quarta-feira, 1 de junho de 2011

As Crônicas de Nárnia - O Sobrinho do Mago, Capítulos 1 ao 5

1
A PORTA ERRADA


O que aqui se conta aconteceu há muitos anos, quando vovô ainda era menino. É uma história da maior importância, pois explica como começaram as idas e vindas entre o nosso mundo e a terra de Nárnia.
Naqueles tempos, Sherlock Holmes ainda vivia em Londres e as escolas eram ainda piores que as de hoje. Mas os doces e os salgadinhos eram muito melhores e mais baratos; só não conto para não dar água na boca de ninguém.
Naquela época vivia em Londres uma garota que se chamava Polly. Morava numa daquelas casas que ficam coladas umas nas outras, formando uma enorme fileira.
Uma bela manhã ela estava no quintal quando viu surgir por cima do muro vizinho o rosto de um garoto. Polly ficou muito espantada, pois até então não havia crianças naquela casa, apenas os irmãos André e Letícia Ketterley, dois solteirões que moravam juntos.
Por isso mesmo, arregalou os olhos, muito curiosa. O rosto do menino estava todo encardido. Não poderia estar mais encardido, mesmo que ele tivesse esfregado as mãos na terra, depois chorado muito e então enxugado as lágrimas com as mãos sujas. Aliás, era mais ou menos isso que havia acontecido.
– Oi – disse Polly.
– Oi – respondeu o menino. – Qual é o seu nome?
– Polly. E o seu? – Digory.
– Puxa, que nome sem graça! – disse ela. – Acho Polly muito mais sem graça.
– Não é, não. – É, sim.
– Bom, pelo menos eu lavo o rosto – disse Polly. – É o que você deveria fazer, principalmente depois... – e parou. Ia dizer: “Principalmente depois de ter chorado por aí”, mas achou que isso não seria muito delicado.
– Está bem, chorei mesmo – disse Digory, bem alto. Sentia-se tão infeliz que nem se incomodava que soubessem que andara chorando. – Você também choraria, se tivesse vivido a vida inteira no campo, e tivesse tido um pônei, e um rio no fundo do quintal, e de repente viesse morar nesta droga de buraco...
– Londres não é um buraco – reclamou Polly, indignada. Mas o menino estava tão aborrecido que nem prestou atenção, continuando a falar:
–...e se seu pai estivesse na Índia e você tivesse de viver com uma tia e um tio louco (quem ia gostar?), e isso porque eles têm de tomar conta de sua mãe... e se sua mãe estivesse doente e fosse... e fosse... morrer...
Aí o rosto de Digory ficou esquisito, como se ele estivesse fazendo força para não chorar. Polly falou com doçura:
– Desculpe. Eu não sabia de nada. – E, como não tinha mais o que dizer, ou querendo animar o garoto, perguntou:
– Seu tio é mesmo doido?
– Ou é doido ou então há um mistério nisso. Ele tem um estúdio no último andar e tia Leta nunca me deixa ir lá. Isso não me cheira bem. Tem mais: sempre que ele quer me falar alguma coisa na hora do jantar, ela não deixa, dizendo: “Não aborreça o menino, André.” Ou então: “Digory não está nada interessado nisso.” Ou: “Digory, acho melhor você ir brincar no quintal.”
– Mas que tipo de coisas ele tenta lhe dizer? – perguntou a menina.
– Não tenho a menor idéia. Ela nunca deixa ele continuar. Tem outra coisa: ontem à noite, eu estava passando perto da escada do sótão, indo para a cama, quando ouvi um grito.
– Quem sabe ele não tem uma mulher louca que ele esconde lá dentro? – sugeriu a menina. – já pensei nisso.
– Quem sabe ele faz dinheiro falso...
– Também pode ter sido um pirata e agora anda escondido dos antigos companheiros. – Sensacional! – exclamou Polly. – Jamais podia imaginar que sua casa fosse tão interessante.
– Você diz isso porque nunca dormiu lá. Não é nada agradável acordar no meio da noite ouvindo as passadas do tio André no corredor, vindo na direção do seu quarto. E os olhos dele são de dar medo!
Foi assim que Polly e Digory se conheceram. Era no início das férias de verão e, como nenhum deles iria viajar para a praia, passaram a encontrar-se quase todos os dias.
As aventuras começaram principalmente por um motivo: era um daqueles verões muito úmidos e quentes, de modo que, em vez de brincar ao ar livre, eles preferiam fazer incursões dentro de casa. É impressionante quantas explorações a gente pode fazer num casarão, com um toco de vela na mão.
Algum tempo atrás, Polly havia descoberto que uma portinha no sótão de sua casa dava para uma caixa-d’água e um lugar escuro. O lugar escuro parecia um túnel comprido com uma parede de tijolos de um lado e um telhado inclinado do outro. Não tinha assoalho no túnel: era preciso andar de viga em viga, pois entre elas havia somente massa, na qual não se podia pisar, sob o risco de se cair do teto no aposento de baixo. Polly utilizava um pedacinho do túnel, perto da caixa, como uma caverna de contrabandista. Levara para lá tábuas de caixotes, assentos de cadeiras quebradas, coisas que ia espalhando entre as vigas, para fazer uma espécie de assoalho. Também guardava ali uma caixa contendo vários tesouros, uma história que andava escrevendo e maçãs. Era ali também que costumava beber tranqüilamente sua garrafa de soda: as garrafas vazias ajudavam a fazer o ambiente.
Digory gostou muito da caverna (ela não lhe mostrou a história), mas estava mais interessado em prosseguir nas explorações.
– Olhe aqui – disse ele. – Até onde vai este túnel? Ele pára onde termina a sua casa?
– Não, continua. Só não sei até onde.
– Quer dizer, então, que poderíamos andar por cima de todas as casas do quarteirão.
– Poderíamos, não, podemos.
– Hein?
– Podemos até entrar numa outra casa.
– Ah, é? E acabar na cadeia como ladrão! Não conte comigo.
– Não seja tão espertinho. Eu só estava pensando na casa depois da sua.
– Que tem a casa depois da minha?
– Está vazia. Papai disse que está vazia desde que mudamos para cá.
– Vamos dar uma olhada – disse Digory. Estava bem mais entusiasmado do que demonstrava. Naturalmente pôs-se a imaginar por que a casa estava vazia há tanto tempo. Polly se perguntava a mesma coisa. Mas nenhum deles disse a palavra “mal-assombrada”. E ambos sentiram que agora seria uma fraqueza não ir adiante e descobrir o mistério.
– Que tal se a gente fosse agora mesmo? – indagou Digory.
– Está bem – respondeu Polly. – Não precisa ir, se não quiser.
– Se você topa, eu também topo.
– Como a gente vai saber que está em cima da casa vizinha?
Resolveram descer e contar quantos passos havia em toda a extensão da casa e, depois, contaram os passos entre uma viga e outra, para saber quantas vigas existiam sobre a casa. Então, multiplicaram esse número por dois; o resultado obtido corresponderia ao fim da casa de Digory; dali para frente, só poderiam estar no sótão da casa vazia.
– Mas não acho que ela esteja mesmo vazia! – disse Digory.
– Como assim?
– Acho que alguém mora lá, escondido, saindo e entrando tarde da noite, com uma lanterna abafada. Acho que vamos descobrir um bando de assassinos e ganhar uma recompensa. É besteira acreditar que uma casa fique vazia esse tempo todo, a não ser que exista algum mistério.
– Papai acha que é por causa do mau estado do encanamento – observou Polly.
– Encanamento! Gente grande tem a mania de dar explicações sem graça! – disse Digory. Agora, que conversavam à luz do dia, não parecia muito provável que a casa estivesse mal-assombrada.
Não estavam muito seguros sobre as medições e os cálculos no papel, mas, de qualquer maneira, não havia tempo a perder.
– Não podemos fazer o menor barulho – disse Polly quando subiram e se encontraram perto da caixa-d’água. Cada um levava consigo uma vela (coisa que não faltava na caverna de Polly).
Estava muito escuro e empoeirado. Iam pisando de viga em viga, sem dizer palavra, exceto quando cochichavam um para o outro: “Já devemos estar na metade do caminho” – ou coisa parecida. Ninguém tropeçou. As chamas das velas agüentaram firme.
Por fim descobriram uma portinha encaixada na parede de tijolos, à direita. Não havia maçaneta desse lado, mas havia um pegador, como se vê às vezes na parte interna da porta de um armário. – Abro? – perguntou Digory.
– Se você topar, eu topo – respondeu Polly.
A coisa estava começando a ficar séria, mas ninguém ia dar para trás. Digory empurrou o pegador com dificuldade. A porta abriu-se toda e a súbita luz do dia doeu-lhes nos olhos. Então, com grande espanto, viram que estavam olhando não para um sótão vazio, mas para um quarto mobiliado.
Não parecia ter ninguém. O silêncio era tumular. A curiosidade de Polly resolveu a indecisão: soprando a chama da vela, ela entrou no quarto estranho, quietinha como um camundongo.
