terça-feira, 17 de maio de 2011

O Conde de Monte Cristo, Capítulos 11 ao 20

Capítulo X

O Gabinetezinho das Tulherias


            Deixemos Villefort na estrada de Paris, onde, graças a não olhar a despesas, viaja a toda a velocidade, e penetremos através das duas ou três salas que o precedem no gabinetezinho das Tulherias,
de janela arqueada, tão bem conhecido por ter sido o gabinete  favorito de Napoleão e de Luís XVIII e ser hoje o de Luís  Filipe.
            Aí, nesse gabinete, sentado diante de uma mesa de nogueira que trouxera de Hartwell e que, por uma dessas manias familiares às grandes personagens, lhe era especialmente querida, o rei Luís XVIII escutava bastante superficialmente um homem de cinquenta a cinquenta e dois anos, de cabelos grisalhos, figura
aristocrática e aspecto impecável, enquanto anotava à margem um volume de Horácio, edição Gryphius, bastante incorreta apesar de valiosa, e que se prestava muito às sagazes observações filológicas de Sua Majestade.
            - Diz então, senhor... - interveio o rei.
            - Que estou deveras inquieto, sir.
            - Sim? Ter  sonhado com sete vacas gordas e sete vacas magras?
            - Não, Sir, pois isso só nos anunciaria sete anos de fertilidade e sete anos de penúria, e, com um rei tão previdente como Vossa Majestade, a penúria não é de temer.
            - Então de que outro flagelo se trata, meu caro Blacas?
            - Sire, tenho todos os motivos para crer que se está a formar uma tempestade para os lados do Meio-Dia.
            - Não, meu caro duque, creio que está mal informado - respondeu Luís XVIII. - Pelo contrário, sei positivamente que o tempo está excelente para esses lados.
            Como homem de espírito que era, Luís XVIII apreciava o gracejo fácil.
            - Sire - voltou à carga o Sr. de Blacas –, quanto mais não fosse para tranquilizar um fiel servidor, Vossa Majestade não poderia enviar ao Linguadoque, à Provença e ao Delfinado homens de confiança que lhe fizessem um relatório acerca do estado de espirito dessas três províncias?
            - Conimus surdis - respondeu o rei, continuando a anotar o seu Horácio.
            - Sire - perguntou o cortesão rindo, para ter o ar de compreender o hemistíquio do poeta de Venúsia –, Vossa Majestade pode ter perfeitamente razão contando com a sensatez da França; mas eu creio não estar completamente enganado receando qualquer tentativa desesperada.
            - Da parte de quem?
            - Da parte de Bonaparte ou pelo menos do seu partido.
            - Meu caro Blacas, impede-me de trabalhar, com os seus terrores - observou o rei.
            - E a mim, Sire, Vossa Majestade impede-me de dormir, com a sua confiança.
            - Espere, meu caro, espere. Tenho uma nota muito feliz a respeito do “Pastor quum traheret". Espere e continuará depois.
            Fez-se um instante de silêncio, durante o qual Luís XVIII escreveu, com letra tão pequena quanto possível uma nova nota à margem do seu Horácio. Depois dessa nota escrita, disse levantando-se com o ar satisfeito de um homem que julga ter tido uma idéia quando se limitou a comentar a idéia de outro:
            - Continue, meu caro duque. Continue, escuto-o.
            - Sire - começou Blacas, que por um instante alimentara a esperança de confiscar Villefort em seu proveito –, sou forçado a dizer-lhe que não são de modo algum simples boatos sem fundamento, simples palavras no ar que me preocupam. É um homem bem pensante, merecedor de toda a minha confiança e
encarregado por mim de vigiar o Meio-Dia (o duque hesitou ao pronunciar estas palavras), que chega pela posta para me dizer: “Um grande perigo ameaça o rei." é por isso que estou aqui, Sire.
            - “Mala ducis ari domum - continuou Luís XVIII a anotar.
            - Vossa Majestade ordena-me que não volte a insistir neste assunto?
            - Não, meu caro duque; mas estenda a mão.
            - Qual?
            - A que quiser, ali, à esquerda.
            - Aqui, Sire?
            - Digo-lhe à esquerda e você procura à direita... Quero dizer à minha  esquerda. Aí... Acertou. Deve encontrar aí o relatório do ministro da Polícia datado de ontem... Mas veja, aí está o próprio Sr. Dandré... Não foi o Sr. Dandré que disse? - interrompeu-se Luís XVIII, dirigindo-se ao contínuo que, efetivamente, acabava de anunciar o ministro da Polícia.
            - Foi, Sire, o Sr. Barão Dandré - repetiu o contínuo.
            - Vem a propósito, barão - prosseguiu Luís XVIII com um sorriso imperceptível. - Entre, barão, e conte ao duque o que sabe de mais recente acerca do Sr. Bonaparte. Não nos dissimule nada da situação, por mais grave que seja. Vejamos, a ilha de Elba é um vulcão do qual vamos ver sair a guerra chamejante e toda
eriçada: “Bella, horrida bella?"
            O Sr. Dandré balouçou-se muito graciosamente nas costas de uma poltrona em que apoiava as mãos e disse:
            - Vossa Majestade dignou-se consultar o relatório de ontem?
            - Sim, sim. Mas diga ao duque, que o não consegue encontrar, o que continha o relatório. Descreva-lhe em pormenor o que faz o usurpador na sua ilha.
            - Senhor - disse o barão ao duque –, todos os servidores de Sua Majestade devem se regozijar com as notícias que nos chegaram recentemente da ilha de Elba. Bonaparte...
            O Sr. Dandré olhou para Luís XVIII que, ocupado a escrever uma nota, nem sequer levantou a cabeça.
            - Bonaparte - continuou o barão - aborrece-se mortalmente. Passa dias inteiros a ver trabalhar os seus mineiros de Porto Longone.
            - E coça-se para se distrair - observou o rei.
            - Coça-se? - estranhou o duque. - Que quer dizer Vossa Majestade?
            - Sim, sim, meu caro duque. Esquece-se de que esse grande homem, esse herói, esse semideus, sofre de uma doença de pele que o devora, o “purigo"?
            - Mas há mais, Sr. Duque - continuou o ministro da Polícia. - Temos quase a certeza de que dentro de pouco tempo o usurpador estará  louco.
            - Louco?
            - Doido varrido. A sua cabeça enfraquece; tão depressa se desfaz em lágrimas como ri a bandeiras despregadas. Outras vezes passa horas à beira-mar a lançar seixos na àgua, e quando o seixo faz cinco ou seis ricochetes parece tão satisfeito como se tivesse ganho um outro Marengo ou um novo Austerlitz. Decerto
concordam que se trata de sinais de loucura.
            - Ou de sensatez, Sr. Barão, ou de sensatez - observou Luís XVIII rindo. - Era atirando seixos ao mar que se entretinham os grandes capitães da Antiguidade. Vejam Plutarco, na vida de Cipião-o-Africano.
            O Sr. de Blacas ficou pensativo entre as duas hipóteses. Villefort, que lhe não quisera dizer tudo para que o outro não lhe roubasse o lucro completo do seu segredo, dissera-lhe no entanto o suficiente para lhe dar graves inquietações.
            - Vamos, vamos, Dandré - insistiu Luís XVIII.
            - Blacas ainda não está convencido. Passe à conversão do usurpador.
            O ministro da Polícia inclinou-se.
            - A conversão do usurpador! - murmurou o duque, olhando o rei e Dandré, que alternavam como dois pastores de Virgílio. - O usurpador converteu-se?
            - Absolutamente, meu caro duque. 
            - Aos bons princípios? Explique isso, barão.
            - Aqui tem o que aconteceu, Sr. Duque - principiou o ministro com a maior seriedade do mundo. - Ultimamente, Napoleão passou uma revista e como dois ou três dos seus velhos súditos, como lhes chama, manifestassem vontade de regressar a França, autorizou-os e exortou-os a servir o seu bom rei. Foram estas as suas próprias palavras, Sr. Duque, garanto-lhe.
            - Então, Blacas, que me diz a isto? - perguntou o rei, triunfante, deixando por um instante de compulsar o calhamaço aberto diante de si.
            - Digo, Sire, que ou o Sr. Ministro da Polícia ou eu estamos enganados. Mas como é impossível que seja o ministro da Polícia, que tem à sua guarda a vida e a honra de Vossa Majestade, é provável que o erro seja meu. No entanto, Sire, no lugar de Vossa Majestade gostaria de interrogar a pessoa de quem lhe falei. Insisto até  em que Vossa Majestade lhe conceda essa honra.
            - Com muito prazer, duque. Sob os seus auspícios, receberei quem o senhor quiser. Mas quero recebê-lo de armas na mão. Sr. Ministro, não tem um relatório mais recente do que este? Este tem já a data de 20 de Fevereiro e estamos em 3 de Março!
            - Não, Sire, mas espero um de um momento para o outro. Saí de manhã e talvez tenha chegado na minha ausência.
            - Vá à Prefeituria e se não tiver chegado... bom - continuou, rindo, Luís XVIII –, faça um. Não é assim que resolve o problema?
            - Oh, Sire! - protestou o ministro. - Graças a Deus, quanto a esse relatório não é preciso inventar nada. Todos os dias as nossas repartições se enchem com as denúncias mais circunstanciadas, provenientes de uma multidão de pobres diabos que esperam um pouco de reconhecimento por serviços que não prestam, mas que desejariam prestar. Confiam no acaso e esperam que um dia qualquer acontecimento inesperado dê uma espécie de realidade às suas predições.
