segunda-feira, 4 de abril de 2011

A Divina Comédia | Inferno - Cantos XIX ao XXIV

Canto XIX
Simão mago, e todos aqueles que te seguiram, profanando
e vendendo as coisas de Deus pelo preço de ouro e prata!
Em vossa homenagem devo soar a trombeta, pois é aqui,
nesta terceira vala, onde estais! Ó
Já estávamos no meio da ponte sobre a terceira vala. De lá eu vi
nas encostas e nos fundos da pedra gelada, redondos furos escavados
de igual tamanho. Da boca dos furos pendiam os pés de um penitente,
cujo corpo estava enterrado nos buracos com a cabeça para baixo.
Nas plantas dos pés ardiam chamas, que escorriam por seus calcanhares.
Os sofredores, desesperados, agitavam seus pés freneticamente,
na vã esperança de livrarem-se das dores causadas pelas chamas.
— Mestre — perguntei —, quem é aquele que se debate mais
que os outros, e que é torturado por uma chama mais vermelha?
— Se quiseres— respondeu — eu te levarei até ele, e lá poderás
perguntar quem ele é e de onde veio.
Concordei e ele me ajudou na descida difícil, me segurando
enquanto passávamos pelas beiras esburacadas. Só quando eu estava
diante do pecador foi que ele me soltou.
— Ó tu, alma desgraçada que estás plantada, fala se puderes!
— fui dizendo, enquanto me abaixava diante dele como um frade
durante uma confissão.
— Já estás aí plantado? Já estás aí plantado, Bonifácio? Por
muitos anos enganou-me o escrito! — falou a alma pensando que
eu fosse outro. Fiquei imóvel sem saber como responder.

Inferno 57

Notas 58
20
Dante conversa com o papa Nicolau III que o confunde
com o papa Bonifácio VIII, aguardado para substituí-lo. Ilustração
de Gustave Doré (século XIX).


Inferno 58

— Rápido, dize a ele que não és ele, que não és aquele que ele
pensa que és — ordenou Virgílio, e eu respondi ao espírito da
mesma forma como ele me pediu.
— Bem, então o que querem de mim? — perguntou, suspirando
e torcendo os pés — Se querem saber quem eu sou, saibam
que um dia fui papa, mas na verdade eu era filho da Ursa. Por tanto
procurar embolsar ouro naquele mundo, aqui eu mesmo fui embolsado.
Neste buraco, abaixo da minha cabeça, estão empilhados todos
aqueles que me precederam, pecando por tráfico de coisas divinas,
espremidos nas fissuras da pedra. Eu aguardo a chegada daquele
que eu pensava que tu eras, que ocupará o lugar que hoje ocupo,
me empurrando mais para baixo neste buraco. Os pés dele arderão
em chamas até que ele seja também substituído por um pastor sem
lei, que virá do ocidente, e que pelo rei da França será protegido.
Ele cobrirá a Bonifácio e a mim.
Não resisti em respondê-lo com suas próprias palavras:
— Bem, dize-me quanto foi que Pedro teve que pagar ao nosso
Senhor antes que Ele desse-lhe as chaves de sua Igreja? Estejas
certo que ele pediu nada mais que “Me acompanha.” Então fica tu
aí pois essa tua punição é merecida. Tua avareza traz tristeza ao
mundo, esmagando os justos, premiando os depravados. Criastes
para vós, pastores pervertidos, um deus de ouro e prata! Pouca diferença
há entre vós e os idólatras, exceto que eles só adoram a um, e
vós adorais centenas!
E enquanto eu falava essas palavras, aqueles pés escoiceavam
mais ainda, talvez por ira ou mordidas de consciência. O mestre então
me levou de volta à ribanceira e seguimos para a quarta vala.
Notas 59
Personagens e símbolos do Canto XX
20.1 Os adivinhos têm a cabeça torcida de forma que não conseguem olhar para a
frente. É o contrapasso por alegar saber o futuro que só a Deus pertence.
20.2 Tirésias foi um famoso vidente de Tebas. Era cego. De acordo com a mitologia
grega (Ovídio, Metamorfoses), Tirésias separou duas serpentes que estavam
unidas e assim se transformou em mulher. Sete anos mais tarde, encontrou as
mesmas duas serpentes, atingiu-as novamente e voltou a ser homem. Um certo
dia, Júpiter e Juno perguntaram a Tirésias, que teve a oportunidade de pertencer
aos dois sexos, qual foi o que ele gostou mais. Quando ele respondeu “mulher”,
Juno o deixou cego. Júpiter, para compensar o dano, o deu-lhe o dom de profetizar
o futuro. Sua profecia mais famosa foi proferida na peça Édipo Rei de Sófocles,
onde previu que o príncipe Édipo mataria o pai e se casaria com sua
própria mãe.
20.3 Anfiarau era vidente e um dos sete reis que liderou a expedição contra Tebas,
junto com Capâneo. Ele previu a sua própria morte durante a batalha e, para
fugir do destino, se escondeu para que não precisasse lutar. Sua esposa, porém,
revelou o seu esconderijo aos outros e ele teve que ir a luta. A sua morte chegou
quando a terra se abriu e o engoliu. [Musa 95]
20.4 Manto era filha de Tirésias. Fugiu de Tebas após a morte de seu pai e se estabeleceu
na Itália fundando uma cidade que posteriormente recebeu o nome de
Mântua, terra natal de Virgílio (Eneida X, 198-200).
20.5 Aronta (Aruns) previu a guerra civil romana e seu desfecho (Lucano, Pharsalia).
[Musa 95]
20.6 Mântua: no poema original, depois de apontar a vidente Manto, Virgílio faz
uma longa descrição da história da cidade onde nasceu (versos 57 a 99), narrando
detalhes da geografia da planície banhada pelo rio Pó (a descrição foi omitida
desta versão condensada). A fundação de Mântua é mencionada na Eneida
X: 198-200 [Sayers 49]


