domingo, 3 de abril de 2011

A Divina Comédia | Inferno - Cantos XIII ao XVIII

Canto XIII
Antes que Nesso tivesse terminado de atravessar o vau do
rio de sangue, já estávamos nós em um bosque, não
verde, mas de folhagens foscas, sem frutos, sem ramos e
com os troncos cobertos de espinhos. Era ali que faziam seus
ninhos as vis Hárpias — seres de grandes asas e rostos humanos,
garras nos pés e ventres emplumados que lançam das alturas
lamentos misteriosos.
— Antes que entres — disse me o mestre —, saibas que estamos
no giro segundo deste sétimo círculo. Fica atento pois aqui
verás coisas incríveis que falsas soariam se eu te contasse.
Caminhávamos pelo bosque deserto e eu ouvia vozes de lamento,
sem avistar ninguém que pudesse ser a fonte de tais lamúrias.
Creio que Virgílio tenha pensado que eu estava achando que as
vozes emanavam de pessoas escondidas atrás das árvores, por isso
falou:
— Se arrancares um galhinho de uma dessas plantas, mudarás
o que agora imaginas.
Eu, seguindo seu conselho, levei a mão à primeira que encontrei,
e dela arranquei um pequeno ramo.
— Ai! Por que me quebrantas? — gritou o tronco, chorando.
E depois de se cobrir todo de sangue, disse ainda, triste — Por que
me atormentas? Não tens espírito de piedade? Homens um dia fomos
e hoje só restam paus. Devias ter mais cortesia mesmo que
fôssemos almas de serpentes.

Inferno 39

Notas 40
Personagens e símbolos do Canto XIII
13.1 Os violentos contra si próprios são aqueles que tiraram a sua própria vida (os
suicidas) e os pródigos (gastadores) que gastaram tanto (por vontade de gastar)
que terminaram na miséria (os viciados em jogo, por exemplo). O que diferencia
estes gastadores daqueles gastadores incontinentes do quarto círculo (Canto
VII) é que estes sabiam que iriam terminar pobres e miseráveis e mesmo assim,
decidiram continuar gastando até alcançar seu objetivo, que se caracteriza como
uma violência contra si próprios. Os primeiros, embora não se tenham se controlado,
não chegaram a se auto-destruir.
13.2 As Hárpias são seres da mitologia grega caracterizados por possuírem corpo,
asas e garras de ave de rapina com cabeça de mulher. Elas podiam voar à velocidade
do vento. Freqüentemente raptavam humanos e os levavam ao inferno.
13.3 Frederico II: veja nota 10.7.
13.4 Primeiro suicida – Pier della Vigna era ministro que ocupava um cargo de
alta confiança na corte do imperador Frederico II (10.7). Foi acusado de traição
ao aliar-se ao papa (Inocêncio IV) e tramar a morte de Frederico, sendo por essas
acusações, condenado à morte. Antes, porém, Pier cometeu suicídio. Ele
alega que foi vítima de uma armação e que sua acusação era injusta. Dante acredita
em Pier pois do contrário não o teria colocado entre os suicidas mas entre
os traidores, no nono círculo.


Inferno 40

Saía da ferida, uma mistura de sangue e palavras, cuspindo e
assobiando. Assustado, soltei o galho que eu segurava e permaneci
parado, como quem teme.
— Ó alma ferida — falou Virgílio, dirigindo-se à planta — fui
eu que o incitei a fazer o que agora me entristece. Se ele soubesse
que sofrerias, ele jamais teria erguido a mão contra ti. Mas dize a ele
quem foste, pois ele voltará ao mundo onde poderá resgatar a tua
fama.
— Tão amiga soa tua fala que devo responder. Fui ministro de
Frederico II e vítima de grande injustiça, calúnias e inverdades. Por
causa delas, tirei minha própria vida. Sempre fui atento ao meu senhor
e nunca o traí. Se algum de vós regressar ao mundo, por favor
restaure a minha memória que foi maculada pela inveja.
Virgílio esperou um pouco, depois me falou:
— Já calou-se o suficiente. Não percas tua vez. Pergunta, se há
mais alguma coisa que desejas saber.
— Por que tu não perguntas o que achares que a mim poderá
satisfazer? — perguntei — Eu não posso. Não conseguiria falar.
Ele então, voltou para o espírito:
— Ó espírito em desgraça, dize-nos como uma alma se funde
com estas plantas e se algum de vós, um dia, escapará desses galhos.
Ao ouvir, a árvore respirou fundo e depois seu sopro se transformou
em uma voz que respondeu:
— Quando alguma alma se separa do seu corpo por sua própria
vontade, Minós a manda para a sétima foz. De lá, cai nesta selva
escura, brota como uma semente e cresce, até tornar-se um espinhoso
arbusto. As Hárpias nutrem-se de nossos galhos e assim nos
trazem eterna e intensa dor. Como os outros, um dia retornaremos

