skulker. Fora criado na Granja e o meu pai
oferecera-o a Mr. Hindley. Creio que me reconheceu. Encostou o
focinho ao meu nariz para me cumprimentar e depois apressou-se
a comer a papa enquanto eu :, apanhava os cacos e limpava as
pingas de leite do corrimão com o meu lenço.
Mal tínhamos terminado a nossa tarefa, ouvi os passos de
Mr. Earnshaw. O meu ajudante meteu o rabo entre as pernas e
chegou-se para a parede. Eu escondi-me no quarto mais
próximo. Os esforços do cão para passar despercebido foram
inúteis, conforme depreendi pela sua corrida escada abaixo,
depois de umas ganidelas. Eu tive mais sorte. Earnshaw passou,
entrou no quarto dele e fechou a porta. Logo a seguir, o
Joseph subiu com o Hareton para o ir deitar. Eu tinha-me
refugiado no quarto do garoto e o velho, ao ver-me, disse: --
Já há lugar p.ra si e p.ro seu orgulho lá em baixo. A sala
está vazia. Fica toda p.ra si e p.ro seu orgulho, além de Deus
Nosso Senhor, que será o terceiro e muito mal s.há-de sentir
na sua companhia!
Aceitei a sugestão toda contente. Atirei-me para cima de
uma cadeira perto da lareira e não tardei a adormecer. Foi um
sono profundo e tranquilo, mas de pouca dura. O Heathcliff
acordou-me. Acabara de entrar e perguntou-me com a já
costumeira «delicadeza», o que fazia eu ali. Expliquei-lhe a
razão por que estava a pé tão tarde: ele tinha a chave do
nosso quarto no bolso. O possessivo «nosso» foi para ele uma
grave ofensa. Jurou que aquele quarto não era, nem nunca
seria, meu e que... Não. Não me atrevo a repetir as suas
palavras, nem a descrever o seu comportamento habitual. O
Heathcliff é incansável a fazer crescer o ódio que eu sinto
por ele. Por vezes assusta-me de tal maneira que me sufoca de
medo. Garanto-te que um tigre ou uma serpente venenosa não me
assustariam mais. Contou-me da doença
da Catherine e disse que a culpa era do meu irmão e que
se vingaria em mim enquanto não pudesse deitar-lhe a
mão.
Como eu o odeio! Sou uma desgraçada! Que tola que eu fui!
Não contes nada disto na Granja. Espero-te a todo o momento.
Não me desiludas!
Isabella
CAPíTULO XIV
Assim que acabei de ler esta carta, fui informar o patrão
de que a irmã chegara ao Alto dos Vendavais e me tinha escrito
uma carta dizendo o quanto lamentava o estado em que se
encontrava Mrs. Linton e que desejava muito vê-lo; mostrava-se
ainda esperançada em que ele lhe enviasse por mim, o mais
depressa possível, um sinal de perdão.
-- Perdão?! exclamou Linton. -- Não tenho nada a
perdoar-lhe, Ellen. Se quiseres, podes ir ainda esta tarde ao
Alto dos Vendavais e diz-lhe que não estou zangado, mas tão só
triste por tê-la perdido: acima de tudo, porque acho que ela
jamais será feliz. Ir vê-la está, porém, completamente fora de
questão, uma vez que estamos separados para sempre. E, se
quiser realmente fazer-me um favor, que tente persuadir o
patife com quem casou a deixar esta região.
-- E o senhor não quer ao menos escrever-lhe um bilhetinho?
-- perguntei, quase implorando.
-- Não. -- respondeu -- É desnecessário. O nosso contacto
com a família de Heathcliff deverá ser tão raro como o da
família dele com a minha. Não deve existir sequer!
A frieza de Mr. Edgar deprimiu-me por demais e, no caminho
da Granja para o Alto dos Vendavais, dei voltas à cabeça para
descobrir uma maneira de, ao repetir o recado, pôr mais
sentimento nas palavras dele e suavizar a sua recusa em
escrever algumas linhas para confortar a irmã.
Era capaz de jurar que estava à minha espera desde manhã.
Vi-a espreitar por detrás da janela e acenei-lhe ao atravessar
o jardim, mas ela afastou-se como se receasse estar a ser
observada.
Entrei sem bater à porta. Nunca tinha visto aquela sala,
outrora tão alegre, tão sinistra e tão sombria! Confesso que,
se estivesse no :, lugar da jovem senhora, teria pelo menos
varrido o chão e espanado o pó das mesas. Mas o espírito de
desleixo já se tinha apoderado dela. O seu lindo rosto estava
pálido e tinha um ar de indiferença; as madeixas de cabelo
comprido e liso caíam-lhe pela cara abaixo, mantendo-se outras
atabalhoadamente enroladas à volta da cabeça. Provavelmente,
ainda não tinha mudado de roupa desde que chegara.
Hindley não estava. Mr. Heathcliff, sentado a uma mesa,
folheava alguns papéis. Quando cheguei, levantou-se e
perguntou-me como tinha passado, mostrando-se afável e
oferecendo-me uma cadeira. Era o único que tinha um ar
decente; julgo mesmo que nunca o vira com melhor aspecto. As
circunstâncias haviam alterado tanto a situação, que um
estranho o tomaria a ele por um cavalheiro de nascimento e
educação e à mulher por uma desleixada. Isabella correu para
mim, para me cumprimentar, de mão estendida para receber a
desejada carta.
Abanei a cabeça negativamente, mas ela não percebeu e foi
atrás de mim até ao louceiro onde pousei a minha touca. E, num
sussurro, pediu-me que lhe desse o bilhete que trouxera.
Heathcliff, apercebendo-se do que se passava, disse: -- Nelly,
se trouxeste alguma coisa para Isabella, entrega-lha. Não
precisam de fazer segredo. Entre nós não há segredos.
-- Lamento, mas não trouxe nada! -- disse, pensando que
seria melhor dizer logo a verdade de uma vez por todas. O meu
patrão ordenou-me que dissesse à irmã que não esperasse da
parte dele qualquer carta ou visita. Minha senhora, o seu
irmão deseja-lhe as melhores felicidades e perdoa-lhe todo o
sofrimento que a senhora lhe causou, mas acha que, daqui em
diante, o melhor será cortar as relações entre as duas
famílias, pois nada de bom daí advirá se forem mantidas.
O lábio de Mrs. Heathcliff tremeu ligeiramente e ela voltou
a sentar-se junto da janela. O marido encostou-se ao rebordo
da chaminé, perto de mim, e começou a interrogar-me a respeito
de Catherine. Contei-lhe o que achei que podia contar, factos
relacionados com a origem da sua doença, e culpei-a, como
merecia, por atrair a desgraça sobre si própria; terminei,
dizendo que esperava que ele seguisse o- exemplo de Mr.
Linton, evitando daí em diante futuras intromissões na família
dele.
-- Mrs. Linton está a recuperar, mas nunca mais será a
mesma. Contudo, a sua vida já não corre perigo. Se realmente
ainda tem :, algum respeito por ela, não ouse
atravessar-se-lhe no caminho Desapareça de vez das redondezas.
Não tenha pena de partir. Desde já o aviso de que Catherine
Linton esta tão diferente da sua amiga Catherine Earnshaw como
esta é diferente de mim. Se a sua aparência mudou
radicalmente, mais ainda mudou o seu caracter. E aquele que
por força da necessidade é seu companheiro só manterá o seu
afecto por ela doravante em nome do que ela foi outrora, do
sentido de humanidade e do dever!
-- É possível. -- Retorquiu Heathcliff, esforçando-se por
parecer calmo. É possível que o teu patrão não sinta por ela
mais do que sentido de dever e humanidade; e acaso julgas que
vou deixar Catherine entregue ao sentido da humanidade e do
dever do marido? Achas possível comparar o que eu sinto por
ela com o que ele sente? Antes de te ires embora desta casa,
preciso que me prometas que vais conseguir arranjar-me um
encontro com ela. Quer ela concorde, quer não, tenho de vê-la!
Que dizes, Nelly?
-- Eu digo que o senhor não deve fazer tal coisa, e muito
menos por meu intermédio. Outro encontro entre o senhor e o
meu patrão poderá ser fatal para a minha senhora!
-- Com a tua ajuda, isso poderá ser evitado prosseguiu. --
E, se isso acarretar algum perigo, se ele lhe causar mais
preocupações, então todos os meus actos extremos estarão
justificados. Quero que me digas, com toda a sinceridade, se
Catherine sofreria muito se o marido morresse. Este é o meu
único receio e, por isso, me abstenho de qualquer acto: assim
se pode ver a diferença entre os nossos sentimentos. Se eu
estivesse no lugar dele e ele no meu, embora o odeie
profundamente, jamais levantaria um dedo que fosse contra esse
homem. Acredita, se quiseres! Eu nunca o teria banido da vida
dela, se isso fosse contra a sua vontade. No momento em que o
interesse dela acabasse, arrancar-lhe-ia o coração e
beber-lhe-ia o sangue. Mas, por ora... Se não acreditas em
mim é porque não me conheces. Porém, enquanto tal não
acontecer, prefiro morrer a tocar-lhe num só fio de cabelo que
seja!
-- E, no entanto, -- interrompi-o -- não tem quaisquer
escrúpulos em deitar por terra todas as nossas esperanças
numa completa recuperação da senhora, avivando-lhe
recordações, agora que ela quase o esqueceu, reacendendo
angústias, discórdias e escândalos.
-- Nelly, achas que a senhora me esqueceu mesmo?
--perguntou ele. -- Sabes bem que não! Sabes tão bem como eu
que por cada :, minuto que ela perde a pensar no Linton, gasta
mil a pensar em mim!
No período mais infeliz da minha vida, ou seja, no Verão
passado, tive a sensação de que ela me esquecera, temor que
me perseguiu desde que vim morar para aqui. Porém, somente a
sua confissão me faria admitir esta ideia hedionda. E, se
assim fosse, que importância teriam Linton, Hindley e todos os
sonhos que construí? Só duas palavras poderiam descrever o
meu futuro -- Morte e Inferno. A minha vida depois de a perder
seria um inferno. Todavia, cheguei a pensar que ela desse
mais valor à amizade de Edgar do que à minha. Que loucura! Nem
que ele a amasse com toda a força da sua vil existência, seria
capaz de a amar tanto em oitenta anos como eu num só dia.
Catherine tem um coração tão profundo como o meu. Seria mais
fácil meter o mar dentro de uma selha, que toda a afeição dela
ser monopolizada por ele. O sentimento que ela nutre pelo
marido é pouco mais intenso que o que ela nutre pelo cão ou
pelo cavalo. Não faz parte da natureza dele ser amado, como eu
sou. Como pode Catherine amar o que esse homem não possui?
-- Catherine e Edgar sentem um pelo outro o que qualquer
casal sente! gritou Isabella, inesperadamente. -- Ninguém tem
o direito de falar assim do meu irmão, e muito menos na minha
presença, sem que eu me manifeste.
-- O teu irmão também é muito teu amigo, não é? --
observou Heathcliff com desdém. -- Deixou-te sozinha no mundo
com surpreendente desenvoltura.
-- Ele não sabe o quanto sofro respondeu ela. -- Nunca lho
disse.
-- Mas deves ter-lhe dito alguma coisa, pois tens-lhe
escrito, não tens?
-- Escrevi-lhe para lhe comunicar que tinha casado. Tu
viste o bilhete.
-- E nunca mais lhe escreveste desde então?
-- Não.
-- A menina tem um ar mais triste desde que casou
--acrescentei. -- Desconfio que há aqui alguém que não a ama
como devia. Claro que sei quem esse alguém é, mas talvez não
deva dizê-lo.
-- Só pode ser ela própria ripostou Heathcliff. Está a
tornar-se insuportável! Depressa se cansou de me tentar
agradar. Podes não acreditar, mas na própria noite de núpcias
chorou para :, voltar para casa. Contudo, e não sendo
demasiado bonita, enquadra-se melhor nesta casa modesta, e
tomarei as providências necessárias para que não me deixe
ficar mal, andando por aí na vadiagem.
-- Bem, o senhor lembre-se de que Mrs. Heathcliff está
habituada a ter criados e foi criada como filha única, uma
menina a quem todos faziam as vontades. O senhor devia
arranjar-lhe uma criada para lhe manter as coisas arrumadas e
devia tratá-la com delicadeza. Seja qual for a sua opinião
sobre Mr. Edgar, não pode por em dúvida a capacidade da sua
esposa em alimentar sentimentos profundos. Caso contrário, não
teria abandonado os amigos e o conforto da sua antiga casa
para se instalar consigo neste ermo de livre vontade.
-- Abandonou tudo para ir atrás de uma ilusão -- respondeu
ele. Fez de mim um herói romanesco, esperando condescendência
ilimitada da minha devoção e cavalheirismo. Não consigo
imaginá-la como uma criatura racional, já que tão
obstinadamente se agarrou a uma ideia fantasiosa do meu
caracter, agindo de acordo com as falsas imagens em que
acreditava. Mas penso que começa finalmente a conhecer-me. Já
não lhe vislumbro os sorrisos idiotas e os trejeitos que, a
princípio, tanto me irritavam; nem a sua insensata
incapacidade para discernir sinceridade nas minhas palavras,
quando lhe dava a minha opinião sobre ela própria e a sua
paixão doentia. Foi-lhe necessário um rasgo de perspicácia
para descobrir que eu não a amava. A dada altura, cheguei a
acreditar que nada a faria entender isso; mesmo assim,
aprendeu mal a lição, pois esta manhã informou-me, num rasgo
de inteligência que, finalmente, eu tinha conseguido que ela
me odiasse! Um verdadeiro trabalho de Hércules, podes crer! Se
conseguir isso, tenho de lhe agradecer. Posso confiar em ti,
Isabella? Tens a certeza de que me odeias? Se eu te deixasse
sozinha por meio dia, não voltarias para mim com suspiros e
lamentos? Bem sei que ela preferia que eu me mostrasse
afectuoso à tua frente; fere-lhe o orgulho ver a verdade assim
exposta. Mas eu não me importo que se saiba que a paixão não é
recíproca, e nunca lhe ocultei a verdade. Ela não pode
acusar-me de simular uma falsa gentileza, pois a primeira
coisa que me viu fazer, quando me vim embora da Granja, foi
enforcar a sua cadelinha; e, quando me suplicou que não o
fizesse, as primeiras palavras que proferi foram que desejava
poder enforcar todos os membros da sua família, excepto um:
possivelmente, pensou que era ela a :, excepção. Todavia,
nenhuma brutalidade a impressionou. Suponho que possui uma
admiração inata pela brutalidade, desde que ela própria se
sinta em segurança! Não é o cúmulo do absurdo e da estupidez
que esta criatura servil e mesquinha pudesse pensar que eu a
amava? Nelly, diz ao teu patrão que eu nunca, em toda a minha
vida, conheci uma pessoa tão abjecta quanto ela: é a vergonha
do bom nome da família Linton; e que, às vezes, só por pura
falta de imaginação, me abstenho de continuar as minhas
experiências para ver até que ponto ela é capaz de suportar
humilhações e, não obstante, voltar para mim a rastejar com o
rabinho entre as pernas. Diz-lhe também que aquiete o seu
coração de irmão e de magistrado, pois eu manter-me-ei dentro
dos limites da lei. Até ao momento, tenho evitado dar-lhe
qualquer pretexto para ela poder requerer a separação, e, além
disso, ela não agradeceria a ninguém que viesse separar-nos.
Se ela quiser partir é livre de o fazer. O incómodo da sua
presença é bem maior que o prazer de a poder atormentar!
-- Mr. Heathcliff -- disse eu -- depois de tudo que me
disse, não posso crer que esteja no seu perfeito juízo, e a
sua esposa, provavelmente, está convencida de que o senhor
está louco. Só por essa razão, tem ela suportado tudo
pacientemente; mas agora, que tem autorização para se ir
embora, sem dúvida alguma o fará. A senhora não está assim tão
enfeitiçada ao ponto de ficar com este homem de livre vontade,
ou será que está?
-- Cuidado Ellen! respondeu Isabella com os olhos
cintilantes de raiva; pela expressão do seu rosto, não
restavam dúvidas do total sucesso do marido em conseguir que
ela o odiasse. Não acredites numa só palavra que ele diz. Ele
não é um ser humano. É uma criatura maquiavélica e mentirosa,
um autêntico monstro. Já me disseram que podia tê-lo
deixado há mais tempo; cheguei a tentar, mas não me atrevo a
repetir a experiência! Só te peço que me prometas, Ellen, que
não vais contar uma única palavra desta conversa ao meu irmão
ou à Catherine. Por mais que ele queira esconder as suas
intenções, o que realmente deseja é levar Edgar ao desespero.
Diz que casou comigo só para ter poder sobre ele; mas não o
conseguirá, nem que eu morra primeiro! Só espero, e rezo, para
que ele descure a sua prudência diabólica e me mate! Os
únicos desejos que eu consigo albergar são morrer ou vê-lo
morto!
-- Aí está, já chega por agora! -- disse Heathcliff. -- Se
fores chamada a depor em tribunal, lembra-te das palavras
dela, Nelly! E repara bem na expressão do seu rosto. É a mais
adequada para o :, que me convém. Não, Isabella, tu não estás
em condições de seres independente; e eu, sendo o teu tutor
legal, tenho de te manter sob a minha custódia, por mais
desagradável que essa obrigação possa ser. Vai lá para cima,
que eu tenho de falar em particular com a Ellen Dean. Não é
para aí. É lá para cima, já te disse! Então é esse o caminho
para o andar de cima?
Agarrou-a e empurrou-a para fora da sala, posto o que
regressou a resmungar.
-- Não tenho um pingo de compaixão! Não tenho um pingo de
compaixão! Quanto mais os vermes se enroscam, mais me apetece
esmagá-los! Dir-se-ia uma dentição moral: quanto mais força
faço a ranger os dentes, tanto maiores as dores que sinto.
-- O senhor sabe o significado da palavra compaixão? --
perguntei-lhe, apressando-me a ir buscar a minha touca. --
Alguma vez na vida sentiu compaixão por alguém?
-- Pousa isso outra vez! -- atalhou ele, apercebendo-se da
minha intenção de partir. -- Não te vás já embora, Nelly, anda
cá. Tenho de persuadir-te a ajudar-me a mim e à Catherine o
mais rapidamente possível. Juro que não tenho más intenções.