Canto XX
Da nossa posição sobre o quarto valado pude ver procissões
caladas caminhando e ouvir o seu pranto. Mas
quando olhei com mais atenção eu vi, com espanto,
que todas as pessoas tinham a cabeça torcida. Só podiam andar para
trás, pois olhar para frente não lhes era permitido. Vendo tal imagem
torta e as lágrimas que vertiam descendo pelas nádegas, não
pude conter-me e chorei também.
— Ainda estás com esses tolos enganadores? — perguntoume
o guia, repreendendo-me — Aqui, neste lugar, a piedade vive
quando a piedade é morta. Quem pode ser mais cruel que o homem
que tenta controlar a vontade divina? Levanta o rosto e veja
Anfiarau que tentou fugir da guerra, mas foi engolido pela terra até
chegar a Minós, que no fim, a todos aferra. Sabes por que ele e os
outros têm a cabeça virada para trás? É porque em vida quiseram
demais ver adiante. Foram todos adivinhos e astrólogos que agora
só podem olhar para o passado. Olha lá Tirésias que foi homem e
também mulher, vê Aronta e também Manto, que deu o nome à
cidade de Mântua, onde nasci.
Depois de mostrar a vidente Manto, Virgílio me contou
como ela percorreu o mundo por muitos anos até encontrar uma
planície desabitada no norte da Itália e lá se estabelecer para praticar
magia com seus servos. Lá ela morreu e lá deixou seus ossos,
sobre os quais foi construída uma cidade, que ganhou o nome de
Mântua.

Inferno 59

Notas 60
20.7 Eurípiles foi um soldado enviado a Delfos para consultar as previsões de Apolo
sobre o melhor momento para a partida das naus gregas em direção a Tróia
(Eneida II, 114-119).
20.8 Michael Scott foi um filósofo escocês ligado à corte de Frederico II em Palermo.
Era conhecido como mágico e astrólogo (Boccaccio, Decamerão VIII, 9).
[Musa 95]. Ele havia previsto que sua morte viria com a queda de uma pequena
pedra na sua cabeça. Para se prevenir, Michael sempre usava um capacete de
aço sobre seu capuz. Ao entrar, um dia, numa igreja durante a festa de Corpus
Domini, ele tirou o capuz em sinal de respeito (não a Cristo, no qual ele não
acreditava, mas com a intenção de ganhar popularidade entre as pessoas simples)
e uma pedra caiu do teto da igreja atingindo sua cabeça desprotegida e o
matou. [Longfellow 67].
20.9 Guido Bonatti era astrólogo de Frederico II.
20.10 Asdente ex-sapateiro, era um conhecido astrólogo e vidente de Parma.
20.11 Cronologia: o dia já amanhece (7 horas da manhã) no sábado de aleluia, segundo
a descrição de Virgílio.