            - Pois sim. V , senhor - disse Luís XVIII –, e lembre-se de que o espero.
            - Irei num pé e voltarei noutro, Sire. Dentro de dez minutos estarei de volta.
            - E eu, Sire - disse o Sr. de Blacas –, vou buscar o meu mensageiro.
            - Espere, espere! - atalhou Luís XVIII. - Na verdade, Blacas, parece-me que devo modificar as suas armas: dar-lhe-ei uma águia de asas abertas segurando nas garras uma presa que procura inutilmente escapar-lhe, com esta divisa: “Tenax".
            - Sire, sou todo ouvidos - disse o Sr. de Blacas, que mal continha a sua impaciência.
            - Gostaria de consultá-lo acerca desta passagem: “Molli fugiens anhelitu”. Como sabe, trata-se de um veado que foge diante de um lobo. O senhor não é caçador e monteiro-mor? Que lhe parece, a esse duplo titulo, o “molli anhelitu".
            - Admirável, Sire. Mas o meu mensageiro é como o veado de que Vossa Majestade fala, pois acaba de percorrer 220 léguas em posta, e isso apenas em três dias.
            - Já é vontade de apanhar uma estafa e uma carga de preocupações, meu caro duque, quando temos o telégrafo que não gasta mais de três ou quatro horas, e isso sem que o seu fôlego se altere em absolutamente nada.
            - Ah, Sire, recompensa muito mal esse pobre rapaz que vem de tão longe  e com tanto ardor para dar a Vossa Majestade um aviso útil. Quanto mais não seja em atenção para com o Sr. de Salvieux, que mo recomenda, recebei-o bem, suplico-vos.
            - O Sr. de Salvieux, o camareiro do meu irmão?
            - O próprio.
            - Com efeito, ele está em Marselha.
            - É de lá que me escreve.
            - Fala-lhe também dessa conspiração?
            - Não, mas recomenda-me o Sr. de Villefort e encarrega-me de o introduzir junto de Vossa Majestade.
            - Sr. de Villefort? - sobressaltou-se o rei. - Esse mensageiro chama-se Sr. de Villefort?
            - Chama, sire.
            - E é ele que vem de Marselha?
            - Em pessoa.
            - Porque não me disse imediatamente o seu nome? - inquiriu o rei, deixando transparecer no rosto um princípio de inquietação.
            - Sire, julgava esse nome desconhecido de Vossa Majestade.
            - De modo nenhum, de modo nenhum, Blacas. Trata-se de um espírito sério, elevado, sobretudo ambicioso. E, evidentemente, você conhece de nome o pai dele.
            - O pai dele?
            - Sim, Noirtier.
            - Noirtier, o girondino? Noirtier, o senador?
            - Exatamente.
            - E Vossa Majestade empregou o filho de semelhante homem?
            - Blacas, meu amigo, você não percebe nada disto. Já lhe disse que Villefort era ambicioso. Para levar a  água ao seu moinho, Villefort sacrificará tudo, mesmo o pai.
            - Então, sire, devo mandá-lo entrar?
            - Imediatamente, duque. Onde está ele?
            - Deve esperar-me lá em baixo, na minha carruagem.
            - Vá buscá-lo.
            - Sem demora.
            O duque saiu com a vivacidade de um rapaz; o ardor do seu realismo sincero dava-lhe vinte anos.
            Luís XVIII ficou só, passando os olhos pelo seu Horácio entreaberto e murmurando: “Justum et tenacem propositi virum."
            O Sr. de Blacas tornou a subir com a mesma rapidez com que descera; mas na antecâmara foi obrigado a invocar a autoridade do rei. A sobrecasaca poeirenta de Villefort, todo o seu traje, onde nada estava de acordo com a apresentação de corte, ferira as suas susceptibilidades do Sr. de Brézé, que ficou espantado com a pretensão daquele jovem de aparecer assim vestido diante do rei. Mas o duque arredou todas as dificuldades com uma única palavra: “Ordem de Sua Majestade." E apesar das observações que
continuou a fazer o mestre de cerimônias, para honrar os princípios, Villefort foi introduzido.
            O rei estava sentado no mesmo lugar onde o deixara o duque. Ao abrir a  porta, Villefort encontrou-se precisamente diante dele. O primeiro impulso do jovem magistrado foi deter-se.
            - Entre, Sr. de Villefort, entre - disse o rei.
            Villefort cumprimentou, deu alguns passos em frente e esperou que o rei o interrogasse.
            - Sr. de Villefort - continuou Luís XVIII –, o duque de Blacas pretende que o senhor tem qualquer coisa importante a dizer-nos.
            - Sire, o Sr. Duque tem razão e espero que Vossa Majestade seja o primeiro a reconhecê-lo.
            - Antes de mais nada, senhor, o mal é assim tão grande, na sua opnião, como me querem fazer crer?
            - Sire, julgo-o instante; mas graças à diligência que fiz, julgo não ser irreparável.
            - Fale à vontade, senhor - disse o rei, que começava ele próprio a ceder à emoção que perturbava o rosto do Sr. de Blacas e alterara a voz de Villefort. - Fale e sobretudo comece pelo princípio: gosto de ordem em todas as coisas.
            - Sire - disse Villefort –, apresentarei a Vossa Majestade um relatório fiel, mas suplico-lhe me desculpe se a perturbação que me domina lançar alguma obscuridade nas minhas palavras.
            Uma olhadela deitada ao rei depois deste exórdio insinuante assegurou a Villefort a benevolência de seu augusto ouvinte. Continuou:
            - Sire, dirigi-me o mais rapidamente possível para Paris a fim de informar Vossa Majestade de que no exercício das minhas funções descobri não uma dessas conspirações vulgares e sem consequências, como as que se tramam todos os dias nas últimas camadas do povo e do Exército, mas sim uma verdadeira
conspiração, uma tempestade que ameaça nada menos do que o trono de Vossa Majestade. Sire, o usurpador armou três navios. Medita qualquer projeto, talvez insensato, mas também terrível, por mais insensato que seja. A esta hora deve ter deixado a ilha de Elba. Para ir aonde? Ignoro, mas com certeza para tentar um desembarque, quer em Nápoles, quer nas costas da Toscana, quer mesmo na França. Vossa Majestade não ignora que o soberano da ilha de Elba conservou relações com a Itália e com a França.
            - Sim. senhor, bem o sei - declarou o rei, muito impressionado- e ainda recentemente me avisaram de que se realizavam reuniões bonapartistas na Rua de Saint-Jacques. Mas continue, peço-lhe. Como soube desses pormenores?
            - Sire, são o resultado de um interrogatório a que submeti um homem de Marselha que vigiava havia muito tempo e que mandei prender no próprio dia da minha partida. Esse homem, marinheiro turbulento e de um bonapartismo que se me tornou suspeito, esteve secretamente na ilha de Elba, onde falou com o grande
marechal, que o encarregou de uma missão verbal para um bonapartista de Paris cujo nome não consegui obrigá-lo a dizer. Mas a missão consistia em encarregar esse bonapartista de preparar os espíritos para um regresso (note que estou reproduzindo o interrogatório. sire), para um regresso que não pode deixar de estar próximo.
            - E onde está esse homem? - perguntou Luís XVIII.
            - Na prisão, sire. 
            - E o caso pareceu-lhe grave?
            - Tão grave, sire, que tendo-me surpreendido no meio de uma festa de família, no próprio dia do meu noivado, deixei tudo, noiva e amigos, adiei tudo para outra altura, a fim de vir depor aos pés de Vossa Majestade, juntamente com os meus temores, a  certeza da minha dedicação.
            - De fato - disse Luís XVIII –, não havia um projeto de união entre o senhor e Mademoiselle de Saint-Méran?
            - A filha de um dos mais fiéis servidores de Vossa Majestade.
            - Sim, sim. Mas voltemos a essa conspiração, Sr. de Villefort.
            - Sire, receio que seja mais do que uma conspiração...
            - Nestes tempos - disse o rei, sorrindo –, uma conspiração é coisa fácil de planejar, mas mais difícil de conduzir ao seu fim, exatamente porque recolocados há pouco tempo no trono dos nossos antepassados, temos os olhos abertos ao mesmo tempo para o passado, para o presente e para o futuro. Há dez meses que os meus ministros redobram de vigilância para que o litoral do Mediterrâneo esteja bem guardado. Se Bonaparte desembarcasse em Nápoles, a coligação em peso estaria em pé de guerra antes dele chegar sequer ao Piombino. Se desembarcasse na Toscana, poria o pé em território inimigo. Se desembarcasse na França, será com um punhado de homens, e o venceremos facilmente, execrado como é pela população. Tranquilize-se portanto, senhor. Mas nem por isso conte menos com o nosso reconhecimento real.
            - Ah, cá está o Sr. Dandré! - exclamou o duque de Blacas. Nesta altura apareceu, com efeito, no limiar da porta o Sr. Ministro da Polícia, pálido, trêmulo, e cujo olhar vacilava como se tivesse sido vitima de um deslumbramento.
            Villefort deu um passo para se retirar, mas um aperto de mão do Sr. de Blacas reteve-o.