Não quero causar-lhe mais problemas, nem exasperar ou insultar
Mr. Linton. Só quero ouvir da boca dela como se sente e por
que razão ficou enferma; e perguntar-lhe se lhe poderei ser
útil em alguma coisa. A noite passada estive seis horas no
jardim da Granja. E esta noite vou voltar lá. E todas as
noites seguintes, até conseguir entrar. Se me cruzar com o
Edgar Linton, não hesitarei em dar-lhe um murro com toda a
força, de forma a que ele não me incomode enquanto eu lá
estiver. E, se os criados oferecerem resistência,
mostrar-lhes-ei esta pistola. Mas,
diz lá, não seria preferível evitar o confronto com os criados
e com o patrão? Tu poderias consegui-lo facilmente!
Avisar-te-ei quando chegar e tu deixas-me entrar, à socapa,
assim que ela estiver sozinha, e ficas de sentinela até eu me
ir embora. Fica com a consciência tranquila, pois assim
evitarás muitos conflitos.
Protestei, novamente, recusando desempenhar um papel de
traidora na casa do meu patrão, além de que estaria, com o
meu gesto, a alimentar a sua crueldade e egoísmo, deixando-o
perturbar a tranquilidade de Mrs. Linton por mero capricho.
-- Até as coisas mais corriqueiras lhe causam angústia e
sofrimento disse eu. Ela está muito nervosa e tenho a certeza
de que não aguentaria a surpresa. Não insista, Mr. Heathcliff!
Senão, :, ver-me-ei obrigada a alertar o meu patrão quanto às
suas intenções. E ele tomará as devidas precauções para
proteger a casa e os que lá moram de intrusões não
autorizadas!
-- Nesse caso, tomarei também as devidas providências para
me proteger de ti! -- exclamou Heathcliff. -- Não sairás daqui
até amanhã de manhã. A história que me contaste é
completamente descabida. Com que então, Catherine não
suportaria ver-me! Como não desejo surpreendê-la, deves
prepará-la para o nosso encontro. Pergunta-lhe se posso ir
visitá-la. Dizes que nunca menciona o meu nome e que ninguém o
profere na sua presença. A quem deveria ela mencioná-lo, se eu
sou assunto proibido naquela casa? Ela acha que são todos
espiões do marido. E não tenho qualquer dúvida de que todos
vós lhe fazeis a vida num inferno! Posso adivinhar pelo seu
silêncio o que ela sente. Dizes que está muitas vezes inquieta
e ansiosa... É isso prova de tranquilidade? Falas-me do seu
espírito perturbado... E como raio querias que estivesse, se
vive num isolamento aterrador? E aquela criatura insípida e
mesquinha a tratar dela por dever e humanidade! Por compaixão
e caridade! Mais lhe valia plantar um carvalho num vaso de
flores e esperar que ele crescesse, que imaginar que lhe
podia restituir a vitalidade com os seus carinhos! -- Vamos
combinar tudo muito bem: ficas tu aqui e vou eu bater-me pela
minha Catherine contra Linton e os seus lacaios? Ou continuas
a ser minha amiga, como até agora, e fazes o que te peço? Vá
decide-te! Não há motivo para eu perder nem mais um minuto, se
continuares a ser teimosa!
Olhe, Mr. Lockwood, eu queixei-me, discuti e recusei
cinquenta vezes o que ele me pedia. Mas, depois de tanto me
negar, acabei por ceder. Comprometi-me a levar uma carta dele
à minha senhora e, se ela consentisse, prometi-lhe que o
avisaria da próxima ausência de Mr. Linton e de quanto tempo
se demoraria ele por fora, para Heathcliff tentar entrar como
pudesse; Eu não estaria presente e os meus colegas estariam
igualmente fora do caminho. Estaria isto certo ou errado? Eu
temia que estivesse errado, mas era necessário, pois com a
minha cumplicidade evitavam-se mais conflitos, e poderia
ainda contribuir para uma evolução favorável da doença mental
de Catherine. Lembrei-me, então, da repreensão severa de Mr.
Edgar por eu lhe ter contado certas histórias, e tentei
afastar a inquietação, repetindo a mim mesma frequentemente
que seria esta a última vez que eu trairia a sua confiança. :,
Não obstante, o meu regresso foi mais triste do que a ida.
E hesitei muito antes de entregar a carta a Mrs. Linton.
-- Aí vem o Dr. Kenneth, Mr. Lockwood. Vou mas é para baixo
dizer-lhe que o senhor melhorou bastante. A minha história já
vai longa, como se costuma dizer, e o melhor é deixar o resto
para amanhã.
«__Longa e triste!» pensei eu, enquanto aquela boa alma
descia a escada para receber o médico; não era exactamente o
tipo de história que eu escolhesse para me distrair, mas não
importa! Extrairei remédios balsâmicos das ervas amargas de
Mrs. Dean. Porém, tenho, antes de mais, de tomar cuidado com o
fascínio que espreita nos olhos cintilantes de Catherine
Heathcliff. Iria meter-me num lindo sarilho, se o meu coração
sucumbisse aos encantos dessa jovem senhora, e a filha se
revelasse a segunda edição da mãe!
CAPÍTULO XV
Outra semana se passara... e eu cada dia mais perto da
saúde e da Primavera! Já ouvi inteirinha a história da vida do
meu vizinho, contada em várias sessões sempre que a governanta
fazia uma pausa noutros afazeres mais importantes. Continuarei
a contar a história pelas suas próprias palavras, apenas um
pouco mais resumida. Ela é na verdade uma excelente narradora
e eu não sou capaz de melhorar o seu estilo.
Nessa tarde -- recomeçou ela -- na tarde do dia em que fui
ao Alto dos Vendavais, sabia, como se estivesse a vê-lo, que
Mr. Heathcliff andava a rondar a casa. Por isso evitei sair,
pois tinha ainda em meu poder a carta que ele me incumbira de
entregar, e não queria ser ameaçada de novo.
Tinha decidido não a dar à senhora enquanto o meu patrão
estivesse em casa, uma vez que não podia imaginar qual seria a
reacção dela. Por essa razão, a carta só foi entregue ao fim
de três dias. O quarto dia era domingo, e só quando já toda a
família tinha saído para a missa subi ao quarto da senhora e
lhe entreguei a carta.
Ficara apenas um criado a guardar a casa comigo e, durante
as horas da missa, era costume mantermos as portas trancadas.
Naquele dia, porém, o tempo estava tão ameno e agradável que
resolvi deixá-las abertas para cumprir a minha promessa. E,
para afastar o outro serviçal, disse-lhe que a senhora
desejava comer laranjas e que era necessário que ele desse um
salto à vila para as ir comprar e que eu no dia seguinte as
iria lá pagar. Assim que ele saiu, subi as
escadas.
Mrs. Linton estava, como de costume, sentada à janela.
Trazia um vestido branco a cair solto e, sobre os ombros, uma
pequena :, romeira. Quando caíra à cama, tinham-lhe cortado
grande parte do cabelo espesso e longo e, agora, penteava-o
com simplicidade, com os caracóis a cair soltos sobre as
têmporas e a nuca.
A aparência de Catherine, como eu dissera a Heathcliff,
tinha mudado bastante. Todavia, quando estava mais calma,
parecia que dessa mudança irradiava uma beleza sobrenatural.
O brilho cintilante dos seus olhos dera lugar a um olhar
sonhador e melancólico que dava a impressão, não de fitar os
objectos à sua volta, mas de se fixar além, muito mais além,
quem sabe se fora deste mundo. Também a palidez do seu rosto,
se bem que já sem os traços escavados da magreza e com as
faces mais compostas, e a expressão própria do seu estado
mentalmente conturbado, contribuíam para acentuar o interesse
comovedor que a sua imagem suscitava, embora revelassem
dolorosamente as suas causas. Eu não tinha quaisquer dúvidas,
e penso que qualquer outra pessoa que a visse as não teria, de
que o seu aspecto refutava qualquer prova tangível de
convalescença e a condenava ao definhamento.
À sua frente, pousado no parapeito da janela, estava um
livro cujas folhas se agitavam à passagem da brisa que corria
quase imperceptível. Creio ter sido Linton quem ali o deixara,
pois Catherine não se distraía com a leitura nem com qualquer
outra ocupação semelhante; era ele quem passava horas a fio
tentando cativar a sua atenção para assuntos que outrora a
interessavam. Ela tinha consciência do esforço que ele fazia
e, quando a boa disposição lho permitia, suportava tudo com
serenidade, mostrando apenas a inutilidade de tais esforços
ao suspirar de vez em quando, desmotivando-o, por fim, com
beijos e melancólicos sorrisos. Outras vezes, voltava-lhe as
costas, petulante, e escondia o rosto entre as mãos, chegando
mesmo a mandá-lo embora. Ele apercebia-se então de que melhor
seria deixá-la sozinha, pois a sua presença de nada lhe valia.
Os sinos da capela de Gimmerton repicavam ainda e os
murmúrios suaves das águas da ribeira, correndo no vale,
chegavam-me aos ouvidos. Eram aprazíveis substitutos dos
murmúrios musicais da folhagem estival, ainda ausentes, que,
quando as árvores se cobriam de folhas, abafavam os restantes
sons que ecoavam pela Granja. Era a música das tardes calmas
no Alto dos Vendavais, depois dos grandes degelos ou das
chuvas torrenciais. E era no Alto que Catherine pensava, se é
que pensava ou escutava alguma coisa; tinha aquele ar vago e
distante que não denunciava qualquer :, reconhecimento das
coisas materiais, fosse com os olhos ou com os ouvidos.
-- Mrs. Linton, tenho uma carta para si -- disse eu --
metendo-lha gentilmente numa das mãos, a que estava poisada
no regaço. -- Deve lê-la imediatamente, pois espera uma
resposta. A senhora deseja que quebre o selo?
-- Quebra, sim respondeu ela sem desviar o olhar. Abri a
carta. Era muito breve.
-- Agora, leia-a, por favor! -- insisti.
-- Ela moveu a mão e deixou cair a carta. Coloquei-lha
novamente no regaço e esperei que se dignasse olhá-la, mas
demorou tanto a fazê-lo que achei por bem insistir.
-- A senhora quer que lha leia? É de Mr. Heathcliff.
Ao ouvir este nome, Catherine estremeceu e o seu olhar
brilhante reflectia perturbantes recordações, e um esforço
evidente para coordenar as ideias. Pegou na carta, percorreu
os olhos pelas esparsas linhas e, quando chegou à assinatura,
suspirou. Contudo, vi que não tinha compreendido o seu
verdadeiro significado, pois quando a instei a dar-me uma
resposta, limitou-se a apontar para o nome, ao mesmo tempo que
me questionava com o olhar triste e
ansioso.
-- Sabe, ele deseja vê-la -- disse eu, reparando na
necessidade de um intérprete. -- Neste momento, já deve estar
no jardim, impaciente, à espera de uma resposta.
Enquanto falava, reparei que o enorme cão deitado ao sol no
relvado arrebitou as orelhas como se fosse ladrar, mas logo
voltou a baixá-las, suavemente, anunciando pelo abanar da
cauda que alguém conhecido se aproximava.
Mrs. Linton inclinou-se ligeiramente para a frente,
sustendo a respiração. Dai a instantes, ouvimos passos no
vestíbulo. A porta aberta era tentação demasiada para
Heathcliff não entrar. Supusera talvez que eu tinha faltado à
minha palavra e, por essa razão, resolvera confiar na sua
própria audácia.
Catherine, não conseguindo conter a ansiedade, fixou o
olhar na porta do quarto. Mr. Heathcliff não encontrou logo o
quarto que procurava e Catherine fez-me sinal pára que o
ajudasse. Contudo, isso não foi necessário, pois ele logo o
encontrou e, com duas passadas largas, chegou junto dela e
tomou-a nos braços.
Durante mais de cinco minutos não falou nem afrouxou o
abraço, e atrevo-me a dizer que aproveitou esse tempo para lhe
dar mais :,
beijos do que jamais lhe dera em toda a sua vida. No entanto,
foi a minha patroa quem o beijou primeiro, e era evidente que
enfrentar o olhar dela era para ele uma agonia. Desde o
primeiro momento em que a viu, ficou convicto, tal como eu, de
que não havia qualquer esperança de recuperação e de que ela
estava condenada à morte.
-- Oh! Cathy! Oh, minha vida! Como posso eu suportar esta
dor? foram as primeiras palavras que proferiu, num tom onde
não realçava o desejo de mascarar o desespero.
Os olhos dele fixavam-na com tanta intensidade que julguei
esse olhar capaz de lhe rasar os olhos de água. Porém, as
lágrimas nem tempo tiveram para rolar, pois a angustia
secou-as primeiro.
-- E agora? perguntou Catherine, recostando-se na cadeira e
retribuindo-lhe o olhar com um súbito endurecer da expressão.
O seu humor era como um cata-vento, sempre ao sabor dos
caprichos.
-- Tu e o Edgar destroçaram-me o coração, Heathcliff! E vêm
agora lamentar-se ambos junto de mim, como se fossem as
vítimas! Não terei compaixão de vós! Não eu, a quem os dois
deram a morte. Penso que lucraste com a situação; olha como
estas forte! Quantos anos pensas ainda viver depois de eu
morrer?
Heathcliff tinha posto um joelho em terra para a abraçar,
mas, ao tentar levantar-se, ela agarrou-o pelos cabelos,
obrigando-o a manter-se na mesma posição.
-- Gostava de poder abraçar-te até morrermos os dois! --
prosseguiu ela, amargamente. -- Não importa o que sofresses.
Não me preocupo com os teus sofrimentos! Por que não hás-de tu
sofrer, se eu sofro tanto! Será que me vais esquecer? E
ficares muito contente quando eu estiver debaixo da terra? E,
daqui a vinte anos, dirás junto à minha sepultura: -- Aqui jaz
a Catherine Earnshaw. Amei-a há muitos anos e perdê-la
dilacerou-me o coração; mas tudo isso são coisas do passado.
Depois dela, já amei outras mulheres... os meus filhos são-me
mais caros do que ela foi, e, quando morrer, não me sentirei
feliz por ir para junto dela; muito pelo contrário,
lamentar-me-ei por abandonar os meus: filhos. Não será assim
Heathcliff?
-- Não me tortures até eu ficar tão louco como tu! --
gritou ele, libertando-se, e rangendo os dentes de raiva.
Para um espectador imparcial, formavam os dois um quadro :,
bizarro e assustador. Catherine bem podia acreditar que o céu
seria a sua pátria de exílio, mas só se ao perder o corpo ela
perdesse também o caracter. O seu rosto empalidecido tinha
agora um ar selvagem e vingativo, com os lábios descorados e
os olhos cintilantes. Mantinha a mão fechada e, por entre os
dedos, espreitavam as madeixas de cabelo que ela lhe tinha
arrancado. Quanto ao companheiro, e enquanto se levantava com
a ajuda de uma mão, com a outra agarrava-a por um braço. A
falta de consideração pelo estado em que ela se encontrava era
tanta que, quando a largou, pude ver quatro marcas vermelhas
na sua pele esmaecida.
-- Deves estar possuída pelo diabo continuou ele,
desvairadamente, -- para falares comigo nesse tom, atendendo
sobretudo a que estás à beira da morte! Já pensaste bem que
todas essas palavras vão ficar gravadas na minha memória,
consumindo-me a alma eternamente depois de tu morreres? Sabes
que mentes quando afirmas que fui eu quem te levou a esse
estado deplorável. E tu também sabes, Catherine, que enquanto
eu viver nunca te esquecerei! Não será suficiente para o teu
egoísmo atroz saberes que, enquanto descansas em paz, eu
sofrerei os tormentos do inferno?
-- Não terei paz! gemeu Catherine, debilitada pela fraqueza
física, devida ao batimento acelerado e desigual do coração,
visível e audível neste acesso de exacerbada agitação.
Enquanto o paroxismo durou, nada mais disse. Depois,
continuou, mais docilmente.
-- Heathcliff, eu não te desejo os tormentos que passei. Só
quero que nunca mais nos separemos, e, se algum Jia as minhas
palavras te angustiarem, lembra-te de que sentirei a mesma
angústia debaixo da terra. E, pelo que sentes por mim
perdoa-me, por favor! Chega-te perto de mim e ajoelha-te
outra vez! Tu nunca na tua vida me fizeste mal algum. Se algum
rancor ainda guardas, será pior recordá-lo que às minhas
palavras ásperas! Vem, aproxima-te outra
vez.
Heathcliff colocou-se atrás das costas da cadeira e
inclinou-se para ela, mas de maneira a que Catherine não
pudesse ver-lhe o rosto, pálido de emoção. Ela voltou a cabeça
para olhar para ele, mas ele não a deixou, afastando-se
bruscamente para junto da lareira,
onde permaneceu em silêncio e de costas para nós
duas.
O olhar de Mrs. Linton seguiu-o com desconfiança; cada
movimento despertava nela um novo sentimento. Após uma pausa
e um :, prolongado olhar, Catherine prosseguiu, dirigindo-se
agora a mim, num tom de desapontamento e indignação.
-- Vês, Nelly! Ele não tenta, nem por um momento, salvar-me
da sepultura! É assim que ele me ama! Mas não faz mal. Este
não é o Heathcliff que eu amo. A esse continuo a amá-lo e
levá-lo-ei comigo. Esse faz parte da minha alma. E, acima de
tudo -- disse ela, pensativa -- o que me aflige mais é esta
prisão. Estou cansada, cansada de estar aqui encarcerada. Só
desejo fugir para esse mundo glorioso e não mais de lá sair.
Não quero vê-lo turvado pelas lágrimas, nem desejá-lo entre as
paredes de um coração dolorido, mas sim estar com ele, e nele,
na verdadeira acepção das palavras.
-- Olha, Nelly, tu pensas que tens mais sorte que eu porque
tens saúde e forças; e, por isso, tens pena de mim. Mas não
tenhas, pois em breve tudo mudará. Serei eu a ter pena de ti,
pois estarei incomparavelmente muito além e muito acima de
todos vós. Admira-me que ele não queira estar junto de mim! --
e continuou a falar sozinha. Pensei que era isso que ele
queria. Heathcliff, meu querido, não fiques zangado, vem para
junto de mim!
Num impulso, Catherine levantou-se, apoiando-se nos braços
da cadeira. Ele voltou-se para ela, em resposta a tão resoluto
apelo, com o semblante toldado pelo desespero. Os olhos dela,
desmedidamente abertos e humedecidos pelas lágrimas,
lançaram-lhe, por fim, um olhar ameaçador, e o seu peito arfou
em convulsões. Nem um segundo eles se mantiveram afastados; de
tal sorte que mal pude observar o reencontro. Catherine deu um
salto e Heathcliff recebeu-a nos braços, enlaçando-se os dois
num abraço do qual pensei que a minha senhora jamais se
libertaria com vida. De facto, aos meus olhos, ela parecia
inanimada.
Ele deixou-se cair no sofá mais próximo e, quando me
aproximei para me certificar de que Catherine não tinha
desmaiado, ele rosnava e espumava como um cão raivoso,
apertando-a contra o peito, possuído pela avidez e pelo ciúme.
