sábado, 4 de junho de 2011

Desventuras em Série - A Sala dos Répteis, Capítulos 1 ao 4

CAPÍTULO
Um

O trecho da estrada que sai da cidade, passa pelo Porto Enevoado e vai até a aldeia vizinha de Tédia, talvez seja o mais desagradável do mundo. É chamado de Mau Caminho. O Mau Caminho atravessa campos de um cinzento doentio, em que um punhado de árvores esqueléticas produz maçãs tão ácidas que só de olhar para elas já nos sentimos doentes. O Mau Caminho cruza o rio da Amargura, massa d'água que tem noventa por cento de lama e uma população de peixes esquálidos, apodrecendo por falta de oxigênio, e que ainda por cima circunda uma fábrica de raiz-forte, de modo que toda a área tem um cheiro ardido e avassalador.
Lamento ter de contar para vocês que a história começa com os órfãos Baudelaire avançando por essa estrada horrível, e que daqui por diante a história só vai piorar. De todas as pessoas no mundo com vidas deploráveis — e vocês bem sabem que há um bom número delas —, os jovens Baudelaire ganham o prêmio, expressão aqui usada para significar que eles passaram por mais coisas abomináveis do que qualquer outra pessoa que conheço. A infelicidade deles começou com um incêndio gigantesco que destruiu a casa em que moravam e matou seus queridos pais — tristeza suficiente capaz de durar por toda a vida, mas, no caso dessas três crianças, foi apenas o mau começo. Depois do incêndio, os irmãos foram mandados para a casa de um parente distante, o conde Olaf, um homem terrível e ganancioso. Os Baudelaire pais deixaram uma enorme fortuna que seria dos filhos quando Violet atingisse a maioridade, e o conde Olaf estava tão obcecado para pôr as mãos nesse dinheiro que arquitetou um plano diabólico que até hoje me dá pesadelos quando penso nele. Foi desmascarado em tempo, mas fugiu antes que o prendessem e jurou que ainda encontraria um jeito de se apossar da fortuna algum dia. Violet, Klaus e Sunny continuavam tendo pesadelos com os olhos de brilho fulminante do conde Olaf, com sua sobrancelha farpeada (duas-numa-só) e, mais que tudo, com a tatuagem de olho que ele tinha no tornozelo. Aquele olho parecia vigiar os órfãos Baudelaire para onde quer que eles fossem.
Devo avisá-los, portanto, que se abriram este livro com a esperança de ler que depois de tudo o que lhes aconteceu os meninos viveram felizes para sempre, o melhor é fechar o livro e procurar outra leitura qualquer. Porque Violet, Klaus e Sunny, muito apertados num carro pequeno sem espaço para mais nada e olhando pelas janelas para o Mau Caminho, rodavam em direção a um destino ainda mais sobrecarregado de desgraças e tristezas. O rio da Amargura e a fábrica de raiz-forte eram apenas os primeiros de uma seqüência de trágicos e lamentáveis acontecimentos — cada vez que penso neles, uma lágrima rola no meu rosto e fico tenso de raiva.
Quem dirigia o carro era o sr. Poe, amigo da família que trabalhava num banco e que tinha uma tosse que não parava. Ele estava encarregado de zelar pelos interesses dos órfãos, de modo que foi ele quem decidiu que, depois de todas as contrariedades vividas com o conde Olaf, os meninos ficariam sob os cuidados de um parente que morava no campo.
"Vocês me desculpem se estão mal acomodados aí atrás", disse o sr. Poe, tossindo num lenço, "mas nesse meu carro novo não cabem muitas pessoas. Não foi possível sequer colocar nenhuma das malas de vocês. Dentro de uma semana mais ou menos voltarei aqui trazendo as malas. "
"Obrigada", disse Violet que, com catorze anos, era a mais velha dos irmãos Baudelaire. Qualquer um que conhecesse Violet podia ver que o pensamento dela na verdade não estava nas palavras do sr. Poe, porque nesse momento a menina trazia os longos cabelos presos por uma fita para afastá-los dos olhos. Violet era uma inventora e quando estava concentrada em alguma de suas invenções gostava de amarrar os cabelos dessa maneira. Uma forma de ajudá-la a pensar com maior clareza nas várias engrenagens, arames e cordas envolvidas na maior parte de suas criações.
"Depois de terem morado tanto tempo na cidade", prosseguiu o sr. Poe, "acho que o campo vai ser uma mudança agradável para vocês. Pronto, esta é a curva onde precisamos virar. Estamos quase chegando. "
"Ainda bem", disse Klaus baixinho. Klaus estava bastante entediado, como muitas pessoas costumam ficar durante trajetos de automóveis, e triste por não ter trazido um livro com ele. Klaus adorava ler, e nos seus aproximadamente doze anos de idade havia devorado mais livros do que muita gente é capaz de ler ao longo de toda a vida. Às vezes lia até bem tarde da noite, e de manhã podia-se ver que caíra no sono com o livro nas mãos e sem sequer tirar os óculos.
"Acho que vocês vão gostar do dr. Montgomery", disse o sr. Poe. "Ele viajou muito, de forma que tem uma porção de histórias para contar. Ouvi dizer que a casa dele está repleta de coisas que ele trouxe dos lugares por onde passou.”
"Bax!", gritou Sunny. Sunny, a mais nova dos órfãos, freqüentemente falava assim, que é o jeito de falar dos bebês. Na verdade, quando não estava mordendo coisas com seus quatro dentes bem afiados, Sunny passava a maior parte do tempo soltando esses fragmentos de fala. Muitas vezes era difícil entender o que ela estava querendo dizer. Naquele momento o sentido de sua exclamação provavelmente tinha a ver com "Estou nervosa com isso de conhecer um novo parente". Não era só ela que estava nervosa, mas todos os três.
"Qual é exatamente o parentesco que dr. Montgomery tem conosco?", perguntou Klaus.
"O dr. Montgomery vem a ser... deixe-me ver... irmão da mulher do primo de seu falecido pai. Acho que é isso. É um cientista de certo renome, e recebe muito dinheiro do governo. " Como banqueiro, o sr. Poe estava sempre interessado em dinheiro.
"Como é que a gente deve chamá-lo?", perguntou Klaus.
"Chamem de doutor Montgomery", respondeu o sr. Poe, "a não ser que ele diga para vocês o chamarem de Montgomery. Mas tanto o seu prenome como o seu sobrenome são Montgomery, de modo que na verdade não faz muita diferença. "
"Seu nome é Montgomery Montgomery?", Klaus riu ao perguntar.
"Sim, e tenho certeza de que ele não aprecia brincadeiras com isso, de modo que é bom não fazerem troça", disse o sr. Poe tossindo novamente no seu lenço. "Fazer troça é o mesmo que 'caçoar'.”
Klaus deu um suspiro:
"Eu sei o que quer dizer fazer troça. Ele só não acrescentou que, claro, também sabia que não se deve caçoar do nome de ninguém. Às vezes as pessoas pensavam que os órfãos, por serem infelizes, eram também abobalhados.
Violet também suspirou, e soltou a fita dos cabelos. Ela estivera pensando numa invenção que conseguisse impedir o cheiro de raiz-forte a chegar às narinas das pessoas, mas a preocupação com o encontro próximo com o dr. Montgomery não deixava ela se concentrar. "Você sabe que tipo de cientista ele é?", perguntou. Ela estava pensando se o dr. Montgomery não teria um laboratório que ela também pudesse usar.
"Não tenho bem certeza", admitiu o sr. Poe. "Estive muito ocupado tratando das condições em que vocês ficariam aqui e não tive tempo para puxar outros assuntos. Olhem, aí está a entrada. Chegamos. "
O sr. Poe conduziu o carro por uma estradinha de cascalho bastante inclinada, em direção a uma enorme casa de pedra. A casa tinha uma porta de entrada de madeira escura, com algumas colunas na varanda. De cada lado da porta havia luminárias em forma de tochas, todas acesas, apesar de ser manhã. Acima da porta da frente, a casa possuía fileiras e mais fileiras de janelas quadradas, a maioria delas aberta para deixar que a brisa entrasse. Mas, diante da casa, via-se algo verdadeiramente fora do comum: um vasto e bem-cuidado gramado, repleto de longos e finos arbustos que haviam sido podados para ficar com a aparência de cobras. Cada arbusto era um tipo diverso de serpente: umas longas, outras curtas, umas de língua para fora e outras de boca aberta revelando dentes verdes assustadores. Todas bem intimidativas, tanto que Violet, Klaus e Sunny mostraram certa hesitação em caminhar passando ao lado delas no trajeto até a casa.