Capítulo XI

O Papão da Côrsega


            Ao ver o ar transtornado daquele rosto, Luís XVIII empurrou violentamente a mesa diante da qual se encontrava.
            - Que tem, Sr. Barão? - perguntou. - Parece muito transtornado. Essa perturbação, essa hesitação, têm alguma coisa a ver com o que dizia o Sr. de Blacas e com o que acaba de me confirmar o Sr. de Villefort?
            Pela sua parte, o Sr. de Blacas aproximava-se vivamente do barão, mas o terror do cortesão impedia de triunfar o orgulho do estadista. Com efeito, em semelhantes circunstâncias era muito mais vantajoso para ele ser humilhado pelo ministro da Polícia do que humilhá-lo em tal caso.
            - Sire... - balbuciou o barão.
            - Fale! - ordenou Luís XVIII.
            Cedendo então a um impulso de desespero, o ministro da Polícia precipitou-se aos pés de Luís XVIII, que recuou um passo e franziu o sobrolho.
            - Quer fazer o favor de falar? - insistiu.
            - Oh, sire, que horrível desgraça! Nunca me penitenciarei suficientemente. Nunca me resignarei!
            - Senhor - disse Luís XVIII –, ordeno-lhe que fale.
            - Pois bem, sire, o usurpador deixou a ilha de Elba em 28 de Fevereiro e desembarcou em 1 de Março.
            - Onde? - perguntou vivamente o rei.
            - Na França, sire, num port perto de Antibes, no golfo Juan.
            - O usurpador desembarcou na França, perto de Antibes, no golfo Juan, a duzentas e cinquenta léguas de Paris, no dia 1 de Março, e o senhor só sabe disso hoje, 3 de Março!... Senhor, o que me diz é impossível: ou lhe fizeram um relatório falso ou o senhor enlouqueceu.
            - Infelizmente, sire, é a pura verdade!
            Luís XVIII fez um gesto indizível de cólera e terror e aprumou-se como se um golpe imprevisto o tivesse atingido ao mesmo tempo no coração e no rosto.
            - Na França! - exclamou. - O usurpador na França! Mas então ninguém vigiava esse homem? Quem sabe se não estariam feitos com ele...
            - Oh, sire - interveio o duque de Blacas –, não se pode acusar de traição um homem como o Sr. Dandré! Sire, estávamos todos cegos e o ministro da Polícia compartilhou a cegueira geral, mais nada.
            - Mas... - começou Villefort; depois, detendo-se de súbito. - Ah, perdão, sire! - exclamou inclinando-se. - O meu zelo domina-me. Que Vossa Majestade se digne desculpar-me.
            - Fale, senhor, fale à vontade - disse o rei. - já que foi o único a prevenir-nos do mal, ajude-nos a encontrar-lhe o remédio.
            - Sire - declarou Villefort –, o usurpador é detestado no Meio-Dia. Parece-me portanto que se se aventurar no Meio-Dia se poderá sublevar facilmente contra ele a Provença e o Linguadoque.
            - Sim, sem dúvida - concordou o ministro –, mas ele avança por Cap e Sisteron.
            - Ele avança, ele avança... - repetiu Luís XVIII. - Quer dizer que marcha sobre Paris?
            O ministro da Polícia guardou um silêncio que equivalia à mais completa confissão.
            - E o Delfinado, senhor? - perguntou o rei a Villefort. - Acha que se poder  sublevar como a Provença?
            - Sire, custa-me dizer a Vossa Majestade uma verdade cruel, mas o espírito do Delfinado está longe de valer o da Provença e a do Linguadoque. Os montanheses são bonapartistas, sire.
            - Claro - murmurou Luís XVIII –, informou-se bem... E quantos homens traz consigo?
            - Não sei, sire - respondeu o ministro da Polícia.
            - Como? Não sabe?! Esqueceu-se de se informar desse pormenor? Verdade seja que é de pouca importância - acrescentou com um sorriso demolidor.
            - Sire, não me pude informar a esse respeito. O despacho anunciava  simplesmente o desembarque e a estrada tomada pelo usurpador.
            - E como chegou às suas mãos esse despacho? - perguntou o rei.
            O ministro baixou a cabeça e um vivo rubor invadiu-lhe a testa.
            - Pelo telégrafo, sire - balbuciou.
            Luís XVIII deu um passo em frente e cruzou os braços como teria feito Napoleão.
            - Assim - disse empalidecendo de cólera –, sete exércitos coligados derrubaram esse homem; um milagre do Céu recolocou-me no trono dos meus avôs depois de vinte anos de exílio; durante esses vinte e cinco anos estudei, sondei, analisei os homens e as coisas desta França que me estava prometida. Para quê? Para no fim de tudo isto uma força que tinha na mão rebentar e destruir-me!
            - Sire, é a fatalidade - murmurou o ministro, sentindo que semelhante peso, leve para o destino, bastava para esmagar um homem.
            - Mas então é verdade o que diziam de nós os nossos inimigos: “Não aprenderam nem esqueceram nada?" Se tivesse sido atraiçoado por pessoas elevadas por mim às dignidades, que deveriam velar por mim mais cuidadosamente do que por si mesmas, porque a minha fortuna era a sua, antes de mim não eram nada e depois de mim nada seriam, mas cair miseravelmente por incapacidade, por inépcia! Ah, sim, senhor, tem razão, é uma fatalidade.
            O ministro mantinha-se curvado debaixo deste espantoso anátema.
            O Sr. de Blacas enxugava a testa coberta de suor. Villefort sorria intimamente porque sentia crescer a sua importância.
            - Cair - continuava Luís XVIII, que ao primeiro relance de olhos sondava o princípio para onde se inclinava a monarquia –, cair e saber da queda pelo telégrafo! Oh, preferiria subir o cadafalso do meu irmão Luís XVI a descer assim a escadaria das Tulherias, corrido pelo ridículo!... O ridículo, que o senhor não sabe o
que é na França, embora o devesse saber.
            - Sire, sire - murmurou o ministro –, por piedade!...
            - Aproxime-se, Sr. de Villefort - continuou o rei, dirigindo-se ao jovem que de pé, imóvel e atrás observava o andamento daquele diálogo onde pairava, perdido, o destino de um reino –, e diga a este senhor que se podia saber com antecedência tudo o que ele não soube.
            - Sire, era materialmente impossível adivinhar projetos que esse homem ocultava de todos.
            - Materialmente impossível! Ora ai está uma grande frase, senhor. Infelizmente, há grandes frases assim como há grandes homens; já medi umas e outros. Materialmente impossível a um ministro, que tem uma administração, repartições, agentes, informadores, espiões e um milhão e quinhentos mil francos de fundos secretos saber o que se passa a sessenta léguas das costas da França! Pois bem, veja, senhor, aqui tem quem não tinha nenhum desses recursos à sua disposição; aqui tem, senhor, um simples magistrado que
a tal respeito sabia mais do que o senhor com toda a sua polícia e que me teria salvado a coroa se tivesse tido como o senhor o direito de dirigir um telégrafo.
            O olhar do ministro da Polícia virou-se com expressão de profundo desprezo para Villefort, que inclinou a cabeça com a modéstia do triunfo.
            - Não digo isto em sua intenção, Blacas - continuou Luís XVIII –,  porque se você nada descobriu, ao menos teve a feliz idéia de perseverar a sua desconfiança. Outro que fosse talvez tivesse considerado a revelação do Sr. de Villefort insignificante ou então sugerida por uma ambição venal.
            Estas palavras aludiam às que o ministro da Polícia pronunciara com tanta confiança uma hora antes.
            Villefort compreendeu o jogo do rei. Outro talvez se tivesse deixado empolgar pela embriaguez do elogio; mas ele temia fazer do ministro da Polícia um inimigo mortal, embora sentisse que este estava irremediavelmente perdido. Com efeito, o ministro que na plenitude do seu poder não soubera adivinhar o segredo de Napoleão, poderia nas convulsões da sua agonia, descobrir o de Villefort. Para isso, bastar-lhe-ia interrogar Dantés. Veio, pois, em socorro do ministro em vez de o enterrar.
            - Sire - disse Villefort –, a rapidez dos acontecimentos deve provar a Vossa Majestade que só Deus os poderia impedir levantando uma tempestade. O que Vossa Majestade julga da minha parte o efeito de uma profunda perspicácia deve-se pura e simplesmente ao acaso. Aproveitei esse acaso como servidor dedicado e mais nada. Não me conceda mais do que mereço, sire, para nunca voltar atrás na primeira idéia que tiver concebido a meu respeito.
            O ministro da Polícia agradeceu ao jovem com um olhar eloquente e Villefort compreendeu que tora bem sucedido no seu projeto, isto é, que sem perder nada do reconhecimento do rei acabava de fazer um amigo com que, se fosse caso disso, poderia contar.
            - Está bem - disse o rei. - E agora, meus senhores - prosseguiu virando-se para o Sr. de Blacas e para o ministro da Polícia -, já não me são necessários, podem-se retirar. O que resta fazer é da competência do ministro da Guerra.
            - Ainda bem, sire - disse o Sr. de Blacas –, que podemos contar com o Exército. Vossa Majestade sabe como todos os relatórios o dão como dedicado ao seu governo.
            - Não me venha com relatórios! Agora, duque, - sei a confiança que se pode ter neles. Eh! Mas a propósito de relatórios, Sr. Barão, que soube de novo acerca do caso da Rua Saint-Jacques?
            - Acerca do caso da Rua Saint-Jacques! - deixou escapar Villefort, sem conter uma exclamação.
            Mas deteve-se de súbito e disse:
            - Perdão, sire, a minha dedicação a Vossa Majestade faz-me constantemente esquecer, não o respeito que lhe devo e que está muito profundamente gravado no meu coração, mas sim as regras da etiqueta.
            - Não se preocupe com isso, senhor - perguntou Luís XVIII. - Hoje adquiriu o direito de interrogar.
            - Sire - respondeu o ministro da Polícia –, vinha precisamente dar hoje a Vossa Majestade as novas informações que recolhi a esse respeito quando a atenção de Vossa Majestade foi desviada para a terrível catástrofe do golfo. Agora essas informações já não têm nenhum interesse para o rei.
            - Pelo contrário, senhor, pelo contrário - replicou Luís XVIII. - Esse caso parece-me ter relação direta com aquele de que nos ocupamos e a morte do general Quesnel talvez nos ponha na pista de uma grande conspiração interna. 
            Ao ouvir o nome do general Quesnel, Villetort estremeceu.
            - Com efeito, sire - prosseguiu o ministro da Polícia –, tudo leva a crer que essa morte é o resultado não de um suicídio, como a principio pareceu, mas sim de um assassínio. Ao que parece, o general Quesnel saía de um clube bonapartista quando desapareceu. Nessa mesma manhã fora procurado por um homem desconhecido que lhe marcara encontro na Rua Saint-Jacques. Infelizmente, o criado de quarto do general, que o penteava no momento em que o desconhecido foi introduzido no gabinete, ouviu-o perfeitamente
indicar a Rua Saint-Jacques, mas não fixou o número.
            À medida que o ministro da Polícia dava ao rei Luís XVIII estas informações, Villefort, que parecia suspenso dos seus lábios, corava e empalidecia.
            O rei virou-se para ele.
            - Não lhe parece, como a mim, Sr. de Villefort, que o general Quesnel, que se poderia crer ligado ao usurpador, mas que na realidade me pertencia de corpo e alma, foi vítima de uma cilada bonapartista?
            - É provável, sire - respondeu Villefort. - Mas não se sabe mais nada?
            - Estamos na pista do homem que marcou o encontro.
            - Na sua pista? - repetiu Villefort.
            - Sim. O criado deu os seus sinais. E um homem de cinquenta a cinquenta e dois anos, moreno, de olhos negros cobertos de sobrancelhas espessas e bigode. Envergava sobrecasaca azul e usava na lapela uma roseta de oficial da Legião de Honra. Ontem seguiu-se um indivíduo cujos sinais correspondiam exatamente aos que acabo de dar, mas desapareceu à esquina da Rua da Jussienne com a do Coq-Héron.
            Villefort apoiara-se nas costas de uma poltrona. Porque à medida que o ministro da Polícia falava sentia as pernas faltarem-lhe debaixo do corpo. Mas quando viu que o homem escapara à perseguição do agente que o seguia, respirou.
            - Procure esse homem, senhor - disse o rei ao ministro da Polícia. - Porque se, como tudo me leva a crer, o general Quesnel, que nos seria tão útil neste momento, foi vítima de um assassino, bonapartista ou não, quero que os seus assassinos sejam cruelmente punidos.
            Villefort necessitou de todo o seu sangue-frio para não deixar transparecer o terror que lhe inspirava a recomendação do rei.
            - Coisa estranha! - continuou o monarca com um gesto de humor. - A Polícia julga ter dito tudo quando diz: “Cometeu-se um assassínio." E tudo ter feito quando acrescenta: “Estamos na pista dos culpados."
            - Sire, pelo menos nesse caso Vossa Majestade ficará satisfeito, assim espero.
            - Veremos. Não o retenho mais tempo, barão. Sr. de Villefort, deve estar cansado dessa longa viagem; vá descansar. Instalou-se com certeza em casa de seu pai?
            Uma sombra passou pelos olhos de Villefort.
            - Não, sire - respondeu. - Hospedei-me no Hotel de Madrid, na Rua de Tournon.
            - Mas viu-o?
            - Sire, a primeira coisa que fiz foi dirigir-me a casa do Sr. Duque de Blacas. 
            - Mas o verá, ao menos?
            - Não acredito, sire.
            - Ah, é justo! - exclamou Luís XVIII, sorrindo de maneira que demonstrava que todas estas perguntas reiteradas não tinham sido feitas sem intenção. - Esquecia-me de que o senhor não está de boas relações com o Sr. Noirtier. Trata-se de um novo sacrifício feito à causa monárquica de que devo recompensá-lo.
            - Sire, a bondade que Vossa Majestade me testemunha é recompensa que ultrapassa tanto todas as minhas ambições que não tenho mais nada a pedir ao rei.
            - Não importa, senhor, e não o esqueceremos, esteja tranquilo. Entretanto - o rei tirou a cruz da Legião de Honra que usava habitualmente na casaca azul, junto da cruz de S. Luís e por cima da placa da Ordem de Nossa Senhora do Monte Carmelo e de S. Lázaro e entregou-a a Villefort –, entretanto tome esta cruz.
            - Sire - observou Villefort –, Vossa Majestade engana-se, essa cruz é a de oficial.
            - É verdade, senhor - disse Luís XVIII –, mas mesmo assim aceite-a. Não tenho tempo para mandar vir outra. Blacas, não se esqueça de providenciar para que seja passado o alvará ao Sr. de Villefort.
            Os olhos de Villefort cobriram-se de lágrimas de orgulhosa alegria. Pegou na cruz e beijou-a.
            - E agora - perguntou - quais são as ordens que me faz a honra de me dar Vossa Majestade?
            - Descanse o tempo que precisar e lembre-se de que sem força em Paris para me servir me poderá  ser da maior utilidade em Marselha.
            - Sire - respondeu Villefort inclinando-se –, deixarei Paris dentro de uma hora.
            - Vá, senhor - disse o rei –, e se o esquecer (a memória dos reis é curta) não receie fazer-se-me lembrado... Sr. Barão, mande procurar o ministro da Guerra. Blacas, fique.
            - Ah, senhor - disse o ministro da Polícia a Villefort à saída das Tulherias –, entrou com o pé direito, tem a sua fortuna feita!
            - Por muito tempo? - murmurou Villefort, despedindo-se do ministro, cuja carreira terminara, e  procurando com a vista uma carruagem para regressar a casa.
            Passava um fiacre no cais. Villefort fez-lhe sinal e o fiacre aproximou-se. Villefort deu o seu endereço, atirou-se para o fundo da carruagem e deu largas aos seus sonhos de ambição. Dez minutos depois estava em casa. Mandou preparar os cavalos para dali a duas horas e ordenou que lhe servissem o café da manhã.
            Ia sentar-se à mesa quando a campainha da porta da rua tocou, acionada por uma mão franca e firme. O criado de quarto foi abrir e Villefort ouviu uma voz pronunciar o seu nome. “Quem poderá saber que estou aqui?", interrogou-se o jovem. Neste momento o criado de quarto voltou a entrar.
            - Então – perguntou Villefort –, quem era? Quem tocou? Quem procura por mim? 
            - Um desconhecido que não quer dizer o seu nome.
            - Como! Um desconhecido que não quer dizer o seu nome? E o que quer esse desconhecido?
            - Falar com o senhor.
            - Comigo?
            - Sim.
            - Ele disse o meu nome?
            - Perfeitamente.
            - E que aparência tem esse desconhecido?
            - Trata-se de um homem dos seus cinquenta anos.
            - Baixo? Alto?
            - Mais ou menos da altura do senhor.
            - Louro ou moreno?
            - Moreno, muito moreno: cabelo preto, olhos pretos, sobrancelhas pretas.
            - E vestido - perguntou vivamente Villefort –, vestido de que maneira?
            - Com uma grande sobrecasaca azul abotoada de alto a baixo e condecorado com a Legião de Honra.
- é ele - murmurou Villefort empalidecendo.
            - Por Deus - disse aparecendo à porta o indivíduo cujos sinais já demos por duas vezes –, que maneiras! É hábito em Marselha os filhos fazerem o pai esperar na antecâmara?
            - Meu pai! - exclamou Villefort. - Não me enganei... já calculava que fosse o senhor.
            - Então, se já esperavas que fosse eu - perguntou o recém-chegado, pousando a bengala num canto e o chapéu numa cadeira –, permita-me que te diga, meu caro Gerard, que não é muito amável da tua parte me fazer esperar assim.
            - Deixe-nos, germain - disse Villefort.
            O criado saiu dando sinais visíveis de espanto.