Notas 41
13.5 Lano (Ercolano Maconi) era, de acordo com os comentários de Boccaccio,
um jovem muito rico de Siena que pertencia a um clube chamado Clube dos Gastadores.
Chegou a consumir tudo o que tinha e se tornou muito pobre. Alistouse,
depois, às tropas florentinas contra os aretinos. Durante a batalha de Toppo,
procurou fugir, dando de cara com o exército inimigo que o matou.
13.6 Cadelas famintas: “Alguns comentaristas interpretam esses cães como a pobreza
e o desespero, ainda perseguindo suas vítimas depois da morte. O Ottimo Comento
os interpreta como homens pobres que, abandonando suas famílias e lares
para servir a pessoas que arruinaram suas vidas, foram transformadas em cães
caçadores e agora passam a eternidade perseguindo seus mestres.” [Longfellow
67].
13.7 Giacomo de Santo Andrea era um paduano e tinha uma vida de gastança
como a de Lano. “O Ottimo Comento afirma que, desejando observar um grandioso
e belo fogo, mandou atear fogo em uma de suas fazendas.” [Longfellow
67]. Giácomo é o pecador que é perseguido e dilacerado pelas cadelas, arrancando,
na fuga, vários galhos do suicida que lamenta e chora de dor.
13.8 Segundo suicida: Este suicida não foi identificado por nenhum dos comentaristas
da obra de Dante. Ele reclama de Giácomo de Santo Andrea (13.7) por
este ter provocado mais sofrimento e dor ao arrancar seus galhos.
13.9 João Batista é padroeiro da cidade de Florença.

Inferno 41

para reaver nossos corpos, mas nunca mais poderemos vesti-los,
pois, injusto seria que tivéssemos algo que rejeitamos. Nós os arrastaremos
até aqui onde, nesta triste floresta, nossos corpos serão
para sempre pendurados nos galhos de suas almas vis.
Enquanto ouvíamos a árvore falar, um novo ruído desviou a
nossa atenção. Eram dois vultos nus, que corriam, sangrando. Arrancavam,
na fuga, todos os galhos dos arbustos por onde passavam.
— Me acode, me acode, Morte! — gritava o primeiro.
— Lano, com tuas pernas poderias ter tido mais sorte na batalha
de Toppo! — dizia o outro que, não podendo mais correr, caiu
sobre um arbusto e se ficou coberto de espinhos.
Atrás dos dois a selva estava repleta de cadelas pretas, ágeis e
famintas. Elas chegaram e afundaram suas presas no pobre coitado
que se escondia e o dilaceraram, arrancando seus pedaços e fugindo
com partes de seus membros arrancados.
Depois que as cadelas se foram, Virgílio me levou até um arbusto
que chorava, em vão, através das suas muitas fraturas que
sangravam.
— Ó Giácomo de Santo Andrea — chorava —, que culpa tenho
de tua vida perversa?
— Quem foste tu que agora, através das feridas, sopras com
sangue este sermão amargo? — perguntou o mestre.
— Ó almas que chegaram a tempo de ver esta injusta mutilação
que separou-me dos meus galhos, por favor, junte-os em volta
do meu tronco. Eu fui da cidade cujo patrono era o Batista e lá fiz
de minha casa, a minha forca.
Notas 42
Dante arranca um galho de árvore que chora de dor na floresta das
Hárpias (onde são punidos os suicidas). Ilustração de Gustave Doré (século
XIX).

Canto XIV
ntes de partir, a minha compaixão pela alma que tanto
amava a nossa Florença me levou a recolher os galhos
espalhados e devolvê-los àquele tronco, que agora permanecia
A ca lado.
Continuamos a jornada até chegarmos ao lugar onde se separa
o terceiro giro do segundo. O lugar era um estéril deserto de areia
grossa e quente, cercado pela selva dos suicidas, assim como o rio
de sangue cercava a floresta.
Eu vi vários grupos de almas nuas. Todas choravam desesperadamente.
Parecia que cada grupo sofria uma pena diferente. Algumas
almas permaneciam deitadas de costas no chão quente. Outras
reuniam-se acocoradas em pequenos grupos. A grande maioria
caminhava sem parar. Sobre todo o areão caíam brasas quentes, lentamente,
como flocos de neve num dia sem vento. As brasas batiam
na areia e produziam faíscas que aqueciam o chão arenoso, intensificando
a dor dos que ali sofriam. Sem descanso, as almas faziam
uma dança rítmica com mãos, tentando, em vão, afastar as chamas
que sobre elas caíam.
— Mestre — perguntei —, quem é aquele que ali está deitado
e age como se as brasas não o incomodassem?
E o vulto, percebendo que dele eu falava, respondeu gritando:
— O que um dia fui quando vivo, continuo a ser, agora, morto!
Júpiter pode perder as esperanças de vingança. Nem o raio com
o qual ele me atingiu no meu último dia, nem estas brasas que ele