Inferno 60

— Mestre — respondi — tua explicação eu sinto tão certa,
que outra seria como carvão extinto. Mas dize-me, dessa gente que
passa, se há alguma outra digna de nota.
— Sim, aquele ali cuja barba se espalha do queixo sobre suas
costas é Eurípiles — mostrou Virgílio — e aquele outro, magro, é
Michael Scott, que sabia tudo sobre magia. Veja Guido Bonatti e
veja Asdente, que hoje deseja ter sido mais dedicado na arte de fazer
sapatos. Mas agora vamos, pois a Lua cheia já se põe e o dia já
amanhece.
E enquanto ele falava, nós andávamos.
Notas 61
21 Personagens e símbolos do Canto XXI
21.1 Corruptos (barateiros): São os acusados de barataria (ação de dar tendo em vista
um benefício pessoal), como os juizes que recebem propinas para alterar seu
julgamento ou políticos que só defendem os interesses de seus representantes
em troca de favores. “Os corruptos são para a cidade o que os simoníacos são
para a igreja. Eles tiram proveito da confiança que a sociedade deposita neles; e
o que vendem é justiça. Assim como os simoníacos eram enterrados na pedra
fervente, estes são submersos na pez fervente, pois suas negociatas eram secretas.”
[Sayers 49]
21.2 Santa Zita: Padroeira da cidade de Luca. Lá, os magistrados eram chamados de
anciãos (em Florença, por exemplo, eram chamados de priores).
21.3 Bonturo Dati era conhecido como o mais corrupto dos anciãos de Santa Zita.
Quando o demônio diz que todos são trapaceiros com exceção de Bonturo, ele
está falando com ironia, pois Bonturo distribuía empregos e cargos a quem o
apoiava, assim como excluía quem não lhe agradasse. [Longfellow 67]
21.4 Malebranche é o nome da legião de demônios que guarda a vala dos corruptos.
Malebranche significa literalmente “malvadas garras”.


Canto XXI
De cima de outra ponte paramos para ver a próxima fissura
de Malebolge, que era incrivelmente escura. Lá
embaixo um grosso breu fervia. Eu olhava mas nada
via a não ser as bolhas de piche que a fervura levantava. Enquanto
meus olhos procuravam alguma coisa naquela escuridão, meu guia
gritou:
— Cuidado, cuidado! — e logo me arrancou do lugar de onde
eu estava.
Voltei-me e vi logo atrás um diabo preto que corria em nossa
direção. Ai, mas como ele tinha um aspecto feroz! Com suas asas
abertas ele corria ligeiro com os pés. Levava um pecador no seu
ombro pontiagudo, que pelos tendões dos pés tinha seguro. Parou
diante da pez fervente, e gritou:
— Ó Malebranche, aqui está mais um daqueles anciões devotos
de Santa Zita. Cuida dele pois eu vou buscar outros. Quase todos
naquela terra são corruptos, exceto, é claro, Bonturo! Lá, com
dinheiro, qualquer não vira um sim.
Depois que falou, soltou o pecador das alturas, que submergiu
no líquido espesso. O diabo voltou correndo pelos recifes e sumiu
na escuridão. O pecador ainda tentou ressurgir na superfície, mas
vários demônios que estavam sob a ponte saíram e o perfuraram
com mais de cem garfos, levando-o a outra vez submergir.
— É melhor que te escondas. — sussurrou o mestre, preocupado
com a presença de tantos demônios — Não é bom que sai-

Inferno 61

Notas 62

Inferno 62

bam da tua presença. Fica aí atrás daquela pedra e não saias tu de lá
até que eu te chame!
Fui e obedeci. Seu temor tinha sentido. Quando o mestre chegou
ao outro lado da vala, eles surgiram. Saíram todos de baixo da
ponte e quando viram o meu guia, apontaram arpões na direção
dele.
— Nenhum de vós seja inimigo! — gritou Virgílio — e antes
que me ataquem, que venha um de vós e me ouça!
— Vai Malacoda! — gritaram todos.
E então, um dos diabos se separou do grupo e se aproximou,
rosnando:
— De que lhe adianta falar comigo?
— Crês tu Malacoda — falou o mestre —, que eu teria chegado
até aqui se não fosse por vontade divina? Me deixa seguir pois
no céu a vontade é que eu guie alguém por este caminho.
Com isto o orgulho dele caiu, assim como o seu arpão que parou
a seus pés, e gritou para os outros:
— Não toquem nele!
O mestre então gritou, ordenando que eu saísse do meu esconderijo.
Eu obedeci e corri na direção dele. Vendo todos aqueles
diabos voando na minha direção, temi por um instante que o pacto
não fosse cumprido.
— Vou tocá-lo! — gritou um — Aonde? — perguntou outro.
Mas Malacoda voltou-se rapidamente para eles e os afastou, gritando:
— Fica quieto Scarmiglione! — e depois virou-se para nós, dizendo
— Esta ponte sobre a sexta vala está em ruínas. Se vocês
quiserem prosseguir, devem continuar por esta beira e mais adiante
irão encontrar outra ponte. De ontem, cinco horas mais que agora,