Capítulo XII

Pai e filho


            O Sr. Noirtier, porque era efetivamente ele próprio quem acabava de entrar, seguiu com a vista o criado até  ele fechar a porta. Depois, receando sem dúvida que escutasse na antecâmara, foi atrás dele abrir a porta. A precaução não se revelou inútil, pois a rapidez com que mestre Germain se retirou provou que não
estava de modo algum isento do pecado que perdeu os nossos primeiros pais.
            O Sr. Noirtier deu-se então ao incômodo de ir ele próprio fechar a porta da antecâmara, tornou a fechar a do quarto de cama, correu os ferrolhos e estendeu novamente a mão a Villefort, que seguira todos estes movimentos com uma surpresa de que ainda se não recompusera.
            - Demônio, sabes, meu caro Gerard - disse ao jovem, fitando-o com um  sorriso cuja expressão era muito difícil de definir –, que não parece estar satisfeito por me ver?
            - Claro, meu pai - respondeu Villefort - que estou encantado. Mas estava tão longe de esperar a sua visita que me deixou um pouco surpreendido.
            - Mas, meu caro amigo - prosseguiu o Sr. Noirtier sentando-se –, parece-me que te poderia dizer outro tanto. Como! Me anuncia o seu noivado em Marselha para 28 de Fevereiro e em 3 de Março está em Paris?
            - Não se queixe por estar aqui, meu pai - disse Gerard aproximando-se do Sr. Noirtier –, pois foi por sua causa que vim e talvez esta viagem o salve.
            - Deveras? - perguntou o Sr. Noirtier recostando-se indolentemente na poltrona onde estava sentado. - Deveras? Conte-me isso, Sr. Magistrado, que deve ser curioso.
            – Meu pai, já ouviu falar de certo clube bonapartista situado na Rua Saint-Jacques?
            - Número 53? Já e até  sou seu vice-presidente.
            - Meu pai, o seu sangue-frio arrepia-me.
            - Que quer, meu caro, quando se foi proscrito pelos montanheses, se saiu de Paris numa carroça de feno e se foi perseguido nas charnecas de Bordéus pelos esbirros de Robespierre, habituamo-nos a muitas coisas. Continue. Que aconteceu nesse clube da Rua Saint-Jacques?
            - O que aconteceu foi que chamaram lá o general Quesnel e que o general Quesnel saiu às nove horas da noite de casa e foi encontrado dois dias depois no Sena.
            - Quem te contou essa bonita história?
            - O próprio rei, senhor.
            - Pois em troca da tua história - continuou Noirtier - vou te dar uma notícia.
            - Meu pai, julgo saber já o que me vai dizer.
            - Oh! já sabe do desembarque da Sua Majestade o imperador?
            - Silêncio, meu pai, suplico-lhe, primeiro por si e depois por mim. Sim, já sabia dessa notícia e até  a soube primeiro do que o senhor. Há três dias que percorro a galope o caminho de Marselha a Paris, com a raiva de não poder lançar duzentas léguas à minha frente o pensamento que me queima o cérebro.
            - Há três dias! Está louco? Há três dias o imperador ainda não tinha embarcado!
            - Não importa, eu sabia do projeto.
            - Como?
            - Por uma carta dirigida ao senhor vinda da ilha de Elba.
            - A mim?
            - A você, e que encontrei na carteira do portador. Se essa carta tivesse caído nas mãos doutro, a esta hora, meu pai, talvez já estivesse fuzilado.
            O pai de Villefort desatou a rir.
            - Vamos, vamos...-disse. - Parece que a Restauração aprendeu com o Império a forma de resolver rapidamente as coisas... Fuzilado! Como vai depressa, meu caro! E essa carta onde está? Conheço-te
demasiado para temer que a tenha deixado por aí.
            - Queimei-a para que não restasse dela um único fragmento. Porque essa carta era a sua condenação. 
            - E a perda do teu futuro - respondeu friamente Noirtier. - Sim, compreendo. Mas não tenho nada a temer, visto você me proteger.
            - Faço mais do que isso, senhor: salvo-o.
            - Oh, diabo, o caso está tornando-se dramático? Explique-se.
            - Voltemos a esse clube da Rua Saint-Jacques, senhor.
            - Parece que esse clube preocupa muito os senhores da Polícia. Porque o não procuraram melhor? O teriam encontrado.
            - Não o encontraram, mas estão no seu rastro.
            - E a frase sacramental, já se sabe: quando a Polícia se encontra em apuros, diz que está no rastro e o Governo espera tranquilamente o dia em que ela vem dizer, de orelha murcha, que esse rastro se perdeu.
            - Pois sim, mas encontraram um cadáver. O general Quesnel foi assassinado e em todos os países do mundo isso chama-se crime.
            - Assassinado, você dizu? Mas nada prova que o general tenha sido assassinado. Todos os dias se encontram pessoas no Sena, umas que se atiraram ao rio por desespero, outras que se afogaram por não
saberem nadar.
            - Meu pai, sabe muito bem que o general se não afogou por desespero e que ninguém toma banho no Sena em Janeiro. Não, não, não se iluda: essa morte está bem qualificada como assassínio.
            - E quem a qualificou assim?
            - O próprio rei.
            - O rei! Julgava-o suficientemente filôsofo para compreender que em política não há assassínio. Em política, meu caro, você sabe tão bem como eu, não há homens, mas sim idéias. Não há sentimentos,
mas sim interesses. Em política não se mata um homem, suprime-se apenas um obstáculo, mais nada. Quer saber como as coisas se passaram? Pois bem, vou dizer. Julgávamos poder contar com o general Quesnel; nós o tinhamos recomendado da ilha de Elba. Um de nós foi a sua casa e convidou-o a assistir na Rua
Saint-Jacques a uma reunião onde encontraria amigos. Ele foi e lá  revelaram-lhe todo o plano: a partida da ilha de Elba, o desembarque projetado, etc. Depois de ouvir tudo, de se inteirar de tudo, de não haver mais nada a explicar-lhe, respondeu que era monárquico. Então, todos se entreolharam. Pedem-lhe que jure
nada revelar; concorda, mas de tão má vontade, com franqueza, que é de tentar Deus jurar assim. Bom, apesar de tudo deixaram o general sair livre, completamente livre. Se não regressou a casa, que quer que
te diga, meu caro? Não há dúvida que saiu de junto de nós. Pode ter se enganado no caminho, simplesmente. Assassínio! Na verdade, surpreende-me, Villefort. Você, substituto do procurador régio, forjar uma acusação sobre tão más provas... Nunca me passaria pela cabeça te dizer, quando exerces o teu ofício de monárquico
e mandas cortar a cabeça a um dos meus: “Meu filho, cometeste um assassínio!” Não, digo sempre: “Muito bem, senhor, combateste vitoriosamente; nos desforraremos amanhã."
            - Mas, meu pai, acautele-se; essa desforra será terrível quando chegar a nossa vez.
            - Não te compreendo.
            - Conta com o regresso do usurpador?
            - Confesso que conto. 
            - Engana-se, meu pai. Não penetrará dez léguas dentro da França sem ser perseguido, acossado como uma fera.
            - Meu caro amigo, neste momento o imperador está na estrada de Grenoble, em 10 ou 12 estará em Lião e em 20 ou 25 em Paris.
            - As populações vão se sublevar...
            - Para irem ao seu encontro.
            - Só tem consigo alguns homens e mandarão exércitos contra ele.
            - Que o escoltarão para entrar na capital. Na verdade, meu caro Gerard, não passa ainda de uma criança. Vocês julgam-se bem informados porque um telégrafo lhes disse, três dias depois do desembarque: “O usurpador desembarcou em Cannes com alguns homens; vamos em sua perseguição."  Mas onde está ele? Que faz? A esse respeito vocês não sabem nada. Perseguem-no, é tudo o que sabem. Pois o perseguirão assim até  Paris sem queimar uma escorva.
            - Grenoble e Lião são cidades fiéis e que lhe oporão uma barreira intransponível.
            - Grenoble lhe abrirá as portas com entusiasmo e Lião em peso irá  ao seu encontro. Acredite-me, estamos tão bem informados como vocês e a nossa polícia vale bem a vossa. Quer uma prova? Vocês
quiseram esconder-me a sua viagem e no entanto soube da sua chegada cerca de meia hora depois de transpor a barreira. Não deste o teu endereço a ninguém, exceto ao teu postilhão, e como vê sabia onde te encontrar, e a prova disso é que chego a tua casa precisamente no momento em que vai se sentar à mesa.
Toca, pois, e pede segundo talher; comeremos juntos.
            - Com efeito - respondeu Villefort, olhando o pai com surpresa –, com efeito parece-me muito bem informado.
            - Mas, meu Deus, não há nada mais simples! Vocês, que detêm o poder, só dispõem dos meios que proporciona o dinheiro; nós, que o esperamos, só temos aqueles que proporciona a dedicação.
            - A dedicação? - disse Villefort, rindo.
            - Sim, a dedicação. É assim que se chama, em termos honestos, a ambição que espera.
            E o pai de Villefort estendeu pessoalmente a mão para o cordão da campainha, a fim de chamar o criado que o filho se não resolvia a chamar.
            Villefort deteve-lhe o braço.
            - Espere meu pai - disse o jovem. - Mais uma palavra.
            - Diga.
            - Por muito incompetente que seja a Polícia monárquica, sabe no entanto uma coisa terrível.
            - Qual?
            - Os sinais do homem que na manhã do dia em que desapareceu o general Quesnel se apresentou em sua casa.
            - Ah! Ela sabe isso, essa excelente Polícia? E quais são esses sinais?
            - Tez morena, cabelo, suíças e olhos negros, sobrecasaca azul abotoada até  ao queixo, roseta de oficial da Legião de Honra na lapela, chapéu de abas largas e bengala de bambu.
            - Ah, ah! Ela sabe isso? - comentou Noirtier.- Então por que motivo não prendeu esse homem? 
            - Porque o perdeu de vista ontem ou anteontem à esquina da Rua Coq-Héron.
            - Bem te dizia que a vossa Polícia é estúpida.
            - Sim, mas pode encontrá-lo de um momento para o outro.
            - Claro - concordou Noirtier, olhando despreocupadamente à sua volta. - Claro, se esse homem não estivesse precavido, mas está. E - acrescentou sorrindo - vai mudar de aparência e de traje.
            após estas palavras, levantou-se, tirou a sobrecasaca e a gravata, dirigiu-se para uma mesa na qual estavam preparadas todas as peças do necessário à toilette do filho, pegou numa navalha de barba, ensaboou o rosto e com a mão perfeitamente firme cortou as suíças comprometedoras que davam à Polícia uma pista tão preciosa.
            Villefort assistia a tudo com um terror que não era isento de admiração.
            Cortadas as suíças, Noirtier deu outro arranjo ao cabelo; pôs, em vez da gravata preta, uma gravata de cor que se via à superfície de uma mala aberta; envergou, em vez da sobrecasaca azul abotoada, uma sobrecasaca de Villefort, castanha e ampla; experimentou diante do espelho o chapéu de abas reviradas do
filho, pareceu satisfeito com a maneira como lhe ficava e, deixando a bengala de bambu no canto da chaminé onde a largara, fez silvar na mão nervosa um pingalinzinho com o qual o elegante substituto dava aos seus passos a desenvoltura que era uma das suas principais qualidades.
            - Pronto! disse virando-se para o filho, estupefato, quando esta espécie de metamorfose à vista se consumou. - Pronto! Acha que a Polícia me reconhecerá  agora?
            - Não, meu pai - balbuciou Villefort. - Pelo menos assim o espero.
            - Agora, meu caro Gerard - continuou Noirtier –, recorro à tua prudência para fazer desaparecer todos os objetos que deixo à sua guarda.
            - Oh, esteja tranquilo, meu pai! - respondeu Villefort.
            - Sim, sim! E agora creio que tem razão e que pode, com efeito, ter-me salvado a vida. Mas descansa que te retribuirei o favor proximamente.
            Villefort abanou a cabeça.
            - Não acredita?
            - Espero, pelo menos, que se engane.
            - Tornará a ver o rei?
            - Talvez.
            - Quer passar a seus olhos por um profeta?
            - Os profetas da desgraça são mal vistos na corte, meu pai. 
            - É claro, mas mais dia menos dias far-lhes-ão justiça. E na hipótese de segunda restauração passará por um grande homem.
            - Bom, que devo dizer ao rei?
            - Diga-lhe isto: “sire, enganam-no acerca das disposições da França, da opiniãodas cidades e do espírito do Exército. Aquele que chamam em Paris o papão da Côrsega, a quem chamam ainda o usurpador em Nevers, chama-se já Bonaparte em Lião e imperador em Crenoble. Julga-o acossado, perseguido, em fuga; ele avança com a rapidez da águia que é o seu símbolo. Os soldados que julga mortos de fome, esmagados de fadiga, prontos a desertar, aumentam como os átomos de neve à volta da bola que se precipita. Sire, parta; abandone a França ao seu verdadeiro senhor, àquele que não a comprou, mas a  conquistou. Parta, sire, não porque corre qualquer perigo - o seu adversário é bastante forte para ser
clemente –, mas sim porque seria humilhante para um neto de S. Luís dever a vida ao homem de Arcole, Marengo e Austerlitz. Diga-lhe isto, Gerard, ou antes, não diga nada. Oculte a sua viagem; não se gabe do que veio fazer e do que fez em Paris; retoma a posta; se queimou o caminho para vir, devore o espaço para regressar, reentra em Marselha de noite; penetra em sua casa por uma porta das traseira e deixa-se ficar lá
muito quietinho, muito apagado, muito escondido e sobretudo muito inofensivo, porque desta vez, eu juro, agiremos como pessoas enérgicas e que conhecem os seus inimigos. Vai, meu filho; vai, meu caro Gerard, e mediante esta obediência às ordens paternas ou, se preferires, a deferência para com os conselhos de um
amigo, o manteremos no seu lugar. Será - acrescentou Noirtier sorrindo - uma maneira de me salvar pela segunda vez se a báscula política te recolocar um dia em cima e a mim em baixo. Adeus, meu caro Gerard. Na tua próxima viagem hospede-se em minha casa.
            E, ditas estas palavras, Noirtier saiu com a tranquilidade que não o deixara um instante enquanto durara aquela conversa tão difícil.
            Villefort, pálido e agitado, correu à janela, entreabriu a cortina e viu-o passar calmo e impassível pelo meio de dois ou três homens de má catadura, emboscados ao canto dos marcos e à esquina das ruas, que talvez estivessem ali para prender o homem das suíças pretas, da sobrecasaca azul e do chapéu de abas
largas.
            Villefort permaneceu assim, de pé e arquejante, até  o pai desaparecer no cruzamento da Rua de Bussy. Então, correu para os objetos abandonados por ele, meteu no mais profundo da mala a gravata preta e a sobrecasaca azul, torceu o chapéu que escondeu na parte de baixo de um armário, partiu a bengala de bambu em três pedaços que lançou ao fogo, pôs um boné de viagem, chamou o criado de quarto, proibiu-lhe com um olhar as mil perguntas que tinha vontade de fazer, pagou a conta do hotel e saltou para a sua carruagem, que o esperava pronta a partir. Soube em Lião que Bonaparte acabava de entrar em Grenoble e, no meio da agitação que reinava ao longo de toda a estrada, chegou a Marselha dominado por todas as angústias que entram no coração do homem com a ambição e as primeiras honras.


