quarta-feira, 27 de julho de 2011

As Crônicas de Nárnia 2 - O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa, Capítulos 16 e 17 (Últimos Capítulos)

16
O QUE ACONTECEU COM AS ESTÁTUAS


– Que lugar estranho! – exclamou Lúcia. – Quantos bichos de pedra! E gente também! Parece até um museu!
– Psiu! – fez Susana. – Olhe o que Aslam está fazendo.
Aslam aproximou-se do leão de pedra e soprou. Deu meia-volta, como um gato querendo agarrar o próprio rabo, e soprou também sobre o anão de pedra. Saltou sobre uma grande dríade de pedra, voltou-se rapidamente para um coelhinho petrificado à direita, correu para dois centauros.
– Susana, Susana! Olhe o leão!
Já viu alguém chegar um fósforo aceso a um pedaço de jornal num fogão de lenha? Parece no princípio que não aconteceu nada; depois, você nota uma chamazinha fraca na beirada do papel. Aconteceu uma coisa muito parecida. Durante os primeiros segundos, depois do sopro, o leão de pedra ficou igualzinho. Depois, um fio dourado, muito fraquinho, começou a andar por seu corpo branco de mármore e foi aumentando... Daí a pouco, a cor lambia as costas do leão como o fogo lambe um pedaço de jornal. Por fim, enquanto as patas traseiras continuavam de pedra, o leão sacudiu a juba, e as pesadas ondulações marmóreas que o cobriam ficaram encrespadas, já transformadas em pêlo. Escancarou então a grande boca vermelha, quente e viva, num impressionante bocejo. E já as patas traseiras voltaram à vida. Levantou uma e coçou-se. Vendo Aslam, correu para ele aos pulos de pura felicidade, lambendo o rosto do Rei.
E as estátuas voltaram à vida por todos os lados. O pátio já não parecia um museu: era um jardim zoológico. Seres de todos os tamanhos, de todas as formas, corriam atrás de Aslam, dançando em torno dele. Desaparecera a brancura de morte: o pátio era festival de cores, com dorsos lustrosos e castanhos de centauros, chifres anilados de unicórnios, plumagens deslumbrantes, o pardo-avermelhado das raposas, cães, sátiros, meias amarelas e capuzes vermelhos de anões. E espíritos de bétulas em túnicas de prata, espíritos de faias envoltos num verde fresco e transparente, espíritos de vidoeiros vestidos de verde tão brilhante que quase parecia amarelo. Sumira o silêncio de cemitério; o pátio ressoava com um som alegre de rugidos, zurros, latidos, uivos, grunhidos, arrulhos, relinchos, gritos, canções e risos.
– Ah-ah! – gemeu Susana, num tom diferente.
– Olhe... Você acha que... que isto é seguro?...
Lúcia olhou e viu que Aslam soprava os pés de um gigante de pedra.
– Está tudo bem – gritou Aslam alegremente. – Quando os pés estão corretos, todo o resto os acompanha.
– Não era isso que eu estava querendo dizer – murmurou Susana para Lúcia.
Mas era tarde demais, mesmo que Aslam tivesse entendido. A força da vida já subia pelas pernas do gigante. Ele mexeu os pés. Levantou o cajado que tinha encostado ao ombro. Esfregou os olhos e disse:
– Que foi isso? Devo ter dormido demais! Ah!
Onde está aquela feiticeira de uma figa?
Tiveram de explicar ao grandão tudo o que havia acontecido. Levou a mão à orelha e fez com que repetissem tudo, até ouvir e entender bem. Depois, inclinou a cabeça à altura de um monte de feno e tirou o boné a Aslam, muitas vezes, com o carão a resplandecer de alegria.
Os gigantes – de todas as raças – são tão raros hoje que há poucos com boa aparência; aposto dez contra um que você nunca viu um gigante com o rosto resplandecente. Mas, pode estar certo, vale a pena ver.
– E agora é lá dentro! – disse Aslam. – Todo o mundo de olho bem aberto. Busca rigorosa em tudo! A gente nunca sabe onde pode estar escondido um pobre prisioneiro.