O local tinha naturalmente a forma de sótão, mas estava arrumado como uma sala de estar. Não havia canto de parede sem estantes, e não havia canto de estante que não estivesse atulhado de livros. O fogo crepitava na lareira; era um verão muito frio, como você se lembra. Diante do fogo estava uma poltrona alta. Entre a poltrona e Polly, enchendo quase a metade da sala, havia uma mesa enorme, repleta de objetos – livros, cadernos grossos, vidros de tinta, canetas, um microscópio. Mas o que Polly notou em primeiro lugar foi uma bandeja de madeira contendo certo número de anéis. Os anéis estavam colocados em pares – um amarelo e um verde juntos, um pequeno espaço, depois outro anel amarelo com um anel verde. Não eram maiores do que os anéis comuns, e era impossível deixar de olhar para eles, pois eram muito brilhantes e bonitos.
A sala estava tão quieta que se percebia logo de entrada o tique-taque do relógio. Mas, notava-se agora, não era tão quieta assim. Havia no ar um ligeiro, um muito ligeiro zumbido. Se os aspiradores de pó já tivessem sido inventados, Polly imaginaria que se tratava do ruído de um aspirador de pó funcionando lá longe, bem longe. O som era mais agradável do que o de aspirador, mais musical, mas era tão leve que mal se podia ouvir.
– Tudo bem – disse Polly –, não tem ninguém aqui. – Ela passou a cochichar. Digory também entrou, piscando o olho, sujo pra valer... Polly também não estava nada limpa.
– Não estou gostando disso – falou Digory. – Não é uma casa vazia coisa nenhuma. É melhor a gente cair fora antes que chegue alguém.
– Que é isso? – perguntou Polly, apontando para os anéis.
– Deixe para lá. O melhor é a gente cair...
Não chegou ao fim. A poltrona na frente do fogo moveu-se de repente e dela surgiu, como um diabo de comédia pulando de um alçapão, a figura amedrontadora do tio André. Não estavam mesmo na casa vazia: estavam na casa de Digory! No estúdio proibido!
– Minha nossa! – exclamaram as duas crianças. Tio André era altíssimo e muito magro. Tinha uma cara comprida, com um nariz pontudo, olhos faiscantes e uma moita de cabelos grisalhos.
Digory estava mudo, pois tio André parecia mil vezes mais apavorante do que antes. Polly ainda não estava tão amedrontada. Mas não demorou muito, pois a primeira coisa que tio André fez foi cruzar a sala e trancar a porta. Voltou-se, fixou as crianças com seus olhos faiscantes e sorriu, mostrando todos os dentes.
– Ah! Agora a louca da minha irmã não pode mais nos perturbar!
Era terrível, muito diferente de tudo o que se pode esperar de um adulto! Polly tinha o coração na boca. Ela e Digory começaram a caminhar na direção da portinhola por onde haviam entrado. Tio André foi mais ligeiro, fechando também essa passagem. Depois esfregou as mãos, estalando os nós dos longos dedos muito brancos.
– Encantado em vê-los – disse. – Duas crianças! Exatamente o que eu mais queria neste momento! – Por favor, Sr. André – disse Polly –, está quase na hora do jantar e tenho de ir para casa. Quer deixar a gente sair, por favor?
– Ainda não – respondeu tio André. – A oportunidade é boa demais para eu perdê-la. Estou em plena fase de uma experiência importantíssima. Utilizei um porquinho-da-índia e parece que deu certo. Mas o que pode um porquinho-da-índia relatar? Impossível explicar para ele como voltar.
– Escute aqui, tio André – disse Digory –, está mesmo na hora do jantar, e daqui a pouco estarão chamando por nós. Melhor o senhor deixar a gente ir embora.
– Melhor... por quê?
Digory e Polly trocaram olhares aflitos. Não ousavam dizer coisa alguma, mas os olhares significavam o seguinte: “Que coisa pavorosa!” E também: “Vamos ver se damos um jeito.”
– Se o senhor permitir que a gente vá jantar – falou Polly –, voltaremos mais tarde.
– Como posso saber que voltarão realmente? – perguntou tio André, com um sorriso astuto. Pareceu, no entanto, mudar de idéia.
– Muito bem, se precisam mesmo ir, que hei de fazer? Não deve ser divertido para dois jovens como vocês conversar com um velhote. – Deu um suspiro e continuou: – Vocês não podem imaginar como me sinto sozinho às vezes! Podem ir jantar, meus filhos. Mas antes quero lhes dar um presente. Não é todo dia que encontro uma moça neste meu velho estúdio, principalmente uma senhorita tão bela como você.
Polly já começava a achar que ele não era tão louco, afinal de contas.
– Quer um anel, meu bem? – perguntou tio André.
– Um daqueles verdes? Quero, sim!
– Um verde, não! – replicou tio André. – Lamento muito não poder dispor dos anéis verdes. Mas terei o maior prazer em presenteá-la com um dos amarelos: de todo o coração. Experimente um.
Polly já havia superado o medo e estava convencida de que o velho não era louco. E os anéis eram de fato atraentes. Caminhou para a bandeja.
– Estranho! O zumbido aqui é mais forte. Parece que vem dos anéis.
– Você está imaginando coisas, cara menina – disse o velho, com uma risada. Parecia uma risada comum, mas Digory percebera uma expressão quase de gula na face do tio.
– Polly, não banque a idiota! – gritou ele. – Não toque nos anéis!
Era tarde demais. Polly já tinha pegado um anel. E imediatamente, sem barulho, sem um clarão, sem nenhum aviso, já não existia Polly. Digory e tio André estavam agora sozinhos na sala.

2
UM DIÁLOGO ESTRANHO


Foi tão repentino, tão horrível, tão diferente de tudo o que já havia acontecido a Digory, mesmo em pesadelos, que ele deu um grito. Instantaneamente a mão de tio André tapou-lhe a boca.
– Nada disso! Sua mãe pode ouvir, e você sabe muito bem que ela não deve levar sustos.
Nada podia ser mais desagradável, disse Digory mais tarde, do que lidar com um sujeito naquelas condições. Mas não gritou de novo.
– Melhor assim – disse tio André. – Reconheço que é chocante quando vemos pela primeira vez uma pessoa sumir. É fato: até eu fiquei arrepiado quando vi outro dia o porquinho-da-índia desaparecer.
– Foi naquele dia que o senhor deu um berro? – Ah, você ouviu? Espero que não ande me espionando.
– Não fiz isso – disse Digory, indignado –, mas quero saber o que aconteceu com a Polly.
– Pode me dar os parabéns – replicou tio André, esfregando as mãos. – Minha experiência deu certo. A menina se foi, sumiu deste mundo!
– O que o senhor fez com ela?
– Enviei a menina para um outro lugar. – Que história é essa?
Tio André sentou-se e respondeu:
– Bem, vou contar-lhe tudo. Já ouviu falar de dona Lenir?
-Não é uma tia-avó ou qualquer coisa parecida? – Não é exatamente isso; era a minha madrinha. Aquela ali na parede.
Digory olhou e viu uma fotografia amarelada, mostrando uma velha com um chapéu antigo. Lembrava-se agora de que já vira uma foto dela numa velha gaveta. Tinha perguntado à mãe quem era, mas esta preferira não tocar no assunto. Não era uma figura simpática – pensou Digory –, mas a gente nunca tem certeza quando se trata dessas fotografias antigas.
– Havia alguma coisa... algo errado com ela, tio André? – perguntou o menino.
– Bom – respondeu o tio, estalando os dedos –, isso depende do que você chama de errado. As pessoas são tão quadradas! Sem dúvida, ficou bastante esquisita nos seus últimos tempos. Não tinha muito juízo. Foi por isso que a prenderam.
– Num hospício?
– Não! Que é isso?! De maneira nenhuma! Só na cadeia.
– Ah, sim.. Por quê?
– Ah, coitadinha – respondeu tio André –, andou agindo mal. Tanta coisa! Mas não vamos falar nisso. Sempre foi muito boazinha para mim!
– Escute, tio, que tem a ver uma coisa com a outra? Quero saber se Polly...
– Tudo a seu tempo, rapaz. Eu era uma das poucas pessoas que minha madrinha gostava de ver quando adoeceu gravemente. Ela não se dava com as pessoas comuns, ignorantes, entende? Também eu sou assim. Mas ambos nos interessávamos pelas mesmas coisas. Poucos dias antes de morrer, ela me disse para ir buscar em sua casa uma pequena caixa, que ela guardava numa velha escrivaninha. No momento em que toquei na caixa já senti, pelo formigamento dos meus dedos, que tinha nas mãos um vasto segredo. Deu-me a caixa e tive de fazer-lhe uma promessa: logo que ela morresse, tinha de queimar tudo, sem abrir, depois de certas cerimônias. Não cumpri minha promessa.
– Não diga! Foi muito feio de sua parte! – exclamou Digory.
– Feio? – perguntou tio André, muito admirado. – Ah, estou entendendo. Está querendo dizer que os meninos devem cumprir suas promessas. Muito bem, estou gostando de ver. Mas também deve admitir que essas regras morais, embora excelentes para as crianças... e para a criadagem... e para as mulheres... e para as pessoas em geral... não podem ser aplicadas aos grandes estudiosos, aos grandes sábios, aos grandes pensadores. Não, Digory! Homens como eu, conhecedores da sabedoria oculta, não estão amarrados a essas regras vulgares... do mesmo modo como estamos distanciados dos prazeres vulgares. Nosso destino, meu filho, é solitário, mas está acima de tudo.