Inferno 42

Notas 43
14 Personagens e símbolos do Canto XIV
14.1 Os violentos contra Deus, a Natureza e a Arte são torturados em um deserto.
O areão é o oposto da arte e da natureza do mundo criado por Deus. Estéril
e sem vida, é atravessado por rios de sangue e vive sob uma permanente chuva
de brasas. Os pecadores vivem num mundo sem cor, sem conforto e sem esperança.
É o mundo que desejaram ter quando, em vida, rejeitaram tudo o que
Deus, a Natureza e a Arte lhes ofereceu, preferindo dar maior valor às coisas
materiais.
14.2 O deserto incandescente é o contrapasso de quem rejeita a natureza, as suas leis
(leis de Deus) e a criação (a arte). A areia é quente e uma chuva de brasas assola
o lugar eternamente. Segundo [Sayers 49], a imagem do areão e a chuva de brasas
é um reflexo do destino de Sodoma e Gomorra (Gênese, 19:24).
14.3 Os blasfemos (contra Deus) são os que ofenderam a Deus com calúnias ultrajantes
e não tiveram a humildade de o respeitarem como Criador. Sofrem
deitados no areão. Não podendo se levantar, são “condecorados” com brasas
que se acumulam nos seus peitos em homenagem ao seu orgulho e vaidade.
14.4 Os sodomitas (contra a Natureza) são os que ofendem a Deus por agir contra
a ordem da Natureza criada por Ele, pecando por sodomia (pederastia, coito
anal). Tostados pelas brasas, correm sem nunca poder parar sobre o areão incandescente.
Segundo [Sayers 49], o seu estado de correr sem destino pelo areão
pode ser uma representação, em um nível mais baixo, da punição dos luxuriosos
do segundo círculo.
14.5 Os usurários (contra a Arte) são os que ofendem a Deus por rejeitar o poder
de criação, a arte, valorizando antes de tudo o status social, as aparências, os títulos
de nobreza e outros valores materiais como o dinheiro, em detrimento
dos valores eternos. Na interpretação de Dorothy Sayers: “A Arte (criação e o
trabalho do homem) e a Natureza (criação de Deus que inclui o homem) são as
únicas verdadeiras riquezas. A compra e venda do dinheiro como se fosse uma
mercadoria (agiotagem, usura) produz apenas uma riqueza espúria, e resulta em
danos à terra (Natureza) e à exploração do trabalho (Arte). Como a Arte deriva
da Natureza e a Natureza deriva de Deus, a usura é vista como uma ofensa a
Deus.” [Sayers 49]

Inferno 43

agora lança sobre mim farão com que eu lhe dê o prazer de se ver
vingado!
— Ó Capâneo, já que tua soberba não diminui, o teu sofrimento
só aumenta: nenhum martírio, mais que a tua própria ira, seria
melhor punição ao teu orgulho! — gritou Virgílio, e depois me
explicou — Ele foi rei. Um dos sete que assediaram Tebas. Pelo seu
ódio, é condecorado com essas “medalhas” incandescentes que enfeitam
seu peito. Agora me acompanha e tem cuidado para não pisar
na areia quente, seguindo sempre por este bosque ao lado.
Chegamos a um pequeno riacho, de águas tão vermelhas que
me deixaram impressionado. O leito e as margens do rio eram feitas
de pedra, e as bolhas liberavam um vapor que extinguiam as chamas
que caíam acima e nas proximidades do riacho. Imaginei, portanto,
que aquele deveria ser o nosso caminho.
— Entre todas as coisas que te mostrei, não viste nada ainda
tão notável quanto este riacho que extingue as chamas que caem
sobre ele. — falou o mestre, e eu pedi que ele falasse mais sobre a
origem do riacho.
— No meio do mar se encontra um país gasto, que se chama
Creta. — explicou Virgilio — Lá existe uma montanha chamada
Ida, que, antes fértil e cheia de vida, hoje permanece deserta como
coisa velha. No centro da montanha encontra-se um grande velho,
que tem suas costas voltadas para Damiata, e seu rosto virado para
Roma, que lhe serve de espelho. Sua cabeça é feita do mais puro
ouro. De pura prata são seus braços e o peito. É de cobre dali até
onde começam as pernas. O resto é todo de ferro exceto o seu pé
direito que é de argila, sobre o qual apoia a maior parte do seu peso.
Todas as suas partes, exceto a de ouro, estão podres, rachadas por

Notas 44
14.6 Capâneo foi um dos sete reis que assediaram Tebas. Simboliza os blasfemos,
que ignoram ou amaldiçoam a Deus. Orgulhoso, não temia a coisa alguma e nutria
grande despeito por quaisquer leis que não fossem as suas. Enquanto escalava
as paredes de Tebas, amaldiçoou Júpiter, que o matou com um raio.
14.7 O velho da ilha de Creta: A figura do velho de Creta é tirada da Bíblia (Daniel
2:32-35) e aparece em sonho do rei Nabucodonosor. A interpretação, porém, é
diferente. No primeiro livro de Metamorfoses, Ovídio utiliza o ouro, prata, bronze
e ferro para descrever as quatro eras do homem, e esta alegoria provavelmente
se aproxima mais daquela pretendida por Dante. Segundo a interpretação do
tradutor Mark Musa, a cabeça de ouro representa a idade dourada do homem
(antes da expulsão do paraíso). É a única parte da estátua que não está podre.
Os braços e peito de prata, o peito de bronze e as pernas de ferro representam
as três eras da decadência do homem. O pé de ferro pode simbolizar o Império
e o pé de argila, a Igreja, enfraquecida pelas disputas políticas.[Musa 95] A estátua
fica no meio do oceano e tem as costas viradas para o mundo antigo, pagão
(Damieta, um importante porto egípcio) e a frente virada para o mundo moderno,
cristão (Roma).
14.8 O rio Letes: localiza-se, de acordo com a mitologia clássica, no inferno (Hades).
Era onde os mortos se banhavam e esqueciam sua existência anterior. Na
Comédia de Dante, Letes é um rio do purgatório onde as almas penitentes se banham
e se purificam para que possam ter acesso ao Paraíso. Letes também é o
córrego que flui através da gruta que Virgílio e Dante atravessam para chegar
do inferno ao purgatório (Canto XXXIV).