Foi uma correria. Durante alguns minutos, aquele horrendo castelo, velho, escuro e mofado, ressoou com o ranger das janelas que se abriam e com o eco de vozes que gritavam ao mesmo tempo:
– Não se esqueçam dos calabouços!... Quem me ajuda a arrombar esta porta?... Aqui tem outra escada de caracol... Olhem o coitado do canguru!... Chamem Aslam... Puf, que abafamento!...
Será uma porta falsa?... Tem um bando imenso aqui em cima!...
Mas o melhor de todos os momentos foi quando Lúcia subiu as escadas gritando:
– Aslam! Aslam! Achei o Sr. Tumnus! Depressa, por favor!
Daí a pouco, Lúcia e o pequeno fauno, de mãos dadas, dançavam de alegria. Apesar daquela temporada triste de estátua, ele era ainda o mesmo, muito interessado nas coisas que a menina tinha a contar.
Até que a busca na casa da feiticeira chegou ao fim. O castelo estava vazio de todo. Pelas portas e janelas abertas, entrava a luz, e o ar perfumado da primavera insinuava-se até nos cantos mais escuros e feios. A multidão de ex-estátuas voltou ao pátio. Foi aí que alguém (o Sr. Tumnus, se não me engano) se lembrou de perguntar:
– Mas como iremos sair daqui?
Aslam entrara de um salto; os portões ainda permaneciam fechados.
– Não há problema – disse ele, chamando o gigante. – Como é o seu nome?
– Sou o gigante Rumbacatamau, às suas ordens – disse ele, tirando o boné.
– Pois muito bem, Sr. Rumbacatamau; pode ajudar-nos a sair daqui?
– Com muito prazer – disse o gigante. – A miudagem (isto é, os pequeninos) que se afaste dos portões!
Então avançou para os portões e se ouviu o tan-tan-tan do cajadão. Os portões chiaram ao primeiro golpe, estalaram no segundo, estremeceram no terceiro. Depois, o gigante arremessou-se contra as torres ao lado dos portões; apertou-as e sacudiu-as tanto, durante alguns minutos, que elas, junto com pedaços de muralhas, caíram estrondosamente. Era estranho estar naquele pátio de pedra e olhar pela abertura, e ver a relva lá fora, as árvores balançadas pelo vento, os riachos cristalinos, as montanhas azuis e o céu.
– Macacos me mordam se não estou suando em bicas! – disse o gigante, ventando como uma locomotiva das grandes. – Falta de treino é isso! Alguma das mocinhas aqui presentes terá, por acaso, aquilo a que dão o nome de lenço?
– Eu tenho – gritou Lúcia, pondo-se nas pontas dos pés e levantando o lenço o mais que pôde.
– Obrigado, menininha – disse Rumbacatamau, inclinando-se para apanhá-lo.
Lúcia levou um dos maiores sustos de sua vida ao sentir-se levantada no ar, como num elevador de obra, entre os dois dedos do gigante. Já estava para tocar no rosto dele quando o gigante deu uma freada brusca e voltou a colocá-la no chão, com muito cuidado, murmurando:
– Mil perdões! Foi engano meu; agarrei a menina pensando que era o lenço.
– Não tem importância – disse Lúcia, rindo. – Aqui está o lenço.
Desta vez, o gigante conseguiu apanhá-lo, mas o lenço era tão pequeno para ele como é para nós um chiclete... Quando a menina o viu esfregando solenemente o lenço de um lado para outro na carantonha vermelha, exclamou:
– Sinto muito... o lenço é tão pequenininho... não vale quase nada, Sr. Rumbacatamau.
– Pelo contrário, pelo contrário – respondeu o gigante, com delicadeza. – Nunca vi um lenço tão distinto... tão jeitoso... e tão... e tão... nem tenho palavras...
– Mas que gigante simpático! – disse Lúcia ao Sr. Tumnus.
– Ah, simpático ele é! – replicou o fauno. – Os Catamaus sempre foram assim. Eram uma das famílias de gigantes mais estimadas em Nárnia. Nunca foram lá muito inteligentes (pelo menos, nunca vi um), mas, sem dúvida alguma, uma das famílias mais antigas. Com muita tradição, compreende. Aliás, se não fosse isso, a feiticeira não ia se dar ao trabalho de transformar um Catamau em pedra.
Aslam bateu as patas e pediu silêncio.
– A nossa tarefa do dia ainda não acabou. Se quisermos derrotar para sempre a feiticeira antes de anoitecer, teremos de encontrar já, já o campo da batalha.