Suspirou e assumiu uma expressão tão grave, tão nobre, tão misteriosa, que por um instante Digory chegou a pensar que ele dissera alguma coisa muito profunda. Lembrou-se porém da cara feia do tio um momento antes de Polly sumir, e as palavras perderam a eloqüência. Pensou: “Ele está querendo dizer é que pode fazer tudo o que quiser para obter tudo o que desejar.”
– Naturalmente – prosseguiu tio André –, durante muito tempo não ousei abrir a caixa. Sabia que devia estar guardando algo extremamente perigoso, pois a minha madrinha era de fato uma mulher fora do comum. Para dizer a verdade, era uma das últimas criaturas mortais, neste país, que ainda tinha nas veias sangue de fada. (Uma vez me disse que havia mais duas no tempo dela: uma duquesa e uma arrumadeira.) Sério, Digory, você está agora conversando com o último homem (muito provavelmente) que teve realmente uma fada madrinha. Que tal? É uma coisa de que você poderá se lembrar com orgulho quando tiver a minha idade.
“Aposto que era mais uma bruxa do que uma fada”, pensou Digory, acrescentando em voz alta: – Quero é saber de Polly.
– Que mania de bater sempre na mesma tecla! – exclamou tio André. – Como se isso fosse a coisa importante! Minha primeira iniciativa foi, naturalmente, estudar a própria caixa. Era muito antiga. já bem sabia que não era grega, nem egípcia, nem babilônica, nem hitita, nem chinesa. Era mais antiga do que essas nações. Ah, que dia fabuloso quando descobri, afinal, a verdade! A caixa viera da Atlântida, quer dizer, era séculos mais velha do que essas coisas da Idade da Pedra que costumam desenterrar aí na Europa. Não era uma coisa rústica como aquelas outras. Pois já na aurora do tempo a Atlântida era uma grande cidade, com palácios, templos e homens cultos.
Fez uma pausa como se esperasse algum comentário de Digory. Mas este, que de minuto a minuto estava gostando menos do tio, não disse nada. Tio André retomou a palavra:
– Enquanto isso, eu estava aprendendo um bocado sobre magia em geral (não seria conveniente contar isso a uma criança). Enfim, cheguei a ter uma boa noção das coisas que podiam existir dentro da caixa. Depois a de vários estudos, fui apertando o cerco. E claro: tive de conhecer algumas... bem... algumas pessoas, digamos, à margem da sociedade... Passei por algumas experiências muito, muito desagradáveis. Foi por isso que fiquei de cabelos brancos. Mas ninguém pode virar feiticeiro sem pagar um preço. Acabei perdendo a saúde. Mas melhorei. E acabei conhecendo o segredo.
Embora não houvesse a menor possibilidade de que alguém pudesse escutá-los, tio André inclinou-se e cochichou:
– A caixa da Atlântida continha certa coisa que fora trazida de outro mundo, quando o nosso mundo mal começava!...
– Que coisa? – perguntou Digory, que mesmo sem querer já estava curioso.
– Pó. Pó fininho, pó seco. Nada de entusiasmar. Nada que valesse tanto trabalho – é o que você deve estar achando. Ah, mas quando vi aquele pó (tive o cuidado de não tocar nele) e pensei que cada grãozinho ali já estivera em outro mundo... Não estou falando de outro planeta, pois os planetas fazem parte do nosso mundo... Estou falando de outro mundo mesmo – uma outra natureza, um outro universo –, um lugar onde você jamais chegaria, mesmo que viajasse eternamente através do espaço deste nosso universo... Um mundo que só poderia ser alcançado através da magia! Bem...
A essa altura tio André esfregava tanto as mãos que seus dedos estalavam como fogos de artifício. E prosseguiu:
– Sabia que, se fizesse direito, aquele pó nos levaria ao lugar de onde viera. A dificuldade era esta: como fazer? Minhas primeiras experiências foram grandes fracassos. Usei porquinhos-da-índia. Alguns apenas morreram. Outros explodiram feito bombas...
– Que maldade! – exclamou Digory, que ia tinha tido um porquinho-da-índia.
– Como você teima em fugir do assunto! É para isso que as criaturas existem. Paguei com o meu dinheiro! Onde é mesmo que eu estava? Ah, sim. Afinal acabei conseguindo fazer os anéis: os amarelos. Surgiu então uma nova dificuldade. Estava convencido de que um anel amarelo remeteria ao outro mundo qualquer criatura que tocasse nele. Mas de que valeria isso, se a criatura não podia voltar para dizer o que havia visto por lá?
– E a própria criatura? – perguntou Digory. – Não podendo voltar, ficaria numa enrascada!
– Você sempre olha as coisas de um ponto de vista negativo – replicou tio André, com impaciência. – Não passa pela sua cabeça que se tratava de uma experiência magna? Só remetemos uma pessoa a outro lugar quando desejamos saber como é esse outro lugar. Certo?
– Bem, e por que o senhor mesmo não foi? Digory jamais vira alguém tão surpreso e ofendido quanto o tio, por causa de uma simples pergunta:
– Eu?! Eu?! Esse menino deve estar maluco! Um homem da minha idade, nas minhas condições de saúde, correr o risco do impacto e dos perigos de um universo diferente?! Nunca ouvi nada tão disparatado em toda a minha vida! Você sabe o que está dizendo? Pense bem: trata-se de um outro mundo, onde podemos encontrar tudo... tudo.
– E foi para lá que o senhor enviou a Polly?! – As bochechas de Digory estavam vermelhas de raiva. – Só tenho uma coisa a dizer: o senhor pode ser meu tio, mas procedeu como um covarde, mandando uma menina para um lugar aonde o senhor não tem coragem de ir.
– Bico calado! – ordenou tio André, dando um tapa na mesa. – Não admito que um fedelho fale comigo dessa maneira. Você não entende nada. Eu sou o grande mestre, o mago, o iniciado, o que está realizando a experiência. É claro que preciso de material para executá-la. Daqui a pouco você vai me dizer que deveria ter pedido licença aos porquinhos-da-índia antes de usá-los. Nenhuma alta sabedoria pode ser atingida sem uma dose de sacrifício. Mas a idéia de que o sacrificado deva ser eu mesmo é completamente ridícula. É como pedir a um general para lutar como um soldado raso. Suponhamos que eu morresse... Que seria do trabalho de toda a minha vida?
– Olhe, é melhor acabar com esse papo – interrompeu Digory. – O senhor vai trazer Polly de volta?
– Já ia dizer-lhe, quando você me interrompeu com os seus maus modos, que descobri afinal a maneira de fazer a viagem de volta. Os anéis verdes são capazes disso.
– Mas Polly não levou nenhum anel verde.
– É, não levou – disse tio André, com um sorriso maldoso.
– Se não levou, não poderá voltar! – gritou Digory. – É como se o senhor a tivesse assassinado. – Poderá voltar se alguém for buscá-la, usando também um anel amarelo e levando consigo dois anéis verdes, um para si, outro para ela.
Digory percebeu que tinha caído numa armadilha. Ficou olhando para o tio André, estarrecido, boquiaberto. As bochechas passaram do vermelho ao pálido. Tio André continuou, agora num tom forte e alto, como se fosse um tio perfeito que tivesse dado ao sobrinho um dinheirinho e um bom conselho:
– Espero, Digory, que você não acene agora a bandeira branca. Ficaria muito triste se uma pessoa de nossa família não tivesse a honra e a nobreza de socorrer uma dama em... em perigo.
– Oh, cale a boca! – gritou Digory. – Se o senhor tivesse um pingo de honra, iria o senhor mesmo. Mas sei que não tem. Está bem. Já vi que tenho de ir. Só que o senhor é um monstro. Tudo, tudo cruelmente planejado: ela foi sem saber de nada, e agora tenho de ir buscá-la.
– É claro – comentou tio André, com seu odioso sorriso.
– Pois muito bem: eu vou. Mas tem uma coisa que faço questão de dizer antes de ir: até hoje não acreditava em magia. Agora sei que existe. Sendo assim, acho que os velhos contos de fada são todos mais ou menos verdadeiros. E o senhor não passa de um bruxo cruel como os que existem nos contos. Escute então: nunca soube de um bruxo que não acabasse pagando por sua maldade no final da história. É só.
De todas as coisas ditas por Digory, foi esta a única que teve endereço certo. Sobressaltado, tio André revelou tanto horror na face que, apesar de sua monstruosidade, era quase possível ter pena dele. Um segundo depois recompôs-se, dizendo com um sorriso forçado:
– Bem, bem, é natural que uma criança pense dessa maneira, uma criança criada entre mulheres, como você. Não precisa preocupar-se com os meus perigos, Digory. Não seria melhor preocupar-se com os perigos por que passa a sua amiguinha? Já há algum tempo que ela foi embora. Se algum perigo existir lá... bem... seria uma pena chegar um pouquinho atrasado.