Capítulo XIII


Os Cem Dias


            O Sr. Noirtier era um bom profeta e as coisas caminharam depressa como ele dissera. Todos conhecem o regresso da ilha de Elba, regresso estranho, miraculoso, que sem exemplo no passado,
ficará provavelmente sem imitação no futuro. Luís XVIII só fracamente tentou deter aquele golpe tão rude; a
sua pouca confiança nos homens tirava-lhe a confiança nos acontecimentos. A realeza,  ou antes, a  monarquia mal acabada de reconstituir por ele, tremeu nos seus alicerces ainda pouco firmes e um único gesto do imperador fez ruir todo o edifício, mistura informe de velhos preconceitos e idéias novas.
            Villefort não teve portanto do seu rei mais do que um reconhecimento não só inútil de momento, mas até  perigoso, e aquela cruz de oficial da Legião de Honra que teve a prudência de não mostrar, embora
o Sr de Blacas, como lhe recomendara o rei, lhe tivesse mandado enviar oportunamente o alvará.
            Napoleão teria decerto destituído Villefort sem a proteção de Noirtier, tornado todo-poderoso na corte dos Cem Dias, devido aos perigos que correra e aos serviços que prestara. Assim, como lhe prometera, o girondino de 93 e o senador de 1806 protegeu aquele que o protegera na véspera.
            Todo o poder de Villefort se limitou portanto, durante esta revivescência do Império, cuja segunda queda, aliás, foi bem fácil de prever, a abafar o segredo que Dantés estivera prestes a divulgar.
            Só o procurador régio foi demitido, por suspeita de pouco entusiasmo no seu bonapartismo.
            Entretanto, mal o poder imperial foi restabelecido, isto é, assim que o imperador se instalou nas Tulherias que Luís XVIII acabava de deixar, e lançou as suas ordens, númerosas e divergentes, do
gabinetezinho onde, juntamente com Villefort, introduzimos os nossos leitores, e em cima de cuja mesa de nogueira encontrou ainda aberta e meio cheia a tabaqueira de Luís XVIII, Marselha, apesar da atitude dos seus magistrados, começou a sentir acenderem-se em si os tachos da guerra civil sempre mal extintos
no Meio-Dia. Pouco falhou então para que as represálias não excedessem alguns apupos com que se importunavam os monárquicos que se fechavam em casa e alguns insultos públicos com que se perseguiam os que se atreviam a sair.
            Numa reviravolta muito natural, o digno armador que dissemos pertencer ao Partido Popular encontrou-se por sua vez nesse momento, não diremos todo-poderoso, porque o Sr. Morrel era homem prudente e um bocadinho tímido, com todos aqueles que acumularam uma lenta e laboriosa fortuna comercial, mas em condições, por mais excedido que fosse pelos zelosos bonapartistas que o apodavam de moderado, em condições, dizia, de erguer a voz para fazer ouvir uma reclamação. Essa reclamação, como facilmente
se adivinha, referia-se a Dantés.
            Villefort ficara de pé apesar da queda do seu superior, e o seu casamento, embora continuasse decidido, fora no entanto adiado para tempos mais propícios. Se o imperador conservasse o trono,
Gerard precisaria de outra aliança, e o pai se encarregaria de a arranjar; se segunda restauração reconduzisse Luís XVIII a França, a influência do Sr. de Saint-Méran duplicaria, assim como a dele, e a união tornava-se mais vantajosa do que nunca.
            O substituto do procurador régio era portanto momentaneamente o primeiro magistrado de Marselha quando uma manhã a sua porta se abriu e lhe anunciaram o Sr. Morrel.
            Qualquer outro se apressaria a ir ao encontro do armador e com essa solicitude deixaria transparecer a sua fraqueza. Mas Villefort era um homem superior que possuía, senão a prática, pelo menos o instinto de todas as coisas. Mandou-o, pois, esperar na antecâmara, como faria no tempo da Restauração, embora não
estivesse atendendo ninguém, mas pela simples razão de que era  hábito um substituto do procurador régio fazer esperar na antecâmara. Depois, passado um quarto de hora, que empregou a ler dois ou três jornais de tendências diferentes, mandou introduzir o armador.
            O Sr. Morrel esperava encontrar Villefort abatido; encontrou-o como o encontrara seis semanas antes, isto é, calmo, firme e cheio de fria polidez, a mais intransponível de todas as barreiras que separam o homem educado do homem vulgar.
            Entrara no gabinete de Villefort convencido de que o magistrado tremia ao vê-lo, e era ele, muito pelo contrário, que se encontrava trêmulo e impressionado diante daquela personagem interrogadora que o esperava com o cotovelo apoiado na mesa.
            Parou à porta. Villefort olhou-o como se tivesse certa dificuldade em o reconhecer. Por fim, depois de alguns segundos de exame e silêncio, durante os quais o digno armador virou e revirou o chapéu nas mãos, Villefort disse:
            - Sr. Morrel, creio?
            - Sim, senhor, eu próprio - respondeu o armador.
            - Aproxime-se - continuou o magistrado, fazendo com a mão um gesto protetor - e diga-me a que circunstância devo a honra da sua visita.
            - Não adivinha, senhor? - perguntou Morrel.
            - Não faço a mais pequena idéia, o que não impede que esteja inteiramente à sua disposição para lhe ser agradável, se for coisa que esteja na minha mão.
            - A coisa depende inteiramente de si, senhor - disse Morrel.
            - Explique-se então.
            - Senhor - continuou o armador, recuperando a presença de espírito à medida que falava e sentindo-se fortalecido pela justiça da sua causa e pela clareza da sua posição –, deve lembrar-se de que dias antes de se saber do desembarque de Sua Majestade, o imperador, vim solicitar a sua indulgência para um pobre rapaz, um marinheiro, imediato a bordo do meu brigue. Era acusado, como se deve recordar, de relações com a ilha de Elba. Ora essas relações, que nessa época eram um crime, são hoje títulos de favor. O senhor servia então Luís XVIII e não o poupou; era o seu dever. Hoje serve Napoleão e deve protegê-lo; é também o seu dever. Venho, pois, perguntar-lhe que é feito dele.
            Villefort fez um violento esforço sobre si mesmo.
            - O nome desse homem? - perguntou. - Tenha a bondade de me dizer o seu nome.
            - Edmond Dantés.
            Evidentemente Villefort gostaria tanto de enfrentar, num duelo, o fogo do seu adversário a vinte e cinco passos como de ouvir pronunciar assim aquele nome à queima-roupa. Contudo, nem sequer pestanejou.
            “Desta forma não poderão acusar-me de ter feito da prisão desse rapaz uma questão puramente pessoal", disse Villefort para consigo mesmo.
            - Dantés? - repetiu. - Edmond Dantés, diz o senhor?
            - Sim, senhor.
            Villefort abriu então um volumoso registro colocado numa estante próxima, consultou um mapa, do mapa passou a uma pilha de processos e por  fim, virando-se para o armador, perguntou-lhe com ar mais natural deste mundo:          
            - Tem a certeza de não estar enganado, senhor?
            Se Morrel fosse um homem mais arguto ou estivesse melhor esclarecido acerca do caso, teria achado estranho que o substituto do procurador régio se dignasse responder-lhe sobre matéria completamente estranha às suas atribuições, e teria perguntado a si mesmo por que motivo Villefort o não remetia para
os registros de presos, para os governadores de prisão ou para o perfeito do departamento. Mas Morrel, procurando em vão o temor em Villefort, não viu mais, desde o momento em que todo o temor parecia ausente, do que a condescendência. Villefort estava bem senhor de si.
            - Não, senhor - respondeu Morrel –, não estou enganado. Aliás, conheço o pobre rapaz há dez anos e tenho-o ao meu serviço há  quatro. Vim há seis semanas - recorda-se? - pedir-lhe que fosse clemente, como venho hoje pedir-lhe que seja justo com o pobre rapaz. Por sinal o senhor recebeu-me bastante mal e
respondeu-me desabridamente. Oh, como os monárquicos eram duros nesse tempo para com os bonapartistas!
            - Senhor - respondeu Villefort, aparando o golpe com a sua presteza e o seu sangue-frio habituais –, fui monárquico enquanto julguei os Bourbons não só os herdeiros legítimos do trono, mas também os eleitos da nação. Mas o regresso miraculoso de que acabamos de ser testemunhas provou-me que me enganava. O
gênio de Napoleão venceu: o monarca legítimo é o monarca amado.
            - Não imagina o prazer que me dá ouvi-lo falar assim! - exclamou Morrel com a sua ingênua franqueza. - Agora já não temo pela sorte de Edmond.
            - Espere - prosseguiu Villefort, folheando outro registo. - Já me lembro: era um marinheiro, não era, e ia casar com uma catalã? Sim, sim... Oh, agora me recordo! O caso era muito grave...
            - Como assim?
            - Como sabe, depois de sair de minha casa foi conduzido às prisões do Palácio da Justiça.
            - Sim, e depois?
            - Depois... fiz o meu relatório para Paris e enviei os documentos encontrados em seu poder. Era o meu dever, compreende... E oito dias depois da sua prisão o prisioneiro desapareceu.
            - Desapareceu! - exclamou Morrel. - Que terão feito do pobre rapaz?
            - Oh, sossegue! Deve ter sido levado para Fenestrelles, para Pignerol ou para as ilhas de Santa Margarida, o que se chama desterrado em termos administrativos, e um belo dia o verá  aparecer para reassumir o comando do seu navio.
            - Venha quando vier, o lugar está guardado. Mas porque não voltou ainda? Parece-me que o primeiro cuidado da justiça bonapartista deveria ser pôr em liberdade os que foram encarcerados pela justiça monárquica.
            - Não acuse precipitadamente, meu caro Sr. Morrel - atalhou Villefort. - Em todas as coisas é preciso proceder legalmente. A ordem de encarceramento veio de cima, é portanto também de cima que deve vir a ordem de libertação. Ora, Napoleão regressou apenas há quinze dias; logo, as cartas de abolição ainda mal
tiveram tempo de ser expedidas.