Senti que esta criatura não pertencia à minha espécie, pois
parecia não me compreender enquanto falava com ele. Por isso,
afastei-me, perplexa, abstendo-me de emitir qualquer opinião.
Quando Catherine moveu a mão para agarrar o pescoço de
Heathcliff e encostar o seu rosto ao dele, sosseguei um pouco
mais. Entretanto, ele retribuía o gesto dela com frenéticas
carícias, dizendo furiosamente:
-- Mostraste-me agora o quão cruel tens sido. Cruel e
falsa! Por :, que me desprezaste, Cathy? Por que traíste o
teu próprio coração? Não tenho sequer uma palavra de conforto
para te dar. Tu mereces tudo aquilo por que estás a passar.
Mataste-te a ti própria. Sim, podes beijar-me e chorar o
quanto quiseres. Arrancar-me beijos e lágrimas. Mas eles
queimar-te-ão e serás amaldiçoada. Se me amavas, por que me
deixaste? Com que direito? Responde-me! Por causa da mera
inclinação que sentias pelo Linton? Pois não foi a miséria,
nem a degradação; nem a morte, nem algo que Deus ou Satanás
pudessem enviar, que nos separou. Foste tu, de livre vontade,
que o fizeste. Não fui eu que te despedacei o coração, foste
tu própria. E, ao despedaçares o teu, despedaçaste o meu
também. Tanto pior para mim, que sou forte e saudável. Se eu
desejo continuar a viver? Que vida levarei quando... Oh! Meu
Deus! Gostarias tu de viver com a alma na sepultura?
-- Deixa-me em paz! Deixa-me... -- suplicou Catherine, a
soluçar. Se errei, vou morrer por isso! Não achas o
suficiente? Tu também me abandonaste, mas eu não te censuro!
Eu perdoo-te. Perdoa-me tu também!
-- Não é fácil perdoar, olhar para esses olhos e agarrar
essas mãos mirradas respondeu ele. Beija-me e não me deixes
ver os teus olhos! Perdoo-te o mal que me fizeste. Eu amo a
minha assassina. Mas... e à tua, como poderei perdoar-lhe?
Quedaram-se os dois em silêncio, com as faces encostadas,
lavadas pelas mesmas lágrimas. Creio que choravam ambos, pois
Heathcliff só em ocasiões como esta choraria.
Entretanto, a inquietação começou a atormentar-me: a tarde
escoara-se num instante e o homem que eu havia mandado às
laranjas já tinha regressado e; já se avistava ao longe, à
luz do sol poente que iluminava todo o vale, a multidão de
fiéis no adro da capela de Gimmerton.
-- A missa já terminou. -- Anunciei. -- O meu patrão estará
de volta em menos de meia-hora.
Heathcliff resmungou qualquer coisa, apertando contra o
peito uma Catherine, que continuava inerte.
Pouco tempo depois, reparei num grupo de criados que vinha
estrada acima, a caminho da área da cozinha. Mr. Linton já não
devia estar longe. Ele próprio abriu o portão e continuou
paulatinamente o seu percurso, como se a saborear aquela
tarde esplendorosa, tão semelhante às de Verão.
-- Ele já chegou! -- exclamei. -- Por amor de Deus, :,
apressem-se! Ainda pode ir-se embora sem se cruzar com
ninguém nas escadas. Seja rápido, e deixe-se ficar escondido
entre as árvores até ele entrar.
-- Tenho de ir, Cathy -- disse Heathcliff, tentando
libertar-se dos braços da companheira. -- Mas, se eu não
morrer, voltarei outra vez antes de tu adormeceres. Não me
afastarei mais de cinco jardas da tua janela.
-- Não vás! -- pediu ela, agarrando-se a ele com a
convicção que as suas débeis forças permitiam. Tenho a certeza
de que não devias ir!
-- E só por uma hora -- suplicou ele.
-- Nem que fosse por um minuto!
-- Tenho de ir, não tarda o Linton aparece cá em cima
--insistiu o intruso, denunciando alguma preocupação. E
ter-se-ia levantado, se tivesse conseguido libertar-se dos
dedos que o prendiam. Mas Catherine agarrou-o ainda com mais
força. Podia ver-se pela expressão do rosto dela que tinha
tomado uma decisão irracional.
Não! -- gritou ela. -- Oh! Não vás, não vás! Esta é a
última vez! Edgar não nos fará mal. Se fores, eu morrerei,
Heathcliff!
-- Maldição! Aí vem ele! -- gritou Heathcliff, voltando a
sentar-se. -- Não digas nada, Catherine, e não te preocupes,
que eu fico aqui contigo. E, se ele me matar, exalarei o
último suspiro com uma benção nos lábios.
Tornaram a abraçar-se. Ouvi o patrão subir as escadas.
Suores frios escorriam-me pela fronte; eu estava apavorada.
O senhor vai dar ouvidos aos desvairos dela? -- perguntei,
indignada. -- Ela não sabe o que diz. Vai arruiná-la, só
porque ela não tem capacidade para se ajudar a si própria!
Levante-se! Ainda está a tempo de fugir. Este é o acto mais
diabólico que o senhor cometeu em toda a sua vida. Estamos
todos perdidos... o senhor, a senhora e a criada.
Eu contorcia as mãos e gritava tanto que Mr. Linton estugou
o passo ao ouvir os meus gritos. No meio da minha agitação,
fiquei, apesar de tudo, mais tranquila, quando me apercebi de
que os braços e a cabeça de Catherine pendiam inertes.
Desmaiou ou morreu. Tanto melhor -- pensei. -- Antes morrer
que ser um fardo de infelicidade para quantos a rodeavam.
Edgar atirou-se ao hóspede indesejável, lívido de raiva e
estupefacção. O que ele se preparava para fazer, isso eu não
sei. Contudo, :, o outro pôs fim a quaisquer ímpetos,
depondo-lhe nos braços o corpo aparentemente sem vida de
Catherine.
-- Calma, homem! -- disse ele. -- A não ser que seja um
demónio, trate dela primeiro e depois ajuste contas comigo!
-- e retirou-se para a sala, onde se sentou.
Mr. Linton chamou-me, e foi com grande dificuldade, e só
após aturados esforços, que conseguimos reanimá-la. Mas ela
delirava, gemia e suspirava, e não reconhecia ninguém. Mr.
Edgar, preocupado com o estado dela, esqueceu-se do odiado
hóspede. Mas eu não. Na primeira oportunidade, fui avisá-lo de
que Catherine já estava melhor e supliquei-lhe que partisse,
prometendo-lhe que na manhã seguinte o informaria de como ela
havia passado a noite.
-- Não me recuso a sair por aquela porta -- respondeu ele.
-- Mas não arredarei pé do jardim; vê lá, Nelly, amanhã não te
esqueças do que prometeste. Lembra-te de que estarei debaixo
daqueles abetos. Se não apareceres, far-lhe-ei outra visita,
quer o Linton lá esteja, quer não.
Lançou um olhar rápido à porta entreaberta, para se
certificar de que eu dissera a verdade, e livrou a casa da sua
presença nefasta.
CAPÍTULO XVI
Naquela noite, por volta da meia-noite, nasceu a Catherine
que o senhor viu no Alto dos Vendavais: uma criaturinha débil,
prematura de sete meses. E, duas horas mais tarde, a mãe
morria sem nunca ter recuperado a consciência o suficiente
para conhecer Miss Heathcliff ou reconhecer Edgar.
A reacção deste último ao golpe. sofrido foi dolorosa
demais para descrever por palavras. Só os efeitos mostraram
quão profunda era a sua dor. E, a meu ver, o que agravou ainda
mais o seu desgosto foi o facto de não ter nascido um herdeiro
varão. Assim que olhei para a frágil orfãzinha senti o mesmo
e, em pensamento, censurei o velho Linton pelo que, afinal,
era apenas sintoma de um favoritismo natural e compreensível:
ter legado a propriedade à sua própria filha, e não à
descendente do seu filho.
Pobre criança, que mal acolhida foi! Bem podia ter chorado
até morrer, durante aquelas primeiras horas de existência, que
ninguém se teria importado. Redimimo-nos posteriormente dessa
negligência, mas a menina foi tão mal amada no começo da sua
vida como provavelmente o será no fim dos seus dias.
No dia seguinte, a claridade radiosa da manhã, filtrada
pela persiana, invadiu docemente o quarto silencioso,
iluminando o leito e o seu ocupante, com um brilho terno e
jovial. Edgar Linton estava de cabeça deitada na almofada e
olhos fechados. As suas feições belas e serenas estavam quase
tão imóveis e cadavéricas como o corpo que jazia à sua frente.
Porém, enquanto a sua quietude era fruto da angústia e da
exaustão, a dela era de uma paz absoluta, visível na fronte
serena e no leve sorriso dos seus lábios. Nenhum anjo no Céu
era tão belo como ela. Eu partilhava a infinita tranquilidade
do seu eterno repouso. Nunca o meu espírito experimentara
:,elevação tão sagrada como agora, ao contemplar aquela imagem
imperturbada do Divino descanso. Instintivamente, vieram-me ao
pensamento as palavras que ela proferira poucas horas antes de
morrer:
«__Eu estou, incomparavelmente, muito além e muito acima de
todos vós!». Ainda na terra, ou já no céu, o seu espírito está
com Deus!
Não sei se será impressão minha, mas, desde que não tenha
de ouvir o pranto das carpideiras, quase me sinto feliz quando
estou a velar um morto. Sinto uma paz de espírito que nem
terra nem inferno podem perturbar; sinto a segurança e a
certeza de que a vida se prolonga sem fim e sem mácula para
além da morte, até uma eternidade onde a vida não tem limites
para o amor nem para a alegria. E, foi mergulhada nestas
reflexões, que, ao ver como ele se lamentava da abençoada
libertação de Catherine, atentei em quanto egoísmo pode haver
até num amor como o de Mr. Linton.
Para dizer a verdade, poder-se-ia até duvidar, depois da
existência atribulada que levara, se ela mereceria estar
finalmente em paz no paraíso. Poder-se-ia duvidar em momentos
de fria reflexão, mas não naquela altura, e na presença do
cadáver. A tranquilidade que dele emanava era uma promessa de
paz silenciosa para o seu antigo
ocupante.
O senhor acredita que as pessoas sejam felizes no outro
mundo? Eu dava tudo para saber!
Evitei responder à pergunta de Mrs. Dean, a qual me chocou
pela sua heterodoxia. Ela continuou: Recordando a vida de
Catherine Linton, receio que não tenhamos o direito de pensar
que ela o seja. Mas o Criador dirá.
O patrão parecia ter adormecido e, mal o sol nasceu,
esgueirei-me do quarto para ir respirar o ar puro e fresco do
jardim. Os criados julgaram que me tinha vindo refazer da
vigília prolongada, mas na verdade o meu motivo era outro:
encontrar Mr. Heathcliff. Se ele tivesse passado a noite nos
abetos, não teria ouvido nada do tumulto que agitara a Granja,
a não ser, talvez, o galope do mensageiro que enviámos a
Gimmerton. Mas, se ele se tivesse
aproximado, ter-se-ia apercebido de que alguma coisa se
passava pelas luzes que corriam de um lado para o outro e pelo
constante abrir e fechar de portas. Queria encontrá-lo, mas
temia a sua reacção. Contudo, achei que uma notícia como esta
devia ser dada o mais depressa possível e o problema era não
saber como. :,
Lá estava ele, no parque, a curta distancia da casa,
encostado a um velho freixo, sem chapéu, com o cabelo ensopado
pelo orvalho que se depositara nos ramos novos que a brisa
agitava à sua volta. Devia estar há muito
tempo na mesma posição, pois vi um casal de melros passeando
de um lado para o outro a escassas polegadas
dos seus pés, tão atarefados na construção do seu ninho que
nem davam importância à presença daquele homem; era como se
ele fosse apenas mais um tronco. Quando me aproximei, os
pássaros voaram e ele, erguendo os olhos, perguntou:
-- Ela morreu, não morreu? Não preciso que mo digas. E
guarda o lenço, que não quero choraminguices à minha frente.
Raios vos partam a todos! Ela não precisa das vossas lágrimas!
Eu chorava tanto por ele como por ela. Por vezes, sentimos
compaixão por criaturas que não têm pena de si nem dos outros.
Logo que olhei para o rosto dele, apercebi-me de que ia estava
ao corrente da catástrofe e tive a sensação inusitada de que o
seu coração se acalmara e ele estava a rezar, pois os seus
lábios moviam-se e o seus olhos estavam pregados no chão.
-- Sim, está morta! -- respondi, sufocada pelos soluços e
enxugando as lágrimas. -- Foi para o Céu, e tenho esperança
de que um dia, um por um, todos nos possamos ir para junto
dela, se nos acautelarmos e nos desviarmos do caminho do mal
para seguir o do bem!
-- E ela soube acautelar-se? perguntou Heathcliff,
procurando ser sarcástico. -- Como morreu ela? Como uma santa,
não? Vá conta-me como tudo aconteceu. Como é que a...
Esforçou-se para pronunciar o nome dela, mas não foi capaz
e comprimiu os lábios num combate interior com a agonia,
desafiando ao mesmo tempo a minha compaixão com um olhar
feroz e resoluto.
-- Como é que ela morreu? -- disse por fim, forçado a
procurar apoio, pois, apesar de toda a sua resistência, este
duelo interior deixara-o a tremer dos pés à cabeça.
-- Pobre diabo! -- pensei -- Tens coração e nervos como os
de toda a gente! Por que desejas tanto ocultá-lo? Não é esse
teu orgulho que vai iludir Deus! A reagir dessa maneira,
obriga-lo a fazer-te sofrer até que te saibas humilhar!
-- Teve o fim sereno de um anjo! -- respondi. -- Exalou um
suspiro e espreguiçou-se como uma criança que desperta e volta
a :, cair no sono. Cinco minutos mais tarde senti-lhe
estremecer o coração e nada mais!
-- E alguma vez mencionou o meu nome? perguntou ele
hesitante, como se receasse que a resposta não fosse a que
desejava.
-- A senhora nunca mais recuperou os sentidos, nem
reconheceu fosse quem fosse depois de o senhor se vir embora
disse eu. -- Jaz com um doce sorriso nos lábios e, certamente,
os seus últimos pensamentos foram para os dias felizes do
passado. A sua vida acabou como um sonho sereno. Assim ela
possa despertar no outro mundo!
-- Pois que desperte em tormento! -- bradou ele com
assustadora veemência, batendo o pé e soltando um grito, num
súbito paroxismo de cólera incontrolada. -- Por que mentiu ela
até ao fim? Onde está ela? Não está aqui, nem no Céu, nem
morta! Onde está então? Oh! Disseste que não te importavas que
eu sofresse! Pois o que eu te digo agora, repeti-lo-ei até que
a minha língua paralise:
-- Catherine Earnshaw, enquanto eu viver não descansarás em
paz! Disseste que te matei. Pois então assombra-me a
existência! Os assassinados costumam assombrar a vida dos seus
assassinos, e eu tenho a certeza de que os espíritos andam
pela terra. Toma a forma que quiseres, mas vem para junto de
mim e enlouquece-me! Não me deixes só, neste abismo onde não
te encontro! Oh! Meu Deus! É indescritível a dor que sinto!
Como posso eu viver sem a minha
vida?! Como posso eu viver sem a minha alma?!
Bateu com a cabeça contra o tronco nodoso e, levantando os
olhos, bramiu, não como um ser humano, mas como um animal
selvagem aguilhoado de morte por lanças e por facas. Reparei
que a casca da árvore tinha alguns salpicos de sangue e que as
mãos e a testa dele estavam também manchadas. Provavelmente, a
cena que eu presenciei fora a repetição de outras decorridas
durante a noite. Não me comovi; estava, isso sim, apavorada,
mas ao mesmo tempo
relutante em abandoná-lo naquele estado. Todavia, mal se
recompôs o suficiente para dar pela minha presença, ordenou-me
aos berros que me fosse embora, e eu
obedeci. Não estava ao meu alcance acalmá-lo ou consolá-lo!
O funeral de Mrs. Linton foi marcado para a sexta-feira que
se seguiu ao seu passamento e o caixão permaneceu aberto até
esse dia chegar na maior sala da casa, coberto de flores e
folhas aromáticas. Linton passou os dias e as noites junto à
urna, em permanente vigília. Nas mesmas circunstâncias,
apenas conhecidas por mim, :, passou Heathcliff as noites ao
relento, desconhecendo o sabor do
repouso. Não estive em contacto com ele, mas estava consciente
da sua intenção em entrar logo que fosse possível. Na
terça-feira, mal o sol se pôs, o meu patrão, compelido pela
fadiga, retirou-se para repousar algumas horas. Comovida com a
perseverança de Heathcliff, abri uma das janelas para lhe dar
a oportunidade de dizer o seu
último adeus à desvanecida imagem do seu ídolo. Ele entrou,
cauteloso, sem fazer o mínimo ruído que pudesse denunciar a
sua presença e privá-lo desta breve e derradeira despedida. Na
verdade, nem eu própria teria descoberto que ele lá estivera,
não fora o rosto da defunta deixado a descoberto e a madeixa
loura amarrada ao fio de prata, a qual, após minucioso exame,
tive a certeza de ter sido retirada de um medalhão que
Catherine trazia ao pescoço. Heathcliff tinha-o aberto e
retirado a madeixa que lá estava, substituindo-a por uma
madeixa dos seus cabelos negros. Entrelacei as duas e
fechei-as dentro do medalhão.
É claro que Mr. Earnshaw foi convidado para acompanhar os
restos mortais da irmã. Todavia, não compareceu, nem
apresentou qualquer desculpa. Assim, para além do marido,
assistiram apenas ao funeral os caseiros e os criados, já que
Isabella não fora informada.
Para surpresa das gentes de Gimmerton, a sepultura de
Catherine não ficava, nem junto à capela, no jazigo dos
Linton, nem junto às campas dos seus familiares. Catherine foi
enterrada numa encosta relvada no extremo do cemitério, onde o
muro era tão baixo que as urzes e as silvas da charneca
passaram para dentro, e cobriram a campa, misturando-se com a
relva. O marido jaz agora no mesmo local. À cabeceira de cada
um deles foi colocada uma simples lápide e, no extremo oposto,
um bloco de pedra cínzea, apenas para demarcar as sepulturas.
__Capítulo XVII
Aquela sexta-feira foi o último dia de bom tempo desse mês.
Ao anoitecer, o tempo mudou: o vento começou a soprar de sul
para nordeste e trouxe consigo a chuva e, depois, granizo e
neve.