– Até parece que o senhor se importa muito com isso! – disse Digory, impetuosamente. – Já estou cheio desse papo. Que devo fazer?
– Antes de mais nada, aprender a controlar os seus nervos, meu filho – respondeu o tio André, com frieza. – Do contrário vai acabar como a sua tia. Vamos.
Levantou-se, calçou um par de luvas e dirigiu-se para a bandeja de anéis.
– Eles só funcionam quando estão de fato em contato com a pele. Com luvas posso pegá-los à vontade, assim. Se levar um no bolso nada acontecerá. Mas tenha muito cuidado para não colocar a mão no bolso por distração. No momento em que tocar um anel amarelo, sumirá deste mundo. Quando estiver no outro lugar, espero que – isso ainda não foi testado, naturalmente, mas sempre espero –, ao tocar no anel verde, você desapareça de lá e reapareça aqui. Bem. Pego estes dois verdes e deixo que eles caiam dentro do seu bolso esquerdo. Não se esqueça do bolso em que estão os verdes. V para verde e E para esquerdo. V.E., preste atenção, as primeiras duas letras de verde. Um para você, outro para a garota. Agora pegue um amarelo. Eu – se fosse você – colocaria o anel no dedo, pois assim é mais difícil perdê-lo.
Digory já estava para agarrar o anel amarelo quando se lembrou de algo importante:
– Espere um pouco: e mamãe? Se ela perguntar onde eu estou?
– Quanto mais depressa for, mais depressa estará de volta – disse o tio André, tentando ser animador. – Mas o senhor nem mesmo sabe se eu vou voltar.
Tio André sacudiu os ombros, deu uns passos, abriu a porta e disse:
– Pois muito bem. Como quiser. Desça para jantar. Deixe que as feras devorem a garota. Ou que ela se afogue. Ou que morra de fome. Ou que se perca no outro mundo. Se é o que prefere. Para mim dá no mesmo. Talvez fosse bom que, antes do chá, você avisasse à mãe dela que nunca mais verá a filha... Só porque você tem medo de colocar um anel no dedo.
– Ai, ai – gemeu Digory –, queria tanto ser grande para lhe dar um murro na cara!
Abotoou o casaco, respirou fundo e pegou o anel. Pensando, como sempre pensou mais tarde, que não havia para ele outra maneira de proceder com dignidade.

3
UM BOSQUE ENTRE DOIS MUNDOS


Tio André e o estúdio sumiram imediatamente. Por um momento tudo ficou turvo. Digory conseguiu ver uma suave luz verde vindo de cima e a escuridão embaixo. Não parecia estar apoiado em coisa alguma. Nada lhe tocava, aparentemente. “Acho que estou dentro d’água” – pensou. “Ou debaixo d’água.” Levou um susto, mas percebeu em seguida que estava sendo levado para cima. De súbito viu que tinha chegado ao ar livre e que se arrastava para a relva da margem de um pequeno lago.
Quando se firmou nos pés, notou que não estava pingando, nem respirando sem fôlego, como é de esperar que aconteça com quem tenha estado dentro d’água. Suas roupas continuavam sequinhas.
Estava à beira de um pequeno lago com uns três metros de largura, cercado por um bosque. As árvores ficavam tão próximas umas das outras que não podia ver o céu. A luz existente era a luz verde coando-se através das folhas. O sol em cima devia ser muito brilhante, pois essa luz verde era intensa e cálida.
Não é possível imaginar bosque mais calmo. Não havia pássaros, nem insetos, nem bichos, nem vento. Quase se podia sentir as árvores crescendo. O lago de onde acabara de sair não era o único. Eram muitos, todos bem próximos uns dos outros. Tinha-se a impressão de ouvir as árvores bebendo água com suas raízes. Mais tarde, sempre que tentava descrever esse bosque, Digory dizia: “Era um lugar rico: rico como um panetone.”
O mais estranho de tudo era que Digory tinha praticamente se esquecido de como viera parar ali. De qualquer modo, não se lembrava de Polly, de tio André ou mesmo de sua mãe. Não estava assustado, excitado ou curioso. Se alguém lhe tivesse perguntado: “De onde você veio?”, provavelmente teria respondido: “Nunca saí daqui.” Ou, como disse depois: “Não era um lugar onde as coisas acontecem. As árvores vão crescendo, só isso.”
Depois de contemplar o bosque por um longo tempo, Digory notou que havia uma menina deitada ao pé de uma árvore, ali pertinho. Seus olhos estavam semicerrados, como se estivesse entre a vigília e o sono. Olhou-a por um bom tempo e nada disse, até que ela falou, com uma voz sonhadora e satisfeita:
– Acho que já vi você antes.
– Também acho que já vi você – replicou Digory. – Está aqui há muito tempo?
– Oh, sempre estive aqui – respondeu a menina. – Pelo menos... não sei.... estou aqui há muito tempo.
– Eu também.
– Não, você não. Acabei de ver você saindo daquele lago.
– É, acho que você tem razão – disse Digory com ar espantado. – Tinha me esquecido.
Ficaram em silêncio por muito tempo.
– Escute – disse depois a garota. – Será que já não nos encontramos antes? Tenho a impressão... é como se fosse um quadro na minha cabeça... de um menino e de uma menina iguaizinhos a nós dois... vivendo num lugar muito diferente daqui... Talvez não passe de um sonho.
– Também acho que sonhei a mesma coisa – afirmou Digory. – Sonhei com uma menina e um menino, vizinhos... e tem também umas vigas por onde os dois caminham. Lembro que a menina esta com o rosto sujo.
– Não está confundindo? No meu sonho é o menino que está com o rosto sujo.
– Não consigo me lembrar do rosto do menino – respondeu Digory. E perguntou: – Que é aquilo?
– Ora, um porquinho-da-índia. E era mesmo, um porquinho-da-índia gordinho, farejando a relva. Bem no meio do animalzinho havia uma fita e, preso a ela, um reluzente anel amarelo.
– Olhe, olhe! – gritou Digory. – O anel! E olhe aqui: você também está com um anel amarelo. E eu também.
A menina sentou-se,
interessada pela primeira vez. Ficaram olhando um para o outro, de olhos muito arregalados, tentando captar alguma lembrança. E acabaram gritando ao mesmo tempo:  
– O Sr. André!
– Tio André!
Logo se deram conta de quem eram e começaram a relembrar o resto da história, depois de alguns minutos de animada conversa.
Então Digory contou a Polly de que maneira torpe tio André os levara até ali.
– Que vamos fazer agora? – perguntou a menina. – Pegar o porquinho e ir para casa?
– Não temos pressa – respondeu Digory, com um grande bocejo.
– Acho que temos. Este lugar é calmo demais... É tão... tão feito sonho. Você está quase dormindo. Se a gente se entrega, cai por aqui mesmo e passa a vida toda cochilando.
– Pois estou gostando muito daqui – disse Digory.
– Eu também, mas precisamos ir embora. – Polly levantou-se e começou a caminhar cautelosamente na direção do porquinho-da-índia. Porém mudou de idéia. – Acho que devemos deixar o porquinho. Está todo feliz; se a gente levar o bichinho de volta, seu tio vai fazer algo horrível com ele.
– Aposto que sim, pelo jeito que nos tratou! Aliás, como é que vamos voltar para casa?
– Mergulhando outra vez no lago, eu acho. Foram os dois para a beira do lago e puseram-se a olhar as águas calmas, que refletiam com profusão os ramos verdes e folhudos. Parecia um lago muito fundo.
– Não temos roupas de banho – disse Polly.
– Deixe de ser boba, não precisamos de roupas de banho – replicou Digory. – Podemos pular assim mesmo; já esqueceu que a gente não se molha? – Sabe nadar?
– Um pouquinho. E você? – Bem... mais ou menos.
– Acho que não vai ser preciso nadar – disse Digory. – Nós queremos é ir para baixo, não é? Nenhum deles achava muito simpática a idéia de pular no lago, mas ninguém disse nada. Deram-se as mãos e contaram: “Um... dois... três... já” – e pularam.
Foi aquela pancada na água. Quando abriram os olhos viram que ainda se encontravam, de mãos dadas, no bosque verde, com a água dando nos calcanhares. Parecia que o lago não tinha mais do que um palmo de fundura. Os dois saíram outra vez para a terra seca.
– Que é que está errado, ora essa?! – disse Polly com a voz assustada, mas não muito, pois era praticamente impossível sentir medo naquele mundo demasiadamente calmo.
– Ah, já sei – disse Digory. – É claro que não podia dar certo. Ainda estamos usando os nossos anéis amarelos, que só valem para a viagem de vinda. É o verde que leva para casa. Precisamos trocar de anéis. Tem bolso? Ótimo. Ponha seu anel amarelo no bolso direito. Tenho dois verdes. Olhe aqui um para você.
Com os anéis nos dedos, voltaram para o lago. Mas antes que tentassem novo mergulho, Digory deu um suspiro que não acabava nunca: “O... o... o... oh!”
– Que está acontecendo agora?
– Acabei de ter uma idéia genial. E os outros lagos?
– Não estou entendendo...