O sr. Poe, que ia na frente, nem pareceu notar os arbustos, possivelmente porque estava concentrado em passar às crianças instruções sobre como se comportar.
"Escute, Klaus, não faça muitas perguntas logo no começo. Violet, o que foi que houve com a fita em seus cabelos? Achei que aquele penteado lhe dava uma aparência tão distinta! E, por favor, alguém vigie Sunny e não deixe que ela morda o dr. Montgomery. Seria desfavorável como primeira impressão. "
O sr. Poe apressou o passo até a porta e tocou uma campainha que soava mais alto que qualquer outra campainha já ouvida pelos meninos. Depois de uma curta pausa, ouviram passos se aproximando, e Violet, Klaus e Sunny se entreolharam. Não tinham como saber, é claro, que muito em breve mais desgraças estariam afligindo sua infortunada família, mas, de qualquer modo, estavam inquietos. O dr. Montgomery seria uma pessoa legal?, pensavam. Melhor que o conde Olaf, pelo menos? Seria possível que fosse pior?
A porta abriu-se com um rangido, vagarosamente, e os órfãos Baudelaire prenderam a respiração ao olhar para dentro do escuro hall de entrada. Viram um tapete púrpura-escuro estendido sobre o chão. Viram um lustre em vitral que pendia do teto. Viram na parede uma grande pintura a óleo que representava duas cobras entrelaçadas. Mas onde estava o dr. Montgomery?
"Olá!?! ", indagou em voz alta o sr. Poe. "Olá!?!" "Olá, olá, olá!", ouviu-se, alto e bom som, de alguém que surgiu detrás da porta, um homem baixinho e rechonchudo de rosto bem redondo e avermelhado. "Sou seu tio Monty, e vocês chegaram bem na hora! Acabei de preparar um bolo com creme de coco!"





CAPÍTULO
Dois

"Sunny não gosta de coco?", perguntou o tio Monty. Ele, o sr. Poe e os jovens Baudelaire estavam sentados todos em volta de uma mesa verde, cada um com uma fatia do bolo do tio Monty. Tanto a cozinha como o bolo continuavam com o calor do forno. O bolo era uma obra-prima, cremoso e saboroso, com o coco na dose exata. Violet, Klaus e o tio Monty já haviam quase terminado os seus pedaços, mas o sr. Poe e Sunny não tinham dado mais que uma mordida cada um. "Para dizer a verdade", falou Violet, "Sunny não gosta de comer nada que seja macio. Ela prefere comida bem dura de mastigar.”



"É estranho para um bebê", disse o tio Monty, "mas nem um pouco estranho para muitas cobras. A Mastigadora da Barbaria, por exemplo, é uma cobra que precisa ter o tempo todo alguma coisa dentro da boca, do contrário começa a comer a própria boca. Muito difícil de mantê-la em cativeiro. Quem sabe Sunny gostaria de uma cenoura crua? É um bocado dura. "
"Uma cenoura crua seria perfeita, dr. Montgomery", respondeu Klaus.
O novo tutor dos Baudelaire levantou-se e foi até a geladeira, mas de repente virou-se e gesticulou com o dedo apontado para Klaus:
"Nada disso de doutor Montgomery para cima de mim. Não faz o meu gênero. Pomposo demais. Podem me chamar de tio Monty! Meu Deus, se nem os meus colegas herpetologistas me chamam de doutor Montgomery!"
"O que vêm a ser herpetologistas?", perguntou Violet.
"Como é que eles o chamam?", perguntou Klaus.
"Crianças, crianças", disse o sr. Poe, fazendo-se sério. "Menos perguntas.”
Tio Monty sorriu para os órfãos.
"Tudo bem, as perguntas demonstram uma cabeça inquisitiva. A palavra inquisitiva significa...”
"Sabemos o que significa", disse Klaus. "Cheia de perguntas."
"Bem, se você sabe o que isso significa", disse o tio Monty estendendo uma grande cenoura para Sunny, "então deveria saber o que é herpetologia”.
"É o estudo de alguma coisa", disse Klaus. "Sempre que uma palavra termina por logia, é o estudo de alguma coisa."
"Cobras!", exclamou o tio Monty. "Cobras, cobras, cobras! É o que eu estudo! Adoro cobras, de todos os tipos, e dou a volta ao mundo à procura de espécies diferentes para estudar aqui no meu laboratório! Não é interessante?"
"É interessante, sim", disse Violet. "Muito interessante. Mas não é perigoso?"
"Não, se você estiver informado sobre os animais", disse o tio Monty. "Sr. Poe, o senhor gostaria também de uma cenoura crua? O senhor mal tocou no seu bolo."
O sr. Poe enrubesceu e tossiu no seu lenço por um bom tempo antes de responder:
"Não, obrigado, dr. Montgomery."
Tio Monty deu uma piscadela para os garotos.
"Se quiser, o senhor também pode me chamar de tio Monty, sr. Poe."
"Obrigado, tio Monty", disse o sr. Poe sem muita naturalidade. "Agora quem tem uma pergunta a fazer sou eu. O senhor mencionou há pouco que faz a volta ao mundo. Há alguém que virá tomar conta das crianças quando o senhor estiver fora colhendo espécimes?"
"Já temos bastante idade para cuidarmos de nós mesmos", apressou-se em dizer Violet, embora no íntimo ela não tivesse tanta certeza. A linha de pesquisa do tio Monty parecia interessante, mas ela não sabia de fato se estava preparada para ficar sozinha com seus irmãos numa casa cheia de cobras.
"Nem pensar nisso!", disse o tio Monty. "Vocês três têm que vir comigo. Daqui a dez dias partimos para o Peru, e quero vocês metidos na floresta ao meu lado."
"É mesmo?", disse Klaus. Por trás dos óculos, seus olhos brilhavam de empolgação. "O senhor nos levaria na viagem ao Peru?"
"Só posso ter prazer em contar com a ajuda de vocês!", disse o tio Monty, estendendo o braço para dar uma mordida no pedaço de bolo de Sunny. Gustavo, meu assistente principal, deixou-me uma inesperada carta de demissão ontem mesmo. Há um homem chamado Stephano que eu contratei para assumir o lugar dele, mas que chegará só daqui a mais ou menos uma semana, de forma que estou bem atrasado nos preparativos para a expedição. Preciso de alguém que verifique se as armadilhas para cobras estão funcionando direito, do contrário a gente corre o risco de machucar os espécimes colhidos. Preciso de alguém que leia e se informe sobre o território do Peru para que a gente possa atravessar a floresta sem problemas. E alguém tem que cortar uma enorme extensão de corda em pedaços pequenos para que a gente possa trabalhar."
"Eu me interesso por mecânica", disse Violet, lambendo o seu garfo, "e por isso gostaria de aprender sobre armadilhas para cobras."
"Eu sou fascinado por guias e mapas", disse Klaus, limpando a boca com um guardanapo. "Adoraria ler e me informar sobre o território peruano."
"Eojip!", gritou Sunny, dando uma bela mordida na cenoura. Provavelmente quis dizer alguma coisa do tipo "Adoraria roer uma enorme extensão de corda até ela ficar em pedacinhos para que a gente possa trabalhar!".