– E espero poder travá-la, senhor! – falou o centauro-maior.
– Evidente! – concordou Aslam. – Avante! Os que não podem acompanhar a marcha (crianças, anões e bichos menores) vão às costas dos outros (leões, centauros, unicórnios, cavalos, gigantes e águias). Nós, os leões, vamos na vanguarda, e os que têm o faro apurado vão conosco, ajudando a localizar o campo de batalha. Depressa, todos a postos!
Com grande alegria e bastante barulho, todos obedeceram. Mas quem estava inchado de contentamento era o outro leão, que corria de um lado para outro, fingindo-se muito atarefado, só para ter a oportunidade de repetir a cada um que encontrava:
– Ouviu o que ele disse? Nós, os leões! Ele e eu! Nós, os leões! Por aí você vê por que eu gosto tanto de Aslam. Não se põe lá em cima, não é de bancar o importante. Nós, os leões! Ele e eu!
E só parou quando Aslam colocou em cima dele três anões, uma dríade, dois coelhos e um ouriço. Aí, ficou um pouco mais calmo.
Quando estavam todos prontos (foi um grande cão de guarda que ajudou o Rei a colocá-los em forma), saíram pela abertura feita na muralha.
A princípio, os leões e os cães iam farejando em todas as direções, até que de repente um cão encontrou um rasto e soltou um latido. Não perderam mais tempo. Cães, leões, lobos e outros animais de guerra partiram a toda a velocidade, de nariz no chão, enquanto os outros, coitados, em fila quilométrica, iam seguindo como podiam.
O barulho lembrava uma caça à raposa, só que era muito maior. Rugia o leão e, mais aterrador, rugia Aslam. A velocidade aumentava à medida que o rasto se acentuava. Ao chegarem à última curva, num vale estreito e sinuoso, Lúcia ouviu um ruído que dominava os outros todos: um ruído que a fez estremecer por dentro. Eram gritos e uivos e o choque de metal contra metal.
Ao saírem do vale, viu logo do que se tratava. Pedro, Edmundo e todo o resto do exército de Aslam lutavam desesperadamente contra uma imundície de gente, seres hediondos, como os da véspera. À luz do dia, eram ainda mais estranhos, mais malignos e monstruosos. E pareciam mais numerosos.
O exército de Pedro – de costas para ela – parecia uma brincadeira. E havia estátuas espalhadas por todo o campo de luta: a feiticeira certamente usara sua varinha. Mas agora ela lutava com o grande facão de pedra. E era com Pedro que lutava, os dois com tal fúria, que Lúcia mal conseguia ver o que se passava. Só via o facão e a espada cruzarem-se com grande rapidez como se fossem três facões e três espadas. Os dois estavam no meio exato do campo de batalha. De um lado e outro, as fileiras dos combatentes. Não havia lugar onde os olhos não vissem coisas de arrepiar.
– Desçam do “cavalo”, meninas! – gritou Aslam.
Com um rugido que fez tremer a terra de Nár-nia, do lampião às praias do Mar Oriental, o gigantesco bicho atirou-se à feiticeira. Lúcia viu, por um instante, a feiticeira fitando o Leão, cheia de medo. E logo a seguir os dois rolaram pelo chão. Ao mesmo tempo, os animais guerreiros (libertados por Aslam) caíram como loucos sobre o inimigo. Os anões lutavam com machados; os cães, com os dentes; Rumbacatamau, com o seu enorme cajado (sem falar nos pés, que esmagavam dezenas de inimigos); os unicórnios, com os chifres; os centauros, com as espadas e os cascos. O exausto exército de Pedro exultou com o reforço. Os inimigos guincharam. E foi um estrépito no bosque.

17
A CAÇADA AO VEADO BRANCO


Alguns minutos depois, a batalha terminava. A maior parte do inimigo fora destroçada por Aslam e seus companheiros. Os outros, vendo a feiticeira morta, renderam-se ou fugiram em debandada. Lúcia viu, então, Pedro e Aslam apertarem-se as mãos. Inacreditável o ar que Pedro tinha agora: face pálida e grave, um ar muito mais velho.