No dia seguinte dificilmente se diria que havíamos tido
três semanas de Verão: as buganvílias e os crocos vergavam-se
agora às ventanias de Inverno; calaram-se as cotovias,
amareleceram e caíram as folhas das árvores temporãs; fria,
soturna e sombria, a manhã arrastava-se preguiçosa! O meu
patrão não saiu dos seus aposentos. Assenhoreei-me da sala
vazia e transformei-a num quarto de bebés. E ali estava eu,
sentada, com a bebé chorona ao colo, embalando-a de um lado
para o outro e contemplando os flocos de neve que não paravam
de cair e se acumulavam no peitoril da janela sem cortinas,
quando a porta se abriu e alguém entrou, a rir-se e ofegante.
Por momentos a minha fúria suplantou o meu espanto;
pensando que. fosse uma das criadas, gritei:
Cala-te! Como te atreves a entrar aqui nesse despropósito?
Que diria Mr. Linton, se te ouvisse?
-- Desculpa -- respondeu uma voz que eu bem conhecia. --
Mas sei que o Edgar já está recolhido e não me contive.
Dizendo isto, a minha interlocutora aproximou-se do lume,
ofegante e com a mão fincada na cintura.
-- Vim a correr desde o Alto dos Vendavais... -- prosseguiu
após uma pausa -- sem contar com as vezes que tropecei e caí;
foram tantas que até lhes perdi a conta. Dói-me o corpo todo!
Mas :, não te assustes! Vais ter a explicação logo que eu ea
possa dar. Por agora, faz-me o favor te ir lá fora mandar
preparar a carruagem para me levar a Gimmerton, e diz a uma
criada que me arrume algumas roupas.
A intrusa era Mrs. Heathcliff. O seu estado não era para
risos: o cabelo caía-lhe sobre os ombros, desmanchado e a
pingar; trazia o mesmo vestido de rapariga, de sempre, mais
adequado à sua idade do que à sua condição de senhora casada;
era curto e de mangas igualmente curtas; na cabeça e no
pescoço não trazia nada. O vestido era de seda leve e
colava-se-lhe ao corpo de tão encharcado que estava. Nos pés,
apenas umas chinelas. Um golpe profundo por
baixo de uma orelha, que só o frio impedia de sangrar
profusamente, um rosto empalidecido, arranhado e ferido, e um
corpo que mal se aguentava de pé devido ao cansaço,
contribuíam ainda para o seu aspecto lastimoso. Assim, é fácil
imaginar que o meu susto não tivesse passado por completo
quando tive a oportunidade de a examinar
melhor.
-- Minha querida menina -- exclamei -- não irá a parte
alguma e não escutarei nada do que me disser antes de ter
trocado de roupa, e nem pense partir ainda esta noite para
Gimmerton. Por isso, é desnecessário mandar preparar a
carruagem.
-- Ai isso é que vou! disse ela. -- Nem que seja a pé.
Quanto a mudar de roupa, não ponho objecção. Olha, vê como o
sangue corre agora; é o calor do lume que o
atiça!
Não deixou que lhe tocasse sem primeiro ter cumprido as
suas ordens: só depois de eu ter dado ao cocheiro as devidas
instruções e mandado a criada meter algumas peças de roupa
numa mala, é que me deixou tratar-lhe da ferida e ajudá-la a
mudar de vestido.
-- Agora, Ellen -- disse, quando terminei as minhas
incumbências e ela já se encontrava sentada num cadeirão
junto à lareira com uma chávena de chá à sua frente -- leva a
filhinha da pobre Catherine lá para dentro e vem sentar-te ao
pé de mim; não gosto de a ver! Não penses que por ter entrado
aqui a rir daquela maneira sou insensível à morte dela. Eu
também chorei, e muito... Sim, mais do que ninguém, eu tinha
motivos para chorar. Como deves estar lembrada, separámo-nos
sem nos termos reconciliado, e disso jamais me perdoarei. Mas,
seja como for, não vou ter pena dele... desse bruto! Chega-me
o atiçador. Esta é a última coisa dele que trago comigo --
Tirou a aliança do dedo e arremessou-a ao chão. -- Hei-de
esmagá-la prosseguiu, calcando-a com fúria pueril -- e :,
depois queimá-la! -- E, pegando na aliança toda amolgada,
atirou-a para a fogueira.
-- Pronto, já está! Agora, se me obrigar a voltar para ele,
tem de me comprar outra. Ele é bem capaz de vir procurar-me
aqui só para irritar o Edgar; não me atrevo a ficar cá, não vá
aquela mente perversa lembrar-se disso. Por outro lado, o
Edgar não tem sido simpático para comigo, pois não? Não quero
pedir-lhe ajuda, nem causar-lhe mais aborrecimentos. Foi a
necessidade que me levou a procurar abrigo aqui em casa;
porém, se não soubesse que ele não estava aqui, teria entrado
apenas na cozinha para lavar a cara, aquecer-me um pouco,
pedir-te que me trouxesses o que precisava e, depois, partiria
imediatamente para bem longe do maldito do meu... desse
demónio incarnado! Ah, como ele estava furioso! Se me tivesse
apanhado... É uma pena que o Earnshaw não tenha a sua
corpulência! Se assim fosse, eu não teria partido sem
primeiro ver Heathcliff derrotado. Ah! Tivesse o Hindley
força para tal!
Está muito bem, menina, mas não fale tão depressa --atalhei
-- senão desfaz o nó do lenço que lhe amarrei ao pescoço e o
golpe volta a sangrar. Beba o seu chá, descanse um pouco e
veja se pára com essa risota. Infelizmente o riso é inoportuno
debaixo deste tecto, e, para mais, na sua situação.
-- Ora ai está uma verdade inegável! replicou. -- Ai aquela
criança que não pára de chorar; manda-a para onde eu não a
possa ouvir; é só por uma hora, não me demorarei mais do que
isso.
-- Toquei a campainha e entreguei a menina aos cuidados de
uma criada; em seguida, perguntei a Miss Isabella o que a
tinha levado a fugir a toda a pressa do Alto dos Vendavais
naquela figura e para onde é que tencionava ir, já que se
recusava a ficar connosco.
-- Quem me dera ficar aqui -- respondeu -- para consolar o
Edgar e cuidar da criança e também porque a Granja é a minha
verdadeira casa. Mas o Heathcliff jamais consentiria. Julgas
que ele ia suportar ver-me feliz? Que, sabendo-nos a levar uma
vida tranquila e regalada, não trataria logo de envenenar a
nossa alegria? Agora posso afirmar com toda a certeza que ele
me odeia ao ponto de não suportar sequer ouvir a minha voz;
quando estou na sua presença, bem vejo como os músculos do seu
rosto se contraem involuntariamente, tornando-lhe dura a
expressão; isto provem, por um lado, do facto de conhecer os
motivos que eu tenho para sentir o que sinto por ele e, por
outro, da sua aversão natural por mim. O seu ódio é tão
intenso que estou certa de que não se poria a calcorrear a
Inglaterra à minha procura, se soubesse que eu tinha planeado
:,
fugir, por isso, devo escapar-me para o mais longe possível.
Já me recuperei do desejo inicial de morrer as suas mãos;
agora preferia que fosse ele a morrer as suas próprias mãos!
Acabou com todo o meu amor e, portanto, estou tranquila.
Todavia, ainda recordo como o amei, e penso que poderia amá-lo
ainda, se... Não, não, nem pensar! Mesmo que ele me tivesse
amado loucamente, a sua natureza diabólica teria acabado por
se manifestar. A Catherine devia
ter os gostos prevertidos para o tratar com tanto carinho
depois de o conhecer tão bem! Monstro! Se ao menos ele pudesse
ser apagado do rol dos vivos e da minha
memória!
-- Então, menina, ele é um ser humano como os outros
--disse eu. -- Seja mais benevolente; olhe que os há bem
piores!
-- Ele não é humano -- retorquiu. -- Nem a minha piedade
ele merece. Entreguei-lhe o meu coração e ele apoderou-se
dele, destroçou-o e, depois, devolveu-mo. As pessoas sentem
com o coração, Ellen, e, uma vez que ele destruiu o meu, não
posso sentir nada por ele; e não sentiria, nem que ele mo
suplicasse até à hora da morte ou chorasse lágrimas de sangue
pela Catherine! Não, de maneira alguma! Neste momento,
Isabella começou a chorar; mas logo enxugou as lágrimas e
prosseguiu:
-- Perguntaste o que me levou a fugir desta maneira? Fui
obrigada a fazê-lo porque consegui que a sua raiva
ultrapassasse a sua malvadez. Fazer-lhe explodir os nervos com
tenazes em brasa requer mais sangue-frio do que desferir-lhe
golpes na cabeça. A sua fúria foi tanta que se esqueceu da
habitual prudência satânica de que tanto se vangloriava e
passou à violência homicida. Senti um
prazer desmedido em pô-lo completamente fora de si, e foi esse
mesmo prazer que acordou o meu instinto de auto-preservação,
libertando-me das suas garras. Se alguma vez eu voltar a cair
nelas, decerto se vingará de forma memorável. Ontem, como
sabes, Mr. Earnshaw tinha de ir ao funeral e, como tal,
manteve-se sóbrio... Enfim, razoavelmente sóbrio; pelo menos,
não foi para a cama às
seis da manhã, como de costume, a cair de bêbado, nem se
levantou ao meio-dia ainda no mesmo estado. Resultado:
acordou com uma depressão suicida, tão apropriada para a
igreja como para ir ao baile, e, em vez de ir ao enterro,
ficou sentado à lareira a encharcar-se em gin e aguardente. O
Heatheliff... estremeço só de pronunciar o seu nome... desde
domingo que é como se não vivesse lá em casa; se têm sido os
anjos a alimentá-lo ou o seu parente das profundezas, isso não
sei. Só sei que já não tomava uma refeição :, connosco há
quase uma semana. Chegava de madrugada e ia directamente para
o quarto, aí se trancando, como se alguém pudesse cobiçar a
sua companhia! E lá se deixava ficar, a rezar como um
metodista; porém, a divindade que ele invocava não passava de
pó e cinzas, e, quando se dirigia a Deus, confundia-o
curiosamente com o seu pai lá dos Infernos. No fim das suas
preciosas preces, que duravam geralmente ate ficar rouco e com
a voz presa na garganta, voltava a sair e vinha direito à
Granja. Admira-me que o Edgar não tenha chamado um policia
para o levar preso! Quanto a mim, triste como estava com a
morte da Catherine, era-me impossível não aproveitar a ocasião
para me libertar daquela opressão aviltante.
-- Consegui recuperar o animo suficiente para suportar sem
lágrimas as intermináveis arengas do Joseph, e para subir e
descer as escadas daquela casa sem cautelas de ladrão, como
anteriormente. Não penses que me punha a chorar com tudo o
que o Joseph me dissesse, mas ele e o Hareton são na verdade
uma companhia detestável; antes ficar ao lado do Hindley a
ouvir os seus impropérios do que com o «_patrãozinho» e o seu
guardião, aquele velho horrendo! Quando o Heathcliff se
encontra em casa, sou muitas vezes obrigada a refugiar-me na
cozinha e a conviver com a criadagem para não morrer de frio
lá em cima nos quartos húmidos e vazios; mas quando ele não
está, como aconteceu esta semana, coloco uma mesa e uma
cadeira a um canto da lareira e não me interessa saber como
Mr. Earnshaw passa o seu tempo, e ele, por sua vez, também não
interfere nas minhas ocupações: se ninguém o provocar, anda
até mais calmo do que antes, mais taciturno e deprimido e
menos irascível. O Joseph diz que ele se converteu, que o
Senhor tocou o seu coração e o salvou do «_fogo eterno». Eu
não consigo descortinar sinais dessa mudança tão benéfica, mas
isso também não me diz respeito. Ontem à noite deixei-me ficar
no meu canto a ler alguns livros velhos até cerca da
meia-noite; era desoladora a perspectiva de ir para cima com
toda aquela neve a rodopiar! lá fora e o pensamento
a voar teimosamente para o cemitério e para a sepultura ainda
fresca! Mal ousava levantar os olhos da página
que tinha à minha frente, tão lúgubres eram as imagens que se
haviam apoderado de mim. O Hindley estava sentado do outro
lado, com a cabeça apoiada entre as mãos, talvez a meditar no
mesmo; só tinha parado de beber quando já estava completamente
embriagado e assim se mantinha há duas ou três horas, sem se
:,
mexer e sem falar. Dentro de casa o silêncio era total,
cortado apenas pelos gemidos do vento que de vez em quando
fustigava as Janelas, O crepitar amortecido do lume e o
estalido do espevitador, quando eu de tempos a tempos retirava
o morrão da vela. O Hareton e o Joseph já deviam ter
adormecido. Estava tudo tão soturno que eu lia e suspirava ao
mesmo tempo, pois parecia que toda a alegria se tinha
extinguido da face da terra para sempre. Aquele silêncio
arrepiante foi quebrado finalmente pelo barulho do ferrolho da
porta da cozinha: era o Heathcliff que regressava da sua ronda
mais cedo do que o costume, devido, suponho eu, à súbita
tempestade. Mas a porta estava trancada e ouvimo-lo, por isso,
dar a volta ao pátio para entrar pela outra. Levantei-me, sem
conseguir esconder a minha emoção, o que levou o meu
companheiro, que tinha estado a olhar para a porta, a olhar na
minha direcção.
-- «__Vou deixá-lo ficar lá fora cinco minutos» comunicou.
«__Não se importa, pois não?»
-- «__Por mim, pode deixá-lo lá ficar a noite inteira!»
respondi. «__Dê a volta à chave e corra o ferrolho.» E Mr.
Earnshaw assim fez, antes que o seu hóspede alcançasse a porta
da frente; depois, veio para junto de mim e sentou-se numa
cadeira na outra extremidade da mesa onde eu estava,
deitando-se sobre o tampo e procurando encontrar nos meus
olhos um sinal de solidariedade para com o ódio que ardia nos
seus; não a encontrou totalmente, já que havia algo de
homicida no seu ódio, mas o que viu nos meus foi o
suficiente para se animar a dizer:
«__Tanto eu como a senhora temos contas a ajustar com
aquele homem, e, se nenhum de nós for cobarde, podemos
aliar-nos. Ou será tão fraca como o seu irmão? Quer
resignar-se a sofrer até ao fim, sem tentar ao menos pagar-lhe
na mesma moeda?»
-- «__Já me chega o que sofri até agora» retorqui. «__E bem
me agradaria uma retaliação que não recaísse sobre mim. Mas a
traição e a violência são uma faca de dois gumes: ferem mais
os que a elas recorrem do que os seus
inimigos.»
-- «__Traição e violência pagam-se com traição e
violência!» vociferou Hindley. «__Peço-lhe somente uma coisa,
Mrs. Heathcliff: que se deixe ficar quieta e calada. Posso
contar consigo? Tenho a certeza de que sentirá tanto prazer
como eu em presenciar o fim daquele demónio. Se não se lhe
antecipar, ele será a *sua* morte... e a *minha* ruína.
Maldito seja o patife! Repare... Bate à porta como se já fosse
o dono da casa! Prometa-me que se calará, e antes que o :,
relógio dê as próximas badaladas... faltam só três minutos
para a uma ... estará livre dele para sempre!»
-- Tirou do peito a arma de que te falei na minha carta, e
preparava-se para apagar a vela, mas eu consegui desviá-la,
ao mesmo tempo que lhe agarrava o braço.
-- «__Não, não ficarei calada» exclamei. «_O senhor não lhe
tocará. Deixe a porta fechada e fique onde está.»
-- «_Não! A minha decisão está tomada e juro por Deus que a
porei em prática -- bradou a criatura em desespero.»
Prestar-lhe-ei um favor, mesmo contra a sua vontade, e farei
justiça ao Hareton. E não precisa de se preocupar em
proteger-me; a Catherine morreu... Já não resta ninguém para
me chorar ou se envergonhar de mim mesmo que eu corte as
goelas neste instante. Está na hora de pôr fim a tudo isto.
-- Era como lutar com um urso ou argumentar com um louco. A
minha única saída era correr para uma janela e avisar a vítima
da sorte que o esperava.
-- «_É melhor procurares abrigo noutro lugar por esta
noite!» gritei-lhe, em tom triunfal. «_Mr. Earnshaw está
decidido a dar-te um tiro se teimares em entrar.»
-- «_Vai mas é abrir a porta, minha grande...» vociferou o
Heathcliff, dirigindo-me palavras tão «_delicadas» que nem me
atrevo a repeti-las.
-- «_Não tenho nada com isso» repliquei. «_Entra e leva um
tiro, se é isso que queres! O meu dever está cumprido.»
-- Dito isto, fechei a janela e voltei para o meu lugar
junto à lareira. Como não sou hipócrita, não fingi ansiedade
perante o perigo que o ameaçava. Earnshaw desatou a praguejar
encarniçadamente, clamando que eu ainda amava aquele vilão, e
cobriu-me dos piores insultos pela minha manifesta falta de
dignidade. E eu, lá no fundo, sem pesos na consciência,
pensava em como seria bom para ele se o Heathcliff o livrasse
daquela existência ignóbil e como seria bom para mim se ele
despachasse o Heathcliff para onde ele merecia. Enquanto assim
cogitava, o caixilho da janela saltou com uma pancada seca e
caiu ao chão, e o rosto sinistro do Heathcliff assomou-se ao
buraco. Este, porém, era demasiado estreito para lhe dar
passagem; sorri, exultando de alegria por me sentir em
segurança Ele tinha o cabelo e a gola do casaco cobertos de
neve, e os seus dentes aguçados de canibal, arreganhados pelo
frio e pela raiva, brilhavam na escuridão. :,
-- «_Isabella, deixa-me entrar ou arrepender-te-ás!» rosnou
ele, como diz o Joseph.
-- «_Não quero ser responsável por um crime!» respondi.
«_Mr. Hindley está à tua espera com uma navalha e uma pistola
carregada.»
-- «_Então abre-me a porta da cozinha» sugeriu.
-- «_O Hindley chega lá antes de mim. Bem pouco amor é o
teu que não resiste a um nevão! Enquanto a lua brilhou durante
o Verão, deixaste-nos dormir sossegados, mas assim que chega o
Inverno, corres a procurar abrigo! Se eu estivesse no teu
lugar, Heathcliff, ia deitar-me sobre a campa dela, para aí
morrer como um cão fiel. O mundo certamente já não tem valor
para ti fizeste questão de deixares bem claro que a Catherine
era toda a tua alegria; nem sei como vais conseguir sobreviver
a sua perda...»
-- «_Ele está aí, não está?» vociferou o meu companheiro,
precipitando-se para a abertura. «_Se conseguir enfiar o
braço por esta nesga, sou capaz de o alcançar!»
-- Receio, Ellen, que me consideres cruel, mas tu não sabes
tudo, e, portanto, não me condenes. Longe de mim instigar ou
colaborar num atentado, mesmo que fosse contra a vida *dele*.