"Ótimo!", exclamou o tio Monty. "Fico feliz de vocês terem esse entusiasmo todo. Vai me facilitar as coisas na falta de Gustavo. Foi muito estranho ele ter desistido assim, em cima da hora. Uma grande falta de sorte perder um colaborador tão bom." O rosto do tio Monty anuviou-se — expressão que aqui quer dizer "assumiu certo ar melancólico quando o tio Monty pensou em sua má sorte" —, mas se ele soubesse a tremenda má sorte que ainda estava por vir dentro em breve não teria desperdiçado um minuto pensando em Gustavo. Bem que eu gostaria — e vocês também, tenho certeza — de poder recuar no tempo e avisá-lo, mas não é possível, as coisas são como são. Tio Monty também parecia estar pensando que as coisa? são como são quando balançou a cabeça e sorriu, expulsando os pensamentos perturbadores. "Bom, vamos começar. O que existe é o presente, sempre digo. Por que não levam o sr. Poe até o carro? Depois eu levo vocês à Sala dos Répteis."
Os três Baudelaire, que haviam mostrado tanta apreensão quando passaram pelos arbustos com a forma de cobras na primeira vez, agora fizeram o mesmo trajeto até o carro do sr. Poe correndo na maior algazarra e sem a menor preocupação.
"Ouçam, crianças", disse o sr. Poe tossindo no seu lenço, "estarei aqui de volta dentro de mais ou menos uma semana para trazer a bagagem de vocês e certificar-me de que está tudo bem. Compreendo que o dr. Montgomery possa intimidar vocês um pouco, mas tenho certeza de que com o tempo vocês se acostumarão com..."
"Ele não nos intimida nem um pouco", interrompeu Klaus. "Parece uma pessoa muito fácil de se lidar."
"Não vejo a hora de conhecer a Sala dos Répteis", disse Violet, empolgada.
"Miiika!", disse Sunny, provavelmente com o sentido de "Adeus, sr. Poe. Obrigada por ter nos trazido de carro".
"Bem, adeus", disse o sr. Poe. "Lembrem-se que é uma corrida rápida de carro, da cidade até aqui, por favor me procurem, liguem para mim ou falem com qualquer outra pessoa na Administração de Multas se estiverem precisando de ajuda. Breve nos veremos." Acenou com o lenço, meio sem jeito, entrou no carro minúsculo e desceu a rampa de cascalho até pegar a estrada no Mau Caminho. Violet, Klaus e Sunny acenaram em resposta, esperando que o sr. Poe se lembrasse de fechar as janelas do carro para tornar menos insuportável o cheiro penetrante da raiz-forte.
"Bambini!", gritou o tio Monty da porta da frente. "Venham, bambini!"
Os órfãos Baudelaire voltaram numa correria por entre as fileiras de arbustos até onde o novo tutor os estava esperando.
"Violet, tio Monty", disse Violet. "Meu nome é Violet, meu irmão é Klaus e minha irmã mais nova é Sunny. Nenhum de nós se chama Bambini."
"Bambini é como se diz 'crianças' em italiano", explicou o tio Monty. "Me deu uma súbita vontade de falar um pouco de italiano. Estou tão empolgado de ter vocês aqui comigo! Sorte de vocês eu não estar dizendo qualquer bobagem que me venha à cabeça..."
"O senhor nunca teve filhos?", perguntou Violet.
"É uma pena, mas não", disse o tio Monty. "Sempre pensei em encontrar uma esposa e começar uma família, mas hoje é uma coisa, amanhã é outra, o projeto foi ficando para depois... Que tal eu mostrar para vocês a Sala dos Répteis?"
"Sim, por favor", disse Klaus.
Tio Monty passou com eles pelo quadro com o tema das cobras, no hall de entrada, e levou-os para um grande espaço que tinha uma escada imponente e pé-direito altíssimo.
"Os quartos ficam lá em cima", disse o tio Monty com um gesto que apontava para o alto da escada. Cada um pode escolher o quarto que preferir e arredar os móveis conforme o gosto de vocês. Estou sabendo que o sr. Poe ficou de trazer a bagagem de vocês mais tarde naquele carrinho minúsculo dele, por isso façam por favor uma lista do que vão precisar, e amanhã a gente vai à cidade e compra tudo, para que vocês não passem os próximos dias sem trocar a roupa de baixo."
"Cada um de nós tem mesmo um quarto separado?", perguntou Violet.
"Claro", disse o tio Monty. "Vocês não esperavam que eu amontoasse os três num único quarto, com essa casa enorme que eu tenho, não é? Que espécie de pessoa faria uma coisa dessas?"
"O conde Olaf fez."
"É verdade, o sr. Poe me contou", disse o tio Monty fazendo uma careta como se tivesse provado algo com sabor horrível. "Imagino a pessoa detestável que é esse tal de conde Olaf. Espero que seja trucidado por animais ferozes algum dia. Não seria justo? Bem, aqui estamos: a Sala dos Répteis."
Tio Monty estava diante de uma porta de madeira muito alta com uma maçaneta também muito grande bem no centro. Era tão alta que ele precisava ficar na ponta dos pés para abri-la. Quando finalmente a porta se abriu rangendo nas dobradiças, os órfãos Baudelaire depararam com uma visão que os deixou pasmos de espanto e encantamento.
A Sala dos Répteis era toda de vidro, com paredes altas e transparentes de vidro e um teto de vidro altíssimo que se erguia convergindo para um ponto, como o interior de uma catedral. Através das paredes transparentes podia-se ver o gramado e os arbustos que formavam o campo verde-claro do lado de fora, por isso, na Sala dos Répteis a sensação era de se estar dentro e fora ao mesmo tempo. Mas, por mais notável que a sala fosse em si mesma, muito mais emocionante era o que se achava dentro dela. Os répteis estavam distribuídos em gaiolas de metal trancadas que se apoiavam sobre mesas de madeira formando quatro fileiras bem demarcadas de um extremo a outro da sala. Havia todo tipo de cobras, naturalmente, mas também lagartos, sapos* e outros animais do gênero que as crianças nunca haviam visto antes, nem sequer em fotos ou no zoológico. Havia um sapo muito gordo com duas asas que saíam das costas, e um lagarto de duas cabeças com listras amarelas brilhantes na barriga. Havia uma cobra que tinha três bocas, uma em cima da outra, e uma cobra que parecia não ter boca nenhuma. No poleiro dentro da gaiola, um lagarto que se parecia com uma coruja, com olhos esgazeados voltados para as crianças, e um sapo que era igualzinho a uma igreja, sem faltar os olhos de vitral. E havia uma gaiola coberta com uma toalha branca, que não deixava ninguém ver nada do que se achava em seu interior. As crianças percorreram de cabo a rabo as passagens entre as gaiolas, olhando uma por uma num silêncio de espanto. Alguns dos bichos pareciam amigáveis, outros assustadores, mas todos, sem exceção, fascinantes, e os Baudelaire demoravam-se examinando cada um deles com a máxima atenção — Klaus levantava Sunny em seus braços para que ela também pudesse apreciar os animais.
(*) Onde estaria a cabeça do autor quando incluiu na coleção de répteis do dr. Montgomery animais que notoriamente são anfíbios? Répteis são cobras e lagartos. (N. T.)

Os órfãos mostraram-se tão interessados nas gaiolas que só vieram a perceber o que havia no extremo mais distante da sala depois de ter percorrido cada mesa em toda a sua extensão, e, ao chegar ao extremo mais distante, novamente se quedaram pasmos de espanto e encantamento. Pois ali, onde terminavam as fileiras e mais fileiras de gaiolas, havia fileiras e mais fileiras de estantes de livros, cada qual fornida de volumes dos mais diferentes tamanhos e formas, em arrumação conjugada, num dos cantos, com mesas, cadeiras e abajures para leitura. Com certeza vocês se lembram de que os Baudelaire pais tinham uma enorme coleção de livros, dos quais os órfãos recordavam com carinho e cuja falta sentiam horrivelmente, tanto que, desde o pavoroso incêndio, conhecer alguém que apreciasse os livros tanto quanto eles era sempre uma alegria para os meninos. Violet, Klaus e Sunny examinaram os volumes com o mesmo cuidado que dispensaram às gaiolas de répteis, e logo se deram conta de que a maioria dos livros tratava de cobras e de outros répteis. Parecia que todos os livros já escritos sobre répteis, desde Uma introdução aos grandes lagartos até Como criar e alimentar a Cobra Andrógina, estavam presentes nas estantes, e as três crianças, Klaus sobretudo, estavam ansiosos para ler sobre os espécimes representados na Sala dos Répteis.