            - Mas - perguntou Morrel - não há meio de apressar as formalidades, agora que triunfamos? Tenho alguns amigos, alguma influência; posso obter a anulação do mandado de captura.
            - Não houve mandado de captura.
            - Do registro, então.
            - Em matéria política, não há registro de presos. às vezes, os governos têm interesse em fazer desaparecer um homem sem que deixe vestígios da sua passagem. Mandados e registros guiariam as buscas.
            - No tempo dos Bourbons talvez fosse assim, mas agora...
            - É assim em todos os tempos, meu caro Sr. Morrel. Os governos seguem-se e assemelham-se. A máquina penitenciária montada no reinado de Luís XIV ainda hoje funciona, excetuando a Bastilha. O imperador tem sido sempre mais rigoroso com o regulamento das suas prisões do que foi o próprio grande rei, e o número de encarcerados de que não há vestígios nos registos é incalculável. Tanta benevolência teria até desfeito certezas, e Morrel nem sequer tinha suspeitas.
            - Mas então, Sr. de Villefort, que conselho me daria para abreviar o regresso do pobre Dantés?
            - Apenas um, senhor: faça uma petição ao ministro da justiça.
            - Oh, senhor, todos nós sabemos o que acontece às petições!... O ministro recebe duzentas por dia e nem sequer lê quatro.
            - Sim - admitiu Villefort –, mas ler  uma petição enviada por mim, informada por mim, recomendada diretamente por mim.
            - E o senhor se encarregaria de fazer chegar essa petição?
            - Com o maior prazer. Dantés podia ser culpado então, mas hoje está  inocente e tenho o dever de fazer restituir a liberdade àquele que foi meu dever meter na prisão.
            Villefort, precavia-se assim do perigo de um inquérito pouco provável, mas possível, um inquérito que o perderia irremediavelmente.
            - Mas como se escreve ao ministro?
            - Sente-se aqui, Sr. Morrel - disse Villefort, cedendo o seu lugar ao armador. - Vou-lhe ditar.
            - Terá  essa bondade?
            - Sem dúvida. Não percamos tempo.
            - Sim, senhor. Lembremo-nos que o pobre rapaz espera, sofre e desespera talvez.
            Villefort estremeceu à idéia daquele prisioneiro amaldiçoando-o no silêncio e nas trevas. Mas fora já demasiado longe para recuar. Dantés devia ser esmagado pelas engrenagens da sua ambição.
            - Pronto, senhor - disse o armador, sentado na poltrona de Villefort com uma pena na mão.
            Villefort ditou então uma petição em que, como nada tinha a recear, exagerava o patriotismo de Dantés e os serviços por ele prestados à causa bonapartista. Nessa petição, Dantés era transformado num dos agentes mais ativos do regresso de Napoleão. Era evidente que, ao ver semelhante documento, o ministro se apressaria a fazer imediatamente justiça, se justiça ainda não fora feita. 
            Terminada a petição, Villefort releu-a em voz alta.
            - É isto mesmo. E agora confie em mim.
            - E a petição partirá brevemente, senhor?
            - Hoje mesmo.
            - Informada por si?
            - A melhor informação que posso dar, senhor, é certificar veracidade de tudo o que diz na petição.
            E Villefort sentou-se por seu turno e escreveu num canto da petição o seu certificado.
            - E agora, senhor, que mais é preciso fazer? - perguntou Morrel.
            - Esperar - respondeu Villefort. - Respondo por tudo.
            Esta garantia restituiu a esperança a Morrel, que deixou o substituto do procurador régio encantado com ele e foi anunciar ao velho Tio Dantés que não tardaria a rever o filho.
            Quanto a Villefort, em vez de a mandar para Paris, conservou cuidadosamente em seu poder a petição que, sendo capaz de salvar Dantés no presente, o comprometeria irremediavelmente no futuro, supondo uma coisa que o aspecto da Europa e o andamento dos acontecimentos permitiam já supor, isto é, segunda restauração.
            Dantés continuou portanto preso. Metido nas profundezas da sua masmorra, nem sequer ouviu o estrondo formidável da queda do trono de Luís XVIII e o ainda mais formidável do desmoronamento do Império.
            Mas Villefort, esse, seguiu tudo com olhar vigilante, escutou tudo com ouvido atento. Por duas vezes, durante a curta aparição imperial a que se chamou os Cem Dias, Morrel voltou à carga, insistindo sempre pela libertação de Dantés, e de ambas as vezes Villefort o tranquilizou com promessas e esperanças. Por fim,
chegou Waterloo e Morrel não reapareceu em casa de Villefort.  O armador fizera pelo seu jovem amigo tudo o que era humanamente possível fazer. Fazer novas tentativas depois da segunda Restauração seria comprometer-se inutilmente.
            Luís XVIII voltou a subir ao trono.
            Villefort, para quem Marselha estava cheia de recordações que para ele se tinham transformado em remorsos, pediu e obteve o lugar de procurador régio em Toulouse, que se encontrava vago. Quinze dias depois de se instalar na sua nova residência casou com Mademoiselle Renée de Saint-Méran, cujo pai estava melhor visto na corte do que nunca.
            Foi assim que Dantés, durante os Cem Dias e depois de Waterloo, permaneceu preso, esquecido, senão dos homens, pelo menos de Deus.
            Danglars compreendeu todo o alcance do golpe que vibrara em Dantés, ao ver Napoleão regressar a França. A sua denúncia acertara em cheio e, como todos os homens de certa tendência para o crime e de média inteligência na vida corrente, chamou a essa coincidência estranha um “decreto da Providência".
            Mas quando Napoleão chegou a Paris e a sua voz soou de novo, imperiosa e forte, Danglars teve medo. Esperava a cada instante ver aparecer Dantés, Dantés sabedor de tudo, Dantés ameaçador e capaz de todas as vinganças. Então manifestou ao Sr. Morrel o desejo de deixar o serviço do mar e conseguiu que ele o recomendasse a um negociante espanhol, ao serviço do qual entrou como angariador de encomendas, em fins de Março, isto é, dez ou doze dias depois do regresso de Napoleão às Tulherias. Partiu, depois, para Madrid e mais ninguém ouviu falar dele.
            Quanto a Fernand, não compreendeu nada. Dantés estava ausente, era tudo o que desejava. Que fora feito dele? Nem sequer o procurou saber. Apenas durante todo o compasso de espera que lhe proporcionava a sua ausência se esforçou em parte por enganar Mercedes acerca dos motivos da sua ausência e em parte a forjar planos de emigração e de fuga. De tempos em tempos também - e essas eram as horas sombrias da sua vida - sentava-se na ponta do cabo Pharo, lugar donde se distinguia simultaneamente Marselha e a aldeia dos Catalães, a pensar, triste e imóvel como uma ave de rapina, se não veria voltar, por um desses dois caminhos, o belo jovem de andar desenvolto e cabeça altiva que para ele se transformara no mensageiro de uma cruel vingança. Então os planos de Fernand detinham-se. Estouraria a cabeça a Dantés com um tiro
de espingarda e se suicidaria em seguida, dizia para consigo, procurando disfarçar o assassínio. Mas Fernand enganava-se: esse homem nunca seria assassinado porque continuava a esperar.
            Entretanto, no meio de tantas flutuações dolorosas, o Império convocou uma derradeira classe de soldados e todos os homens em condições de pegar em armas lançaram-se para fora de França à voz
trovejante do imperador. Fernand partiu como os outros, deixou a sua cabana e Mercedes roído pelo sombrio e terrível pensamento de que depois da sua partida o seu rival regressaria e casaria com aquela que ele amava.
            Se Fernand alguma vez tivesse de se matar, seria deixando Mercedes que o faria.
            As suas atenções para com Mercedes, a compreensão com que parecia aceitar a sua infelicidade, o cuidado com que procurava ir ao encontro dos seus mais pequenos desejos, tinham produzido o efeito que produzem sempre nos corações generosos as aparências do devotamento. Mercedes sempre fora amiga de Fernand, e a essa amizade por ele juntou-se, aumentando-a, um novo sentimento: o reconhecimento.
            - Meu irmão - disse ela, prendendo a mochila do soldado nos ombros do catalão –, meu irmão, meu único amigo, não te faças matar, não me deixes sozinha neste mundo, onde choro e ficarei só se não estiveres aqui.
            Estas palavras, proferidas no momento da partida, deram algumas esperanças a Fernand. Se Dantés não voltasse, Mercedes poderia vir um dia a ser dele.
            Mercedes ficou sozinha naquela terra nua, que nunca lhe parecera tão árida, e com o mar imenso por horizonte. Lavada em lágrimas, com essa multidão de que nos contam a história dolorosa, viam-na vaguear constantemente à volta da aldeiazinha dos Catalães, umas vezes parada debaixo do sol ardente do Meio-Dia, de pé, imóvel, muda como uma estátua, a olhar para Marselha, outras vezes sentada à beira-mar, a escutar os queixumes das  águas, eternos como a sua dor, e perguntando-se sem cessar se não valeria mais inclinar-se para a frente, deixar-se levar pelo seu próprio peso, abrir o abismo e engolfar-se nele, do que sofrer assim todas as cruéis alternativas de uma espera sem esperança.
            Não foi coragem o que faltou a Mercedes para pôr em prática tal projeto, foi a religião que veio em seu auxílio e a salvou do suicídio.
            Caderousse foi convocado, como Fernand. Simplesmente, como tinha mais oito anos do que o catalão e era casado, só fez parte do terceiro turno e enviaram-no para as costas.
            O velho Dantés, que já só era amparado pela esperança, perdeu-a com a queda do imperador.
            Passados cinco meses, dia a dia depois de ter sido separado do filho e quase à mesma hora em que fora preso, soltou o derradeiro suspiro nos braços de Mercedes.
            O Sr. Morrel chamou a si todas as despesas do funeral e pagou as pobres dividazinhas que o velhote fizera durante a sua doença.
            Havia mais do que beneficência em proceder assim; havia coragem. O Meio-Dia estava em logo, e socorrer, mesmo no seu leito de morte, o pai de um bonapartista tão perigoso como Dantés era um crime.