– Foi tudo obra de Edmundo, Aslam! – disse Pedro. – Se não fosse ele, estávamos derrotados. A feiticeira ia petrificando as nossas tropas. Nada havia que a detivesse. Edmundo, lutando sempre, conseguiu abrir caminho entre os ogres e chegar ao local onde ela acabava de transformar um leopardo em pedra. Ele teve o bom senso de arrebentar a vara mágica com a espada, em vez de atacar diretamente a feiticeira, como os outros vinham fazendo, em vão. Quebrada a vara, começamos a ter alguma chance; mas já tínhamos perdido muitos dos nossos. Edmundo está muito ferido. Vamos procurá-lo.
Encontraram Edmundo num lugar um pouco afastado da linha de combate, entregue aos cuidados da Sra. Castor. Estava coberto de sangue, de boca aberta, e verde, verde.
– Depressa, Lúcia! – gritou Aslam.
Só então, pela primeira vez, Lúcia se lembrou do licor precioso que recebera de presente de Natal. Suas mãos tremiam tanto que mal conseguiu abrir o vidrinho. Tirou a rolha e deixou cair umas gotas nos lábios do irmão.
– Há outros feridos – disse Aslam, enquanto ela continuava com os olhos ansiosamente cravados no rosto pálido de Edmundo, muito desconfiada do efeito do licor.
– Sei disso – respondeu Lúcia, impaciente. – Daqui a um pouquinho eu vou.
– Filha de Eva – disse Aslam, a voz mais severa. – Tem gente morrendo. Quer que morram por causa de Edmundo?!
– Desculpe, Aslam.
Durante meia hora, os dois não tiveram mãos a medir; ela tratava dos feridos, ele restituía a vida aos mortos, isto é, às estátuas.
Edmundo, quando Lúcia pôde voltar até ele, estava de pé, não só curado dos ferimentos, mas com uma aparência bem melhor do que antes. Com uma aparência melhor até do que no tempo em que entrou para a escola e começou a seguir pelo mau caminho. Agora, não. Já podia olhar as pessoas de frente. Por isso mesmo, foi armado cavaleiro, em pleno campo de batalha.
– Edmundo sabe o que Aslam fez por ele? – perguntou Lúcia baixinho a Susana. – Sabe qual era, na verdade, o trato com a feiticeira?
– Boca fechada! Claro que não sabe de nada!
– Não é melhor contar para ele?
– É evidente que não! – respondeu Susana. – Imagine como você iria se sentir se estivesse no lugar dele.
– Mesmo assim, acho que ele deve saber – insistiu Lúcia.
Mas foram interrompidas e a conversa ficou por aí.
Passaram a noite ali mesmo. Não sei dizer onde Aslam arranjou comida para aquela gente toda. O fato é que às oito horas estavam todos sentados na relva, para uma excelente refeição.
No dia seguinte, desceram ao longo do grande rio, chegando à foz ao cair da tarde. O castelo de Cair Paravel erguia-se, altaneiro, no cimo da colina. Em frente, havia areia e pedras, pequenas poças de água salgada, algas, cheiro de mar e ondas azuis e verdes a perder de vista. E, ia-me esquecendo, o grito das gaivotas!
À noite, depois do lanche, as quatro crianças voltaram à praia e tiraram os sapatos e as meias para molhar os pés.
No dia seguinte, porém, a coisa foi muito mais solene. No grande salão de Cair Paravel – um salão formidável, com teto de marfim, uma parede coberta de penas de pavão e uma porta aberta para o mar –, na presença de todos, Aslam coroou-os com toda a cerimônia. E eles sentaram-se nos tronos, entre aclamações ensurdecedoras de “Viva o rei Pedro! Viva a rainha Susana! Viva o rei Edmundo! Viva a rainha Lúcia!”
– Quem é coroado rei ou rainha em Nárnia será para sempre rei ou rainha. Honrem a sua realeza, Filhos de Adão! Honrem a sua realeza, Filhas de Eva! – disse Aslam.
Pela porta aberta para o mar, chegavam as vozes dos tritões e das sereias, que entoavam cânticos em louvor dos novos soberanos, nadando perto da praia.
Assim, as crianças ocuparam seus tronos, empunharam seus cetros e concederam recompensas e honrarias a todos os amigos: a Tumnus, ao Sr. e Sra. Castor, ao gigante Rumbacatamau, aos leopardos, aos centauros bons, aos bons anões e ao leão.