Desejar que morresse, isso eu desejei, e, por isso,
tão descoroçoada fiquei, e aterrada também, pelas
consequências do meu sarcasmo, quando o Heathcliff deitou a
mão à arma do Earnshaw e lha arrebatou. A pistola disparou-se
e a navalha, com o impacto, fechou-se sobre o punho do seu
detentor; Heathcliff puxou-a com violência, dilacerando-lhe a
carne, e meteu-a no bolso ainda a pingar sangue. Em seguida,
pegou numa pedra, quebrou o que restava da janela e saltou
para dentro da sala. O seu adversário caíra inanimado com a
intensidade da dor: de uma artéria, ou de uma veia grossa,
jorrava sangue em abundância.
-- O malvado espezinhou-o e bateu-lhe repetidamente com a
cabeça contra as lajes, enquanto me agarrava com a mão livre,
para me impedir de ir chamar o Joseph.
-- Deve ter feito um esforço sobre-humano para resistir à
tentação de o aniquilar por completo. Parou, por fim,
exausto, e arrastou o corpo aparentemente sem vida para cima
do banco.
-- Rasgou então a manga do casaco de Earnshaw e ligou-lhe a
ferida com tanta energia como a que anteriormente aplicara ao
espancá-lo.
-- Sentindo-me liberta, não perdi tempo e fui à procura do
velho criado que, acabando por compreender o significado da
minha :, atabalhoada narrativa, se apressou a descer os
degraus dois a dois, em alvoroço.
-- «_Qu.é que temos agora? Qu.é que temos agora?»
«_Temos que o teu patrão está doido varado e, se chegar a
durar um mês, meto-o no manicómio!» respondeu Heathcliff. «_E
que ideia foi essa de trancares as portas enquanto eu andava
lá por fora, meu cão velho e desdentado? Não fiques para aí
especado a arengar; vem cá, ou queres que seja eu a tratar
dele? Limpa esta sujeira toda, e cuidado com o morrão da vela,
olha que o sangue dele, mais de metade é álcool.»
-- «_Então o senhor matou-o?» exclamou o Joseph, erguendo
as mãos e os olhos ao céu, horrorizado. «_Se já se viu
semelhante coisa! Que o Senhor...»
-- O Heathcliff fê-lo cair de joelhos com um empurrão e
atirou-lhe uma toalha; mas o Joseph, em vez de limpar o chão,
pôs-se de mãos postas a rezar uma oração que me deu vontade de
rir pela sua estranha fraseologia. Eu estava tão insensível
que já nada me chocava; na verdade, aparentava a indiferença
de alguns malfeitores perante a forca.
-- «_Ah! Já me esquecia de ti!» disse o tirano. «_Tu mesma
vais limpar as lajes. De joelhos! Conspiraste com ele contra
mim, não foi, víbora? Ora aí tens um trabalhinho mesmo a
calhar para ti.»
-- Abanou-me com tanta força que até os dentes me batiam
uns nos outros; depois, empurrou-me para junto do Joseph, que
concluiu imperturbável as suas preces e, levantando-se,
declarou que iria sem demora à Granja. Mr. Linton era um
magistrado, e, nem que lhe tivessem morrido cinquenta esposas,
havia de averiguar o sucedido. Era tal a sua obstinação,
que Heathcliff achou melhor fazer-me recapitular tim-tim por
tim-tim tudo o que ali se passara,
sem arredar pé do meu lado e com o olhar tão carregado de ódio
que não pude recusar-me a fazê-lo. Não foi fácil convencer o
velho de que Heathcliff não tinha sido o agressor, tanto mais
que ele via como as explicações me eram arrancadas quase à
força. No entanto, Earnshaw não tardou a convencê-lo de que
ainda estava vivo; Joseph aprestou-se a ministrar-lhe uma boa
dose de aguardente e,
com isso, ele não tardou a recompor-se. Ciente de que Earoshaw
ignorava os maus tratos que recebera enquanto estava sem
sentidos, o Heathcliff insultou-o de bêbado e de louco e
disse-lhe que estava preparado para esquecer tão atroz
procedimento, mas que o :, aconselhava a ir para a cama. Para
grande alegria minha, o Heathcliff deixou-nos a sós após tão
judicioso conselho, e o Hindley foi estender-se sobre a pedra
da lareira. Eu subi para o meu quarto,
admirada por ter escapado tão facilmente à fúria do
Heathcliff.
-- Esta manhã, quando desci, por volta das onze e meia,
Mr. Earnshaw encontrava-se sentado ao pé do lume, mais morto
que vivo. O seu génio do mal, quase tão esvaído e lívido como
ele, estava de pé, encostado à esquina da chaminé. Nenhum
deles parecia disposto a vir comer, pelo que eu, depois de
esperar até a comida já estar fria, resolvi começar
sozinha. Não havia nada que me tirasse o apetite e era até com
uma certa sensação de gozo e superioridade
que olhava para os meus companheiros uma vez por outra,
sentindo o conforto de uma consciência tranquila. Assim que
terminei, tomei a rara liberdade de ir para junto da lareira,
passando por trás da cadeira de Earnshaw e ajoelhando-me ao
seu lado a um cantinho. O Heathcliff nem para mim olhou. Mas
eu, erguendo os olhos, fitei-o demoradamente, quase com tanto
à-vontade como se ele se tivesse transformado numa estátua: a
sua fronte, que outrora me parecera tão viril e se me
afigurava agora diabólica, dir-se-ia
ensombrada por nuvens de tempestade; os seus olhos de
basilisco apresentavam-se mortiços, das noites mal dormidas e,
quem sabe, talvez do pranto, pois tinha as pestanas
humedecidas; os seus lábios, sem o sarcasmo e a ferocidade
habituais, comprimiam-se numa expressão de indizível tristeza.
Fora ele outro, e eu teria tapado os olhos perante tanto
sofrimento; mas, tratando-se de Heathcliff, regozijei-me, e,
por mais vil que possa parecer humilhar um inimigo em
desvantagem, não podia perder a ocasião para o aferroar;
aquele seu momento de fraqueza era a única oportunidade que eu
tinha para saborear o prazer de lhe pagar na mesma moeda todo
o sofrimento que me havia causado.
-- A menina não tem vergonha? -- atalhei. -- Até parece
que nunca abriu uma Bíblia na sua vida. Não lhe chega que
seja Deus a castigar os seus inimigos? É presunção e malvadez
juntar as suas torturas às d._Ele.
«_ Concordo que geralmente assim seja, Ellen prosseguiu
ela. -- Mas que desgraça acontecida ao Heathcliff me poderia
satisfazer, se eu não tivesse contribuído para ela? Até nem
me importava que ele sofresse *menos*, se fosse eu a
provocar-lhe o sofrimento e ele ficasse a *saber* que era eu a
sua causadora. Ah! Quantas ofensas tenho a devolver-lhe! Só
com uma condição lhe poderia perdoar: :,
seria olho por olho, dente por dente; retribuir-lhe cada
momento de agonia, fazê-lo descer até ao nível em que me
encontro. E, como ele foi o primeiro a ofender-me, que fosse
ele também o primeiro a implorar o meu perdão; e depois bem,
depois, Ellen, talvez eu pudesse então mostrar alguma
generosidade. É, porém, absolutamente impossível que algum
dia possa sentir-me vingada, e, assim sendo, não posso
perdoar-lhe. Então, o Hindley pediu água e eu fui buscar-lhe
um copo e perguntei-lhe como se sentia.
-- «_Não tão mal quanto desejava» respondeu. «_Mesmo sem
falar no braço, sinto o corpo todo dorido, como se tivesse
enfrentado uma legião de demónios.»
-- «_Não é para admirar...» observei. «_A Catherine
costumava dizer que era ela quem zelava pela sua integridade
física: queria ela dizer que certas pessoas, receando
ofendê-la, não o agrediam a si. Graças a Deus que os mortos
não se levantam das sepulturas, senão ontem à noite ela teria
presenciado uma cena deveras humilhante.
O senhor, por acaso, não tem o peito e os ombros cheios de
nódoas negras?»
-- «_Não sei. Mas por que pergunta? Ter-se-ia ele atrevido
a bater-me enquanto eu estava sem sentidos?»
-- «_Espezinhou-o, deu-lhe pontapés e bateu-lhe com a
cabeça no chão» segredei-lhe eu. «_Até estava com água na
boca, tal era a vontade de o despedaçar com os dentes, porque
só uma metade dele é que é humana, ou talvez nem tanto.»
-- Earnshaw ergueu os olhos, tal como eu, para o rosto do
nosso inimigo, que parecia alheado de tudo o que o rodeava e
absorto na sua angústia, um rosto que reflectia cada vez mais
a negrura que lhe ia na alma.
-- «_Oh, concedesse-me Deus, ainda que somente na hora
derradeira, a força suficiente para o estrangular, e iria com
todo o gosto para o inferno!» gemeu, impaciente,
contorcendo-se e tentando levantar-se, mas caindo de novo para
trás, desesperado e convencido da sua impotência.
-- «_Não, já chega que ele tenha sido a causa da morte de
um dos nossos» disse eu, falando bem alto. «_Na Granja todos
sabem que, se não fosse ele, a sua irmã ainda estaria viva.
Portanto, é preferível ser-se odiado por ele a ser-se amado.
Quando me lembro de como éramos felizes, de como a Catherine
era alegre antes da sua chegada, não posso deixar de
amaldiçoar esse dia.»
-- Provavelmente, o Heathcliff atentou mais na veracidade
do :, que era dito do que nas razões de quem o dizia. Reparei
que lhe tínhamos despertado a atenção, pois as lágrimas
rolavam-lhe dos olhos para as cinzas e a, respiração era
entrecortada por sufocantes suspiros. Olhei-o nos olhos e
desatei a rir, trocista; as frestas enevoadas do inferno
relampejaram por um instante, mas o demónio que geralmente
pulava cá para fora estava tão abatido que não receei
lançar-lhe outra gargalhada de escárnio.
-- «_Levanta-te e desaparece da minha vista» ordenou, das
profundezas do desgosto, ou pelo menos foi isso o que eu
entendi, pois falou num tom de voz quase imperceptível.
«_Como!?» retorqui. «_Eu também gostava muito da Catherine
e o irmão dela precisa de assistência, que eu, por respeito à
sua memória, lhe concederei. Agora, que está morta, parece que
a revejo em Hindley; os seus olhos são iguais aos dela, olhos
que tu tentaste arrancar, pisando-os e ensanguentando-os. E a
sua...»
-- «_Levanta-te, miserável, antes que eu te calque aos
pés!» bradou, esboçando um movimento ameaçador que mereceu
outro da minha parte.
-- «_Mas então» continuei eu, já a postos para fugir, «se a
pobre Catherine tivesse confiado em ti e adoptado o nome
ridículo, desprezível e degradante de Mrs. Heathcliff, não
teria tardado a descer ao estado em que o irmão se encontra
agora. Mas ela não teria suportado em silêncio o teu
comportamento abominável e teria dado voz ao ódio e à
repulsa.»
-- O espaldar do banco e o próprio Earnshaw interpunham-se
entre mim e o Heathcliff, pelo que ele, em vez de tentar
agarrar-me, empunhou uma faca que estava em cima da mesa e
arremessou-a contra mim. A faca espetou-se-me mesmo por baixo
da orelha, cortando-me a palavra. Arranquei-a e corri para a
porta, lançando-lhe
à cara uma outra frase que espero o tenha ferido mais fundo do
que o seu projéctil.
-- A última coisa de que me apercebi foi da sua arremetida
furiosa, sustida pelo peito do seu anfitrião, e de rolarem os
dois para cima da lareira.
-- Ao fugir pela cozinha, gritei ao Joseph que corresse a
acudir ao patrão, depois, esbarrei com o Hareton, que estava a
brincar na soleira da porta com uma ninhada de cachorrinhos,
tentando encavalitá-los nas costas de uma cadeira, e,
finalmente, como uma alma liberta do purgatório, corri, saltei
e voei pela encosta abaixo. :, Depois, cansada de tanto
serpentear, meti a direito pelo brejo em direcção à luz que
brilhava na Granja. Antes ser condenada às penas do Inferno do
que passar mais uma noite que fosse sob aquele tecto, no Alto
dos Vendavais.
Isabella calou-se e bebeu um golinho de chá. Em seguida,
pôs-se de pé, pediu-me que a ajudasse a pôr a touca e um
grande xaile que eu lhe tinha trazido e, fazendo orelhas
moucas aos meus pedidos insistentes para que se deixasse
ficar por mais uma hora, trepou a uma cadeira, beijou os
retratos de Edgar e de Catherine, honrou-me com idêntica
despedida e dirigiu-se para a carruagem, acompanhada pela
Fanny, que não parava de ladrar de satisfação por haver
reencontrado a sua dona. E abalou para não mais voltar. No
entanto, quando as coisas se acalmaram, ela e o meu patrão
passaram a corresponder-se com regularidade.
Creio que se instalou no Sul, perto de Londres. Aí deu à
luz um filho, poucos meses depois da sua fuga, que foi
baptizado com o nome de Linton e que, desde o inicio, segundo
dizia a mãe, se revelou uma criança achacada e rabugenta.
Um dia encontrei Mr. Heathcliff na vila e ele perguntou-me
onde é que ela vivia. Como me recusasse a responder-lhe,
contrapôs que isso não lhe interessava, mas ela que se
livrasse de vir ter com o irmão. Não era com o irmão que ela
devia viver, mas sim com ele.
Embora eu não lhe tenha dado qualquer informação, o certo é
que acabou por descobrir através de algum criado tanto o seu
paradeiro como a existência da criança. Contudo, não a
importunou, graças, suponho eu, ao ódio que lhe votava.
Pedia notícias do filho sempre que me encontrava e, quando
sonhe que nome lhe haviam dado, comentou com um sorriso
sinistro:
-- Querem que também o odeie, não é?
-- Acho que o que querem é que o deixe em paz -- respondi.
-- Tê-lo-ei quando me aprouver, podem ter a certeza!
--ripostou Heathcliff.
Felizmente, a mãe faleceu antes de isso acontecer, cerca de
treze anos após a morte de Catherine, quando o pequeno Linton
tinha doze anos ou talvez um pouco mais.
No dia seguinte ao da inesperada visita de Isabella, não
tive oportunidade de falar com o meu patrão: esquivava-se a
qualquer conversa e não estava em condições de discutir fosse
o que fosse. Quando, finalmente, consegui que me prestasse
atenção, notei que :, estava satisfeito pela irmã ter
abandonado o marido, a quem ele odiava com uma intensidade que
não se julgaria possível numa natureza tão branda como a sua.
Tão profunda e visceral era essa aversão, que evitava
frequentar quaisquer lugares onde pudesse ver, ou ouvir falar
de Heathcliff. O seu desgosto, aliado a este
impedimento, fez dele um perfeito eremita: abdicou das suas
funções de magistrado, deixou até de ir à igreja, evitava o
mais possível ir à vila e passou a levar uma existência de
completa reclusão entre os muros da sua propriedade. Só saía
para dar passeios solitários pelos campos e para ir visitar a
sepultura da mulher, quase sempre ao cair da noite ou logo ao
raiar da aurora, para não ter de se cruzar com ninguém. Mas
ele era bom demais para ser completamente infeliz por muito
tempo. *_Este*, pelo menos, não pedira que a alma de Catherine
o perseguisse o tempo trouxe-lhe a resignação e uma melancolia
mais doce ainda que a alegria. Recordava-a
com um amor terno e ardente, ansiando esperançado pelo momento
de partir para um mundo melhor onde ela sem dúvida se
encontrava.
Além disso, tinha também afeições e consolações terrenas.
Durante uns dias pouca atenção prestou à pequenina sucessora
da falecida, mas essa frieza derreteu-se como neve em Abril e,
antes mesmo de a criaturinha dar os primeiros passos ou
balbuciar as primeiras palavras, já ela lhe subjugara o
coração com o ceptro do despotismo.
Chamava-se Catherine, mas ele nunca a tratava pelo nome
completo, tal como nunca havia abreviado o nome da primeira
Catherine, talvez porque Heathcliff tivesse por hábito
fazê-lo. Para ele a menina era a Cathy, o que a distinguia da
mãe ao mesmo tempo que a associava a ela. O seu amor pela
criança provinha mais dessa ligação que dos laços de sangue
que os uniam.
Eu costumava compará-lo a Hindley Earnshaw, mas tinha
dificuldade em explicar por que motivo os comportamentos de um
e de outro eram tão diferentes em circunstâncias tão
parecidas. Ambos haviam sido maridos extremosos e eram ambos
dedicados aos filhos. Por isso, não percebia por que não
haviam trilhado um caminho semelhante, fosse ele o do bem ou o
do mal. Hindley, aparentemente o de caracter mais forte,
revelou-se infelizmente o mais degenerado e o mais fraco:
quando o barco encalhou, o capitão abandonou o seu posto e a
tripulação, em vez de tentar salvar o infortunado barco,
amotinou-se, gorando quaisquer esperanças de :,
recuperação. Linton, pelo contrário, mostrou toda a coragem de
a uma alma com fé: acreditou em Deus e Deus confortou-o. Um
e esperou e o outro desesperou. Cada um escolheu o seu
destino, e condenado a cumpri-lo até ao
fim.
Mas o senhor, Mr. Loekwood, não há-de querer ficar para
aqui a ouvir-me moralizar. O senhor pode julgar por si, tão
bem quanto eu, ou pelo menos acreditará que o faz, o que é a
mesma coisa. A sorte de Earnshaw foi a que era de prever. Em
menos de seis meses foi juntar-se à irmã. Na Granja nunca se
soube ao certo qual era o seu estado; tudo o que se soube foi
o que me contaram quando fui chamada para ajudar aos
preparativos do funeral. Foi o Dr. Kenneth quem veio trazer a
notícia ao meu patrão.
-- Ouve, Nelly -- disse ele, entrando a cavalo pelo pátio
dentro certa manhã, cedo demais para que eu não adivinhasse
logo más notícias -- chegou a nossa vez de chorar. Sabes quem
nos deixou agora?
-- Quem? -- perguntei alvoroçada.
-- Vê se adivinhas! -- retorquiu, apeando-se do cavalo e
prendendo as rédeas na argola junto á porta. Podes ir pegando
na ponta do avental, pois vais precisar...
-- Certamente não foi Mr. Heathcliff!? exclamei.
-- O quê! E tu verterias lágrimas por ele? -- admirou-se o
médico. -- Não, não foi ele. Esse é um jovem vigoroso, vende
saúde. Ainda há pouco o vi; acho-o até mais gordo desde que a
cara-metade o deixou.