Capítulo XIV

O prisioneiro furioso e o prisioneiro louco


            Cerca de um ano depois do regresso de Luís XVIII verificou-se a visita do Sr. Inspector-Geral das Prisões.
            Dantés ouviu do fundo da sua masmorra arrastar e ranger, todos os preparativos que faziam em cima muito barulho, mas que em baixo seriam ruídos inapreciáveis para qualquer outro ouvido que não fosse o de um prisioneiro, habituado a escutar no silêncio da noite a aranha que tece a sua teia e a queda periódica da
gota de água que leva uma hora a formar-se no teto da sua masmorra.
            Adivinhou que se passava entre os vivos qualquer coisa extraordinária. Habitava havia tanto tempo uma tumba que bem se podia considerar morto.
            Com efeito, o inspetor visitava um após outro quartos, celas e masmorras. Foram interrogados vários prisioneiros: aqueles que a sua brandura ou a sua estupidez recomendava à benevolência da administração. O inspetor perguntou-lhes como eram alimentados e que reclamações tinham a fazer.
            Responderam unanimemente que a alimentação era detestável e que reclamavam a sua liberdade.
            O inspetor perguntou-lhos então se não tinham mais nada a pedir-lhe.
            Abanaram a cabeça. Que outra riqueza além da liberdade podem reclamar prisioneiros?
            O inspetor virou-se sorrindo e disse ao governador:
            - Não sei porque nos obrigam a fazer estas inspeções inúteis. Quem vê um prisioneiro vê cem; quem ouve um prisioneiro ouve mil; é sempre a mesma coisa: mal alimentados e inocentes. Tem mais?
            - Sim, temos os prisioneiros perigosos ou loucos, que conservamos nas masmorras.
            - Bom - disse o inspetor com ar de profundo cansaço cumpramos a nossa missão até  ao fim; desçamos às masmorras.
            - Espere - contrapós o governador –, deixe ir ao menos buscar dois homens. às vezes os prisioneiros, por estarem fartos da vida e para serem condenados à morte, cometem atos de desespero inúteis. O senhor poderia ser vítima de um desses atos.
            - Tome portanto as suas precauções - disse o inspetor.
            De fato mandaram buscar - dois soldados e começaram por descer uma escada tão malcheirosa, tão infecta, tão bafienta que só a passagem por semelhante lugar afetava desagradavelmente ao mesmo tempo a vista, o olfato e a respiração.
            - Oh! - suspirou o inspector detendo-se a meio da descida. - Quem diabo pode viver aqui?
            - Um conspirador dos mais perigosos e que nos está especialmente recomendado como um homem capaz de tudo.
            - Está sozinho?
            - Certamente.
            - Há quanto tempo se encontra aqui?
            - Há um ano, pouco mais ou menos.
            - E foi metido nesta masmorra logo que entrou?
            - Não, senhor, mas sim depois de ter querido matar o chaveiro encarregado de lhe trazer a comida.
            - Tentou matar o chaveiro?
            - Sim, senhor. Aquele mesmo que nos ilumina. Não é verdade, Antoine? - perguntou o governador.
            - Quis matar-me sem motivo - sublinhou o chaveiro.
            - Ora vejam! Mas nesse caso esse homem está louco?
            - É pior do que um louco, é um demônio - acrescentou o chaveiro.
            - Quer apresentar queixa? - perguntou o inspetor ao governador.
            - E inútil senhor, já está suficientemente castigado assim.  De resto, neste momento encontra-se quase louco e segundo a experiência que nos dão as nossas observações antes de passar outro ano aqui estará  completamente alienado.
            - Por Deus, tanto melhor para ele - disse o inspector. - Uma vez completamente louco, sofrerá menos.
            Era, como se vê, um homem cheio de humanidade este inspetor, e bem digno das funções filantrópicas que desempenhava.
            - Tem razão, senhor - concordou o governador - e a sua reflexão prova que estudou profundamente a matéria. Também temos numa masmorra separada desta apenas um vintena de pés e para a qual se desce por outra escada um velho abade, antigo chefe de partido na Itália, está aqui desde 1811, endoideceu por volta de fins de 1813 e que desde esse momento não é fisicamente reconhecível. Antes chorava, agora ri,
emagrecia, engordou. Quer vê-lo em vez deste? A sua loucura é divertida e não o entristecerá nada.
            - Verei um e outro - respondeu o inspetor. - É necessário fazer as coisas conscienciosamente.
            O inspetor andava na sua primeira inspeção e queria dar boa idéia de si às autoridades. 
            - Vejamos portanto este em primeiro lugar - acrescentou.
            - Como queira - respondeu o governador.
            E fez sinal ao chaveiro, que abriu a porta.
            Ao ouvir rangerem as fechaduras maciças e chiarem os gonzos ferrugentos ao girarem nos seus eixos, Dantés, que se encontrava agachado a um canto da masmorra onde recebia com indizível prazer o delgado raio de luz que se filtrava através de um estreito respiradouro gradeado, levantou a cabeça. Ao ver um homem
desconhecido, iluminado por dois chaveiros que empunhavam archotes e ao qual o governador falava de chapéu na mão, acompanhado por dois soldados, Dantés adivinhou de quem se tratava e, vendo finalmente apresentar-se uma ocasião de implorar a uma autoridade superior, saltou para a frente com as mãos juntas.
            Os soldados cruzaram imediatamente as baionetas, pois julgaram que o prisioneiro avançava para o inspector com más intenções
            O próprio inspetor deu um passo atrás.
            Dantés viu que o tinham apresentado como um homem temível.
            Então, reuniu no olhar tudo o que o coração do homem pode conter de mansidão e humildade e, exprimindo-se numa espécie de eloquência religiosa, que surpreendeu os assistentes, procurou comover a alma do visitante.
            O inspetor escutou o discurso de Dantés até  ao fim. Depois, virando-se para o governador, disse a meia voz:
            - Voltará à devoção; está já disposto a sentimentos mais suaves.  Como vê, o medo produz o seu efeito nele. Recuou diante das baionetas; ora, um louco não recua diante de nada. A tal respeito fiz observações muito curiosas em Charenton.
            Depois, virando-se para o prisioneiro:
            - Em resumo, que pede?
            - Peço me digam que crime cometi; peço que me dêem juizes; peço que o meu processo seja instruído; peço finalmente que me fuzilem se sou culpado ou que me ponham em liberdade se estou
inocente.
            - É bem alimentado? - perguntou o inspetor.
            - Creio que sim; não sei nada a esse respeito, mas isso pouco importa. O que deve importar, não só a mim, pobre prisioneiro, mas também a todos os funcionários que servem a justiça e ao próprio rei que governa, é que um inocente não seja vítima de uma denúncia infame e não morra aferrolhado amaldiçoando os seus carrascos.
            - Está hoje muito humilde - observou o governador –, mas nem sempre esteve assim. Falava de modo muito diferente, meu caro, no dia em que quis agredir o seu guarda.
            – É verdade, senhor - reconheceu Dantés –, e peço humildemente perdão a esse homem que sempre foi bom para mim... Mas, que quer, estava louco, estava furioso!
            - E já o não está?
            - Não, senhor, porque o cativeiro me vergou, quebrou, aniquilou... há tanto tempo que estou aqui!
            - Tanto tempo?... Em que data foi preso? - perguntou o inspetor.
            - Em 28 de Fevereiro de 1815, às duas horas da tarde. 
            O inspetor fez as contas.
            - Estamos em 10 de Julho de 1816... Que diz? está preso apenas há  dezessete meses.
            - Qual dezessete meses! - exclamou Dantés. - Ah, o senhor não sabe o que são dezessete meses de prisão! Dezessete anos, dezessete séculos, sobretudo para um homem como eu, prestes a ser feliz, para um homem que, como eu, ia casar com a mulher amada, para um homem que via abrir-se diante de si uma carreira respeitável e que perdeu tudo de um momento para o outro; que do meio do dia mais belo caiu na noite mais profunda, que viu a sua carreira destruída, que não sabe se aquela que o amava o ama ainda, que ignora se o seu velho pai está morto ou vivo. Dezessete meses de prisão para um homem habituado ao ar do
mar, à independência do marinheiro, ao espaço, à imensidade, ao infinito! Senhor, dezessete meses de prisão é mais do que merecem todos os crimes que designam pelos nomes mais odiosos da língua humana. Tenha, pois, piedade de mim, senhor e obtenha-me não indulgência, mas sim rigor; não o perdão, mas sim um julgamento. Juizes, senhor, só peço juízes. Não se pode recusar juízes a um acusado.
            - Está bem, veremos - respondeu o inspetor.
            Depois virando-se para o governador:
            - Para ser franco, o pobre diabo mete-me pena. Quando subirmos, há-de mostrar-me o seu registro de presos.
            - Certamente - concordou o governador –, mas creio que encontrará contra ele notas terríveis.
            - Senhor - continuou Dantés –, sei que não pode fazer-me sair daqui por sua própria decisão; mas pode transmitir o meu pedido às autoridades, pode provocar um inquérito, pode, enfim, fazer-me submeter a julgamento. Um julgamento, é tudo o que peço. Que saiba que crime cometi e a que pena sou condenado; porque, como sabe, a incerteza é o pior de todos os suplícios.
            - Iluminem-me - disse o inspetor.
            - Senhor - gritou Dantés –, adivinho pelo tom da sua voz que está  comovido. Senhor, diga-me que tenha esperança.
            - Não lhe posso dizer isso - perguntou o inspetor –, posso apenas prometer-lhe examinar o seu processo.
            - Oh, então, senhor, estou livre, estou salvo!
            - Quem o mandou prender? - perguntou o inspetor.
            - O Sr. de Villefort - respondeu Dantés. - Procure-o e fale com ele.
            - O Sr. de Villefort já não está em Marselha há um ano, mas sim em Toulouse.
            - Não me admira - murmurou Dantés. - O meu único protetor foi afastado.
            - O Sr. de Villefort tinha algum motivo de ódio contra si? - perguntou o inspetor.
            - Nenhum, senhor, e até  foi benevolente comigo.
            - Poderei portanto confiar nas notas que deixou a seu respeito ou nas informações que me der?
            - Inteiramente, senhor.
            - Está bem, aguarde.
            Dantés caiu de joelhos, levantou as mãos ao céu e murmurou uma prece na  qual recomendava a Deus aquele homem que descera na prisão semelhante ao Salvador ao ir libertar as almas do Inferno.
            A porta voltou a fechar-se; mas a esperança que descera com o inspetor ficara fechada na masmorra de Dantés.
            - Deseja ver o registro de presos agora ou passar à masmorra do abade? - perguntou o governador.
            - Acabemos com as masmorras de uma vez - respondeu o inspetor.
            - Se subisse à luz do dia, talvez já não tivesse coragem de continuar a minha triste missão.
            - Oh, o abade não é um prisioneiro como o outro! A sua loucura é menos confrangedora do que a razão do seu vizinho.
            - E qual é a sua loucura?
            - Uma loucura estranha: julga-se possuidor de um tesouro imenso. No primeiro ano do seu cativeiro mandou oferecer um milhão ao Governo se o Governo o pusesse em liberdade; no segundo ano, dois
milhões; no terceiro, três milhões, e assim sucessivamente. Vai no quinto ano de cativeiro; portanto, pedirá para lhe falar em segredo e oferecerá cinco milhões.
            - Ah, ah! é curioso, com efeito! - riu o inspetor. E como tratam esse milionário?
            - Por abade Faria.
            - O nº  27! - disse o inspetor.
            - É aqui. Abra, Antoine.
            O chaveiro obedeceu e o olhar curioso do inspetor mergulhou na masmorra do “abade louco". Era assim que se designava geralmente o prisioneiro.
            No meio da cela, num círculo traçado no chão com um bocado de gesso tirado da parede, encontrava-se deitado um homem quase nu, de tal forma as suas roupas se tinham transformado em farrapos. Desenhava no círculo linhas geométricas muito nítidas e parecia tão ocupado a resolver o seu problema quanto Arquimedes o estava quando foi morto por um soldado de Marcelo. Por isso, não se mexeu, nem mesmo ao ouvir o barulho que a porta da masmorra fez ao abrir-se, e só pareceu despertar quando a luz dos archotes
iluminou com uma claridade que não era habitual o solo úmido em que trabalhava. Então virou-se e fitou com surpresa a númerosa companhia que lhe acabava de entrar na cela.