Notas 63
21.5 Cronologia: há 1266 anos (1300 – 1266) Cristo era crucificado e descia ao inferno.
Na ocasião houve um grande terremoto que derrubou a ponte sobre a
sexta vala e causou o deslizamento de terra entre o sexto e sétimo círculos (Canto
XII). A descida ao inferno teria ocorrido na nona hora (depois do nascer do
sol), o que corresponde às três horas da tarde, portanto, são aproximadamente
dez horas da manhã de sábado.
21.6 Os demônios: Significado literal dos nomes:
Malacoda – malvada cauda
Calcabrina – pisa neve
Alichino – asa baixa
Cagnazzo – focinho de cão
Barbariccia – barba crespa
Libicocco – libiano
Draghignazzo – dragão feio
Graffiacane – esfola-cães
Ciriatto – porcalhão
Farfarello – duende
Rubicante – vermelhaço
Fonte: [Pinheiro 60]


Inferno 63

já são 1266 anos desde que esta via foi destruída. Para lá mandarei
alguns dos meus guardas que irão fiscalizar os pecadores no fosso.
Podem ir com eles. Eles se comportarão.
E então Malacoda designou 10 diabos para nos escoltar, chamando-
os um a um pelo nome: Calcabrina, Alichino, Cagnazzo, Libicocco,
Draghignazzo, Graffiacane, Ciriatto, Farfarello, Rubicante
e Barbariccia, o chefe da expedição.
— Meu mestre, o que é que eu vejo? — falei, assustado —
dispensa a escolta e vamos embora sozinhos, pois eu não quero seguir
na companhia deles. Se prestas atenção, como é o teu costume,
vê como eles mostram os dentes e piscam uns para os outros.
— Não há o que temer — respondeu o mestre — deixa que
eles mostrem seus dentes à vontade. Eles o fazem para as almas que
fervem e não para nós.
Antes de seguirmos pela beira à esquerda, os demônios saudaram
Malacoda soprando, com a língua firme entre os dentes, fazendo
um som obsceno. Esperavam um sinal para partir. O demônio então,
os respondeu de volta com o ânus em som de trombeta.

Notas 64

Canto XXII
Seguimos com os dez demônios. Durante a nossa jornada eu
pude ter uma noção melhor de todo o vale e do breu fervente.
Observei que, como os golfinhos que mostram suas
costas acima da água, eventualmente um pecador mostrava as suas
para aliviar por um instante seu sofrimento, e logo tornava a mergulhar.
Outros ficavam à beira da fossa, mas submergiam assim que
Barbariccia aparecia.
Vi então um pecador que, vacilante, demorou para retornar à
calda fervente. Antes que o coitado pudesse submergir, Graffiacane
o capturou agarrando-o pelos cabelos. Os diabos gritavam:
— Ó Rubicante! Enfia tuas garras nas costas dele! Esfola!
Rasga a pele!!
Enquanto os demônios gritavam, eu voltei-me para o mestre e
perguntei:
— Mestre, se puderes, descubra quem é este desgraçado que
caiu nas mãos de seus adversários.
Meu guia se deslocou até o pecador, perguntou de onde viera,
e ele respondeu:
— Eu nasci e fui criado no reino de Navarra. Depois fui servo
do bom rei Tebaldo e lá aprendi a arte da barataria. Agora pago a
conta neste caldo quente.
Ciriatto, que tinha duas presas no rosto que nem javali, fez-lhe
sentir como uma só poderia rasgá-lo. Mas Barbariccia interveio,
agarrando-o.