Inferno 44

uma fissura por onde fluem lágrimas que descem até os seus pés,
onde elas se unem e cavam uma gruta. Pelas rochas penetram e aqui
deságuam, formando o Aqueronte, o Estige e o Flegetonte que, no
final, formam o Cócito que ainda veremos adiante.
— Se este riacho ao nosso lado tem sua origem no nosso
mundo, porque só agora o vimos? — perguntei.
— Tu sabes que este lugar é redondo — respondeu — e que
nós, virando sempre à esquerda e descendo, não demos ainda uma
volta completa; muito ainda veremos adiante, então, não fiques surpreso
ao encontrar algo que não vistes ainda.
— Onde, mestre, encontraremos o rio Flegetonte e o Letes,
que não foi por ti mencionado?
— O Flegetonte — respondeu —, é a fonte deste riacho que
agora vês saindo da floresta. É aquele mesmo rio de sangue fervente
que atravessamos com o centauro. O Letes tu ainda verás, mas
fora deste mundo. É lá que se banha a alma penitente que, arrependida,
da sua culpa se purifica.
Depois ele me chamou:
— Vem. Está na hora de sairmos deste bosque. Vem pela
margem de pedra deste riacho, pois sobre ela o vapor apaga as
chamas.

Notas 45
Os que praticaram violência contra Deus sofrem em um deserto incandescente
e são torturados por chuvas de brasas. Ilustração de Gustave
Doré (século XIX).

Canto XV
Nós caminhávamos por uma das margens de pedra. Uma
névoa pairava sobre o córrego mantendo o fogo longe
dos diques que o separam do areão. A selva já ficara
bem para trás (tão distante que, se eu olhasse para trás, tenho certeza
que não mais a veria) quando surgiu um grupo de almas beirando
o dique e nos fitando. Uma delas me reconheceu e se agarrou ao
meu manto, gritando:
— Que maravilha!
Eu, logo que senti que um espírito me segurava, olhei para as
suas feições queimadas e, apesar de sua face tostada, não pude deixar
de reconhecê-lo.
— Sois vós aqui, senhor Brunetto? — perguntei.
— Filho — respondeu ele —, se não te causar desgosto, deixa
que Brunetto Latino se afaste de seu grupo e te faça companhia na
breve caminhada.
— Se quiserdes, posso sentar aqui convosco — respondi —,
se aquele que está comigo não se incomodar.
— Não posso parar. — respondeu — Fui condenado a vagar
eternamente. Se um de nós se detiver, terá que permanecer por cem
anos, sem poder afastar o fogo que o atormenta. Segue, portanto, e
eu te acompanharei, e depois voltarei ao meu bando, que lamenta a
sua dor eterna.
Andei ao seu lado, mas não desci do dique. Ele me perguntou
o que eu fazia lá naquele vale infernal antes do tempo. Contei-lhe

Inferno 45

Notas 46
15 Personagens e símbolos do Canto XV
15.1 Brunetto Latini foi mestre muito querido e amigo íntimo de Dante. Era filósofo
e mestre da retórica. Comentou a retórica de Túlio e é autor de várias obras,
entre elas uma chamada de Tesouro, escrita em francês durante seu exílio
em Paris. Segundo o comentador Villani, era um homem mundano, porém,
empenhou-se em ensinar aos florentinos artes refinadas. Escrevendo principalmente
em italiano (em vez de latim, a língua culta), ensinou princípios básicos
de ética e política, sempre prezando pela qualidade da língua italiana, mostrando
as formas corretas de falar e escrever.
15.2 As previsões de Brunetto referem-se à acontecimentos posteriores à tomada
de Florença pelos facção dos Neri e o exílio de Dante. Fala que Dante será procurado
pelos guibelinos e pelos guelfos de Florença que desejam aliar-se a eles.
15.3 O outro texto que Dante menciona na sua conversa com Brunetto são as previsões
de Ciacco (6.8) e Farinata (10.5).
15.4 Prisciano foi gramático de Constantinopla (século VI).
15.5 Francesco d'Accorso foi um grande jurista e professor da universidade de Bolonha
no século XIII, conhecido por seus comentários sobre o código justiniano.

Inferno 46

toda a história, desde a floresta escura até a jornada que eu empreendia
com Virgílio. E então ele me fez várias previsões sobre o meu
futuro e o de Florença. Disse:
— Por tuas boas ações, a raça maligna te será inimiga. E têm
razão, pois entre as frutas podres não convém cultivar o figo. Pelas
honras que teu destino te reserva, vão disputar-te ambas as facções,
mas que do bode fique longe a erva.
— Minha mente não esquece — respondi — e meu coração
se parte, ao lembrar de vossa figura, amável e paterna, que enquanto
vivia no mundo, hora após hora, me ensináveis como um homem
se faz eterno. — e disse-lhe ainda — Não é nova esta vossa
profecia aos meus ouvidos. Eu anotarei e a levarei comigo, junto
com outro texto, para que uma mulher (Beatriz) o interprete, se eu
a encontrar.
Indaguei sobre o estado dos seus companheiros e se havia alguém
conhecido entre eles. Ele me respondeu:
— Eu terei que ser breve, pois meu tempo é curto. Em suma,
cada um deles foi prelado, letrado ou de grande fama e por um só
pecado teve o desprezo do mundo. Se o meu grupo aqui estivesse,
poderia te mostrar, por exemplo, Prisciano e Francesco d'Accorso.
Eu conversaria mais, porém, já vejo uma poeira no Areal. Outro
grupo se aproxima e com eles eu não posso me misturar. Lembre-se
do meu Tesouro, no qual eu ainda vivo. É a única coisa que te peço.
Falou, e saiu correndo pelo deserto como atleta que disputa
uma corrida.