"Este é um lugar extraordinário", disse finalmente Violet, quebrando o longo silêncio.
"Obrigado", disse o tio Monty. "Levei uma vida inteira para organizá-lo."
"E o senhor vai realmente nos dar licença de entrar aqui?", perguntou Klaus.
"Dar licença?", repetiu o tio Monty. "Claro que não! Vou implorar a vocês que entrem, meu garoto. A partir de amanhã de manhã bem cedo, todos temos que vir aqui diariamente trabalhar nos preparativos para a expedição ao Peru. Vou esvaziar uma dessas mesas para você, Violet, a fim de que trabalhe nas armadilhas. Klaus, espero que leia todos os livros que eu tenho sobre o Peru, fazendo anotações cuidadosas. E Sunny pode sentar-se no chão e roer corda. Trabalharemos o dia inteiro até a hora do jantar, e depois do jantar iremos ao cinema. Alguma objeção?"
Violet, Klaus e Sunny entreolharam-se sorridentes. Alguma objeção? Os órfãos Baudelaire tinham vivido a experiência de morar com o conde Olaf, que os mandava cortar lenha, tirar a mesa e lavar a louça para convidados bêbados, enquanto planejava meter a mão na fortuna dos irmãos. Tio Monty acabara de descrever uma forma deliciosa de passar o tempo, e as crianças voltaram para ele seus rostinhos radiantes. Claro que não haveria nenhuma objeção. Violet, Klaus e Sunny, com os olhos fixos na Sala dos Répteis, constataram que viver com o tio Monty significava o fim de suas amarguras e dificuldades. Estavam enganados, é claro, ao pensar que os tempos difíceis haviam terminado, mas, naquele momento pelo menos, os três irmãos viviam um momento de animação, esperança e felicidade.
"Não, não, não", gritou Sunny, aparentemente respondendo à pergunta do tio Monty.
"Que bom, que bom, que bom", disse o tio Monty sorrindo. "Agora vamos ver os quartos e decidir quem fica com qual."
"Tio Monty?", Klaus disse timidamente. "Eu tenho uma pergunta."
"E quai é?", disse o tio Monty.
"O que é que tem dentro daquela gaiola coberta com a toalha?"
Tio Monty olhou para a gaiola, depois para os meninos. Seu rosto iluminou-se com um sorriso de pura alegria.
"Ali, meus queridos, está uma cobra que eu trouxe de minha última viagem. Só foi vista até hoje por Gustavo e por mim. Mês que vem vou apresentá-la à Sociedade Herpetológica como uma nova descoberta, mas, antes disso, dou aqui minha permissão a vocês para uma espiada secreta. Juntem-se para ver."
Os órfãos Baudelaire seguiram o tio Monty até a gaiola coberta, diante da qual, com um gesto rápido de pura ostentação (só para "se mostrar", como num número de mágica), ele puxou o pano e destapou a gaiola. Dentro estava uma grande cobra negra, de um negrume de mina de carvão e grossa como um cano de esgoto, olhando firme para os garotos com radiosos olhos verdes. Removido o pano que tapava a gaiola, a cobra começou a se desenrolar e deslizar pela sua habitação.
"Como fui eu que a descobri", disse o tio Monty, "cabe a mim dar um nome a ela."
"E como é que ela se chama?"
"Víbora Incrivelmente Mortífera", respondeu o tio Monty, e nesse exato momento aconteceu algo que, tenho absoluta certeza, interessará muito a vocês. Com um movimento do rabo, a cobra soltou a trava que mantinha a porta de sua gaiola fechada, deslizou para cima da mesa e, antes que o tio Monty ou qualquer dos órfãos Baudelaire pudesse dizer alguma coisa, ela abriu a boca e mordeu o queixo de Sunny.
CAPÍTULO
Três



Peço muitas, mas muitas, muitas desculpas, por ter deixado vocês em suspenso desse jeito, mas é que eu estava escrevendo a história dos órfãos Baudelaire quando olhei para o relógio e vi que estava atrasado para um jantar de cerimônia de uma amiga minha, madame diLustro. Madame diLustro é ótima amiga, excelente detetive, e cozinha que é uma maravilha, mas fica uma fúria se a pessoa chega cinco minutos depois da hora estabelecida no convite. Vocês me entendem, não? Não tive outro jeito senão interromper tudo. Vocês devem ter pensado, no final do capítulo anterior, que Sunny morreu e que essa foi a coisa terrível que aconteceu aos Baudelaire na casa do tio Monty, mas prometo a vocês que Sunny sobrevive a esse episódio. Quem vai morrer, infelizmente, é o tio Monty, mas não agora.
Quando as presas da Víbora Incrivelmente Mortífera cerraram-se sobre o queixo de Sunny, Violet e Klaus testemunharam com horror os olhinhos de Sunny se fecharem e o rosto ficar inerte. Até que, num movimento tão súbito quanto o da cobra, Sunny sorriu luminosamente, abriu a boca e mordeu a Víbora Incrivelmente Mortífera bem no seu minúsculo focinho escamado. A cobra soltou o queixo da menina, e Violet e Klaus puderam ver que a marca deixada na pele de Sunny era quase insignificante. Os dois Baudelaire mais velhos olharam para o tio Monty, tio Monty retribuiu-lhes o olhar e caiu na gargalhada. A sonora gargalhada do tio ricocheteou nas paredes de vidro da Sala dos Répteis.
"Tio Monty, que podemos fazer?", disse Klaus, tomado de desespero.
"Desculpem-me, meus queridos", disse o tio Monty enxugando os olhos com as mãos. "Vocês devem estar muito assustados. Mas a Víbora Incrivelmente Mortífera é uma das criaturas menos perigosas e mais amigáveis do reino animal. Sunny não tem por que se preocupar, nem vocês."
Klaus olhou para sua irmãzinha, que ele ainda sustinha em seus braços, e ela, brincalhona, deu um forte abraço no corpo grosso da Víbora Incrivelmente Mortífera; Klaus então compreendeu que o tio Monty estava dizendo a verdade.
"Mas, nesse caso, por que chamá-la de Víbora Incrivelmente Mortífera?"
Tio Monty voltou a rir.
"É um nome inapropriado", disse ele, usando uma palavra que aqui tem o sentido de "enganoso". "Como eu a havia descoberto, tinha que lhe dar o nome, lembram-se? Não contem a ninguém sobre a Víbora Incrivelmente Mortífera, porque vou apresentá-la à Sociedade Herpetológica e pregar um bom susto ao pessoal antes de explicar que a cobra é inteiramente inofensiva! Só Deus sabe o quanto e quantas vezes eles caçoaram de mim por causa do meu nome. 'Alô alô, Montgomery Montgomery', diziam. 'Como vai como vai, Montgomery Montgomery?' Mas na conferência deste ano vou dar o troco a eles com esse trote." Tio Monty empertigou-se todo e começou a falar com uma voz meio ingênua, do tipo que os cientistas usam para se expressar: "'Colegas (direi na ocasião), gostaria de apresentar-lhes uma nova espécie, a Víbora Incrivelmente Mortífera, que descobri na floresta do Sudeste de... meu Deus! Ela escapou!' E então, quando meus colegas herpetologistas tiverem subido em mesas e cadeiras, gritando apavorados, contarei para eles que a cobra seria incapaz de fazer mal a uma mosca! Não vai ser de matar de rir?".
Violet e Klaus entreolharam-se, e começaram as gargalhadas, em parte aliviados por nada ter acontecido à sua irmã, em parte divertidos por terem achado que o trote do tio Monty tinha, de fato, muita graça.
Klaus pôs Sunny no chão, e a Víbora Incrivelmente Mortífera não se fez esperar, indo logo para junto da menina, em quem enroscou seu rabo afetuosamente, da mesma forma como passamos o braço em volta de alguém por quem sentimos carinho.