Inferno 64

Notas 65
22 Personagens e símbolos do Canto XXII
22.1 Frei Gomita era um frade da Sardenha, chanceler de Nino Visconti, governador
de Pisa. Se aproveitando de seu status social e da boa fé de Nino, que ignorava
as acusações contra ele, frei Gomita se envolveu com a venda de cargos
públicos. Quando Nino descobriu, porém, que o frade havia aceitado propina
em troca da libertação de prisioneiros, ele mandou enforcá-lo. [Musa 95]
22.2 Dom Michel Zanche: Acredita-se que tenha sido governador de um dos distritos
da Sardenha. Após a morte do rei da Sardenha, Dom Michel utilizou recursos
fraudulentos para conquistar a viúva do rei. [Longfellow 67]

Inferno 65

— Aproveita enquanto eu o seguro! — disse Barbariccia a
Virgílio — Se quiseres que ele fale mais, continue a interrogá-lo antes
que os outros o dilacerem.
— Então dize-me — continuou Virgílio — conheces algum
latino lá embaixo?
— Eu estava com um agora há pouco. Queria eu estar lá embaixo
com eles para não receber estas garfadas.
— Já esperamos demais! — gritou Libicocco, que com um
garfo arrancou-lhe um pedaço do braço. Draghinazzo já ia furá-lo
com o quinhão mas desistiu assim que percebeu que o decurião
Barbariccia olhava para ele, irritado.
— Mas quem é aquele com quem disseste estar há pouco no
caldo fervente? — continuou o mestre.
— Era o frei Gomita de Gallura, soberano especulador. —
respondeu o condenado — Vive ele a conversar com Dom Miguel
Zanche sobre a Sardenha. Ai! Mas olha só o diabo como ri! Eu poderia
te falar mais, mas temo que esse demônio se zangue e venha
me torturar!
Mas Barbariccia virou-se para Farfarello, que já avançava, gritando:
— Te afasta, ave de rapina nojenta!
— Se quiseres ver toscanos e lombardos — continuou o pecador
—, eu os farei vir aos montes! É preciso, porém, que os Malebranche
se afastem, pois eles os temem. Eu, sozinho, sem sair
deste lugar, farei vir sete deles com um simples assobio. É o nosso
sinal para indicar que algum de nós está fora.
— Olha só a trapaça que ele armou para escapar! — disse
Cagnazzo, rindo e sacudindo a cabeça.

Notas 66


Inferno 66

— Trapaceiro eu sou — respondeu o esperto —, especialmente
se for para trazer desgraça aos meus companheiros.
Mas Alichino queria ver para crer e o desafiou:
— Se tu mergulhares eu não correrei atrás de ti, pois tenho
asas para te alcançar. Nós te deixaremos livre e ficaremos atrás do
vale. Veremos se és mais rápido que nós.
E então todos tomaram o rumo do vale, começando com o
que se opunha àquele jogo. Astuto, o corrupto saltou e conseguiu
fugir. Alichino não conseguiu alcançá-lo. Calcabrina, irado, correu
atrás também, torcendo que o danado escapasse para armar uma
briga com Alichino. Assim que o pecador submergiu ele saltou em
cima do seu irmão, e ambos se enroscaram no ar sobre o piche. Os
dois começaram a se mutilar com suas garras até que caíram na pez
fervente. O calor foi suficiente para separá-los, mas não conseguiam
sair do poço, pois suas asas estavam encharcadas. Saíram então
todos os outros diabos para os socorrer.
E lá os deixamos, naquela confusão, e continuamos sozinhos.

Notas 67
23
Dante e Virgílio conseguem escapar da perseguição dos dez
demônios que os escoltavam. Ilustração de Gustave Doré (século
XIX).

Canto XXIII
Caminhávamos sem companhia: um na frente e o outro
atrás. Durante a caminhada voltei a pensar naqueles demônios.
Se por nossa causa eles sofreram dano, eles devem
estar irados. Considerando os seus maus instintos, certamente
não deixarão de vir atrás de nós. Esses pensamentos deixavam
meus cabelos em pé e por causa do medo eu olhava para trás o
tempo todo.
— Mestre — disse —, se não tiveres como nos esconder, eu
temo que os Malebranche poderão nos encontrar. Eu os sinto; eu
os ouço como se estivessem vindo.
— O teu temor agora juntou-se ao meu, e então vou procurar
uma maneira de escaparmos. Se o declive a direita permitir nossa
descida à próxima vala, teremos como escapar do ataque imaginado.
Mal tinha terminado de expor o seu plano, eu os vi chegando
com suas asas abertas, não muito longe, para nos pegar! Meu guia
tomou-me no colo de repente e se jogou na rocha escarpada até escorregar
na calha, rasteiro. Quando chegamos lá embaixo os diabos
já nos observavam do alto do precipício. Eles nos amaldiçoavam,
irritados. Descer, eles não podiam, pois eram proibidos de ultrapassar
a quinta vala.
Deixamos os diabos para trás e caminhamos pela quinta vala.
Vimos gente colorida, de capuz, caminhando lentamente e usando
capas de ouro brilhante por fora, mas de pesado chumbo por dentro.
Eles sofriam e choravam, cansados pelo peso intenso.