Notas 47
16 Personagens e símbolos do Canto XVI
16.1 Guido Guerra foi um líder guelfo que participou de diversas batalhas. Como
Tegghiaio (veja abaixo), aconselhou os guelfos florentinos a não engajarem na
guerra contra Siena em 1260.
16.2 Tegghiaio Aldobrandi foi um distinto cidadão de Florença que assumiu posição
contrária ao conselho da cidade que havia decidido declarar guerra contra
Siena. A guerra resultou na sangrenta batalha de Montaperti (10.6) na qual os
florentinos foram derrotados. [Longfellow 67]
16.3 Jacopo Rusticucci: foi um nobre florentino muito rico cuja maior desgraça foi
ter se casado com uma mulher de caráter insuportável, que teria sido a causa do
seu desvio. [Longfellow 67] e [Mauro 98]

Canto XVI
Chegávamos onde já se ouvia o ruído da água que caía no
outro círculo, com um som semelhante ao zumbido que
se ouve ao aproximar-se de uma colmeia, quando chegaram
até nós três sombras, correndo, se separando de seu grupo que
nos passava.
— Pára, tu, de vestes conhecidas! — gritavam — Pára pois
pareces ser de nossa terra perversa (Florença).
Ó tristes almas sofredoras! Quantas vi com seus membros repletos
de feridas novas e antigas, queimaduras que ainda me doem
só de pensar. Os seus gritos chamaram a atenção do mestre, que
voltou-se para mim e disse:
— Espera! Com estas almas te rogo cortesia.
Paramos. Os três espíritos, que não podiam parar, logo formaram
uma roda e começaram a andar em um círculo. Enquanto circulavam,
cada um mantinha o rosto virado na minha direção, de
forma que enquanto o pescoço virava para um lado, os pés seguiam
para o outro.
— Se a miséria deste solo estéril — falou um deles — e nossas
queimaduras, bolhas e peles descascadas te causam repugnância,
deixa que a nossa fama te anime a dizer quem és tu, que vivo caminhas
por este Inferno. Este na minha frente, embora corra nu com
o corpo esfolado, foi figura de alto grau no mundo. Seu nome era
Guido Guerra e muito ele cumpriu com seus conselhos e com a

Inferno 47

Notas 48
16.4 Guglielmo Borsiere: pouco se sabe deste personagem. Segundo os antigos
comentaristas, era um fabricante de bolsas que deixou seu trabalho e passou a
dedicar-se a atividades sociais, arranjando casamentos, intermediando tratados
de paz e alianças entre famílias nobres, etc. Era uma pessoa prestativa e respeitada
pela sociedade florentina. [Sayers 49] Como Dante o coloca entre os sodomitas,
provavelmente também era conhecido por suas preferências sexuais.

Inferno 48

espada. Este outro, que está atrás de mim, é Tegghiaio Aldobrandi,
cuja voz o mundo faria bem em ouvir. E eu, sou Jacopo Rusticucci.
Eu fiquei tão comovido com o sofrimento daqueles espíritos
que, se não fosse a chuva de brasas e o fogo, eu teria ido ao encontro
deles, com a aprovação do mestre. Tive vontade de descer do
dique e abraçá-los mas não o fiz por receio de me queimar. Depois
falei:
— Não repugnância, mas tristeza sinto por vossa condição. É
verdade que eu sou da vossa terra. Lá, eu sempre ouvi falar muito
bem de vossas obras e de vosso caráter.
— Que longamente possa tua alma continuar a guiar teus
membros — disse o mesmo que antes havia falado — e ainda depois,
possa tua fama continuar a brilhar, mas dize, cortesia e valor
ainda vigoram em nossa terra? Pois Guglielmo Borsiere, que recentemente
juntou-se a nós, trouxe notícias que nos causaram imensa
tristeza.
— Os novos povos e seu rápido enriquecimento têm estimulado
o orgulho e descontrole em ti, Ó Florença! — gritei, e eles se
olharam, tomando isso como resposta.
— Se sempre respondes de forma tão clara — falaram todos
— feliz de ti quando precisares discursar. Logo, se conseguires sair
destas trevas e um dia voltar a rever as estrelas, não deixes de falar
de nós aos que ainda vivem!
Depois desfez-se a roda e sumiram os três. Virgílio, então, decidiu
que já era hora de partirmos também. Caminhamos e eu o segui
até que chegamos a um ponto onde o ruído das águas tornou-se
tão intenso que mal podíamos ouvir nossas próprias vozes.

Notas 49


Inferno 49

Eu mantinha uma corda enrolada na cintura, que, em uma outra
ocasião, pensei em usar para vencer o leopardo na floresta. O
mestre a pediu, e eu a desenrolei entregando-a nas suas mãos. Ele a
pegou e caminhou até a borda do precipício, de onde a jogou no
abismo profundo.
Diante de tal cena eu pensei: “Algo deverá acontecer, pois algum
evento o mestre busca com o olhar”. Lendo os meus pensamentos,
Virgílio me respondeu:
— O que tua mente espera logo surgirá à tua visão.
Mal ele havia terminado de falar, eu vi surgir da escuridão, nadando
naquele ar denso e escuro, uma grande e estupenda figura
que assombraria até os corações mais seguros. Ela já reduzia a sua
velocidade e preparava-se para pousar na beira do precipício, estirando
suas garras e recolhendo seus pés.