"Por acaso, há nesta sala cobras que sejam perigosas?", perguntou Violet.
"Claro", disse o tio Monty. "Você não tem como estudar cobras durante quarenta anos sem encontrar algumas que sejam perigosas. Tenho um armário só para guardar amostras de veneno colhidas de todas as cobras venenosas conhecidas, a fim de estudar como esse veneno age sobre as pessoas. Há uma cobra aqui nesta sala cujo veneno é tão mortal que faz o coração da vítima parar antes mesmo de ela perceber que foi mordida. Há uma cobra que pode abrir uma boca tão grande que daria para nos engolir todos juntos numa mesma bocada. E algumas dessas cobras são tão irresponsáveis dirigindo um carro que podem atropelar uma pessoa na rua sem nem ao menos parar para pedir desculpas. Mas, vejam bem, todas elas estão em gaiolas com cadeados de segurança máxima, e pode-se lidar sem medo com elas depois de tê-las estudado bastante. Prometo a vocês que, se fizerem o esforço necessário para se informarem bem a respeito do assunto, não terão nada a temer aqui na Sala dos Répteis."
Há um tipo de situação, que acontece freqüentemente e que está acontecendo neste ponto da história dos órfãos Baudelaire, que foi chamada de "ironia dramática". Em poucas palavras, a ironia dramática ocorre quando uma pessoa faz um comentário inocente, e outra pessoa que o escuta está sabendo de alguma coisa que faz com que esse comentário tome um sentido diferente, em geral desagradável. Por exemplo, se estivéssemos num restaurante e disséssemos em voz alta "Não vejo a hora de comer essa vitela ao molho de mostarda", e houvesse por perto pessoas sabendo que a vitela ao molho de mostarda estava envenenada e que vocês morreriam ao dar a primeira dentada, a situação seria bem o que se poderia chamar de "ironia dramática". A ironia dramática é uma ocorrência cruel (por isso também se pode falar dela como "ironia cruel") quase sempre inquietante, e lamento muito tê-la feito surgir nesta história, mas, tendo Violet, Klaus e Sunny as vidas desgraçadas que têm, mais cedo ou mais tarde essa ironia acabaria fazendo sua repelente aparição.
Ao ouvirmos, vocês leitores e eu, o tio Monty dizer aos três órfãos Baudelaire que eles nunca terão nada a temer na Sala dos Répteis, a sensação que isso nos causa é a mesma que acompanha a chegada da ironia dramática. É uma sensação próxima do frio no estômago que se sente num elevador que dá uma descida brusca, ou quando se está bem aconchegado debaixo dos lençóis e a porta do armário de repente se abre com um rangido e revela a pessoa que estava escondida lá dentro. Pois, por mais seguras e felizes que as crianças estejam se sentindo, por mais confortadoras que tenham sido as palavras do tio Monty, vocês leitores e eu sabemos que o tio não demorará a morrer e os Baudelaire vão ficar na pior outra vez.
Na semana que se seguiu, entretanto, os meninos viveram muito felizes no novo lar. Todas as manhãs acordavam e se vestiam na privacidade dos seus quartos individuais, que cada qual havia escolhido e decorado a seu gosto. Violet escolhera um quarto com uma enorme janela que dava para os arbustos com a forma de cobras no gramado da frente. Ela achou que essa vista poderia inspirá-la quando estivesse inventando coisas. Tio Monty lhe permitiu pregar com tachinhas grandes folhas de papel em cada uma das paredes, para que pudesse anotar esquemas de suas idéias, mesmo se elas ocorressem no meio da noite. Klaus tinha escolhido um quarto que tinha um cantinho especial formado por um vão de parede, onde ele conseguia isolar-se por completo para ler. Com a permissão do tio Monty, ele havia carregado uma ampla poltrona estofada da sala de estar, instalando-a no seu cantinho, à luz de uma grande luminária de pé. Em vez de ler na cama, Klaus preferia se aninhar na poltrona todas as noites com um livro da biblioteca do tio, às vezes prolongando a leitura até de manhã. Sunny havia escolhido um quarto que ficava exatamente entre o de Violet e o de Klaus, para onde levara objetos pequenos e duros recolhidos por toda parte na casa, a fim de poder mordê-los sempre que tivesse vontade. Em seu quarto havia também uma variedade de brinquedos do agrado da Víbora Incrivelmente Mortífera, de modo que as duas pudessem brincar juntas à vontade — sem ultrapassar os limites do razoável, é claro.
Mas onde os Baudelaire mais gostavam de ficar era na Sala dos Répteis. Todas as manhãs, depois do café, juntavam-se ao tio Monty, que já se encontrava lá trabalhando nos preparativos para a expedição. Violet sentava-se a uma mesa com as cordas, engrenagens e gaiolas usadas na confecção das diferentes armadilhas para cobras, aprendendo como funcionavam, consertando as peças quebradas e ocasionalmente introduzindo melhoramentos que tornassem as armadilhas mais confortáveis para as cobras na longa viagem do Peru à casa do tio Monty. Klaus ficava sentado ali perto, lendo os livros sobre o Peru que havia na biblioteca do tio, tomando notas num bloco de papel a que pudessem recorrer mais tarde. E Sunny sentava-se no chão, roendo com entusiasmo uma longa corda de modo a reduzi-la a fragmentos que pudessem ser usados depois. Os Baudelaire estavam simplesmente encantados de aprender com o tio Monty tudo sobre os répteis. Enquanto trabalhavam, ele lhes mostrava o Lagarto-Vaca do Alasca, criatura verde e alongada que produzia um leite delicioso. Eles conheceram o Sapo Dissonante, que sabia imitar a fala humana com uma voz rouca e áspera, como de cascalhos em atrito. Tio Monty ensinou-os a segurar o Tritão Tintureiro sem sujar os dedos com sua tinta preta, e mostrou como saber quando a Irascível Píton estava de mau humor e era preferível deixá-la em paz. Ensinou-os a não dar água demais ao Sapo Barriga Verde, e preveniu-os de que nunca, em hipótese alguma, deveriam deixar que a Cobra-Lobo da Virgínia chegasse perto de uma máquina de escrever.
Ao falar-lhes dos diferentes répteis, tio Monty muitas vezes emendava no assunto — expressão que aqui significa "deixava a conversa enveredar por" — histórias de suas viagens, descrevendo os homens, cobras, mulheres, sapos, crianças e lagartos que havia conhecido em suas andanças pelo mundo. Não demorou muito e os órfãos Baudelaire estavam contando ao tio Monty tudo sobre suas próprias vidas, chegaram até a falar de seus pais e de como sentiam saudades deles. Tio Monty mostrava-se tão interessado pelas histórias dos meninos como eles pelas suas, e houve ocasiões em que a conversa se prolongou tanto que eles mal tiveram tempo de engolir o jantar e enfiar-se no apertado jipe do tio Monty para ir ao cinema.
Certa manhã, quando as três crianças terminaram de tomar o café e foram para a Sala dos Répteis, não encontraram tio Monty, mas apenas um bilhete deixado por ele:
Queridos bambini,
Fui à cidade comprar as últimas coisas que faltam para a expedição: repelente para vespas peruanas, escovas de dente, pêssegos em calda e uma canoa à prova de fogo. Vai demorar um pouco até eu encontrar os pêssegos, então não esperem que eu esteja de volta para o jantar.
Stephano, o substituto de Gustavo, chegará hoje de táxi. Dêem-lhe boa acolhida. Como sabem, faltam apenas dois dias para a expedição, por isso lhes peço que trabalhem bastante hoje.
Seu tio exultante, Monty
"Que significa exultante?", perguntou Violet quando acabaram de ler o bilhete.
"Fora de si e empolgado", disse Klaus, que aprendera a palavra numa antologia de poesia para a primeira série. "Acho que ele está se referindo à empolgação de ir para o Peru. Ou talvez esteja empolgado com a perspectiva de ter um novo assistente."
"Ou talvez esteja empolgado conosco", disse Violet.