– Escute: se podemos voltar ao nosso mundo mergulhando aqui, não é lógico que a gente deva ir para outro lugar pulando em outro lago? Imagine se há um mundo diferente no fundo de cada lago!
– Mas eu pensei que a gente já estivesse no Outro Mundo do seu tio, ou no Outro Lugar, seja lá o que for. Você não disse...
– Não me chateie com o tio André, ora bolas! Acho que ele não entende nada deste lugar, pois nunca teve peito para vir por conta própria. Só falou de um Outro Mundo. Suponhamos que haja dezenas...
– Quer dizer, este bosque é apenas um dos mundos?
– Não! Acho que este bosque nem chega a ser um mundo. Não deve ser mais do que um lugar de passagem.
Polly olhava, intrigada.
– Não está vendo? Lembre-se do túnel; não pertence a nenhuma das casas, mas você pode andar por ele e entrar em qualquer uma delas. Não será este bosque uma coisa parecida?... Um lugar que não pertence a nenhum dos mundos, mas que dá acesso a todos os mundos?
– Bem... ainda que... – começou a dizer Polly, mas o amigo nem parecia ouvi-la.
– Isso explica tudo – continuou Digory. – Por isso aqui é tão calmo e sonolento. Nada acontece, nunca. Como no túnel. É dentro das casas que as pessoas conversam e fazem as coisas e comem. Nada existe nos lugares de passagem, atrás das paredes, em cima dos tetos ou debaixo do assoalho. Mas do nosso túnel podemos passar para todas as casas do quarteirão. Acho que daqui poderemos ir a um lugar fabuloso.
– Qual?
– Qualquer um. Não precisamos mergulhar no mesmo lago por onde chegamos. Pelo menos não por enquanto.
– O Bosque entre Dois Mundos – disse Polly, com olhar sonhador. – Bonito!
– Vamos logo. Que lago você prefere?
– Preste atenção: eu é que não vou experimentar nenhum lago novo antes de ter certeza de poder voltar pelo lago antigo. Ainda nem sabemos se vai dar certo.
– Perfeito! Voltar para ser agarrado por tio André, que vai tomar os nossos anéis antes de a brincadeira ter começado! Isso não!
– A gente não podia ir pelo menos metade do caminho no nosso lago – apelou Polly –, só para ver se funciona? Se funcionar, trocaremos de anéis e subiremos de novo antes de voltar ao estúdio do seu tio. Levamos bem pouco tempo para subir até aqui; acho que não vai demorar nada para voltar.
Digory chegou a se atrapalhar um pouco antes de concordar com isso, mas não teve outro jeito, porque Polly se recusava a novas explorações em novos mundos, caso não tivesse a certeza de poder voltar ao antigo. Em se tratando de muitos perigos, era quase tão valente quanto ele (marimbondos, por exemplo), mas não estava interessada em descobrir coisas das quais nunca ninguém jamais ouvira falar. Digory era do tipo que gostava de conhecer tudo e, quando cresceu, tornou-se o famoso professor Kirke, que aparece em outros livros.
Depois de muita discussão, concordaram que deviam colocar os anéis (“Os verdes, por segurança”, disse Digory, “pois assim a gente não vai esquecer qual é qual”) e mergulhar de mãos dadas. No entanto, quando calculassem estar de volta ao estúdio de tio André, Polly deveria dar um grito – “Trocar!” –, e então tirariam os verdes e colocariam os amarelos. Polly fez questão de ter o comando dessa operação, contrariando Digory.
Colocaram os anéis verdes, deram-se as mãos e, mais uma vez, contaram com voz firme: “Um... dois... três... já!”
Dessa vez deu certo. É difícil contar como foi, pois tudo aconteceu com uma rapidez extraordinária. Primeiro houve luzes brilhantes num céu escuro; Digory sempre achou que eram astros, jurando que chegou a ver Júpiter pertinho, a ponto de distinguir as luas do planeta. Mas quase instantaneamente começaram a surgir fileiras e mais fileiras de tetos, e puderam ver a catedral de São Paulo. Era Londres lá embaixo. Mas enxergavam também através das paredes de todas as casas. Viram o tio André, a princípio sombrio e fora de foco, mas ficando cada vez mais nítido. Antes que ele se tornasse de fato uma realidade, Polly gritou: “Trocar!” – e trocaram os anéis. O nosso mundo foi se apagando mais uma vez, como num sonho, e a luz verde do alto ficou mais intensa, até que as cabeças apontaram fora d’água e ganharam a margem do lago. A operação toda não durou mais do que um minuto.
– Pronto! – exclamou Digory. – Tudo certo. Agora, vamos à exploração. Qualquer lago serve. Vamos experimentar este aqui.
– Um momento! Não vamos fazer uma marca neste lago?
Ficaram pálidos e de olhos arregalados quando perceberam a extensão da loucura que Digory esteve por cometer. Pois existiam inúmeros lagos no bosque, todos iguais, e iguais também eram as árvores. Se não assinalassem o lago que conduzia ao nosso mundo, as possibilidades de encontrá-lo novamente seriam mínimas.
A mão de Digory tremia quando abriu o canivete e cortou uma boa braçada de relva na beira do lago. A terra, que cheirava deliciosamente, era de um vivo castanho-avermelhado, que se distinguia contra o verde.
– Ainda bem que um de nós tem um pouco de juízo – disse Polly.
– Não fique aí contando prosa; vamos logo ver o que há num desses lagos.
Polly deu-lhe uma resposta ferina e ele respondeu com palavras ainda mais indelicadas. A briga durou vários minutos, mas seria aborrecido contar tudo aqui. Vamos saltar para o instante em que ambos, com o coração aos pulos e caretas de medo, puseram-se à beira do lago desconhecido, com os anéis amarelos nos dedos e de mãos dadas.
– Um... dois... três... já!
Splash! Mais uma vez não funcionou. Esse lago, também, parecia ser somente uma poça. Em vez de alcançar um mundo novo, só conseguiram molhar os pés e as pernas pela segunda vez aquela manhã (se é que era manhã: o tempo parece ser sempre o mesmo no Bosque entre Dois Mundos).
– Que droga! – exclamou Digory. – O que está errado agora? Não pusemos os anéis amarelos? Ele não falou amarelos para as viagens para fora?
Acontecia o seguinte: o tio André, que não entendia coisa nenhuma do Bosque entre Dois Mundos, tinha uma idéia errada sobre os anéis. Os amarelos não eram anéis para ir “para fora” e os verdes não eram para ir “para casa”. Pelo menos, não como ele pensava. A matéria-prima de que eram feitos ambos provinha do bosque. O material dos anéis amarelos tinha o poder de conduzir ao bosque; era matéria querendo retornar às origens. Mas a matéria dos anéis verdes, pelo contrário, estava querendo evadir, sair de seu próprio mundo; assim, um anel verde levava do bosque para um mundo qualquer.
Tio André, entenda, estava trabalhando com coisas que ele próprio não conhecia muito bem; acontece isso com a maioria dos feiticeiros. Digory, naturalmente, também não percebeu isso com clareza, a não ser mais tarde. Mas, depois de muita troca de idéias, os dois decidiram experimentar os anéis verdes, no mesmo lago desconhecido, só para ver no que dava.
– Se você topar, eu topo – disse Polly.
Mas disse isso só por estar convencida, lá no fundo do coração, de que anel nenhum iria funcionar no poço novo; só havia um acidente a temer, o baque dentro d’água.
Não sei com certeza se Digory estava pressentindo a mesma coisa. De qualquer maneira, quando colocaram os verdes e voltaram à beira do lago de mãos dadas, estavam bem mais animados e menos solenes do que da primeira vez.
– Um... dois... três... já!
4
O SINO E O MARTELO


Não pôde haver dúvida sobre a magia dessa vez. Lá se foram eles aos emboléus, primeiramente através da escuridão e, depois, através de um turbilhão de formas em movimento, formas que podiam ser quase tudo que se pode imaginar. Foi ficando mais claro. De repente sentiram que estavam em cima de algo sólido. Um instante mais e as coisas ficaram em foco; já podiam distingui-las.
– Que lugar mais estranho! – exclamou Digory. – Não estou gostando nada daqui! – disse Polly, com um tremor.
Antes de tudo, chamou-lhes a atenção a luz. Não era nada parecida com a luz do sol. E não era como a luz elétrica, ou de lampiões, ou de velas, ou qualquer outra luz que já tivessem visto. Era uma luz tristonha, meio avermelhada, nada comunicativa. Uma luz parada.
Estavam numa superfície plana e pavimentada, com grandes edifícios ao redor; era uma espécie
de pátio. O céu era de uma escuridão fora do comum, de um azul quase preto.
– Que clima mais engraçado – disse Digory. – Será que chegamos na horinha de uma tempestade? Ou de um eclipse?
– Não estou gostando nem um pouquinho – repetiu Polly.
Estavam cochichando, mesmo sem saber por quê. E continuavam de mãos dadas, também sem saber o motivo.
As paredes ao redor do pátio eram muito altas, com janelões sem vidraças. Arcos sobre colunas abriam bocas escuras como túneis de estradas de ferro. Fazia um friozinho.