Notas 50
Mapa 2: CIDADE DE DITE E FOSSO (círculos VI e VII)
Círculo VI: Hereges. Em cada túmulo, membros de uma seita são cozinhados
eternamente (Canto IX).
Descida para o círculo VII: Caminho estreito onde Dante e Virgílio encontram o
Minotauro (Canto XII).
Círculo VII - 1º giro: Culpados de violência contra o próximo. Centauros garantem
a ordem neste círculo.
Rio Flegetonte: Rio de sangue fervente onde são torturados os violentos contra o
próximo, como os assassinos, tiranos e assaltantes (Canto XII).
Círculo VII - 2º giro: Culpados de violência contra si próprios.
Floresta das Hárpias: Onde as almas suicidas, presas dentro de árvores, são torturadas
pelas Hárpias (Canto XIII) e os que perderam todos os seus bens por
vontade própria são dilacerados por cadelas famintas.
Círculo VII - 3º giro: Culpados de violência contra Deus, Natureza e Arte.
Deserto ardente: Onde os pecadores do 3º giro são torturados por uma chuva eterna
de brasas que cai em um deserto estéril (Canto XIV).
Fosso: Malebolge (valas malditas): Círculo VIII (morada dos culpados de fraude
dolosa). A descida para o profundo fosso é realizada montando nas costas do
monstro Gerión (Canto XVII) que nada através do espesso ar do inferno.
Inferno 50
Mapa 2: Círculo da violência (sétimo círculo). Ilustração de Helder da Rocha.
Notas 51
17 Personagens e símbolos do Canto XVII
17.1 Gerión foi, na mitologia clássica, o rei da Espanha. Vivia na Eritréia onde foi
morto por Hércules. Se assemelhava a um ancião, mas, quando visto com atenção,
sua forma real e terrível se tornava evidente. Outros poetas normalmente o
retratam como uma criatura de três corpos e três cabeças que representavam as
ilhas de Majorca, Minorca e Ivica. [Longfellow 67] Dante o representa como
uma criatura de três naturezas: cabeça de homem, tronco e garras de fera, corpo
e cauda de serpente. O rosto de pessoa boa e honesta que esconde sua verdadeira
natureza terrível qualifica Gerión como a personificação da fraude, que é
punida nos círculos restantes.

Inferno 51

Canto XVII
— Eis a fera com sua cauda aguda, que atravessa os montes e rompe
os muros e armas! Eis aquela que em todo o mundo transpira e
fede! — começou a me falar o mestre, enquanto acenava para a fera
sinalizando que ela viesse à beira da pedra onde estávamos.
E ela subiu com a cabeça e o busto, mas sobre a beira não
descansou sua cauda. A sua face era a face de um homem justo, tão
benignos mostravam-se seus traços, e de serpente era o resto de seu
corpo. As suas garras e o seu tronco eram peludas. Tinha o dorso e
peito ornados com pinturas de argolas e laços. Toda a sua cauda no
vazio vibrava, torcendo sua forquilha venenosa, armada na ponta
como um escorpião.
— Vamos! — chamou o mestre — Vamos até a fera que acolá
se assenta!
Descemos pelo lado direito do dique e demos dez passos pela
sua beira inferior, evitando as areias quentes.
Quando estávamos ao lado de Gerión, eu percebi, um pouco
mais distante, algumas pessoas acocoradas na areia junto à beira do
precipício.
— Para que possas ter um conhecimento completo dos tormentos
deste círculo, vai tu falar com aquele grupo enquanto eu
convenço esta fera a nos transportar. — sugeriu Virgílio.
E eu fui, sozinho, margeando a aresta do precipício, até onde
estavam sentadas aquelas almas tristes.

Notas 52
17.2 Italianos usurários: Representam as famílias Gianfigliacci e Ubbriachi, de Florença
e Scrovigni, de Pádua, de acordo com os brasões que ostentam em suas
bolsas [Longfellow 67]. São usurários, apegados aos valores materiais (títulos de
nobreza) que valorizam mais que qualquer coisa. Diz Dante no Canto XI, linha
109 “mas o usurário, que outro rumo tem / a própria natureza e a sua sequaz
despreza / porque alhures põe seu bem.” Tradução de Italo Eugenio Mauro
[Mauro 98].

Inferno 52

Dos seus olhos escapava-lhes a dor. Com as mãos, defendiamse
como podiam do solo em brasa e do ardente calor. Examinei
aqueles rostos, mas nenhum reconheci. Notei que todas tinham
uma bolsa pendurada no pescoço, cada uma de uma cor, com um
brasão nelas gravado. Uma tinha algo azul com rosto de leão impresso
numa bolsa amarela. Outra ostentava uma bolsa vermelha
com uma pata branca desenhada. Aquela alma que tinha uma porca
azul pintada sobre uma bolsa branca me perguntou:
— O que fazes nesta fossa? Vai embora! E como estás vivo,
saibas que o meu vizinho Vitaliano sentará aqui à minha esquerda.
Que venha o cavaleiro soberano, que três bodes terá na sua bolsa!
Falou e depois fez caretas terríveis, puxando a língua por cima
do nariz. Eu, assustado, voltei para o lugar onde o mestre já me
aguardava. Quando cheguei, Virgílio já estava montado sobre a garupa
da fera
— Ora, tenha coragem! — disse, tranqüilo — Monta aqui na
minha frente, pois atrás ficarei eu para evitar que sua cauda possa
fazer-lhe mal.
Subi então naquele bicho horrendo, tomado de medo e horror.
O mestre me segurou firme e então gritou:
— Gerión, move-te afora e desce devagar. Pensa na carga que
carregas!
E assim, o monstro deu ré e virou-se na direção do abismo.
Onde estava o peito agora estava sua cauda, que esticou como uma
enguia, e com suas garras puxou o ar escuro, mergulhando na escuridão.
Eu estava aterrorizado. Nunca sentira medo igual. Olhei para
baixo e nada vi. Só havia escuridão.