-- Quem foi então, senhor doutor? -- insisti, impaciente.
-- Foi Hindley Earnshaw, o teu amigo de infância
--respondeu -- e meu amigo íntimo, se bem que ultimamente
levasse uma vida desregrada demais para o meu gosto. Ora vês?
Não te dizia que havias de chorar? Mas consola-te, morreu sem
atraiçoar a sua natureza: bêbado como um lorde. Pobre rapaz!
Também me faz pena. Um velho amigo deixa sempre saudades,
mesmo quando era capaz das piores intrujices que se possa
imaginar. E a mim pregou-me bastantes. Parece que andava pelos
vinte e sete anos; a tua idade, Nelly. Quem diria que tu e ele
nasceram no mesmo ano!
Devo confessar que este golpe foi mais duro do que o choque
causado pela morte de Mrs. Linton. Assaltaram-me velhas
recordações. Sentei-me a chorar na soleira da porta, como se
da morte de um parente se tratasse, e pedi ao médico que
chamasse outro criado para o levar à presença do patrão. :,
Não conseguia deixar de me pôr a seguinte questão: teria a
morte sido natural? Por mais que fizesse, esta ideia não me
saía da cabeça; e era de tal modo persistente, que resolvi
pedir licença para ir ao Alto dos Vendavais prestar as últimas
homenagens ao defunto. Mr. Linton mostrou-se relutante, mas eu
evoquei com eloquência o abandono a que Mr. Earnshaw devia
estar votado e afirmei que o meu ex-patrão e meu irmão de
leite tinha tanto direito aos meus ser
viços como ele próprio. Além disso, lembrei-lhe que o filho de
Hindley, o pequeno Hareton, era sobrinho da sua falecida
mulher, e que, na ausência de parentes mais próximos, era ele
quem deveria criá-lo; deveria também, ou melhor, *tinha de*
averiguar também em que situação se encontrava a propriedade e
tomar conta dos negócios do cunhado. Não se encontrando em
condições de tratar de todos estes assuntos naquela altura,
Mr. Linton encarregou-me de ir falar com o tabelião e acabou
por me deixar partir. Este tabelião era o mesmo de Earnshaw:
fui à vila e pedi-lhe que me acompanhasse. Mas ele abanou a
cabeça e aconselhou-me a que deixasse Heathcliff em paz, pois
se se descobrisse toda a verdade, ficar-se-ia a saber que
Hareton estava praticamente na miséria.
-- O pai morreu cheio de dívidas -- declarou. -- A
propriedade está toda hipotecada e a única esperança do
herdeiro natural é apelar à compaixão e benevolência do
credor.
Ao chegar ao Alto, expliquei que estava ali para me
certificar de que estava a ser feito tudo o que era
necessário. Joseph, que parecia bastante pesaroso, mostrou-se
satisfeito com a minha presença. Quanto a Mr. Heathcliff,
disse que não achava que eu fosse lá precisa, mas que, se
quisesse, podia ficar e tratar dos preparativos do enterro.
-- O que ele merecia era ser enterrado numa encruzilhada,
sem cerimónia religiosa nem nada -- afirmou. -- Ontem deixei-o
sozinho dez minutos e, nesse intervalo, trancou as duas
portas para eu não poder entrar e bebeu durante toda a noite,
no firme propósito de se matar. Hoje de manhã tivemos de
arrombar a porta da sala, quando o ouvimos resfolegar como um
cavalo, e fomos dar com ele estirado no banco; podíamos tê-lo
esfolado ou escalpelado vivo que não daria por nada. Mandei
chamar o Kenneth, mas quando ele chegou já o animal tinha
esticado o pernil: estava morto, rígido e gelado. Hás-de
convir que não valia a pena incomodar-me mais por sua causa!
Joseph confirmou a descrição, mas resmungou: :,
-- Antes qu.ria que tivesse sido ele a ir buscar o médico
eu cá ficav.aqui melhor a cuidar do patrão a verdade é
qu.inda num estava morto c.ando.eu saí de casa!
Insisti para que Mr. Earoshaw tivesse um enterro digno.
Heathcliff disse-me que fizesse o que entendesse, mas que não
me esquecesse de que era do bolso dele que saía o dinheiro
para as despesas.
A sua atitude manteve-se fria e distante, sem denotar
alegria nem tristeza; se alguma emoção exprimia, era a
satisfação cruel de haver alcançado uma vitória difícil. Uma
só vez detectei nele um certo ar triunfal: precisamente quando
os cangalheiros iam a sair com o caixão. Ainda teve a
hipocrisia de se vestir de luto; e antes de seguir com o
Hareton para o cemitério, ergueu a pobre criança até à altura
da mesa e segredou-lhe com refinado prazer:
-- Agora *és meu*, meu menino! E veremos se uma árvore não
cresce tão torta como a outra, quando o mesmo vento a faz
vergar.
O pobre inocente pareceu contente com a tirada: pôs-se a
brincar com as suíças e a afagar-lhe o queixo, mas eu,
adivinhando o verdadeiro significado daquelas palavras, disse
sem peias:
-- O menino tem de ir comigo para a Granja. Ninguém no
mundo lhe pertence menos do que ele.
-- É isso O que diz o Linton? -- inquiriu.
-- Naturalmente que sim. E deu-me ordens para o levar
--repliquei.
-- Está bem -- disse o canalha. -- Não vamos discutir isso
agora. Sempre sonhei educar uma criança. Diz, por isso, ao teu
patrão que, se me levar este, quero o meu de volta para
preencher o seu lugar. Não me oponho a que o Hareton vá
contigo, mas podem estar certos de que mandarei buscar o
outro. Não te esqueças de o avisar.
Esta ameaça era o suficiente para nos deixar de mãos
atadas. Quando voltei, dei o recado a Mr. Linton que,
mostrando-se pouco interessado, não mais falou em interferir.
E, ainda que fosse esse o seu desejo, custa-me a crer que
tivesse sido bem sucedido.
O hóspede era agora o dono do Alto dos Vendavais, seu
proprietário de direito, do que deu provas ao tabelião que,
por sua vez, as deu a Mr. Linton: Mr. Earnshaw havia
hipotecado cada hectare te terra para satisfazer o vício do
jogo, e o seu credor era Heathcliff. Deste modo, Hareton, que
podia ser agora o maior :, proprietário das redondezas, ficou
reduzido a um estado de completa
dependência do inimigo mortal de seu pai e era tratado como um
criado dentro da sua própria casa, sem salário e sem poder
reivindicar os seus direitos, desamparado e ignorante da
injustiça de que era vítima.
CAPíTULO XVIlI
Os doze anos, que se seguiram àquela época tão triste --
prosseguiu Mrs. Dean -- foram os mais felizes da minha vida.
As minhas maiores preocupações durante esse tempo foram as
maleitas sem importância da nossa menina, como acontece,
aliás, com todas as crianças, ricas ou pobres. De resto, e
passados que foram os primeiros seis meses, ela cresceu a
olhos vistos e aprendeu a andar e a falar, lá à sua maneira,
antes que a urze florisse pela segunda vez sobre a campa de
Mrs. Linton. Era o raio de sol mais resplandecente que jamais
brilhara numa casa enlutada: um rostinho lindo, com os belos
olhos dos Earnshaw, mas a pele clara, as feições delicadas e
os cabelos louros e encaracolados dos Linton. Um espírito
vivo, mas sem aspereza, coroado por um coração sensível e
caloroso até demais nas suas afeições. Nessa sua propensão
para afectos profundos fazia lembrar a mãe. Todavia, não se
parecia com ela, pois era capaz
de ser terna e meiga como uma pomba, e a voz era
doce e a expressão melancólica; a sua ira nunca era
exacerbada, nem o seu amor devastador, mas antes terno e
profundo.
Há que reconhecer; no entanto, que tinha alguns defeitos a
par destas qualidades: um deles era um certo atrevimento;
outro era a teimosia perversa de que as crianças mimadas
invariavelmente dão mostra, tenham elas bom ou mau génio. Se
algum criado a contrariava, dizia logo: «__Vou fazer queixa
ao papá!» E, se este a admoestava, nem que fosse só com o
olhar, ficava sentida que só visto; até parecia que lhe tinham
feito mal. E não acredito que ele alguma vez lhe tenha
dirigido alguma palavra mais áspera.
Foi ele que tomou sozinho a educação da filha a seu cargo,
fazendo disso o seu entretenimento: afortunadamente, a sua :,
curiosidade e inteligência perspicaz faziam dela uma
excelente aluna: aprendia depressa c com vontade, fazendo
justiça ao mestre.
Cathy chegou aos treze anos sem nunca ter transposto
sozinha, uma vez que fosse, os limites da propriedade. Uma vez
por outra, Mr. Linton levava-a a dar um passeio mais longo, de
uma milha ou coisa assim, mas nunca a confiava à guarda de
ninguém. Gimmerton não passava para Cathy de um nome sem
qualquer significado, e a capela era o único lugar onde
entrara para além da sua própria casa. O Alto dos Vendavais e
Mr. Heathcliff não existiam para ela. Era uma verdadeira
reclusa, aparentemente satisfeita com o tipo de vida que
levava. Às vezes, porém, quando da janela do seu quarto
espraiava os olhos pelas cercanias,
perguntava-me:
-- Ellen, quando poderei subir ao topo daqueles montes?
Gostava tanto de saber o que se estende para lá deles. É o
mar?
-- Não, Miss Cathy -- respondia eu. -- São outros montes
iguais àqueles.
-- E como são aquelas escarpas douradas pelo sol, quando
estamos ao pé delas? -- perguntou ela uma vez.
As encostas abruptas de Penistone Crag e dos outros montes
mais altos atraíam-lhe particularmente a atenção, em especial
quando a luz do poente banhava os picos mais elevados,
mergulhando na sombra tudo o resto. Expliquei-lhe que eram
simples penedos cuja terra que lhes enchia as fendas
dificilmente daria para alimentar uma árvore raquítica.
-- E por que continuam iluminados depois de aqui já ter
anoitecido? -- insistia.
-- Porque estão muito acima do lugar onde moramos
respondi. -- A menina não pode lá chegar; são muito altos e
escarpados. No Inverno o gelo cobre-os antes de cá chegar e,
mesmo no pino do verão, já cheguei a ver neve naquele côncavo
escuro do lado nordeste.
-- Ah! Já lá estiveste! -- exclamou, radiante. -- Então
também lá posso ir quando for crescida. E o papá, já lá
esteve, Ellen?
-- O seu pai vai dizer-lhe -- atalhei eu apressadamente que
esses montes não valem a visita. Os brejos por onde a menina
costuma passear com ele são muito mais bonitos, e o nosso
parque é o lugar mais lindo do mundo.
-- Mas a nossa propriedade já eu conheço e aqueles montes
ainda não -- disse, falando sozinha. -- E gostava tanto de
olhar a :, toda a volta do cume mais alto! Um dia hei-de lá ir
com a Minny.
A Gruta das Fadas, a que uma criada se tinha referido em
conversa, deu-lhe por completo volta à cabeça e não descansou
enquanto não concretizou esse sonho: tanto pediu ao pai que
ele lhe prometeu que a levaria lá quando fosse mais crescida.
Mas para Cathy a idade contava-se pelos meses e, por isso,
perguntava constantemente: «__Já posso ir a Penistone Crag?»
Mas como uma das últimas curvas do caminho sinuoso que levava
até lá passava muito perto do Alto dos Vendavais, Mr. Edgar,
sem animo para lá passar, dava-lhe invariavelmente a mesma
resposta: «__Não, meu amor, ainda não».
Como já disse, Mrs. Heathcliff viveu pouco mais de doze
anos depois de se separar do marido. As pessoas da sua família
eram de constituição delicada: nem ela nem Edgar tinham os
ares saudáveis e corados que se vêem por estes sítios. Já não
sei dizer que doença a levou, mas penso que morreram ambos do
mesmo mal, uma febre; coisa de pouca monta no começo, mas
incurável e devastadora para o
fim.
Escreveu ao irmão a comunicar-lhe o possível desfecho da
doença que já durava há quatro meses, e pedia-lhe que fosse
visitá-la, pois tinha muitas disposições a fazer e queria,
sobretudo, despedir-se dele e confiar o Linton à sua
guarda. A sua grande esperança era que o filho pudesse
ficar com o tio daí em diante, tal como até aí tinha ficado
com ela, pois estava convencida de que o pai dele não
se mostraria interessado em assumir o seu sustento e
educação.
O meu patrão nem por um momento hesitou em aceder ao pedido
da irmã: apesar da sua habitual relutância em sair de casa,
acorreu prontamente ao seu chamado, mas não sem antes entregar
Cathy durante a sua ausência à minha exclusiva vigilância, com
insistentes recomendações de que ela nso deveria em caso algum
ultrapassar os limites do parque, mesmo acompanhada; não
pensou sequer na hipótese de ela o fazer sozinha.
Mr. Linton esteve fora três semanas: a minha pupila passou
os dois primeiros dias sentada a um canto da biblioteca, tão
tristonha que não lhe apetecia ler nem brincar. Durante esse
tempo de acalmia neo me deu trabalho nenhum; mas
seguiu-se-lhe um período de grande impertinência e
inquietação. Não podendo, com a minha idade e com tudo o que
tinha para fazer, andar de um lado para o outro a entretê-la,
magiquei numa maneira de ela se entreter :, sozinha: passei a
mandá-la dar passeios pela quinta, ora a pé ora a cavalo, e,
quando ela voltava; escutava com toda a atenção as aventuras
reais e imaginárias que tinha para me contar.
Estávamos no pino do Verão e ela tomou tanto gosto por
estes passeios solitários, que arranjou sempre maneira de
andar lá por fora desde o pequeno-almoço até à hora do chá.
Depois, passava o resto do dia a contar-me as histórias mais
fantásticas que se possa imaginar. Nunca receei que ela se
afastasse para mais longe, porque os portões da quinta estavam
geralmente fechados à
chave e achava que não seria capaz de se aventurar
sozinha pelos matos fora, mesmo que os portões estivessem
abertos.
Infelizmente, a minha confiança provou ser desmedida.
Catherine veio ter comigo uma manhã, às oito horas, e
comunicou-me que nesse dia ela era um mercador árabe que se
preparava para atravessar o deserto com a sua caravana, e que
eu tinha de lhe fornecer os mantimentos necessários para ela e
para os seus animais; a saber, um cavalo e três camelos, estes
últimos personificados por um grande galgo e um casal de
perdigueiros.
Meti uma boa provisão de guloseimas na cestinha que
pendurei na sela e ela partiu a bom trote, ligeira e folgazã
como uma fada, protegida do sol de Julho por um grande chapéu
de aba larga envolto num véu de tule, a rir e a troçar dos
meus conselhos para que evitasse grandes cavalgadas e voltasse
cedo para casa.
Porém, à hora do chá aquela marota ainda não tinha
aparecido. Entretanto, chegou um dos viajantes, o galgo que,
já velho, gostava de sossego. Mas de Catherine, do cavalo e
dos perdigueiros, nem sinal! Enviei criados em todas as
direcções e, por fim, fui eu própria procurá-la.
Num dos extremos da propriedade estava um trabalhador da
quinta a consertar a cerca de uma plantação e perguntei-lhe se
vira a nossa menina.
-- Vi-a esta manhã -- respondeu. -- Até me pediu que lhe
fizesse uma chibata com um ramo de aveleira. E depois fez a
montada saltar aquela sebe, além, na parte mais baixa, e
desapareceu a galope.
O senhor pode imaginar como eu fiquei com estas notícias.
Mas logo me pareceu que devia ter ido para os Penistone Crags.
«__Que será que lhe aconteceu?» exclamei, passando pela
abertura que o homem estava a consertar e dirigindo-me para a
estrada :, principal. Percorri milhas e milhas como se
quisesse ganhar uma corrinda, até que, ao dar uma curva,
avistei o Alto dos Vendavais; mas de Catherine nem sinais, nem
perto nem longe.
Os Crags ficam a cerca de milha e meia para lá da
propriedade de Mr. Heatheliff, ou seja, a quatro milhas da
Granja, e comecei a recear que a noite caísse antes de eu os
aleançar.
«_E se ela escorregou quando andava a trepar pelo meio das
escarpas?» pensei eu, «_E se morreu ou partiu alguma coisa?»
Era na verdade angustiante; por isso, foi a princípio com
reconfortante alívio que, ao passar pelo Alto dos Vendavais,
vi o Charlie, o mais aguerrido dos dois perdigueiros, deitado
debaixo doma janela, com a cabeça inchada e uma orelha a
sangrar. Abri a cancela, corri para a porta e bati com toda a
força. Veio abri-la uma mulher que eu conhecia de Gimmerton,
mas que agora servia no Alto desde a morte de Mr. Earnshaw.
-- Já sei! -- disse ela -- Vem à procura da sua menina! Não
se aflija, que ela está aqui. Não lhe aconteceu nada... Ainda
bem que não era o patrão.
-- Então, ele não está em casa? -- disse eu, ofegante, não
só da caminhada, mas também da aflição.
-- Não está, não. Saiu com o Joseph e acho que ainda devem
demorar uma hora ou mais. Entre e descanse um bocadinho.
Entrei e vi a minha ovelhinha desgarrada a balançar-se
diante da lareira, toda repimpada numa ca leira de baloiço que
pertencera à mãe em pequena. Tinha pendurado o chapéu na
parede e parecia perfeitamente à vontade e muito bem disposta,
a rir e a tagarelar com o Hareton, agora um latagão de dezoito
anos, que não tirava os olhos dela, num misto de espanto e
curiosidade, sem perceber patavina da interminável sucessão de
comentários e interrogações que ela nso parava de fazer.
-- Sim senhora! -- exclamei, tentando mascarar a minha
alegria com severidade e contenção. -- Este foi o seu último
passeio a cavalo enquanto o seu pai nso voltar! Não põe mais
os pés fora de casa, ouviu, sua grandessíssima marota!
-- Oh, Ellen! -- gritou ela, rejubilante, saltando para o
chão e vindo a correr ter comigo. -- Esta noite é que tenho
uma história bem bonita para te contar... Como é que deste
comigo? Já cá tinhas estado alguma
vez?
-- Ponha o chapéu e vamos já para casa! -- ordenei. - Estou
:, muito zangada consigo, Miss Cathy, a menina portou-se muito
mal; e escusa de fazer beicinho e de se pôr com choradeiras,
que isso não me poupa a canseira de andar por ai a correr tudo
à sua procura. Quando penso nas recomendações de Mr. Linton
para não a deixar sair de casa... e a menina desaparecer-me
assim, desta maneira! Já vi que é uma raposinha matreira, e
daqui em diante mais ninguém vai confiar em
si.