A pedra das construções parecia vermelha, mas devia ser o reflexo da luz esquisita. Evidentemente era um lugar muito antigo. Muitas das pedras que pavimentavam o pátio estavam rachadas, e nenhuma delas se ajustava bem à outra. Um dos pórticos em arco estava atulhado de destroços.
As crianças deram várias voltas, examinando os recantos do pátio. Tinham medo de que alguém – ou alguma coisa – as espreitasse enquanto estivessem de costas.
– Acha que existe alguém aqui? – murmurou Digory, tomando coragem.
– Acho que não. Está tudo em ruínas. Não ouvimos nem um barulhinho até agora.
– Vamos ficar quietos e prestar atenção – sugeriu Digory.
Apuraram os ouvidos, mas a única coisa que ouviram foi o bate-bate do coração. O lugar era no mínimo tão silencioso como o silencioso Bosque entre Dois Mundos. Mas era um silêncio diferente. A calma do bosque era cálida e cheia de vida (quase que se podia ouvir as árvores crescendo); ali, ao contrário, era um silêncio morto, gelado e vazio. Não dava para imaginar uma planta crescendo.
– Vamos para casa – disse Polly.
– Mas ainda não vimos nada! – protestou Digory. – já que estamos aqui, vamos dar uma espiada. – Aposto que não há nada que interesse neste lugar.
– Ora, bolas! Que graça tem encontrar um anel mágico, que leva a gente a outros mundos, se você tem medo quando chega lá e quer dar para trás?
– Quem está falando em dar para trás? – protestou Polly, largando a mão de Digory.
– Só quis dizer que você não parece muito entusiasmada.
– Pois fique sabendo que vou aonde você for.
– Além do mais, a gente pode cair fora quando quiser. Vamos pôr os anéis verdes no bolso esquerdo. Não podemos é esquecer que os amarelos estão no bolso direito. Pode ficar com a mão pertinho do bolso, mas não meta o dedo lá dentro: é tocar no amarelo e sumir.
Fizeram assim e caminharam para um pórtico enorme, que dava para o interior de um dos edifícios. Quando chegaram perto, viram que lá dentro não era tão escuro quanto tinham pensado. A vasta sala apenumbrada estava vazia, mas, no lado mais distante, erguia-se uma fileira de colunas com arcos interligados. Dos arcos jorrava a mesma luz fatigante. Atravessaram o salão com muito cuidado, temendo encontrar no chão um buraco ou coisa pior. Quando afinal chegaram ao outro lado, cruzaram os arcos e se viram em outro pátio ainda maior.
– Aquilo ali não parece muito seguro – disse Polly, apontando para um lugar onde a parede fazia uma barriga, como se estivesse pronta para desabar no pátio. Em certo ponto faltava uma coluna entre dois arcos. Era evidente que o lugar estava abandonado há centenas, talvez milhares de anos.
– Se agüentou até agora, acho que agüenta mais um pouco – disse Digory. – Mas o jeito é não fazer barulho. Você sabe que um barulhinho pode causar um desabamento... como as avalanches de neve nos Alpes.
Passaram do pátio a outro pórtico, de lá a uma escadaria, desta a uma fileira de salões, uns depois dos outros, até que se sentiram tontos, tão vastas eram as dimensões de tudo. Estavam sempre imaginando que iriam encontrar ar livre, na esperança de ver, afinal, que espécie de região circundava o enorme palácio. Mas só encontravam pátio depois de pátio.
Devia ter sido uma beleza de lugar quando as pessoas ali viviam. Num dos pátios havia um chafariz, com um grande monstro de pedra de asas abertas e boca escancarada. Embaixo, a larga bacia de pedra, que em outros tempos devia aparar a água, estava mais seca do que um osso ao sol.
Em outros lugares restavam galhos secos de uma espécie de trepadeira que se enroscara pelas colunas e chegara a derrubar algumas. Mas as trepadeiras estavam mortas há muito tempo. Não viram formigas, nem aranhas, nem nenhuma dessas criaturinhas que costumam viver nas ruínas, e, entre as fendas das lajes partidas, nada de capim, nem musgo.
Era tudo tão lúgubre e monótono, que também Digory começou a pensar que talvez fosse melhor colocar o anel amarelo e partir de volta para a verde e cálida floresta do lugar intermediário. Foi quando chegaram a uma enorme porta de folhas duplas, feita de um metal que poderia ser ouro. Entreaberta, era um convite a uma olhadela. Os dois olharam e recuaram para tomar fôlego, pois ali finalmente havia algo digno de ser visto.
Por um instante acharam que o salão estivesse cheio de gente, centenas de pessoas, todas sentadas e impecavelmente imóveis. Digory e Polly também ficaram impecavelmente imóveis por um bom tempo, de olhos fixos lá dentro. Por fim chegaram à conclusão de que as criaturas que estavam contemplando não eram reais. Não passava entre elas o menor sopro de vida. Pareciam estátuas de cera, as mais perfeitas que já existiram.
Dessa vez Polly tomou a dianteira. Havia na sala uma coisa muito mais interessante para ela do que para Digory: as figuras usavam roupas deslumbrantes. Quem gostasse de roupagens bonitas não podia resistir à tentação de chegar mais perto. E o resplendor daquelas cores tornava a sala não propriamente animada ou animadora, mas de certo modo suntuosa e majestosa, depois do vazio e do pó das outras salas. Contava com um número maior de janelas e era bem mais clara.
Mal posso descrever as roupagens. Todas as figuras envergavam mantos e usavam coroas. Os mantos eram rubros e cinza-prateado, ou purpúreos com vívidos tons verdes, bordados com desenhos de flores e de estranhos animais. Pedras preciosas de tamanhos aberrantes refulgiam nas coroas, nos colares, nos cintos.
– Não entendo é como esses tecidos não apodreceram há muito tempo – disse Polly.
– Magia – murmurou Digory. – Não está sentindo o encantamento? Percebi logo que entrei.
– O mais barato desses vestidos custaria um dinheirão em Londres!
Mas Digory estava mais interessado nas fisionomias, que eram mesmo dignas de ser olhadas. As figuras estavam sentadas em cadeiras de pedra nos dois lados da sala, deixando livre o espaço do meio. – Parece boa gente – falou Digory.
Polly assentiu com a cabeça. As feições eram simpáticas. Homens e mulheres pareciam bondosos e inteligentes. Deviam descender de uma raça bonita. Mas, à medida que as crianças deram alguns passos na sala, aproximaram-se de faces bem diferentes. Rostos solenes. Para falar com aquelas figuras seria indispensável caprichar na gramática. Quando avançaram um pouco mais, encontraram-se diante de faces das quais não gostaram nada. Eram rostos de expressão forte e orgulhosa, porém cruéis. Mais adiante as feições pareciam ainda mais perversas. Um pouquinho mais e depararam com expressões mais terríveis ainda, e nem um pouco felizes. Rostos quase desesperados, como se as pessoas às quais pertencessem tivessem cometido, e também sofrido, coisas pavorosas.
A última figura era a mais interessante: uma mulher muito alta (de fato, todas as figuras do salão eram mais altas do que as pessoas do nosso mundo), vestida mais ricamente do que as outras, e com um olhar tão aterrador e soberbo que quase tirava o fôlego.
Apesar disso, era bela. Muitos anos depois, já velho, Digory chegou a dizer que nunca vira mulher mais bela em toda a sua vida. É preciso dizer, no entanto, que Polly, por sua vez, sempre afirmou não ter visto nela nada de especialmente bonito.
Depois da mulher, havia uma porção de cadeiras vazias, como se o salão tivesse sido projetado para um número bem maior de imagens.
– Daria um doce para saber a história que está por trás disso – falou Digory. – Vamos dar uma espiada naquela coisa no meio da sala.
A coisa não era propriamente uma mesa. Era uma coluna quadrada com um metro de altura; em cima ficava um pequeno arco dourado do qual pendia um pequeno sino de ouro; ao lado encontrava-se um martelinho de ouro.
– Estou pensando... estou pensando... – disse Digory.
– Acho que tem alguma coisa escrita aqui – interrompeu Polly, agachando-se e olhando para um canto da coluna.
– Puxa, é mesmo. Mas a gente não sabe ler a língua deles...
– Será que não? Tenho minhas dúvidas. Ambos olharam com todos os olhos. Eram de fato estranhos os caracteres sulcados na pedra, mas então o inesperado aconteceu: embora o talhe dos caracteres não se alterasse, os dois perceberam que aos poucos, à medida que olhavam, iam tornando-se capazes de entendê-los. O encantamento começava a agir. Logo já sabiam o que estava escrito na coluna.
O estilo devia ser melhor, mas o sentido dos dizeres era o seguinte:
Ousado aventureiro, decida de uma vez: Faça o sino vibrar e aguarde o perigo Ou acabe louco de tanto pensar:
“Se eu tivesse tocado, o que teria acontecido?” – Eu é que não entro nessa – disse Polly. – Não quero ver perigo nenhum.
– Não adianta, Polly, não está vendo que agora é tarde demais? já caímos na coisa. A gente vai passar a vida pensando o que teria acontecido se tivesse tocado o sino. Eu é que não quero ficar louco, pensando a vida inteira nisso. Eu, não!