Notas 53
18
Dante e Virgílio na garupa de Gerión, descem para o oitavo
círculo. Ilustração de Gustave Doré (século XIX).

Inferno 53

Gérion se movia lento, nadando, descendo em espiral. E esse movimento eu só pude perceber
por causa da brisa que soprava no meu rosto.
Pouco depois comecei a ouvir os lamentos que já dominavam
o ar. Debrucei-me para olhar para baixo e vi o fogo. Assustado,
logo me aprumei e segurei firme. Depois de cem voltas Gerión finalmente
pousou, nos deixando no fundo, ao pé do grande penhasco.
Assim que descemos de sua garupa ele sumiu, esvaindo-se na
escuridão.

Notas 54
Personagens e símbolos do Canto XVIII
18.1 Malebolge (bolsas ou valas malditas): O oitavo círculo do inferno é dividido
em 10 vales (bolsas) circulares. Dentro de cada vala é punida uma modalidade
de fraude. É possível atravessar as valas através das pontes de pedra que interligam
os rochedos que as isolam. As beiras de cada vala são mais baixas no interior
do círculo que no seu exterior, pois cada vala está num plano mais baixo
que o outro. Depois da décima vala, há mais um rochedo e em seguida há um
grande fosso que leva ao nono e último círculo.
18.2 Sedutores e rufiões são aqueles que exploraram deliberadamente as paixões
dos outros, os controlando e usando-os para servir a interesses próprios. Na
primeira vala do Malebolge, são eles que são levados, na base do chicote, à
cumprir o desejo dos diabos. [Sayers 49]
18.3 Venedico Caccianemico era chefe dos guelfos de Bolonha e foi várias vezes
governador de Pistóia, Modena, Ímola e Milão. Ele era acusado, entre outras
coisas, de ter assassinado o seu próprio primo. Ele se encontra nesta vala porque
ele entregou a sua própria irmã ao marquês de Este (ou Obizzo ou seu filho)
em troca de favores. [Musa 95]

Canto XVIII
Existe um lugar no Inferno chamado Malebolge, e é feito
de pedra de cor ferrenha, como as paredes da encosta
que o rodeia. No centro desse campo maligno há um
poço muito largo e profundo, que descreverei quando lá chegarmos.
A faixa que resta, entre o poço e a encosta, é redonda e se divide
em dez valas, concêntricas, cada uma mais baixa que a anterior.
Aqui há pontes que, desde o penhasco, atravessam os fossos de
uma beira à outra, até a ultima que beira o poço central.
Era nesse lugar que nós estávamos, quando do dorso de Gerión
fomos despejados. De lá seguiu o poeta à esquerda e eu o
acompanhei. À direita já pude ver as almas sofredoras e as novas
penas, o novo tormento e os novos torturadores, de que a primeira
vala era repleta.
Duas fileiras de almas nuas andavam em fila no fundo. As do
nosso lado seguiam com seus rostos virados para nós. As outras,
seguiam no sentido oposto. Nos dois grupos, diabos chifrudos surravam
as almas com prazer, usando duros chicotes para que não parassem.
Elas gritavam de dor, tropeçavam, mas não ousavam reduzir
o seu passo.
Enquanto eu andava, reconheci um dos açoitados que sofria.
Eu olhei e ele baixou o rosto, tentando se esconder até que eu o segui
e perguntei:
— Se eu não estou enganado, tu és Venedico Caccianemico.
O que foi que te trouxe para este molho ardido?

Inferno 54

Notas 55
18.4 Jasão era príncipe da Grécia, na mitologia grega (Argonautica de Apolônio de
Rodes). Quando seu tio tomou o trono de seu pai, Jasão era criança e foi enviado
para longe. Atingindo a idade adulta, Jasão voltou para reivindicar o seu direito
ao trono. Seu tio consentiu em entregar-lhe o reino da Grécia desde que
Jasão encontrasse e trouxesse até ele o Velocino (lã) de Ouro, que era direito de
sua família. Jasão aceitou o desafio. Reuniu uma tripulação de heróis valentes
que lhe acompanharam, no navio Argo, por viagens fantásticas nos mares desconhecidos.
Finalmente, chegou ao país onde reinava o rei Aetes que mantinha
o velocino. O rei concordou em entregar-lhe o velocino desde que ele realizasse
proezas ainda mais difíceis, senão impossíveis. Jasão conseguiu realizá-las com a
ajuda de Medéia, a filha do rei que se apaixonara por ele. Ela fez encantos que
tornaram Jasão invencível nas suas batalhas e o ajudou a roubar o velocino ao
enfeitiçar o dragão que o guardava. Em retribuição, Jasão prometeu casar-se
com ela logo que chegassem com segurança à Grécia. Quando chegaram, Jasão
descobriu que seu tio havia provocado a morte de seus pais. Com nova ajuda de
Medéia, Jasão pôde vingar a morte deles. Os dois foram depois a Corinto, onde
tiveram dois filhos. Em vez de se sentir grato a Medéia por tudo o que ela fez
por ela, Jasão abandonou-a e casou-se com a filha do rei de Corinto. Sofre na
primeira vala do Malebolge, segundo Virgílio, por ter seduzido e abandonado
Ísfile, filha do rei de Lemnos. Medéia, porém, também é vingada.
18.5 Aduladores e lisonjeadores são os que exploram os outros ao tirar proveito
de seus medos e desejos. Sua arma é o uso fraudulento da linguagem, através de
raciocínios falsos, que destrói a comunicação entre as mentes. No Malebolge eles
estão imersos na merda que deixaram no mundo. “Dante não viveu para ver
o desenvolvimento completo da propaganda política, da propaganda comercial
e do jornalismo sensacionalista, mas deixou um lugar preparado para eles.” [Sayers
49]
18.6 Alessio Interminei de Luca era membro dos guelfos brancos de Lucca.
18.7 Taís personagem literária da peça O Eunuco do poeta romano Terêncio.