Inferno 67

Notas 68
Personagens e símbolos do Canto XXIII
23.1 Os hipócritas aparecem vestidos de uma roupa brilhante, visualmente atraente,
porém pesada como chumbo. O contrapasso é o peso que não sentiram na consciência
ao pregarem uma coisa e fazerem outra. No inferno, sentem finalmente
o pelo do seu falso brilho.
23.2 Os frades Gaudentes (frades alegres) eram os frades da ordem dos Cavaleiros
da Beata Santa Maria, criada pelo papa Urbano IV. Foram apelidados de frades
alegres por não se retirarem em conventos, como os frades de outras ordens, e
não estarem sujeitos a regras rigorosas, como o celibato. Eram dedicados à manutenção
da paz entre as facções políticas que dividiam as famílias, protegendo
viúvas e órfãos. Dois frades gaudentes que atuavam em Florença, Catalano e
Loderingo, se desviaram de suas funções de pacificadores e tomaram partidos,
pensando mais em benefícios pessoais que sociais, e ganharam fama pela sua
hipocrisia. [Longfellow 67]
23.3 Catalano e Loderingo: Catalano di Malavolti e Loderingo di Liandolo eram
frades gaudentes de Bolonha e fundadores daquela ordem em Florença. Um era
guelfo, o outro guibelino e foram designados para manter a paz e administrar a
justiça de forma imparcial. Se aproveitando do poder que a sociedade depositou
neles, se afastaram dos seus objetivos sociais, buscando obter vantagens que foram
prejudiciais principalmente aos guibelinos. [Longfellow 67]

Inferno 68

— Meu guia — falei — enquanto caminhamos por esta vala,
olha em volta e dize-me se vês alguém, cujos feitos ou nome me
seja conhecido.
— Mais devagar, tu que corres por este ar escuro! — gritou
um espírito, que ouvira minha fala toscana — Talvez eu possa conseguir
o que tu queres.
Parei e vi duas almas que se aproximavam lentamente. Quando
chegaram, me olharam e conversaram entre si:
— Ele parece vivo o que mexe a garganta, e se os dois estão
mortos, qual privilégio permite que andem despidos da pesada
manta? — conversaram, e depois, a mim se dirigiram — Ó toscano
que vieste visitar o colégio dos hipócritas, dize para nós quem tu és.
— Eu nasci e cresci na grande cidade banhada pelo Arno e tenho
o corpo que sempre possuí — respondi. — Mas quem sois
vós, destilando lágrimas de dor que correm pelas vossas faces?
— Frades gaudentes fomos — respondeu o primeiro —, e bolonheses.
Eu sou Catalano e este é Loderingo. Tua terra nos deu
um cargo que se costumava dar a um homem só, para manter a paz,
e nós fizemos mal uso dele.
Eu ia começar a responder aos frades quando me chamou a
atenção um outro que sofria intensamente crucificado ao chão. O
frade Catalano, que me observava, falou:
— Este que tu vês crucificado disse aos fariseus que era mais
oportuno sacrificar um homem que atormentar todo o povo. Nu,
ele jaz no caminho, e como vês, sente o peso de cada um que passa
sobre ele. Todos os outros do seu conselho estão aqui também.
— Poderia nos dizer, se vos for permitido — perguntou Virgílio
ao frade — se há, à direita, alguma passagem conhecida pela

Notas 69
23.4 O Fariseu é Caifás, o alto sacerdote dos Judeus, que propôs a morte de Cristo
ao defendê-la perante os outros, dizendo: “Vós nada sabeis! Vós não percebeis
que convém que um só homem morra pelo povo, e que não pereça toda a nação.”
(Evangelho de João 11:50)

Inferno 69

qual nós dois possamos sair, sem que seja necessário invocar os
diabos para nos tirar desta vala?
— Mais perto que imaginas — respondeu o frade — há uma
ponte que une todos os anéis, mas nesta parte ela está destruída.
Porém, embora a ponte esteja quebrada, é possível subir escalando
suas ruínas.
Ao ouvir a explicação do frade, Virgílio ficou parado, cabisbaixo.
Depois disse, irritado:
— Ele mentiu, aquele demônio desgraçado! Mentiu! Não havia
outra ponte, era mentira!
— Uma vez em Bolonha — interrompeu o frade —, fiquei
sabendo dos vícios do diabo. Um deles é que ele é falso e é o pai da
mentira.
Virgílio se afastou em passos largos, mostrando irritação no seu
rosto. E eu parti também atrás dele, seguindo o rastro de seus pés.