À noite, houve grande festa em Cair Paravel. O ouro reluzia e o vinho corria. A música do mar era como um eco à música da festa, porém mais doce e penetrante.
Justamente quando a alegria estava no auge, Aslam desapareceu sem ninguém perceber. Quando souberam disso, os reis e as rainhas não fizeram comentários. O Sr. Castor já tinha avisado.
– Ele há de vir e há de ir-se. Num dia, poderão vê-lo; no outro, não. Não gosta que o prendam... e, naturalmente, há outros países que o preocupam. Mas não faz mal. Ele virá muitas vezes. O importante é não pressioná-lo, porque, como sabem, ele é selvagem. Não se trata de um leão domesticado.
Como você vê, a história está quase acabando. Os dois reis e as duas rainhas governaram Nárnia, e o reinado foi longo e feliz. A princípio gastaram grande parte do tempo destruindo o que restava do exército da Feiticeira Branca. Durante muito tempo ainda, chegaram notícias de que espíritos maus se escondiam nos recantos desconhecidos da floresta. Uma emboscada aqui, uma morte ali, um lobisomem que aparecia, uma bruxa que dava o ar de sua desgraça... Até que toda aquela raça imunda foi eliminada. E os reis e as rainhas fizeram leis justas, mantiveram a paz, não permitiram que as árvores fosse derrubadas sem necessidade, libertaram os anõezinhos e os sátiros da tirania escolar. De modo geral, acabaram com todos os importunos e intrometidos... as criaturas chatas. E deram força para as pessoas comuns, que só querem viver e deixar que os outros também vivam. Expulsaram os gigantes maus (muito diferentes de Rumbacatamau) do norte de Nárnia, quando estes tiveram a audácia de atravessar a fronteira. Estabeleceram tratados de boa vizinhança e firmaram alianças com os países de além-mar. Visitaram esses países e deles receberam visitas oficiais.
E eles próprios foram crescendo e mudando à medida que o tempo passava.
Pedro ficou um homem alto e parrudo: foi chamado Pedro, o Magnífico. Susana virou uma mulher alta e esbelta, de cabelos negros que chegavam quase aos pés. Foi chamada Susana, a Gentil. Edmundo era mais grave e calado do que Pedro, muito sábio nos conselhos de Estado. E foi chamado de Edmundo, o Justo. Lúcia, esta continuou sempre com os mesmos cabelos dourados e a mesma alegria, e todos os príncipes desejavam que ela fosse a sua rainha. E foi chamada de Lúcia, a Destemida.
Assim viveram em grande alegria. Só lembravam a vida neste mundo de cá como quem se lembra de um sonho.
Um certo ano, Tumnus, já agora um fauno de meia-idade, trouxe notícias de que o Veado Branco voltara a aparecer. O Veado Branco, quando apanhado, trazia consigo a satisfação de todos os desejos.
Os dois reis e as duas rainhas, acompanhados dos principais membros da corte, partiram à caça do Veado Branco nos Bosques do Ocidente, conduzindo cães e fazendo soar as trompas. Não tinham cavalgado muito quando o avistaram. Correram em sua perseguição por montes e vales, por bosques e planícies, até deixarem para trás, cansados, os cavalos dos cortesãos. Só eles quatro continuaram a persegui-lo. Viram o veado desaparecer numa capoeira tão cerrada que os cavalos não conseguiram entrar. Então o rei Pedro disse (sendo reis e rainhas há tantos anos, usavam agora um estilo muito diferente):
– Leais consortes, desmontemos, deixando aqui os nossos corcéis, e sigamos o veado pela floresta; pois nunca meus olhos viram tão nobre animal.
– Senhor – disseram os outros –, façamos com soante o vosso desejo.
Prenderam os cavalos às árvores e penetraram a pé na floresta cerrada. E mal tinham entrado, quando Susana disse:
– Gentis amigos, eis que vejo uma grande maravilha; parece-me uma árvore de ferro.
– Senhora – replicou Edmundo –, se olhardes bem, vereis que é um pilar de ferro, com uma lanterna em cima.
– Pela Juba do Leão! – exclamou Pedro. – Que idéia é essa, de afixar uma lanterna num local em que as árvores crescem tão juntas e tão alto, que, mesmo acesa, não daria luz a ninguém!