– Não seja tão bobo. Que interesse pode ter o que teria acontecido?
– Quem chegou até este ponto, não tem mais saída: ou toca o sino ou fica maluco. É este o encantamento, você não entende? já estou ficando empolgado... encantado...
– Não estou sentindo nada – disse Polly, meio zangada. – E nem acredito na sua empolgação. É fita sua.
– É porque você é mulher. Mulher só quer saber de intriga e de fofoca sobre namoros.
– Você ficou igualzinho a seu tio quando disse isso.
– Por que está fugindo do assunto? Estávamos falando sobre...
– Você está falando igualzinho a um homem! – disse Polly, num tom de gente adulta. E acrescentou vivamente, no seu próprio tom: – E não vá dizer que eu também falo como uma mulher. Não vá bancar relógio de repetição.
– Nunca me passaria pela cabeça chamar de mulher uma garotinha como você – disse Digory com arrogância.
– Ah, quer dizer que eu sou uma garotinha?! – Polly agora estava mesmo furiosa. – Pois já não precisa se incomodar em acompanhar uma garotinha. Chega! Estou cheia deste lugar! E estou farta de você também... seu bestalhão... seu teimoso... burro!
– Nada disso! – gritou Digory, num tom ainda mais rude do que pretendia, pois acabara de ver Polly enfiando a mão no bolso para agarrar o anel amarelo.
De maneira nenhuma vou desculpar o que ele fez em seguida; só posso dizer que Digory se arrependeu muito depois. Antes que a mão de Polly chegasse ao bolso, ele agarrou-lhe o pulso, dando-lhe uma torcida. Defendendo-se da outra mão da menina com o cotovelo, pegou o martelinho e deu no sino de ouro uma bonita martelada. Depois soltou a pobre Polly e ficaram um olhando para o outro, respirando com dificuldade. Polly já começava a chorar, não de medo, nem mesmo de dor, mas de pura e forte raiva. Dentro de dois segundos, no entanto, os acontecimentos iam varrer de seus corações quaisquer ressentimentos.
Logo ao ser golpeado, o sino dera uma nota, a doce nota que se podia esperar de um sino de ouro. Mas o som, em vez de ir morrendo, continuou, e continuou mais forte. No fim de um minuto era duas vezes mais alto do que no início. Daí a pouco estava tão alto que eles (se, em vez de permanecerem de boca aberta, tivessem falado alguma coisa) não poderiam conversar. E o som foi ficando mais forte, mais forte, sempre a mesma nota, ao mesmo tempo suave e terrível. Por fim todo o ar contido no salão vibrava com o som, e podiam perceber que as pedras tremiam sob seus pés. Em seguida, um outro som entrou na sala, um barulho confuso e desastroso, como um trem ao longe, a princípio, depois como o baque de uma árvore caindo. Finalmente, com estardalhaço, uma boa parte do teto despencou no fim do salão; grandes blocos de alvenaria desmoronaram em volta deles; as paredes tremeram.
O ruído do sino parou. As nuvens de poeira sumiram. Tudo voltou à antiga quietude.
Nunca se descobriu se o desabamento do teto era devido a feitiçaria ou se o insuportável som do sino estava acima dos limites toleráveis por aquelas paredes vacilantes.
– Que tal?! Acho que agora você está satisfeito! – disse Polly, arquejante. – Bom... de qualquer jeito, já acabou.
E pensaram que tinha acabado mesmo; mas nunca estiveram tão enganados em toda a sua vida.

5
A PALAVRA EXECRÁVEL


As crianças ficaram se entreolhando por cima da coluna. O sino, mesmo sem som, ainda vibrava. De repente ouviram um ruído ligeiro no canto da sala ainda intacto. Viraram-se como dois relâmpagos. Uma das figuras, a mais distante, a mulher que Digory achava tão bela, estava levantando-se da cadeira de pedra. Quando se pôs em pé, verificaram que era ainda mais alta. Via-se logo, não apenas por causa da coroa e da roupagem, mas pelo fulgor de seus olhos e pela curva de seus lábios, que se tratava de uma grande rainha. Olhou em torno, viu os estragos da sala, viu as crianças; não era possível ler em seu rosto a menor reação. Avançou com passadas longas e ligeiras.
– Quem me acordou? Quem quebrou o encanto?
– Acho que fui eu – respondeu Digory.
– Você! – disse a rainha, colocando no ombro do menino sua linda mão alva. Seus dedos, no entanto, eram mais fortes do que pinças de aço. – Você? Mas não passa de uma criança, uma criança comum! Qualquer pessoa vê logo que não tem nas veias uma só gotinha de sangue nobre. Como uma pessoa assim ousou penetrar nesta casa?
– Viemos de outro mundo, por meio de magia – disse Polly, achando que já era tempo de a rainha dar-lhe alguma atenção.
– Isso é verdade ou mentira? – perguntou a rainha olhando ainda para Digory, sem sequer espiar Polly com o canto do olho.
– É verdade – disse ele.
A rainha, com a outra mão, levantou o queixo do menino, a fim de melhor observá-lo. Digory tentou encará-la também, mas não resistiu e baixou os olhos. Havia nos olhos dela alguma coisa que o sobrepujava. Depois que o examinou durante um minuto, soltou-lhe o queixo e disse:
– Não tem nada de feiticeiro. Não tem a marca. Só pode ser servo de um feiticeiro. Só por intermédio de feitiçaria alheia conseguiu viajar até aqui.
– Foi o tio André que me enviou para cá – disse Digory.
Nesse momento, não propriamente no salão, mas de algum lugar bem próximo, chegou um ribombar, depois um grande estalido e, em seguida, o estardalhaço de alvenaria desabando.
– Estamos correndo grande perigo – disse a rainha. – O palácio todo está prestes a ruir. Temos de sair logo para não ficar enterrados nas ruínas.
Falou com a maior calma, como se estivesse apenas comentando o tempo. “Vamos”, acrescentou, dando as mãos às crianças. Polly, que não estava gostando nem um pouquinho da rainha, não lhe teria dado a mão, caso pudesse opor alguma resistência. Apesar da fala morosa, os movimentos da rainha eram mais ligeiros que o pensamento.
“Que mulher mais desagradável”, pensou a menina. “Com uma torcidinha é capaz de quebrar o meu braço. E agora que ela me agarrou, não posso mais alcançar o anel amarelo. Se eu esticar o braço até o bolso, vai perguntar o que estou fazendo. Aconteça o que acontecer, não podemos revelar nada sobre os anéis. Espero que Digory tenha também o bom senso de manter o bico calado. Seria ótimo se eu pudesse falar com ele a sós durante um segundo.
A rainha os conduziu por um comprido corredor, passando depois por um labirinto de salas, escadarias e pátios. Com freqüência ainda ouviam pedaços do palácio desabando, às vezes pertinho deles. Um arco enorme despencou com estrépito logo depois que haviam passado por baixo dele. Tinham de apertar o passo para acompanhar a rainha, mas ela não mostrava o menor sinal de medo. Digory ia pensando: “Que mulher mais corajosa! E como é forte! É isso que eu chamo de uma rainha! Tomara que ela nos conte a história deste lugar.”
Enquanto andavam (ou corriam), ela ia dando algumas informações: “Esta é a entrada do calabouço”, “Esta passagem conduz à principal câmara de torturas”, “Este é um antigo salão de banquetes, onde meu bisavô recebeu setecentos convidados e matou a todos, antes que terminassem de beber. Tinham idéias subversivas”.
Chegaram por fim a um salão mais amplo e mais grandioso do que os demais. Pelas suas dimensões e portas enormes, Digory achou que finalmente haviam atingido a entrada principal – no que estava completamente certo. As portas eram negras de doer, de ébano ou de algum metal preto que não existe em nosso mundo. Estavam trancadas com barras enormes, muitas tão altas que não podiam ser alcançadas, e todas pesadas demais para ser erguidas. A rainha soltou a mão do menino e ergueu o braço. As portas altas e pesadíssimas tremeram por um instante, como se fossem de seda, e esboroaram-se no chão, onde só ficou um monte de pó.
– Fiu-fiu! – assobiou Digory.
– Terá o mestre feiticeiro, seu tio, poder igual ao meu? – perguntou a rainha, segurando outra vez com energia a mão de Digory. – Vou apurar isso mais tarde. Mas não se esqueçam do que viram. É o que acontece às pessoas que barram meu caminho.
Uma luz, muito intensa para aquele mundo, invadia o pórtico sem porta. Não se sentiram nada surpresos quando foram conduzidos para o ar livre. O vento era frio, mas, ainda assim, tinha algo de rançoso. Encontravam-se em um alto terraço, do qual se avistava uma vasta e extensa paisagem lá embaixo. Na linha do horizonte pousava um enorme sol vermelho, muito maior do que o nosso. Digory percebeu também que era bem mais velho que o nosso, um sol no fim da vida, já cansado de olhar para aquele mundo. À esquerda do sol, mais ao alto, havia uma única estrela, enorme e reluzente. Eram as duas coisas visíveis no céu escuro e desolado.