-- Mas que foi que eu fiz? -- perguntou ela, sentida, a
soluçar. -- O papá não recomendou nada disso e não vai ralhar
comigo. Ele não é mau como tu.
-- Então, menina! -- disse eu. -- Deixe-me atar-lhe as
fitas do chapéu. Onde já se viu tanto atrevimento?! Que
vergonha! Com treze anos e a portar-se como um bebé.
Esta minha última exclamação deveu-se a ela ter arrancado o
chapéu da cabeça e se ter escapado para junto da
chaminé.
-- Deixe lá, Mrs. Dean -- interveio a criada. -- Não se
zangue com uma menina tão linda. A gente é que a atrasou. Ela
queria ir-se logo embora, para não a afligir. Mas o Hareton
ofereceu-se para a ir acompanhar e eu achei que ele fazia
muito bem, porque a estrada do monte é muito traiçoeira.
O Hareton manteve-se de mãos nos bolsos durante toda a
discussão, com acanhamento de falar, embora não parecesse
nada contente com a minha intromissão.
-- Quanto tempo ainda a menina quer que eu espere?
--insisti, fazendo orelhas moucas aos pedidos da mulher. --
Daqui a dez minutos é noite. Onde está o cavalo, Miss Cathy? E
onde está o Phenix? Ou a menina se despacha, ou deixo-a aqui
ficar. A menina escolha!
-- O cavalo está no pátio -- respondeu. -- e o Phenix está
fechado ali dentro... foi mordido... e o Charlie também. Eu ia
contar-te tudo, mas como te zangaste comigo, não mereces que
te conte nada.
Peguei no chapéu e tentei pôr-lho novamente. Ela, porem,
percebendo que as outras pessoas estavam do seu lado, desatou
a correr à volta da sala; tentei agarrá-la, mas ela parecia um
rato, a esgueirar-se por cima e por baixo dos móveis e a
esconder-se atrás deles, tornando ridícula a situação. A
criada e o Hareton riam a bom rir, e ela também, cada vez mais
desaustinada, até que lhe gritei, já fora de mim: :,
-- Se Miss Cathy soubesse de quem é esta casa, queria era
ir-se já embora!
-- É do teu pai, não é? -- perguntou ela, voltando-se para
o Hareton.
-- Não senhora -- respondeu ele, timidamente, ficando muito
corado e baixando os olhos. Não conseguia encarar Cathy,
embora os olhos dela fossem iguaizinhos aos
dele.
-- Então de quem é? Do teu patrão? insistiu ela.
O Hareton corou ainda mais, agora por outro motivo, e
virou-lhe as costas, remoendo pragas.
-- Afinal, quem é o patrão dele? -- continuou a menina,
impertinente, voltando-se para mim. Ele falava da «nossa
casa», dos «nossos criados», e eu julguei que fosse filho do
dono... nem me tratou por «_Miss Cathy» nem nada. Se fosse
mesmo um criado devia fazê-lo, não devia?
Perante tanta tagarelice, o rosto do rapaz fechou-se como o
céu em dia de trovoada. Pela minha parte, dei uns safanões
àquela língua de trapos, para ver se ela se calava, e,
finalmente, consegui aprontá-la para sair.
-- Agora vai buscar o meu cavalo -- disse ela ao rapaz que
nem suspeitava ser seu parente, como se se dirigisse a um dos
moços de estrebaria lá da Granja. -- E, se quiseres, podes vir
comigo. Quero ver o sitio onde o duende-caçador sai do pântano
e ouvir-te falar das fadas... mas tens de te despachar! Então?
Vais ou não vais buscar o meu cavalo?
-- Eu não sou seu criado, ouviu? Vá pró diabo -- praguejou
ele.
-- Vou para onde? -- perguntou ela, apanhada de surpresa.
-- Para o diabo, bruxa duma figa! ripostou Hareton.
-- Está a ver, Miss Cathy? Que bela companhia que a menina
arranjou! -- atalhei. -- Bonitas palavras para se dizerem a
uma menina! Por favor não se ponha a discutir com ele... Venha
comigo, vamos nós mesmas procurar a Minny e sair daqui para
fora.
-- Ellen! -- exclamou ela, fitando-me boquiaberta -- Como
se atreve ele a falar comigo desta maneira? Não é sua
obrigação fazer o que eu lhe peço? Seu grande malcriado! Vou
contar ao papá ... e depois vais ver...
O Hareton não se mostrou nada preocupado com a ameaça, o
que deixou Catherine com os olhos rasos de lágrimas da raiva
que :, sentia. -- Vai tu buscar o cavalo -- exclamou,
virando-se para a mulher -- e solta imediatamente o meu cão!
-- Calma, menina -- respondeu a sua interlocutora. --Não
perde nada em ser bem educada. Mr. Hareton não é filho do
patrão; mas é primo da menina e eu não fui contratada para a
servir.
-- Aquele? Meu primo?! -- exclamou Cathy, com desdém,
soltando uma gargalhada.
-- Isso mesmo! -- corroborou a outra.
-- Oh, Ellen! Não os deixes dizer uma coisa destas -- disse
ela, confusa. -- O meu primo foi o papá buscá-lo a Londres e é
filho de um homem de bem. Agora este... e de atou a chorar,
chocada com a ideia de ser parente de semelhante labrego.
-- Pronto, pronto! -- disse eu para a consolar -- as
pessoas podem ter muitos primos e de todas as espécies, Miss
Cathy; mas isso não quer dizer nada; se forem ruins ou mal
educados, é só não se darem com eles e pronto.
-- Ele não pode ser meu primo, Ellen, não pode! -- repetia
Catherine, com renovada indignação, à medida que ponderava a
questão, vindo refugiar-se nos meus braços, como para se
proteger dos seus próprios
pensamentos.
Eu estava aborrecida com a troca de revelações havida entre
ela e a criada, pois não tinha dúvidas de que Mr. Heathcliff
seria posto ao corrente do regresso de Linton, anunciado pela
primeira, nem de que o primeiro pensamento de Catherine ao
reencontrar o pai seria pedir-lhe explicações para a afirmação
feita pela segunda sobre o seu parentesco com aquele rústico.
Hareton, já refeito do desgosto de ter sido tomado por um
serviçal, pareceu comover-se com o desgosto da menina:
trouxe-lhe o cavalo até à porta e, para lhe agradar, foi
buscar ao canil um lindo cachorrinho *terrier* de pernas
bambas que entregou a Cathy, rogando-lhe que não chorasse
mais, pois não tivera intenção de a ofender.
Cathy engoliu as lágrimas, mirou-o com um misto de pasmo e
horror e recomeçou a choradeira.
Eu mal pude conter um sorriso perante tamanha antipatia
pelo pobre rapaz, que era por sinal um jovem atlético, bem
constituído e muito bem parecido, a vender saúde, mas vestido
com roupas apropriadas para as suas ocupações diárias na
quinta e para andar pelos descampados atrás de coelhos e
outras espécies. Pareceu-me, no entanto, entrever-lhe na
fisionomia um espírito dotado de qualidades que o pai dele
jamais possuíra. Pérolas perdidas, decerto, :,
por entre as ervas daninhas que lhe minaram o desenvolvimento;
notava-se, não obstante, que aquele solo era fértil e capaz de
produzir colheitas abundantes em circunstancias mais
favoráveis. Não creio que Mr. Heathcliff lhe tenha infligido
maus tratos físicos, graças à sua natureza destemida, que
desaconselhava esse tipo de opressão, e à inexistência daquela
tímida passividade que, na opinião de Heathcliff, tornaria
gratificantes os maus tratos. A sua malevolência parecia visar
sobretudo fazer dele um bruto. Hareton nunca aprendera a ler
nem a escrever, nunca fora repreendido pelos seus maus hábitos
desde que o seu tutor não se sentisse incomodado com eles,
nunca lhe haviam ensinado o caminho da virtude nem os mais
simples preceitos para se proteger do vício. E, pelo que ouvi
dizer, Joseph contribuíra em muito para o estragar, com aquela
sua mentalidade conservadora que o levara a adulá-lo e a
mimá-lo em excesso enquanto criança, só pelo facto de ser o
herdeiro da velha família. E, tal como fora seu costume
acusar Catherine Earnshaw e Heathcliff, quando eram pequenos,
de esgotarem a paciência do patrão, levando-o com os seus
«desmandos», como ele lhes chamava, a procurar refúgio na
bebida, também agora lançava sobre os ombros do usurpador o
peso das faltas de Hareton. Nunca o repreendia por mais
palavrões que ele dissesse ou por pior que se portasse. Joseph
parecia até gostar de o ver ir longe demais. Para ele, o rapaz
estava irremediavelmente perdido, sem vislumbre de salvação
para a sua alma, apesar de, lá no fundo, achar que quem devia
pagar por isso tudo era Heathcliff: o sangue de Hareton
recairia sobre ele, e esta ideia enchia-o de consolação.
Joseph havia incutido no rapaz o orgulho do nome e da
linhagem e teria, se a tal se houvesse atrevido, alimentado
nele o ódio pelo actual proprietário do Alto dos Vendavais;
porém, o medo que tinha de Heathcliff ,tocava as raias da
superstição e limitava-se, por Isso, a expressar os seus
sentimentos através de veladas ameaças e insinuações.
Não pretendo com isto dizer que eu estivesse ao corrente do
que se passava no Alto dos Vendavais, mas era o que constava,
pois pessoalmente pouco presenceie. As pessoas da vila
afirmavam que Mr. Heathcliff era muito avarento e um senhorio
desapiedado para com os seus rendeiros. Contudo, a casa,
governada por mão de mulher, recuperara por dentro o ar
confortável de outrora, e as cenas desbragadas, típicas dos
tempos de Hindley, já não tinham assento entre aquelas
paredes. O patrão era demasiado taciturno :, para procurar a
companhia de outras pessoas, fossem elas boas ou mas, e assim
continua a ser...
Mas nada disto tem a ver com a minha história. Continuemos,
pois: Cathy não aceitou o cachorrinho e exigiu que soltassem
os seus dois cães, o Phenix e o Charlie, que apareceram a
coxear, de focinho no chão, após o que tomamos todos o caminho
de casa, bastante mal-humorados, diga-se de passagem. Não
consegui arrancar da menina uma só palavra sobre como passara
o dia, excepto que, como já calculava, a meta da sua
peregrinação fora os Penistone Crags e que a viagem decorrera
sem novidade até chegar à cancela da quinta, no preciso
momento em que Hareton vinha a sair com uns cães que se
atiraram aos de Catherine, envolvendo-se todos numa luta
renhida antes que os respectivos donos os conseguissem
separar, e que este incidente funcionara como uma espécie de
apresentação. Catherine disse a Hareton quem era e para onde
ia e pediu-lhe que lhe indicasse o caminho, acabando por
persuadi-lo a acompanhá-la. Ele, por seu turno, revelou-lhe
os mistérios da Gruta das Fadas e de muitos outros lugares
assombrosos; no entanto, e como estava ressentida, não me
brindou com a descrição das coisas interessantes que
encontrara.
Percebi, contudo, que se dera muito bem com o seu guia até
ao momento em que o ofendeu, tratando-o como um criado, e em
que a governanta de Heathcliff a ofendeu, dizendo-lhe que ele
era seu primo.
Além disso, sentia-se ainda vexada pela linguagem usada por
Hareton: ela, que na Granja era para toda a gente «meu amor»,
«minha querida», «minha princesa» e «meu anjo», ver-se agora
insultada de forma tão chocante por um estranho! Podia lá
admitir tal coisa; e bom trabalho me deu fazê-la prometer que
não levaria a ofensa ao conhecimento do pai.
Expliquei-lhe que Mr. Linton se opunha a quaisquer
contactos com todos os que viviam no Alto dos Vendavais e que
ficaria deveras aborrecido quando descobrisse que a filha lá
estivera; insisti sobretudo em que, se ela mencionasse a minha
desobediência às ordens que ele me dera, o pai era capaz de
ficar tão zangado que eu teria de me ir embora, ideia essa que
Cathy não podia suportar. Deu-me por isso a sua palavra e
cumpriu-a em nome da amizade que me tinha. Era afinal uma boa
menina.
CAPíTULO XIX
Uma carta tarjada de negro anunciou o dia do regresso do
meu patrão. Isabella morrera e ele escreveu-me a pedir que
mandasse fazer vestidos de luto para a filha e preparasse um
quarto e o mais que fosse necessário para receber o
sobrinho.
Catherine ficou louca de alegria com a ideia de ter o pai
de volta, e entregou-se às mais esperançadas conjecturas sobre
as inúmeras qualidades do seu primo «de verdade».
Chegou enfim o anoitecer, a hora do tão desejado regresso.
Ela andara atarefadíssima durante todo o dia, desde muito
cedo, a arrumar as suas coisas e agora, para terminar,
apareceu-me muito bem ataviada no seu novo vestido preto
(coitadinha, a morte da tia não era para ela mais que um
sentimento indefinido) e obrigou-me à viva força a ir com ela
até ao fundo da quinta, ao encontro deles.
-- O Linton é só seis meses mais novo do que eu --
tagarelava ela enquanto caminhávamos paulatinamente à sombra
das árvores por socalcos e valados cobertos de musgo. -- Como
vai ser bom ter um companheiro para brincar! A tia Isabella
mandou uma vez ao papá um caracol do cabelo dele. Era mais
claro do que o meu... e muito mais fino e sedoso. Tenho-o
muito bem guardado numa caixinha de vidro. Quantas vezes
pensei como gostaria de ver o dono desse cabelo! Estou tão
contente... E vou ver também o papá, o meu querido papá!
Vamos, Ellen, mais depressa! Corre!
Correu, voltou para trás e pôs-se de novo a correr, vezes e
vezes sem conta, antes que eu, mais lenta, tivesse tempo de
chegar ao portão. Depois, sentou-se no talude relvado à beira
do caminho, :, esforçando-se por esperar com toda a
paciência. Mas era impossível: não podia estar quieta um só
momento.
-- Por que demoram tanto?! -- exclamava. -- Ah! Parece-me
que estou a ver poeira no ar ao fundo da estrada... Lá vêm
eles! Não... nunca mais chegam! E se nós fôssemos até ali mais
à frente? Só mais um bocadinho, Ellen. Diz que sim, por favor.
Só até àquela moita de vidoeiros junto à curva.
Recusei veementemente. Por fim, a sua ansiedade chegou ao
fim: já se avistava a carruagem. Cathy deu um grito e abriu os
braços assim que viu o rosto do pai emoldurado na janela. Mr.
Linton apeou-se, quase tão emocionado como a filha, e só daí a
um bocado se lembraram os dois de que estava ali mais alguém.
Enquanto eles trocavam beijos e abraços, espreitei para
dentro da carruagem, para ver Linton. Estava a dormir a um
canto, embrulhado numa capa forrada de pele, como se
estivéssemos no Inverno. Era um rapazinho pálido, franzino,
efeminado, que bem poderia passar por irmão mais novo do meu
patrão, tão acentuada era a parecença. Havia, contudo, no seu
aspecto uma impertinência doentia que Edgar Linton jamais
possuíra.
Este último, ao ver-me a espreitar, veio cumprimentar-me e
pediu-me que fechasse a porta da carruagem e não perturbasse o
sono do sobrinho, pois a viagem tinha-o deixado muito
fatigado.
A Cathy queria por força ir espreitar, mas o pai disse-lhe
que o acompanhasse e subiram juntos o parque, enquanto eu
corria à frente deles, para avisar os criados.
-- Presta atenção, meu tesouro disse Mr. Linton à filha
quando pararam junto aos degraus da entrada o teu primo não é
tão saudável nem tão vivo como tu, e lembra-te de que perdeu
a mãe há pouco tempo. Por isso, não esperes que se ponha já a
correr de um lado para o outro e a brincar contigo. E não o
maces muito com as tuas tagarelices; deixa-o sossegado pelo
menos esta tarde, está bem?
-- Sim, papá respondeu Catherine. -- Mas eu queria tanto
vê-lo e ele não veio à janela nem uma só vez!
A carruagem parou e o dorminhoco, agora já acordado, foi
tirado cá para fora com a ajuda do tio.
-- Linton, esta é a tua prima, a Cathy -- disse o meu
patrão, juntando-lhes as mãos. Ela gosta muito de ti e espero
que não a desgostes pondo-te a chorar toda noite. Vá,
anima-te. A viagem terminou e tudo o que tens a fazer é
descansares e distraires-te como achares melhor. :,
-- Então deixe-me ir para a cama -- respondeu o rapaz,
furtando-se ao beijo de Catherine e levando as mãos aos olhos
para limpar duas lágrimas inconsequentes.
-- Então, então! Um menino tão bonito! -- disse eu
brandamente, levando-o para dentro. -- Assim, vai fazer
chorar também a sua prima. Veja como ela está triste por sua
causa.
Não sei se era por pena, mas Cathy mostrava-se tão
acabrunhada como o primo e voltou para junto do pai. Entraram
os três e subiram para a biblioteca, onde o chá já estava à
espera deles.
Tirei o boné e a capa de Linton e sentei-o no seu lugar à
mesa. Porém, mal se sentou, começou de novo a chorar. O meu
patrão perguntou-lhe o que tinha.
-- Não consigo estar sentado na cadeira -- respondeu entre
soluços.
-- Nesse caso, vai deitar-te no banco e a Ellen leva-te lá
o chá -- disse o tio, cheio de paciência. (_Bem devia ter
precisado dela durante a viagem para aturar aquele
choramingas!)
Linton arrastou-se vagarosamente até ao banco e estendeu-se
ao comprido. Cathy pegou num banquinho para os pés e na sua
chávena e foi sentar-se junto dele.
A princípio, manteve-se em silêncio, mas claro que isso não
podia durar muito: depressa resolveu transformar o primo em
bichinho de estimação e como tal o começou a tratar.
Afagava-lhe os caracóis, beijava-lhe as faces e dava-lhe chá
pelo pires, como se ele fosse um bebé. E ele, que pouco mais
era do que isso, estava a gostar: enxugou as lágrimas e um
breve sorriso iluminou-lhe o rosto.
-- Ele vai dar-se bem por cá -- disse o patrão, depois de
os observar durante alguns minutos. -- Vai dar-se até muito
bem... se pudermos ficar com ele, Ellen. A companhia de uma
criança da mesma idade dar-lhe-á uma alma nova e, à força de
querer ser forte, acabará mesmo por sê-lo.
«_Tudo isso está muito bem, se pudermos ficar com ele»,
pensei comigo mesma; mas tinha um pressentimento de que havia
motivo para não ter muitas esperanças. E, depois, perguntei-me
como poderia aquela criatura tão frágil ir viver para o Alto
dos Vendavais, com o pai e o Hareton... Belos companheiros e
belos professores, não havia dúvida! :,
Mas as nossas incertezas cedo desapareceram, bem mais cedo
do que eu esperava. Depois de terminado o chá, levei as
crianças para os quartos, esperei que Linton adormecesse, pois
não me deixara sair antes, e voltei para baixo. Estava eu
junto à mesa do vestíbulo a acender uma vela para Mr. Edgar
levar para o quarto, quando da cozinha saiu uma criada a
correr, para me avisar de que Joseph estava à porta e
desejava falar com o patrão.