Notas 70
24
Corte mostrando a quinta e sexta valas do Malebolge e a rampa formada
pelas ruínas da ponte destruída. Ilustração de Helder da Rocha.

Canto XXIV
Virgílio, visivelmente irritado, nada falou até que chegamos
diante das ruínas da ponte. Lá, imediatamente recuperou
o seu semblante amável e otimista. Estudou por
um instante as ruínas e abriu os braços para que eu me apoiasse
nele para realizar a subida. E assim subimos, lentamente, ele me erguendo,
e eu abrindo caminho.
— Segura aquela pedra ali — ordenou o mestre —, mas tenha
cuidado! Vê antes se ela te sustenta.
Foi dura e difícil a escalada. Fosse o aclive mais íngreme ou
mais longo eu certamente seria vencido pelo cansaço. Em Malebolge,
cada poço é mais baixo que o anterior, portanto, a altura da subida
deste lado era bem menor que a altura da nossa descida do
lado oposto.
Chegamos, enfim, à derradeira pedra da ruína. Eu estava tão
exausto que assim que paramos, aproveitei a oportunidade para me
sentar. O mestre não gostou:
— Precisas deixar o cansaço de lado — disse ele —, pois estirado
sobre a pluma ou a colcha, a fama não se alcança. E sem ela a
vida passa sem deixar qualquer vestígio. Levanta! Vence o cansaço e
anima-te! Mais longa escada nos aguarda. Com ânimo se vence
qualquer batalha, quando o corpo pesado não atrapalha.
Com esse incentivo prontamente me levantei, falante, para me
mostrar valente e destemido. Mas minha fala foi interrompida por
uma voz que surgia já do outro fosso.

Inferno 70

Notas 71
Ladrões torturados por serpentes na sétima vala do Malebolge. Ilustração de
Gustave Doré (século XIX).


Inferno 71

Não dava para entender o que a voz dizia. Nem no meio da
ponte. Era uma voz apressada, irritada. Eu me inclinei para olhar
mas não dava para ver coisa alguma.
— Mestre — pedi — que tal atravessarmos até o outro lado e
descermos o muro? Aqui onde estamos eu só ouço e nada entendo.
Olho para baixo e nada vejo.
— O que pedires eu faço sem reclamar — respondeu Virgílio.
Descemos pela testa da ponte, pela oitava ribanceira que margeia
a sétima calha, e lá vimos uma vasta multidão cercada de terríveis
serpentes das mais diversas espécies. Só de pensar naqueles
répteis terríveis meu sangue gela, pois eu nunca vira nada igual. No
meio das serpentes corriam almas nuas, horrorizadas, com as mãos
amarradas às costas por outras cobras que as apertavam, envolvendo
seus corpos. Assistimos quando uma serpente perfurou um dos
espíritos que estava próximo a nós. Ela atravessou seu colo se inseriu
no seu busto. Imediatamente ele se incendiou e foi reduzido a
um amontoado de cinzas. Mas aquelas cinzas espalhadas começaram
a se mexer, e, lentamente, a se unir. Foram se juntando sozinhas
até que haviam formado um homem. Ele se levantou como se
acordasse de um sono profundo. Estava pasmo e suspirava aflito.
Meu guia então se aproximou e perguntou quem ele era. O
condenado respondeu:
— Eu chovi de Toscana faz pouco tempo neste abismo. Eu
gostava mais da vida bestial que da vida humana, como a mula que
fui. Sou Vanni Fucci, a besta. Pistóia era a minha toca.
— Mestre — pedi —, pergunta a ele por que ele sofre nesta
vala. Eu achava que ele estaria mergulhado no rio de sangue, como
os outros violentos.