"Tudu!", gritou Sunny, provavelmente querendo dizer "Ou talvez esteja empolgado com todas essas coisas".
"Eu próprio me sinto meio empolgado", disse
Klaus. "É mesmo bastante divertido morar com o tio Monty."
"Não tenha a menor dúvida", concordou Violet. "Depois do incêndio, achei que nunca mais voltaria a ser feliz. Mas esse tempo que passamos aqui tem sido magnífico."
"Mesmo assim, sinto falta de nossos pais", disse Klaus. "Por mais legal que o tio Monty seja, como eu gostaria de ainda estar morando em nossa casa de verdade!"
"É claro", disse Violet na mesma hora. Fez uma pausa e, lentamente, como se estivesse pensando em voz alta, expressou uma idéia que vinha remoendo nos últimos dias. "Acho que sempre sentiremos falta de nossos pais. Mas acho também que podemos sentir saudades deles sem que seja preciso estar sofrendo o tempo todo. Afinal de contas, eles não iam querer nos ver sofrendo."
"Lembram-se daquela vez", disse Klaus, tristonho, "quando estávamos entediados numa tarde chuvosa e todos pintamos as unhas do pé de vermelho-vivo?"
"Lembro", disse Violet abrindo um sorriso, "e eu derramei o esmalte na poltrona amarela”.
"Plaplá!", disse Sunny, tranqüila, o que provavelmente significava algo como "E a mancha nunca mais saiu". Os órfãos Baudelaire sorriram entre si e, sem mais uma palavra, começaram o trabalho do dia. Pelo resto da manhã trabalharam com calma e sem interrupção, conscientes de que o prazer de estar morando na casa do tio Monty não apagara a morte de seus pais, de maneira alguma, mas pelo menos havia servido para fazer com que se sentissem melhor depois de ficarem tão tristes por tanto tempo.
É uma lástima, sem dúvida, que este momento de sossego e felicidade tenha sido o último que as crianças desfrutariam por um bom período dali para a frente, mas não há nada que se possa fazer agora para mudar a situação. Bem quando os Baudelaire começavam a pensar no almoço, ouviram um carro estacionar diante da casa e tocar a buzina. Para as crianças, era um sinal de que Stephano havia chegado. Para nós, uma indicação de que mais sofrimento estava para começar.
"Espero que seja o novo assistente", disse Klaus, erguendo os olhos de O grande catálogo peruano das pequenas cobras no Peru. "E espero que seja tão legal quanto Monty."
"Eu também", disse Violet, abrindo e fechando uma armadilha para sapos a fim de verificar se funcionava direito. "Seria desagradável viajar para o Peru com alguém que fosse chato ou mesquinho."
"Pajá!", gritou Sunny, o que provavelmente significava algo do tipo "Bem, vamos lá ver que tal é o Stephano!".
Os Baudelaire deixaram a Sala dos Répteis e saíram pela porta da frente da casa, deparando com um táxi estacionado perto dos arbustos com forma de cobras. Um homem muito alto e magro, com uma barba comprida e sem sobrancelhas acima dos olhos saía da porta traseira do carro, carregando uma maleta preta fechada com um cadeado de prata que brilhava.
"Não vou lhe dar gorjeta", o barbudo dizia ao motorista do táxi, "porque você fala demais. Não é todo mundo que está a fim de ouvir histórias de seu novo bebê, entende? Ei, olá, vocês aí. Sou Stephano, o novo assistente do dr. Montgomery. Como estão?"
"Como vai o senhor?", disse Violet e, ao se aproximar do recém-chegado, ela sentiu que havia algo de vagamente familiar no chiado que acompanhava a voz dele.
"Como vai?", disse Klaus, e ao encarar Stephano notou que havia algo de muito familiar no brilho intenso dos olhos dele.
"Uuuda!", gritou Sunny. Stephano não estava usando meias, e Sunny, engatinhando no chão de terra, pôde ver a pele do tornozelo nu entre a bainha da calça e o sapato. Naquele tornozelo havia algo que lhes era mais familiar do que tudo.
Os órfãos Baudelaire tiveram o mesmo pensamento ao mesmo tempo, e recuaram um passo como costumamos fazer diante de um cachorro que se põe a latir. Esse homem não era Stephano, por mais que quisesse se fazer passar por Stephano. Os três olharam para o novo assistente do tio Monty, encarando-o da cabeça aos pés, e viram que não era outro senão o conde Olaf. Podia ter raspado sua longa sobrancelha duas-em-uma, podia ter deixado crescer uma barba no seu queixo ossudo, mas a tatuagem de um olho em seu tornozelo era mais reveladora que qualquer sinal de nascença.



CAPÍTULO
Quatro

Uma das coisas mais difíceis da vida é pensar nos arrependimentos. Algo nos acontece, então fazemos o que não deveríamos ter feito e, anos depois, desejaremos que tivéssemos agido de outra forma. Por exemplo, às vezes quando estou caminhando pela praia, ou visitando o túmulo de um amigo, de repente começo a me lembrar de um dia, muito tempo atrás, quando deixei de levar uma lanterna para um lugar onde era indispensável ter uma e os resultados foram desastrosos. Por que não levei uma lanterna? penso comigo mesmo, apesar de já ser tarde demais para fazer qualquer coisa a respeito. Eu deveria ter levado uma lanterna.
Anos depois de ter acontecido aquele episódio na vida dos órfãos Baudelaire, Klaus ainda pensava no momento em que ele e suas irmãs perceberam que Stephano era na verdade o conde Olaf, e morria de arrependimento por não ter chamado o motorista do táxi quando ele começava a manobrar para descer a rampa e voltar à estrada. Pare! Klaus pensava consigo mesmo, embora fosse tarde demais para fazer qualquer coisa a respeito. Pare! Leve esse homem daqui!Claro, é perfeitamente compreensível que Klaus e suas irmãs, tomados por uma surpresa tão grande, não conseguissem agir com a rapidez necessária, mas, anos depois, deitado na cama, Klaus amargava o pensamento de que talvez, não era certo mas talvez, se houvesse agido a tempo, poderia ter salvado a vida do tio Monty.
Mas não agiu. Enquanto os órfãos Baudelaire olhavam para o conde Olaf, o táxi fez a manobra de volta e as crianças ficaram a sós com sua nêmesis (palavra que aqui significa "o pior inimigo que se possa imaginar"). Olaf sorriu para eles da mesma maneira que a Cobra Perversa Mongol do tio Monty sorria quando colocavam um rato branco na gaiola diariamente para ela almoçar.
"Um de vocês poderia fazer a gentileza de carregar minha mala até o meu quarto", sugeriu Olaf com sua voz "arranhada". "A viagem ao longo daquela estrada fedorenta foi tediosa e desagradável, por isso estou muito cansado."
"Se existe alguém que, mais do que qualquer pessoa, mereça viajar pelo Mau Caminho", disse Violet, com o olhar penetrante fixo nele, "esse alguém é você, conde Olaf. Nós com toda a certeza não o ajudaremos de forma alguma com sua bagagem, porque simplesmente não deixaremos que entre nesta casa."
Olaf franziu a cara para os órfãos, e depois olhou numa e noutra direção como se esperasse ver alguém escondido por trás dos arbustos em forma de cobras.
"Quem é conde Olaf?", perguntou muito admirado. "Meu nome é Stephano. Estou aqui para dar assistência a Montgomery Montgomery em sua próxima expedição ao Peru. Presumo que vocês três sejam anões que trabalham como criados na casa de Montgomery."
"Não somos anões", disse Klaus com firmeza. "Somos crianças. E você é o conde Olaf. Pode ter deixado crescer barba e raspado a sobrancelha, mas continua a ser a mesma pessoa desprezível e não deixaremos que entre nesta casa."
"Futa!", gritou Sunny, provavelmente querendo significar algo como "De acordo!".
O conde Olaf encarou cada um dos órfãos Baudelaire com o mesmo brilho intenso nos olhos que ele exibia quando contava uma piada.