Na terra, em todas as direções, estendia-se uma grande cidade, onde não se via coisa viva. Os templos todos, as torres, os palácios, as pirâmides, as pontes projetavam sombras longas e lúgubres à luz daquele sol murcho. Um grande rio percorrera a cidade em tempos idos, mas a água desaparecera há muito, deixando no leito uma poeira cinzenta.
– Olhem bem, que jamais outros olhos verão este cenário – disse a rainha. – Aqui foi Charn, a metrópole, a cidade do Rei dos Reis, o assombro do mundo, de todos os mundos, talvez. Seu tio governa uma cidade grandiosa como esta, menino?
– Não – respondeu Digory. Já ia explicar que seu tio não governava coisa nenhuma, mas a rainha prosseguiu:
– Está em silêncio agora. Mas aqui estive quando o ar vibrava com o estrépito de Charn; o soar dos pés, o ranger das rodas, o estalido dos chicotes, os gemidos dos escravos, o fragor das carruagens, os tambores dos ritos de sacrifício ressoando nos templos... Aqui estive (mas já era o princípio do fim) quando o troar da batalha invadia as ruas e o rio de Charn corria vermelho.
Fez uma pausa e acrescentou:
– No lampejo de um instante, uma mulher fez a cidade desaparecer para sempre.
– Quem? – perguntou Digory, com a voz sumida, já imaginando a resposta.
– Eu! – respondeu a rainha. – Eu, Jadis, a última rainha, mas a rainha do mundo!
As duas crianças ficaram caladas, tiritando no vento frio.
– Foi culpa de minha irmã – prosseguiu a rainha. – Levou-me a isso. Que a maldição de todos os poderes repouse sobre ela eternamente! Eu estava decidida a fazer a paz a qualquer momento... Sim, e estava também decidida a poupar-lhe a vida, desde que me entregasse o trono. Mas ela não quis. Seu orgulho destruiu o mundo todo. Mesmo depois de ter começado a guerra, firmou-se o juramento solene de que ninguém se utilizaria de magia. Quando ela quebrou o juramento, que me restava fazer? Desvairada! Como se ignorasse que eu possuía mais poderes do que ela! E não ignorava também que eu possuía o segredo da Palavra Execrável! Teria pensado – sempre foi uma fraca de espírito – que eu não usaria o meu poder final? – Qual era? – perguntou Digory.
– O segredo de todos os segredos. Sempre foi do conhecimento dos grandes reis da nossa raça que existia uma palavra, a qual, se pronunciada com as cerimônias adequadas, destruiria todas as coisas vivas, menos a pessoa que a pronunciasse. Os antigos reis, entretanto, eram débeis ou compassivos e comprometeram a si mesmos, e a todos que os sucederam, com grandes juramentos, de jamais nem mesmo buscarem a ciência dessa palavra. Mas eu tomei ciência dela num lugar secreto e paguei terrível preço por isso. Não a usei até que fui forçada a fazê-lo. Lutei desesperadamente para substituí-la por todos os outros meios. Derramei como água o sangue dos meus exércitos...
– Monstro! – resmungou Polly, baixinho.
– A última grande batalha – continuou a rainha – raivou por três dias aqui, no coração de Charn. Durante três dias eu a contemplei deste mesmo local. Só me utilizei da solução final depois que tombaram meus últimos soldados, quando a mulher maldita, minha irmã, à testa dos rebeldes, já subia aquelas imensas escadarias que vão do centro da cidade ao terraço. Esperei que estivéssemos bem próximas e pudéssemos distinguir nossas fisionomias. Faiscando seus horríveis olhos perversos em cima de mim, disse-me ela: “Vitória!”. “Sim”, disse-lhe eu, “vitória, mas não sua.” Então pronunciei a Palavra Execrável. Um momento depois era eu, sob o sol, a única criatura viva.
– E o povo? – perguntou Digory, sem ar. – Que povo, garoto?
– O povo, ora, o povo que anda na rua, que nunca iria fazer-lhe mal. E as mulheres, as crianças, os bichos?
– Você não está entendendo. Escute, eu era a rainha; eles todos eram os meus súditos; logo, só viviam para fazer a minha vontade.
– Coitados! – disse Digory.
– Por um momento me esqueci de que você não passa de um menino plebeu. Como iria entender razões de Estado? Precisa aprender uma coisa, criança: o que talvez seja errado para você, ou para qualquer pessoa comum, não é errado para uma rainha como eu. A responsabilidade do mundo pesa sobre os nossos ombros. Precisamos estar livres de todas as normas. Nosso destino é grandioso e solitário.
Digory então lembrou-se de que tio André pronunciara aquelas mesmas palavras. Só que ditas pela rainha Jadis soavam muito mais imponentes, talvez porque seu tio não tivesse dois metros de altura e nem fosse estonteantemente belo.
– Que fez a senhora depois? – perguntou.
– Já havia lançado intensas magias na sala onde se assentam as imagens de meus antepassados. E a força desse encantamento era que eu deveria dormir entre eles, como uma estátua, sem precisar de alimento ou calor, ainda que passassem mil anos, até que chegasse alguém, tocasse o sino e me acordasse.
– Foi a Palavra Execrável que botou o sol desse jeito? – perguntou Digory.
– De que jeito?
– Tão grande, tão vermelho, tão frio.
– Sempre foi assim. Pelo menos, há algumas centenas de milhares de anos. Vocês acaso possuem um sol diferente?
– É, o nosso é menor e mais amarelado. E produz muito mais calor.
– A... a... ah! O... o... oh! – exclamou a rainha. Digory viu em sua face aquele olhar esfomeado e cobiçoso que reparara em tio André. – Ah, quer dizer que seu mundo é mais jovem!
Olhou por mais algum tempo para a cidade vazia (se estava arrependida pelo que fizera, não o demonstrou) e disse:
– Agora, vamos partir. Está fazendo frio aqui, no fim de todas as eras.
– Partir para onde? – perguntaram as duas crianças.
– Para onde? – repetiu Jadis, com real surpresa. – Para o mundo de vocês, é claro.
Polly e Digory se entreolharam, estupefatos.
Polly sentira antipatia pela Rainha à primeira vista; e o próprio Digory, que agora sabia de tudo, já estava farto dela. Não era, em absoluto, o tipo de pessoa que nos dê prazer convidar à nossa casa. E, mesmo que o quisessem, não tinham a menor idéia de como fazê-lo.
Queriam mesmo era partir dali, mas Polly não podia pegar seu anel e, naturalmente, Digory não iria sem ela. Muito corado, o menino gaguejou:
– Oh... oh... nosso mundo. Não... não sabia que a senhora desejava ir lá.
– Ora, vocês só podem ter sido despachados para cá a fim de levar-me para lá.
– Sou capaz de jurar que a senhora não vai gostar nem um pouco do nosso mundo – replicou Digory. – Não é um lugar para ela, não acha, Polly? É monótono! Não tem nada para se ver, não tem mesmo!
– Terá muita coisa para se ver depois que eu assumir o governo – foi o comentário da rainha.
– Oh, mas não dá! – disse Digory. – Também não é assim. Eles não vão deixar a senhora entrar, sabe? A rainha sorriu, com desprezo:
– Grandes reis, inúmeros, pensaram que poderiam enfrentar a Casa de Charn. Caíram todos e até seus nomes foram esquecidos. Jovem insensato! Não percebe que, com a minha beleza e a minha magia, terei todo o seu mundo a meus pés antes de um ano? Prepare seu encantamento e leve-me imediatamente para lá.
– Essa é de lascar – disse Digory a Polly.
– Talvez receie por seu tio – disse Jadis. – Mas, caso ele me preste as honras devidas, poderá conservar a vida e o trono. Não vou para destruí-lo. Deve ser um grande feiticeiro, já que descobriu como enviá-lo até aqui. Ele é rei do mundo todo ou só de uma parte?
– Não é rei de coisa nenhuma! – respondeu Digory.
– Mentira sua! A magia e o sangue real andam sempre juntos. Alguém já ouviu falar de gente comum que conhecesse feitiçaria? Não adianta mentir para mim; eu posso ver a verdade. Seu tio é o grande rei e o grande mago de seu mundo. Graças à sua arte, viu a sombra de meu rosto em algum espelho mágico ou num lago encantado. E, por amor à minha beleza, manipulou um feitiço que abalou as bases do mundo e o levou através do abismo entre dois mundos, para que rogasse da minha graça a concessão de ir até ele. Responda: foi ou não foi assim?
– Não foi bem assim – respondeu Digory.
– Não foi bem assim? – gritou Polly. – Isso é uma besteira do princípio ao fim.
– Porcariazinha! – gritou por sua vez a rainha, virando-se furiosa para Polly e agarrando-lhe os cabelos bem no alto da cabeça, onde dói mais. Mas, ao fazer isso, soltou as mãos de ambos.
– Agora! – gritou Digory. – Já! – gritou Polly.
Enfiaram as mãos direitas nos bolsos. Nem precisaram colocar os anéis. Foi só tocá-los e o mundo aterrador desapareceu. Deslizaram para cima, e uma cálida luz verde foi-se tornando mais intensa.

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