Em primeiro lugar, vou ver se ele está pelos ajustes --
disse eu, manifestamente perturbada. -- Isto são lá horas de
se vir incomodar uma pessoa, ainda por cima quando ela acaba
de regressar de uma viagem tão estafante. Não me parece que o
patrão o possa receber. Mas, enquanto eu dizia estas
palavras, já Joseph tinha entrado para a cozinha e vindo até
ao vestíbulo. Envergava o seu fato domingueiro, exibia a
expressão mais beata e carrancuda que eu já vira, de chapéu
numa mão e bengala na outra, e estava ocupado a limpar os pés
ao tapete.
-- Boa-noite, Joseph -- disse eu com frieza. -- Que o traz
por cá a estas horas?
-- É com Mr. Linton qu.eu venho falar retorquiu,
arredando-me para o lado com um gesto de enfado.
-- Mr. Linton está a preparar-se para ir para cama e tenho
a certeza de que não o vai atender, a menos que tenha alguma
coisa muito importante para lhe dizer. O melhor é sentar-se e
dizer-me o que o traz por cá.
-- Onde fica o quarto dele? -- continuou o velho,
percorrendo com o olhar a correnteza de portas
fechadas.
Percebendo que ele não estava disposto a aceitar a minha
mediação, foi com relutância que entrei na biblioteca e
anunciei o inoportuno visitante, mas não sem aconselhar Mr.
Linton a mandá-lo voltar no dia seguinte. Ele, porém, nem
tempo teve para me dar essa ordem, pois Joseph viera atrás de
mim e, entrando na sala, foi especar-se no extremo
oposto da mesa, com as mãos cravadas no castão da
bengala, e disse, elevando a voz como se já esperasse
oposição:
-- Mr. Heathcliff mandou-me vir buscar o miúdo, e eu não me
posso ir daqui sem o levar.
Edgar Linton manteve-se em silêncio por um momento: uma
profunda tristeza toldou-lhe o semblante; o garoto, só por si,
já seria razão suficiente; mas, ao recordar as esperanças e os
receios de :, Isabella, a sua inquietação quanto à sorte do
filho e as recomendações que lhe fizera ao confiá-lo à sua
guarda, era com grande amargura que encarava a sua partida,
procurando com afinco um meio de a evitar. Mas não encontrava
solução: a simples manifestação do desejo de manter o sobrinho
junto de si mais força daria às pretensões do pai do rapaz, e
não lhe restava outra solução senão resignar-se a deixá-lo
partir. Opôs-se contudo a ir acordar o garoto.
-- Diz a Mr. Heathcliff -- respondeu, falando calmamente
--que o filho dele estará amanhã no Alto dos Vendavais. Neste
momento, está a dormir e demasiado cansado para empreender
nova viagem. Podes dizer-lhe também que a mãe do Linton
desejava que ele ficasse à minha guarda, e que a sua saúde é
actualmente muito precária.
-- Não senhor! -- exclamou Joseph, afivelando um ar
autoritário e batendo com a bengala no chão. Não senhor! Isso
não interessa. Mr. Heathcliff quer lá saber do qu.a mãe disse
ou do qu.o senhor disse. O qu.ele quer é o miúdo e eu tenho
d.o levar, está a perceber?
-- Mas não esta noite -- replicou Edgar Linton,
peremptório. -- Põe-te daqui para fora imediatamente e repete
ao teu patrão o que acabei de dizer. Leva-o daqui, Ellen. Vá!
E, agarrando o velho tratante pelo braço, expulsou-o da
sala e fechou a porta à chave.
-- Pois muito bem! -- berrou Joseph, enquanto se afastava
-- Amanhã há-de vir ele em pessoa e odespois veremos se o
senhor se atreve a correr com *ele*!
__Capítulo XX
Para evitar que a ameaça se concretizasse, Mr. Linton
encarregou-me de levar o garoto a casa do pai logo pela manhã
no cavalo de Catherine, recomendando:
-- Como de agora em diante não teremos qualquer influência
sobre o seu destino, seja ela boa ou má, não digas à minha
filha para onde ele foi. Já que a convivência entre ambos
deixou de ser possível, é preferível ocultar-lhe a sua
proximidade, pois, caso contrário, ela não descansará enquanto
não for ao Alto dos Vendavais. Diz-lhe apenas que o pai o
mandou buscar inesperadamente e que, por isso, ele teve de nos
deixar.
Linton mostrou-se muito relutante em sair da cama às cinco
da manhã e ficou boquiaberto quando lhe disseram que se
preparasse para nova viagem. Mas lá consegui acalmá-lo,
dizendo-lhe que iria passar algum tempo com o pai, Mr.
Heathcliff, que estava tão ansioso por conhecê-lo que não
podia protelar esse prazer até que ele se recompusesse da
viagem do dia anterior.
O meu pai?! -- exclamou, perplexo. -- A mamã nunca me disse
que eu tinha um pai. E onde é que ele vive? Preferia ficar
aqui com o meu tio.
-- Vive a pouca distância da Granja -- respondi. -- Logo
por detrás daqueles montes... não é muito longe, e o menino
pode vir a pe ate cá quando estiver mais fortezinho. Até devia
estar contente por ir para a sua casa e conhecer o seu pai.
Procure gostar dele como gostava da sua mãe, e verá como ele
também vai gostar de si.
-- Mas por que não me falaram dele há mais tempo?
--perguntou Linton. -- Por que é que ele e a mamã não viviam
juntos, como toda a gente? :,
-- Porque os negócios o retinham no Norte e a saúde da sua
mãe a obrigava a viver no Sul -- expliquei.
-- Mas por que razão é que a mamã não falava nele? --
insistiu o garoto. -- No tio, ela falava muitas vezes, e eu
habituei-me a gostar dele há muito tempo. Como é que hei-de
gostar do meu pai, se nem o conheço?
-- Ora essa, como todos os filhos gostam dos seus pais --
disse eu. -- Talvez a sua mãe pensasse que, se lhe falasse
nele muitas vezes, o menino quisesse vir viver com ele. Vá lá,
temos de nos apressar! Um passeio a cavalo numa manhã bonita
como esta vale bem uma hora de sono.
-- E ela também vem connosco? -- perguntou. -- Aquela
menina que eu vi ontem?
-- Não, hoje não vem. -- retorqui.
-- E o meu tio? -- continuou.
-- Também não. Quem o vai levar sou eu.
Linton afundou-se de novo na almofada, com cara de poucos
amigos.
-- Sem o meu tio, não vou. -- disse, amuado. -- Nem sei
para onde me leva!
Tentei convencê-lo de que era uma tolice mostrar-se tão
relutante em ir ver o pai. Mas ele resistia com tal
obstinação, que tive de ir chamar o meu patrão para o vir
arrancar da cama.
Por fim, o pobrezinho lá partiu, convencido de que a sua
ausência seria curta, de que Mr. Edgar e a prima o iriam
visitar e de que se cumpririam outras promessas que eu fui
inventando ao longo de todo o caminho.
O ar puro e perfumado pela urze, o sol radioso e o trotar
suave da Minny não tardaram a animá-lo. Começou então a fazer
perguntas sobre o seu novo lar e os que lá moravam, cheio da
mais viva curiosidade.
-- É tão bom viver no Alto dos Vendavais como na Granja dos
Tordos? -- perguntou, enquanto se voltava e lançava um último
olhar ao vale, de onde se elevava uma fina neblina que vestia
de branco véu o horizonte anilado.
-- A casa do Alto não tem tantas árvores à volta, nem é tão
grande como a da Granja, mas de lá avista-se tudo em redor, é
uma beleza! -- disse eu. -- E os ares são mais saudáveis para
o menino, mais frescos e mais secos. Talvez no início ache a
casa velha e escura, mas é uma casa cheia de tradições, a
segunda melhor das :, redondezas. E que belos passeios que o
menino vai poder dar pelos brejos. O Hareton Earnshaw, o outro
primo de Miss Cathy e, de certa forma, seu também, há-de
levá-lo aos lugares mais bonitos que já viu, e quando estiver
bom tempo, o menino pode ir sentar-se a ler um livro naquele
vale tão verdinho e tão agradável, e talvez uma vez por outra
o seu tio lhe faça companhia, pois ele costuma vir muitas
vezes passear por estes montes.
-- Como é que é o meu pai? É assim novo e bonito como o meu
tio? -- perguntou, curioso.
-- É tão novo como ele, mas o cabelo e os olhos são pretos
e a cara é mais severa; é também mais alto e mais entroncado.
A princípio, não o vai achar tão gentil, nem tão bondoso,
porque não é esse o seu feitio, mas trate de se mostrar franco
e cordial, e ele será certamente mais carinhoso consigo do que
qualquer tio, pois o menino e c o seu sangue.
-- Cabelos e olhos pretos! -- repetiu Linton, pensativo --
Não consigo imaginá-lo. Isso quer dizer que não sou parecido
com ele, pois não?
-- Não é lá muito -- concordei. «_Nem um bocadinho», pensei
eu, penalizada, enquanto observava, saudosa, o rosto pálido e
o corpo franzino do meu pequeno companheiro; os olhos grandes
e languidos, iguaizinhos aos da mãe, mas com uma única
diferença: a menos que uma súbita morbidez os animasse num
lampejo, não se vislumbravam neles quaisquer vestígios da
inteligência borbulhante de Isabella.
-- É tão estranho que ele nunca tenha ido visitar-nos, a
mim e à minha mãe! disse, a meia voz. Ele já me viu alguma
vez? Se viu, eu devia ser ainda muito pequeno, porque não me
lembro de nada!
-- Sabe, Master Linton, trezentas milhas é uma grande
distância, e dez anos parecem muito menos tempo a um adulto do
que ao menino. É bem possível que Mr. Heathcliff fosse adiando
a sua visita de um Verão para o outro, sem nunca ter
encontrado o momento oportuno para a fazer; e agora é tarde
demais. Mas não o importune com demasiadas perguntas sobre
este assunto, pois iria aborrecê-lo escusadamente.
O garoto passou o resto do trajecto entregue às suas
cogitações, até que nos detivemos frente à cancela. Não pude
deixar de observar a sua reacção: mirava e remirava a casa, a
frontaria trabalhada e :, as janelas de vidrinhos, salientes,
as groselheiras descarnadas e os abetos alquebrados, e abanava
a cabeça, em total desaprovação da aparência exterior da casa.
Teve no entanto o bom senso de deixar as queixas para depois;
talvez o interior da casa contrabalançasse o exterior.
Antes de ele desmontar, fui abrir a porta. Eram seis e meia
e tinham acabado de tomar o pequeno-almoço: a criada andava a
levantar a mesa, Joseph, de pé por detrás da cadeira do
patrão, contava uma historieta qualquer acerca de um cavalo
manco, e Hareton preparava-se para ir segar
feno.
Bons olhos te vejam, Nelly! -- exclamou Mr. Heathcliff
assim que me viu. Estava a ver que tinha de ir eu mesmo buscar
o que me pertence. Trouxeste-o, não é verdade? Vamos lá ver
que tal é!
Levantou-se e dirigiu-se para a porta. Hareton e Joseph
seguiram-nos, cheios de curiosidade. O pobrezinho do Linton
olhava assustado para aqueles três carões.
-- Ai, patrão, qu.o outro enganou-o disse Joseph ao cabo de
aturado exame. Mandou-lhe mas foi a rapariga!
Heathcliff, depois de olhar prolongadamente para o filho
com manifesta perplexidade, soltou uma gargalhada escarninha.
Meu Deus! Mas que beleza! Que criatura adorável e
encantadora! -- exclamou. Deve ter sido alimentado a caracóis
e leite azedo, não achas, Nelly? Diabos me levem. É bem pior
do que eu esperava. E olha que não esperava grande coisa. O
diabo que o diga.
O garoto tremia, assustado e confuso. Disse-lhe que
desmontasse e entrasse. Não tinha entendido nada das palavras
do pai, nem que lhe eram dirigidas. Na verdade, não estava
ainda bem certo de que aquele desconhecido sarcástico e mal
encarado fosse o seu pai. Agarrou-se a mim cheio de medo, a
tremer cada vez mais, e, quando Mr. Heathcliff se sentou e lhe
disse «vem cá», o pequeno escondeu o rosto no meu pescoço e
desatou a chorar.
-- Pára com isso! ordenou Heathcliff, agarrando-o e
puxando-o bruscamente, prendendo-o entre as pernas, ao mesmo
tempo que lhe segurava no queixo para lhe manter a cabeça
levantada. -- Deixa-te de tolices! Ninguém te faz mal,
Linton. É assim que te chamas, não é? És mesmo igualzinhc à
tua mãe! Onde é que está a *minha* contribuição, não me dizes,
o franganote?
Tirou o boné ao garoto, puxou-lhe para trás os densos
caracóis :, loiros e, a seguir, apalpou-lhe os braços
magrinhos e os dedos esguios. Enquanto decorreu a inspecção,
Linton conteve as lágrimas e até ergueu os seus lindos olhos
azuis para, por sua vez, examinar o
examinador.
-- Sabes quem eu sou? -- perguntou Heathcliff, depois de se
certificar de que todos os membros inspeccionados eram
igualmente frágeis e delicados.
-- Não! -- respondeu Linton, olhando-o receoso.
-- Mas já ouviste falar de mim?
-- Também não! -- replicou.
-- Ah, não? Que vergonha a tua mãe nunca ter despertado em
ti o amor filial! Pois fica sabendo que és meu filho e que a
tua mãe procedeu como uma megera ao deixar-te na ignorância de
quem era o teu pai. Vá, pára lá de tremer, e não é preciso
corares! Pelo menos já não é mau de todo saber que o teu
sangue não é branco. Porta-te bem e nada te faltará! E tu,
Nelly, se estás cansada, podes sentar-te; caso contrário,
volta para casa. Deves estar com pressa de voltar para a
Granja e contar ao idiota do teu patrão o que aqui viste e
ouviste. Além disso, este rapaz aqui não sossega enquanto cá
estiveres.
-- Bem -- disse eu -- espero que trate o menino como deve
ser, Mr. Heathcliff, senão não ficará com ele por muito tempo;
e lembre-se de que ele é tudo o que o senhor tem no mundo.
-- Serei *muito bom* para ele, não te aflijas disse
Heathcliff a rir. Só que mais ninguém poderá ser bom para ele;
sou muito ciumento e tenciono monopolizar o seu afecto. E vou
começar agora mesmo: Joseph, traz o pequeno-almoço ao rapaz. E
tu, Hareton, meu asno endemoninhado, já para o teu trabalho!
-- Pois é, Nell -- acrescentou, depois de os outros terem
saído o meu filho é o futuro dono do sítio onde tu moras e eu
não quero que ele morra antes de me fazer seu herdeiro. Além
do mais. é *meu filho*, e quero ter o prazer de ver o meu
descendente dono das terras deles e os filhos deles a
trabalharem para o meu como assalariados nas terras dos
próprios pais. Essa é a única razão que me faz aturar o rapaz.
Por ele não sinto senão desprezo, e odeio-o pelas recordações
que acorda em mim! Mas essa razão é suficiente; comigo, ele
está tão seguro e tratá-lo-ei tão bem como o teu patrão trata
a filha. Tenho lá em cima um quarto mobilado a preceito para o
receber, contratei um professor a vinte milhas daqui, para
vir três vezes por semana ensinar-lhe o que ele quiser
aprender, e dei ordens ao Hareton para :,
lhe obedecer. Em suma, preparei tudo para que ele se torne num
cavalheiro, com uma educação superior a todos os que o
rodeiam. Lamento, no entanto, que ele seja tão pouco merecedor
do trabalho que me dá. Se alguma graça eu desejava neste
mundo, era ver nele um motivo de orgulho; mas estou mesmo
desiludido com este sonso
choramingas!
Enquanto Heathcliff falava, Joseph voltou com uma tigela de
papas de aveia e colocou-a diante de Linton. Este, porém,
empurrou a mistela para longe com ar enojado e disse que não
podia comer *aquilo*. Apercebi-me de que o velho servidor
partilhava com o patrão o mesmo desprezo trocista pelo garoto,
embora fosse obrigado a esconder os seus sentimentos, pois
Heathcliff deixara bem claro que os seus subordinados deviam
respeitar o filho.
-- Num pode comer? -- repetiu o criado a meia voz, não
fosse o patrão ouvi-lo, chegando-se mais para Linton e
fitando-o de perto. -- Pois olhe que Master Hareton nunca
comeu d.outra coisa cand.era cachopo, e s.era bom p.ra ele,
também há-de ser bom p.ra si. É o qu.eu acho!
-- Não como e não como! -- ripostou Linton de chofre.
--Tira-me isto da frente!
Joseph pegou na tigela todo agastado e veio mostrar-nos.
-- Oh, patrão, diga-me cá s.estas papas têm defeito?
--perguntou, metendo a bandeja debaixo do nariz de
Heathcliff.
-- Que defeito? -- disse ele.
-- Ora! -- retorquiu Joseph -- O niquento do seu menino diz
que num pode comê-las! Também não m admira, já a mãe assim
era: achava-nos a todos muito sujos p.ra semear o pão qu.ela
comia.
-- Não me fales na mãe dele! -- exclamou o patrão-irritado.
Arranja-lhe outra coisa para comer e não se fala mais nisso. O
que é que ele costuma comer, Nelly?
Sugeri leite fervido, ou chá, e a governanta recebeu ordens
nesse sentido. Afinal, pensei eu, o egoísmo do pai é bem capaz
de contribuir para o conforto do filho. Já se apercebeu da
sua constituição frágil e da necessidade de o tratar com
paciência. Para consolar Mr. Edgar, vou dar-lhe conta desta
mudança de humor de Heathcliff.
Sem pretexto para ficar por mais tempo, saí pela calada
enquanto Linton estava ocupado a repelir timidamente as
demonstrações de afecto de um simpático cão-ovelheiro, mas de
sentidos bem alerta para não se deixar enganar: mal fechei a
porta, ouvi-o dar um grito e repetir em desesperado frenesim:
:,
-- Não me abandones! Não quero aqui ficar! Não quero aqui
ficar!
Logo seguir, a aldraba fo1 levantada, mas caiu de novo:
eles não tinham deixado que Linton saísse cá para fora.
Montei na Minny e meti-a a trote pela estrada fora. E assim
chegou ao fim o meu breve papel de guardiã.

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