"Não sei do que estão falando", disse, "mas, ainda que soubesse e que eu fosse mesmo esse conde Olaf como vocês estão me dizendo que eu sou, não poderia deixar de considerar vocês muito grosseiros. E se eu considerasse que vocês estão sendo grosseiros, poderia me zangar. E, se eu me zangasse, vai saber o que eu poderia fazer?"
As crianças viram o conde Olaf levantar os braços magrelos como se encolhesse os ombros. Provavelmente não é preciso lembrar a vocês o quanto ele podia ser violento, e com absoluta certeza tampouco seria necessário lembrar aos Baudelaire. Klaus ainda podia sentir no rosto o machucado de quando o conde Olaf lhe batera na época em que moravam na casa dele. Sunny ainda sentia o corpo doer por ter ficado espremida dentro de uma gaiola de passarinho e pendurada no alto da torre onde o perverso conde arquitetava seus planos. E, apesar de não ter sido vítima de nenhuma violência física por parte daquele homem terrível, Violet quase foi forçada a casar-se com ele, o que bastou para fazê-la pegar a mala dele e arrastá-la vagarosamente em direção à porta da casa.
"Suspenda mais", disse Olaf. "Levante mais um pouco. Não quero ver a mala se arrastar pelo chão desse jeito."
Klaus e Sunny apressaram-se para ajudar Violet, mas mesmo os três fazendo força para carregar a mala o peso era tanto que os fazia cambalear. Já era sofrimento demais o simples reaparecimento do conde Olaf na vida deles, justamente quando sentiam tanto conforto e segurança na casa do tio Monty. Mas ajudar essa horrível pessoa a entrar na casa deles, aí já era exigir das crianças mais do que seriam capazes de suportar! Olaf seguia-as bem de perto, de modo que as três puderam sentir o hálito pesado dele enquanto levavam a mala para dentro, até pousá-la no carpete logo embaixo do quadro com as duas cobras enlaçadas.
"Obrigado, órfãos", disse Olaf, fechando a porta atrás dele. "Bem, o dr. Montgomery disse que reservou para mim um quarto lá em cima. Acho que posso subir com a minha bagagem. Agora, retirem-se. Mais tarde vamos ter muito tempo para nos conhecer melhor."
"Nós já conhecemos você, conde Olaf", disse Violet. "É evidente que não mudou nada."
"Vocês também não", disse Olaf. "Posso ver claramente que você, Violet, continua a mesma teimosa de sempre. E você, Klaus, sempre com esses óculos idiotas, por ler livros demais. E dá para ver que Sunny continua a ter nove dedos nos pés em vez de dez”.
"Pel!", gritou Sunny, o que provavelmente significava algo como "Não tenho não!".
"Do que é que você está falando?", perguntou Klaus, impaciente. "Ela tem dez dedos no pé como todo mundo."
"É mesmo?", disse Olaf. "Estranho. Lembro-me de que ela perdeu um dos dedinhos num acidente." Seus olhos brilharam mais intensamente, como quando contava uma piada, e ele enfiou a mão no bolso para tirar uma faca comprida, do tipo que se usa para cortar pão. "Estou lembrado de que havia um homem que ficou tão confuso quando começaram a chamá-lo repetidas vezes por um nome errado, que acidentalmente deixou cair uma faca em cima do pezinho de Sunny e fez com que ela perdesse um dos dedos."
Violet e Klaus olharam para o conde Olaf e depois para o pé descalço de sua irmã.
"Você não se atreveria", disse Klaus.
"Não vamos agora discutir o que eu me atreveria ou não me atreveria a fazer", disse Olaf. "Acho que está na hora é de discutir como vocês vão me chamar enquanto estivermos juntos nesta casa."
"Vamos chamá-lo de Stephano, se insiste em nos ameaçar", disse Violet, "mas não estaremos juntos nesta casa por muito tempo."
Stephano abriu a boca para dizer algo, mas Violet não estava interessada em prosseguir na conversa. Virou-lhe as costas e, muito empertigada, cruzou a enorme porta que dava para a Sala dos Répteis, seguida por seus irmãos. Se vocês ou eu tivéssemos estado la, só poderíamos pensar que os órfãos Baudelaire não tinham a menor sombra de medo, falando assim tão corajosos com Stephano e depois simplesmente deixando-o plantado onde estava, mas, assim que as crianças alcançaram o extremo mais distante da sala, as verdadeiras emoções vieram claramente à tona no rosto deles. Os Baudelaire estavam aterrorizados. Violet, com as mãos sobre o rosto, apoiava-se numa das gaiolas das cobras. Klaus afundou numa poltrona, tremendo tanto que se ouvia o chocalhar de seus pés sobre o piso de mármore. E Sunny enroscou-se toda como uma bola no chão, tão minúscula que uma pessoa podia não dar por sua presença ao entrar na sala. Por alguns minutos, nenhum dos três disse nada, com a atenção toda dirigida para os sons abafados dos passos de Stephano subindo a escada e para as batidas de seus próprios corações pulsando nos ouvidos.
"Como será que ele nos descobriu?", perguntou Klaus. Sua voz era um rouco sussurro, como se estivesse com a garganta irritada. "Como será que conseguiu ser assistente do tio Monty? Que é que ele está fazendo aqui?"
"Ele jurou que haveria de embolsar a fortuna dos Baudelaire", disse Violet, retirando as mãos do rosto e abraçando Sunny, que estava com calafrios. "Ele me disse isso um minuto antes de escapar. Disse que ficaria com a nossa fortuna, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida." Violet estremeceu, e não acrescentou que ele também havia dito que, de posse da fortuna, mataria os três irmãos Baudelaire. Nem precisava acrescentar. Violet, Klaus e Sunny sabiam, todos, que se o conde Olaf encontrasse um jeito de se apoderar da fortuna deles passaria uma faca na garganta dos órfãos Baudelaire tão fácil e naturalmente como vocês ou eu comeríamos um biscoitinho amanteigado.
"Que podemos fazer?", indagou Klaus. "Tio Monty só estará de volta daqui a horas."
"Talvez fosse o caso de chamarmos o sr. Poe", disse Violet. "Está no meio do expediente, mas talvez ele possa sair do Banco para uma emergência."
"Ele não acreditaria em nós", disse Klaus. "Lembra-se quando tentamos falar para ele sobre o conde Olaf na época em que morávamos com esse canalha? O sr. Poe levou tanto tempo para perceber a verdade, que quase acabou sendo tarde demais. Acho que deveríamos fugir. Se sairmos agora mesmo, é provável que a gente consiga chegar à cidade e pegar um trem que nos leve para bem longe daqui."
Violet imaginou os três, sozinhos, andando no Mau Caminho por baixo das macieiras carregadas de frutos azedos, com o cheiro ardido de raiz-forte empestando tudo à volta deles.
"Iríamos para onde?", perguntou.
"Para qualquer lugar", disse Klaus. "Qualquer lugar que não fosse aqui. Poderíamos ir para bem longe, onde não desse para o conde Olaf nos descobrir, mudaríamos nossos nomes, ninguém ficaria sabendo quem somos."
"Não temos nenhum dinheiro", observou Violet. "Como conseguiríamos viver por nossa conta?"
"Poderíamos arranjar emprego", respondeu Klaus.
"Eu poderia trabalhar numa biblioteca, quem sabe, e você em alguma fábrica. Sunny provavelmente não conseguiria trabalho com a idade que tem hoje, mas dentro de uns poucos anos..."
Os três órfãos calaram-se. Tentaram imaginar-se deixando a casa do tio Monty e vivendo à própria custa, batalhando por emprego e cuidando uns dos outros. Era um projeto que envolvia muita solidão. Ficaram, por instantes, sentados em triste silêncio, e todos com o mesmo pensamento: como gostariam que os pais não tivessem morrido no incêndio, e que a vida dos três nunca tivesse virado aquela embrulhada da qual não conseguiam mais sair. Se ao menos os Baudelaire pais ainda estivessem vivos, os garotos nem sequer teriam ouvido falar do conde Olaf, que dizer então de suportá-lo invadindo a casa deles e certamente arquitetando planos para lhes fazer mal.