– Senhor – disse Lúcia –, é provável que, quando este poste e esta lâmpada aqui foram colocados, talvez fossem as árvores pequenas, ou poucas, ou nem árvores existissem. Porque este bosque é jovem e o poste é velho. – E ficaram todos olhando para ele. Disse Edmundo:
– Não sei bem o que é, mas aquela lâmpada
faz-me sentir um não sei quê. Não me sai do pensamento que já a vi em outro tempo, como se fosse em um sonho, ou no sonho de um sonho...
– Senhor – responderam todos –, o mesmo acontece a nós.
– E a mim me parece – acrescentou Lúcia – que se passarmos para além do poste e da lanterna, encontraremos estranhas aventuras, ou então haverá grandes transformações em nossas existências.
– Senhora – disse Edmundo –, o mesmo pressentimento me agita o âmago.
– Também a mim, meu excelso irmão – disse Pedro.
– E a mim – declarou Susana. – Por isso, sou de opinião que voltemos sem demora ao sítio onde deixamos os cavalos e deixemos de perseguir o inatingível Veado Branco.
– Senhora – disse Pedro –, perdoai, se vos contradigo. Porque, desde que somos reis e rainhas de Nárnia, jamais encetamos uma alta empresa (batalhas, demandas, feitos de armas e atos de justiça) para depois desistirmos. Sempre levamos a bom termo tudo quanto iniciamos.
– Minha irmã – disse Lúcia –, o nosso real irmão tem razão. Grande vexame seria para nós se, por qualquer terror ou pressentimento, deixássemos de perseguir tão nobre animal, como o que nos propusemos caçar.
– Faço minhas as vossas palavras – declarou Edmundo. – E tão grande é o meu desejo de descobrir o sentido daquele objeto, que nem pela jóia mais rica que possa existir em Nárnia, nem por todas as suas ilhas, eu voltaria atrás, por meu querer.
– Então, em nome de Aslam – disse Susana –, se o desejo de todos vós é esse, continuemos em busca da aventura que nos aguarda.
Assim, reis e rainhas entraram no bosque, e ainda não tinham dado meia dúzia de passos quando notaram que o objeto visto era um lampião. E pouco mais tinham andado quando perceberam que não seguiam entre ramagens, mas entre casacos de peles. E daí a um pouquinho saltavam todos da porta do guarda-roupa para a sala vazia. Já não eram reis e rainhas em traje de montaria, mas simplesmente Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia, nas suas roupas antigas. E era o dia e a hora em que todos tinham entrado no guarda-roupa para se esconderem. D. Marta e os visitantes falavam ainda no corredor, mas, felizmente, nunca chegaram a entrar na sala vazia, e as crianças não foram apanhadas.
E este seria o fim da história se as crianças não se sentissem na obrigação de explicar ao professor por que quatro casacos tinham desaparecido do guarda-roupa. E o professor (um sujeito de fato fora do comum) não lhes disse que deixassem de ser bobos ou de inventar histórias. Acreditou.
– Não! – disse ele. – Realmente. Não creio que valha a pena entrar pelo guarda-roupa para procurar os casacos. Por esse caminho, nunca mais irão a Nárnia. Nem os casacos serviriam para muita coisa agora. Hein? Que tem isso? É claro que um dia vocês voltarão a Nárnia. Quem é coroado rei em Nárnia, será sempre rei em Nárnia. Mas não tentem seguir o mesmo caminho duas vezes. Na verdade, vocês nem devem fazer coisa alguma para voltar a Nárnia. Nárnia acontece. Quando menos esperarem, pode acontecer. E não falem muito sobre o que aconteceu, mesmo entre vocês. Sobretudo, não digam nada aos outros. A não ser se descobrirem que eles próprios visitaram países do mesmo gênero. O quê? Como irão saber? Ora, ora, não é nada difícil, não se incomodem. Coisas que as pessoas dizem... Até pelo olhar... e lá se foi o segredo. Abram bem os olhos! Céus! O que é que estão ensinando às crianças na escola? E chegamos ao fim das aventuras do guarda-roupa. Mas, se o professor tinha razão, as aventuras em Nárnia estavam apenas começando.

Fim do Vol. II
Próximo volume:
O Cavalo e seu Menino

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