Notas 72
Personagens e símbolos do Canto XXIV
24.1 Os ladrões recebem no inferno como contrapasso (retribuição) o roubo constante
de seus corpos por serpentes e outros répteis mutantes que os atravessam e
os desintegram, roubando seus traços humanos.
24.2 Vanni Fucci era filho ilegítimo de Fuccio de' Lazzari e militante ativo dos Neri
de Pistóia. Era conhecido como um homem violento e depravado, mas que raramente
era punido pois pertencia a uma família nobre e influente. Tendo sido
banido de Pistóia por seus crimes, ele voltou à cidade na noite de Carnaval e
roubou as jóias da sacristia da igreja de San Giacomo. [Longfellow 67] Por aquele
crime, um homem inocente (Rampino dei Foresi) foi preso, mas Vanni
Fucci, que já havia deixado a cidade, enviou uma nota denunciando o receptador,
que foi preso e enforcado, enquanto Rampino foi libertado [Sayers 49].
24.3 Previsões de Vanni Fucci referem-se ao seguinte acontecimento histórico:
Em maio de 1301, os guelfos brancos (Bianchi) florentinos ajudaram os brancos
de Pistóia a combater os guelfos negros (Neri), que então se refugiaram em
Florença. Lá, eles se uniram ao partido negro de Florença e ajudaram a expulsar
os brancos da cidade, com o apoio de Carlos de Valois. [Sayers 49].

Inferno 72

O pecador ouviu e não dissimulou. Virou-se para mim com
um rosto envergonhado, e disse:
— Maior é a dor de teres me encontrado nesta miséria que a
dor que senti quando perdi minha outra vida. Mas agora não posso
negar-me em te responder. Eu estou aqui por que eu fui um ladrão.
Fui eu quem roubou aquela sacristia onde outro levou a culpa. Mas
para que não que fiques feliz por ter me encontrado aqui, se algum
dia escapares, abre os ouvidos e escuta minha profecia: Pistóia perderá
todos os seus Negros e Florença renovará gente e modos. De
Valdimagra virá um raio envolvido por nuvens negras, trazendo
uma tempestade amarga sobre o campo de Piceno, onde destruirá
as nuvens claras, e todo Branco será então ferido. Esta previsão eu
fiz para que sofras!

Notas 73
25 Personagens e símbolos do Canto XXV
25.1 Caco era um gigante que, na obra de Virgílio (Eneida), era considerado semihumano.
Dante o retrata como um centauro, irmão dos centauros que guardam
o sétimo círculo. Era filho de Vulcano e vivia numa caverna sob o monte Aventina.
Foi morto por Hércules de quem roubou várias cabeças de gado. [Musa
95] [Sayers 49]
25.2 Vulcano é o deus do fogo, na mitologia grega.
25.3 Hércules foi um herói da mitologia grega conhecido pela sua força e coragem.
Filho de Júpiter com uma mortal, foi alvo do ciúme de Juno que enviou duas
enormes serpentes para matar o filho ilegítimo. Hércules, embora ainda um bebê,
estrangulou as cobras. Quando jovem, Hércules matou um leão com suas
próprias mãos. Hércules se casou com uma princesa de Tebas e com ela teve
três filhos. Foi novamente vítima da ira de Juno que lhe fez perder o juízo e
matar toda a sua família. De remorso, Hércules teria se matado se não fosse o
oráculo de Delfos que disse que ele seria purgado aceitando ser o servo do rei
de Micenas. O rei, incitado por Juno, arquitetou como pena 12 tarefas, impossíveis
para qualquer mortal. Entre elas estava trazer Cérbero (6.3) ao mundo
superior sem usar armas e o roubo do gado do monstro Gerión (17.1). Esta última
tarefa fez Hércules viajar à Espanha, viagem que marcou ao partir em duas
partes uma grande pedra que deu origem aos rochedos de Ceuta e Gibraltar (as
colunas de Hércules – veja nota 26.6). Hércules cumpriu todas as tarefas e depois
se casou com Dejanira, que ganhou como presente de Anteu (31.5), filho
de Netuno. Quando o centauro Nesso (12.6) atacou Dejanira, Hércules o matou
com uma lança envenenada. Ao morrer, Nesso convenceu Dejanira de que
seu sangue era um poderoso afrodisíaco. Acreditando que Hércules se apaixonara
por outra, Dejanira acreditou em Nesso e deu para Hércules uma túnica
imersa no sangue do centauro. O sangue era, na verdade, um veneno. A dor foi
tão grande que Hércules acabou se matando. [Encarta 97]
25.4 Transformação em répteis: Os pecadores que se transformam em répteis neste
Canto são nobres florentinos. Dorothy Sayers explica esta alegoria da seguinte
forma: “os ladrões, que não faziam distinção entre o meu e o seu, não podem
considerar suas formas e suas personalidades como propriedade sua.” [Sayers]

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