Inferno 55

— Eu não queria responder — disse o espírito —, mas tua
voz me faz recordar o mundo antigo. Eu fui aquele que, por dinheiro,
entreguei minha própria irmã Ghisolabella ao marquês d'Este.
— depois observou — Mas eu não sou o único bolonhês neste fosso!
Esta vala está repleta de rufiões!
Naquele instante, um diabo chegou e lhe surrou com o chicote,
dizendo:
— Anda rufião, que aqui não tem fêmeas para explorar!
Eu voltei a seguir meu mestre até uma ponte de pedra sob a
qual havia um vão por onde passavam os açoitados. Lá o mestre me
mostrou outros condenados que caminhavam pelo vale em sentido
contrário aos rufiões (que antes não víamos o rosto). Eram os sedutores.
Eles, assim como os rufiões, eram movidos por chicotadas.
Sem que eu pedisse, o mestre me mostrou várias personalidades:
— Vê aquele que vem, imponente, que não solta uma lágrima
sequer de dor. É Jasão, condenado por ter seduzido a jovem Ísfile
de Lemnos e depois tê-la abandonado. Ele a seduziu e depois a
deixou, sozinha, com criança para criar. Tal pecado é punido com
esta pena, e assim, também, Medéia tem aqui a sua vingança.
Tendo atravessado a ponte que unia a primeira beira à segunda,
seguimos até a ponte seguinte. Antes de subir, já ouvíamos as
respirações ofegantes das almas que sofriam na segunda vala, respirando
um vapor nojoso que emanava de um rio de podres fezes
ácidas. Tão funda era esta vala que só foi possível ver seu fundo
quando chegamos à parte mais elevada e central da ponte. Lá vimos
gente imersa no esgoto asqueroso.

Notas 56
19
Sedutores e rufiões (em sentidos opostos) sendo açoitados
por diabos na primeira vala. No primeiro plano se vê os
aduladores imersos no esterco (segunda vala). Ilustração de
Sandro Botticelli (século XV).


Inferno 56

Não era fácil reconhecer os condenados, todos cobertos de
merda. Fiquei a olhar lá para o fundo, vendo se reconhecia alguém,
quando uma das almas gritou:
— Por que olhas mais para mim que para as outras almas sujas
desta vala?
— Porque — respondi —, se a memória não me engana, já te
vi antes com teus cabelos enxutos. Tu és Alessio Interminei de Luca.
É por isto que te olho mais que os outros.
— Estou aqui por que fui um adulador — disse ele —, e enganei
pessoas com minha língua perversa.
Depois que Alessio terminou de falar, meu guia me chamou a
atenção:
— Vês aquela rameira suja que se coça de modo asqueroso?
Ela é a prostituta Taís. Mas agora vamos, pois já vimos o suficiente.

Notas 57
Personagens e símbolos do Canto XIX
19.1 Simoníacos são os traficantes de coisas divinas. O nome origina-se de Simão,
o mago, mencionado no livro de Atos, capítulo 8: “Simão, vendo que pela imposição
das mãos dos apóstolos era dado o Espírito Santo, ofereceu-lhes dinheiro,
dizendo: Dai-me também esse poder, para que aquele sobre quem eu
puser as mãos receba o Espírito Santo” (vs. 18, 19 - trad. João Ferreira de Almeida).
Simão tentou comprar dos apóstolos o poder do Espírito Santo e por
isso seu nome está associado com o tráfego de coisas divinas. “A pena de se enterrar
vivo com a cabeça enterrada e os pés para o ar era a punição desumana
aplicada aos assassinos de aluguel, de acordo com a justiça e leis municipais de
Florença, segundo o Ottimo Comento.” [Longfellow 67] Os buracos se assemelham
a fontes de batismo. Os simoníacos, que perverteram a igreja, são ‘batizados’
ao contrário, com óleo o fogo, aplicado aos pés. Vários condenados ocupam
o mesmo buraco onde são empilhados, de cabeça para baixo, ficando apenas
o mais recente com as pernas de fora.
19.2 O papa Bonifácio VIII tornou-se papa em 1294 ao persuadir o seu antecessor
Celestino V a renunciar. Além dos desentendimentos com os italianos, o papa
Bonifácio ficou conhecido principalmente devido aos seus constantes confrontos
com o rei Filipe IV (o belo) da França. Várias vezes o papa se desentendeu
com os priores de Florença, entre os quais, Dante, tendo por fim conseguido
provocar a sua expulsão da cidade.
19.3 O filho da Ursa é o papa Nicolau III, da família Orsini. foi um papa (eleito
em 1277) em cujo mandato a simonia era praticada abertamente. Ele se valeu
do cargo para enriquecer e distribuir favores a toda a sua família. [Mauro 98]
19.4 O protegido da França é o papa Clemente V que era francês e foi eleito em
1305 sob a influência do rei Felipe IV (o belo) da França. Ele transferiu a sede
do papado para Avignon onde ela permaneceu por 71 anos.

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