"Não podemos ir embora", disse Violet finalmente. "O conde Olaf já nos achou uma vez, tenho certeza de que nos achará de novo, por mais longe que a gente vá. E tem outra coisa: quem sabe onde estão os assistentes do conde Olaf? Talvez neste exato momento já tenham cercado a casa e estejam na maior vigilância para não deixar que a gente apronte alguma coisa."
Klaus sentiu um calafrio. Ele tinha esquecido os assistentes do conde Olaf. Além de planejar apoderar-se da fortuna dos Baudelaire, Olaf era o cabeça de uma terrível trupe teatral, e seus colegas atores estavam sempre dispostos a ajudá-lo em suas tramas. Era uma equipe de aparência meio horripilante, cada qual mais assustador que o outro. Havia um careca de nariz comprido, que vestia sempre um roupão preto. Havia duas mulheres sempre com o rosto coberto com um pó branco fantasmagórico. Havia uma pessoa tão grandona e de traços tão indefinidos que não se podia dizer que fosse homem ou mulher. E havia um homem magricela que tinha dois ganchos onde deveria haver suas mãos. Violet estava certa. Qualquer uma dessas pessoas podia estar de olho neles, atenta, esperando do lado de fora da casa do tio Monty para apanhá-los se tentassem fugir.
"Acho que simplesmente deveríamos esperar o tio Monty voltar e contar-lhe o que aconteceu", disse Violet. "Ele acreditará na gente. Basta a gente falar da tatuagem, ele no mínimo vai pedir a Stephano uma explicação." O tom de voz com que Violet disse "Stephano" demonstrava o completo desprezo que ela sentia pelo impostor.
"Tem certeza?", disse Klaus. "Afinal de contas foi o tio Monty quem contratou Stephano." O tom da voz de Klaus quando ele disse "Stephano" demonstrava que compartilhava os sentimentos da irmã. "Tudo o que sabemos é que o tio Monty e Stephano planejaram alguma coisa juntos."
"Maida!", gritou Sunny, o que provavelmente significava algo como "Não seja ridículo, Klaus!".
Violet balançou a cabeça:
"Sunny tem razão. Não posso acreditar que o tio Monty esteja de combinação com Olaf. Ele foi tão bom e tão generoso conosco, sem falar que, se estivessem tramando juntos alguma coisa, Olaf não faria questão de usar um nome falso."
"Isso é verdade", disse Klaus, pensativo. "Então esperemos pelo tio Monty."
"Esperemos", concordou Violet.
"Toju", disse Sunny solenemente, e os irmãos se entreolharam, tristes, sem mais uma palavra. Esperar é uma das coisas difíceis da vida. É duro esperar pela sobremesa de torta de chocolate quando o rosbife ainda está no prato. Que tristeza esperar pelo Halloween enquanto ainda falta passar o tedioso mês de setembro. Mas esperar que o tio adotivo voltasse para casa enquanto um homem ganancioso e violento se instalava no andar de cima foi uma das piores esperas de toda a vida dos Baudelaire. Para distrair o pensamento, eles tentaram prosseguir no trabalho, mas a ansiedade era grande demais para que as crianças conseguissem fazer o que quer que fosse. Violet tentou consertar a dobradiça da porta de uma das armadilhas, mas sua concentração estava toda voltada para o nó de preocupação que lhe apertava o estômago. Klaus tentou ler sobre como proteger-se das plantas espinhosas do Peru, mas seu cérebro não conseguia deixar de pensar em Stephano. E Sunny tentava roer a corda, mas um calafrio de medo não parava de percorrer-lhe os dentes e em pouco tempo ela desistiu. Não sentiu sequer vontade de brincar com a Víbora Incrivelmente Mortífera. Então os Baudelaire passaram o resto da tarde sentados em silêncio na Sala dos Répteis, olhando pela janela para ver se o jipe do tio Monty chegava e atentos aos ruídos ocasionais vindos do andar de cima. Nem quiseram pensar no que Stephano poderia estar tirando da mala.
Finalmente, na hora em que os arbustos em forma de cobras começaram a projetar longas sombras com o pôr-do-sol, as três crianças ouviram o som de um motor se aproximando, até que o jipe estacionou. Havia uma grande canoa amarrada à capota do jipe, e o banco de trás estava todo tomado pelas compras do tio Monty. O tio saiu, lutando contra o peso de várias sacolas de compras, e viu as crianças pelas paredes de vidro da Sala dos Répteis. Sorriu para elas. Elas retribuíram o sorriso, e nesse instante em que sorriram criou-se outro momento de arrependimento para eles. Se nio houvessem feito aquela pausa e sorrido para o tio Monty, se em vez disso tivessem saído correndo para o carro, poderiam ter tido um breve momento a sós com ele. Mas, quando o alcançaram no hall de entrada, ele já estava conversando com Stephano.
"Não sabia o tipo de escova de dentes de sua preferência", disse o tio Monty querendo desculpar-se, "de modo que lhe comprei uma com pêlos extra-firmes, que é o tipo de que eu gosto. A comida peruana tem uma tendência a prender-se nos dentes, por isso a gente precisa levar pelo menos uma escova extra."
"Pêlos extrafirmes é uma escolha perfeita", disse Stephano, falando para o tio Monty mas fixando nos órfãos seus olhos intensamente radiosos. "Posso levar a canoa para dentro?"
"Sim, mas, meu Deus, você não pode fazer isso sozinho", disse o tio Monty. "Klaus, por favor, dê uma ajuda a Stephano, está bem?"
"Tio Monty", disse Violet, "temos uma coisa muito importante para falar com você."
"Sou todo ouvidos", disse o tio Monty, "mas antes deixem que eu mostre o repelente contra vespas que consegui para vocês. Foi ótimo Klaus ter lido e se informado sobre a situação específica do Peru no que diz respeito aos insetos, porque os outros repelentes que eu tenho não teriam adiantado nada." Tio Monty enfiou o braço numa das sacolas de compras enquanto as crianças esperavam impaciente-mente que ele terminasse. "Este aqui contém um produto químico chamado..."
"Tio Monty", disse Klaus, "o que temos para falar com você na verdade não dá para esperar."
"Klaus", disse o tio Monty erguendo as sobrancelhas de surpresa, "não é educado interromper o seu tio quando ele está falando. Vamos, ajude Stephano a levar a canoa, e daqui a pouco a gente falará sobre o que você quiser."
Klaus suspirou, mas seguiu Stephano pela porta aberta. Violet ficou olhando-os caminhar em direção ao jipe enquanto o tio Monty largava as sacolas de compras no chão e se dirigia a ela: "Não lembro mais o que eu estava dizendo sobre o repelente", falou, um pouco contrariado. "Detesto quando perco o fio do pensamento."
"O que precisamos falar com você", Violet começou, mas parou assim que viu uma certa coisa. Monty não estava olhando para a porta, de modo que não via o que Stephano estava fazendo, mas Violet viu Stephano parar junto aos arbustos em forma de cobras, enfiar a mão no bolso do paletó e tirar a faca comprida. A lâmina refletiu a luz do sol poente e brilhou com esplendor máximo, como um farol. Como vocês provavelmente sabem, os faróis servem de sinais de alerta, avisando os navios onde se encontra o litoral para que eles não batam de encontro à terra. A faca brilhando era um sinal de alerta, também.
Klaus olhou para a faca, depois para Stephano e, afinal, para Violet. Violet olhou para Klaus, depois para Stephano e, por fim, para Monty. Sunny olhou para todos. Apenas Monty não percebeu o que estava acontecendo, de tanto que se achava absorvido em tentar lembrar-se do que havia começado a falar sobre os repelentes antivespas.
"O que precisamos falar com você", Violet começou de novo, mas não foi capaz de continuar. Stephano não pronunciou uma só palavra. Não era preciso. Violet sabia que bastaria ela abrir a boca e falar sobre a verdadeira identidade dele, para que Stephano imediatamente atacasse seu irmão ali mesmo junto aos arbustos em forma de cobras. Sem dizer palavra, a nêmesis dos órfãos Baudelaire passara muito claramente sua mensagem.

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