            Levantou-se precipitadamente, pegou num cobertor colocado aos pés do seu leito miserável e  envolveu-se nele rapidamente para aparecer em estado mais decente aos olhos dos estranhos.
            - Que deseja? - perguntou o inspetor, sem variar a sua fórmula.
            - Eu, senhor? - respondeu o abade com ar surpreendido - Não desejo nada.
            - Não compreendeu - prosseguiu o inspector. - Sou agente do Governo e a minha missão é descer às prisões e escutar as reclamações dos prisioneiros.
            - Oh, então, senhor, isso é outra coisa! - exclamou vivamente o abade. - Espero que consigamos nos entender.
            - Vê? - disse baixinho governador. - Isto não começa como lhe anunciei? 
            - Senhor - continuou o prisioneiro –, sou o abade Faria, natural de Roma. Fui vinte anos secretário do cardeal Rospigliosi e preso, não sei muito bem porquê, em princípios do ano de 1811. Desde esse momento que reclamo a minha liberdade às autoridades italianas e francesas.
            - Porquê às autoridades francesas? - perguntou o governador.
            - Porque fui preso no Piombino e presumo que como Milão e Florença o Piombino se tornou a capital de qualquer departamento francês.
            O inspetor e o governador entreolharam-se rindo.
             - Demônio, meu caro - observou o inspetor –, as suas notícias da Itália não são frescas.
            - Datam do dia em que fui preso, senhor - perguntou o abade Faria. - E como Sua Majestade o Imperador criara o reino de Roma para o filho que o céu acabava de lhe dar, presumo que prosseguindo o curso das suas conquistas realizou o sonho de Maquiavel e de César Bórgia, que era tornará toda a Itália um
só e único reino.
            - Senhor - disse o inspetor –, felizmente a Providência impôs algumas alterações a esse plano gigantesco de que me parece partidário bastante entusiasta.
            - É o único meio de tornar a Itália um Estado forte, independente e feliz - respondeu o abade.
            - É possível - admitiu o inspetor –, mas não vim aqui para fazer consigo um curso de política  ultramontana e sim para lhe perguntar, o que já fiz, se tem alguma reclamação a apresentar sobre a maneira como é alimentado e se encontra alojado.
            - A alimentação é o que é em todas as prisões - respondeu o abade. -  isto é, muito má. Quanto ao alojamento, é úmido, como vê, mas mesmo assim bastante aceitável para uma masmorra. Agora, porém, não se trata disso, mas sim de revelações da mais alta importância e do mais alto interesse que desejo fazer ao
Governo.
            - Aí está - disse baixinho o governador ao inspetor.
            - É por isso que me sinto tão feliz por ve-lo - continuou o abade –, embora me tenha interrompido No momento em que fazia um cálculo muito importante que, se for bem sucedido, talvez modifique o sistema de Newton. Pode conceder-me o favor de uma palavrinha em particular?
            - Hein, que dizia eu? - observou o governador ao inspetor.
            - O senhor conhece a sua gente - respondeu este último sorrindo.
            E dirigindo-se ao abade Faria:
            - Senhor, o que me pede é impossível.
            - No entanto - insistiu o abade –, trata-se de fazer ganhar ao governo uma importância enorme, uma soma de cinco milhões, por exemplo...
            - Formidável! - exclamou o inspetor, virando-se por sua vez para o governador . -O senhor previu até  a importância.
            - Vejamos - prosseguiu o abade, notando que o inspetor fazia um movimento para se retirar. - Não é necessário que estejamos absolutamente sós; o Sr. Governador poderá assistir à nossa conversa.
            - Meu caro senhor - interveio o governador –, para seu mal, sabemos antecipadamente e de cor o que vai dizer. Trata-se dos seus tesouros, não é verdade? 
            Faria olhou aquele homem zombeteiro com olhos onde um observador desinteressado teria decerto visto brilhar a faísca da razão e da verdade.
            - Sem dúvida - respondeu - De que quer o senhor que eu fale a não ser disso?
            - Sr. Inspetor - continuou o governador –, posso contar-lhe essa história tão bem como o abade, pois há quatro ou cinco anos que me enche os ouvidos com ela.
            - Isso prova, Sr. Governador - perguntou o abade –, que é como essas pessoas de que fala a Escritura, que têm olhos e não vêem e têm ou idos e não ouvem.
            - Meu caro senhor - disse o inspetor –, o Governo é rico e graças a Deus, não precisa do seu dinheiro. Guarde-o, pois, para o dia em que sair da prisão.
            Os olhos do abade dilataram-se. Pegou na mão do inspetor.
            - Mas se não sair da prisão - observou –, se, contra toda a justiça, me retiverem nesta masmorra e aqui morrer sem legar o meu segredo à ninguém, esse tesouro se perderá? Não é preferível que o Governo o aproveite e eu também? Irei até seis milhões, senhor. Sim, renunciarei a seis milhões e me contentarei com
o resto se me restituírem à liberdade.
            - Palavra - disse o inspetor a meia voz –, se não soubéssemos que este homem está louco era caso para acreditar. Fala em tom tão convicto que parece dizer a verdade.
            - Não estou louco, senhor, e digo a verdade - insistiu Faria, que, com a finura de ouvido peculiar aos prisioneiros, não perdera uma única das palavras do inspetor. - O tesouro de que lhe falo existe realmente e proponho-me assinar um acordo convosco em virtude do qual me conduzirão ao lugar designado por mim. Escavar-se-á  a terra diante dos nossos olhos e se eu mentir, se não se encontrar nada, se eu for um louco, como os senhores dizem, então tornarão a meter-me nesta mesma masmorra, onde ficarei eternamente e morrerei sem pedir mais nada aos senhores nem a ninguém.
            O governador desatou a rir.
            - Está muito longe daqui o seu tesouro? - perguntou.
            - A cem léguas, pouco mais ou menos - respondeu Faria.
            - A coisa não está mal imaginada - observou o governador. - Se todos os prisioneiros quisessem divertir-se passeando com os seus guardas durante cem léguas, e se os guardas consentissem em fazer
semelhante passeio, seria uma excelente oportunidade para os prisioneiros arranjarem maneira de se evadir na primeira ocasião, a qual, decerto, não deixaria de surgir.
            - É um meio conhecido - comentou o inspetor - e o cavalheiro nem sequer tem o mérito da invenção.
            Depois, virando-se para o abade:
            - Perguntei-lhe se era bem alimentado.
            - Senhor - respondeu Faria –, jure-me sobre o Cristo libertar-me se lhe tiver dito a verdade e indicar-lhe-ei o lugar onde o tesouro está enterrado.
            - É bem alimentado? - repetiu o inspetor.
            - Senhor, não arrisca nada assim e bem vê que não é para arranjar uma oportunidade de fugir que lhe faço esta proposta, pois ficarei na prisão enquanto fizer a viagem.
            - Não respondeu à minha pergunta - observou com impaciência o inspetor.
            - Nem o senhor à minha proposta! - exclamou o abade. - Seja portanto maldito como os outros insensatos que me não quiseram acreditar! Já que não quer o meu ouro, eu o guardarei; recusa-me a liberdade, Deus mandar-ma-á . Vá-se embora, não tenho mais nada a dizer.
            E o abade largou o cobertor, voltou a pregar no seu bocado de gesso e foi-se sentar de novo no meio do seu círculo, onde continuou entregue às suas linhas e aos seus cálculos.
            - Que está fazendo? - perguntou o inspetor ao retirar-se.
            - Conta os seus tesouros - respondeu o governador.
            Faria retribuiu o sarcasmo com um olhar carregado do mais supremo desprezo.
            Saíram. O carcereiro fechou a porta atrás deles.
            - Deve ter, com efeito, possuído alguns tesouros - disse o inspetor ao subirem a escada.
            - Sim, deve ter sonhado que os possuía – respondeu o governador - e no dia seguinte acordou louco.
            - Efetivamente - admitiu o inspetor com a simplicidade de quem admite a corrupção –, se fosse realmente rico não estaria preso.
            Assim terminou a aventura para o abade Faria. Continuou prisioneiro e depois desta visita a sua reputação de louco divertido ainda mais aumentou.
            Calígula ou Nero, esses grandes pesquisadores de tesouros, esses desejosos do impossível, teriam dado ouvidos às palavras do pobre homem e teriam lhe concedido o ar que pretendia, o espaço que
avaliava em tão alto preço e a liberdade que se propunha pagar tão cara. Mas os reis dos nossos dias, mantidos nos limites do provável, já não têm a audácia da vontade. Temem o ouvido que escuta as ordens que dão, o olho que perscruta as suas ações; já  não sentem a superioridade da sua essência divina; são
homens coroados e mais nada. Dantes, julgavam-se, ou pelo menos diziam-se, filhos de Júpiter e possuíam qualquer coisa do deus seu pai.
            Não se controla facilmente o que se passa para lá das nuvens; hoje os reis deixam-se contatar facilmente.
            Ora, como sempre repugnou ao governo despótico mostrar à luz do dia os efeitos da prisão e da tortura; como há poucos exemplos de uma vítima das inquisições ter conseguido reaparecer com os ossos esmagados e as carnes cobertas de chagas ensanguentadas, também a loucura, essa úlcera nascida na imundície das masmorras em consequência das torturas morais, se esconde quase sempre cuidadosamente no local onde surgiu ou, se de lá sai, é para se ir encerrar em qualquer hospital sombrio onde os médicos não
reconhecem nem o homem, nem o pensamento no destroço informe que lhe entrega o carcereiro cansado.
            O abade Faria, que enlouquecera na prisão, estava condenado, pela sua própria loucura, a prisão perpétua.
            Quanto a Dantés, o inspector cumpriu a sua palavra. Quando subiu ao gabinete do governador, quis ver o registro do preso.
            A nota respeitante ao prisioneiro era assim concebida: 
            Edmond Dantés: Bonapartista fanático. Tomou parte ativa no regresso da ilha de Elba.
            Manter no maior segredo e sob a mais rigorosa vigilância.
            Esta nota estava escrita com letra e tinta diferentes das do resto do registro, o que provava que fora acrescentada depois da encarceração de Dantés.
            A acusação era demasiado positiva para tentar contrariá-la. O inspetor escreveu, pois, por baixo:
            Nada a fazer.
            Esta visita reanimara, por assim dizer, Dantés. Desde que entrara na prisão esquecera-se de contar os dias; mas o inspetor dera-lhe uma nova data e Dantés não a esquecera. Escreveu atrás de si, na parede, com um bocado de gesso tirado do teto, “30 de Julho de 1816", e a partir desse momento fez um risco todos os
dias, para a medida do tempo lhe não escapar.
            Os dias passaram, depois as semanas e depois os meses. Dantés continuava a esperar. Começara por fixar à sua libertação um prazo de quinze dias. Se dedicasse ao seu caso metade do interesse que parecera experimentar, quinze dias deviam ser suficientes ao inspetor. Passados esses quinze dias, disse
para consigo que era absurdo da sua parte pensar que o inspetor se ocupara dele antes de regressar a Paris. Ora, o seu regresso a Paris só se poderia verificar quando concluísse a inspeção, e esta poderia durar um mês ou dois. Concedeu-se portanto três meses em vez de quinze dias.
            Passados os três meses veio em seu auxílio outro raciocínio que o levou a conceder-se seis meses, mas passados esses seis meses, contando os dias um após outro, verificou que esperara dez meses
e meio. E durante esses dez meses e meio nada se modificara no regime da sua prisão, nenhuma notícia animadora lhe fora dada. O carcereiro, interrogado, mostrou-se mudo como de costume. Dantés começou a duvidar dos seus sentidos, a julgar que o que tomava por uma recordação da sua memória não passava de uma alucinação do seu cérebro e que o anjo consolador que aparecera na sua prisão descera nela trazido pela asa de um sonho.
            Passado um ano o governador foi substituído; obtivera a direção do forte de Ham. Levou consigo vários dos seus subordinados e entre outros o carcereiro de Dantés. Chegou novo governador. Como
lhe parecesse demasiado trabalhoso fixar os nomes dos prisioneiros, passou a designá-los apenas pelos números. Aquele horrível “hotel" dispunha de cinquenta quartos; os seus ocupantes passaram a ser designados pelo número do quarto que ocupavam, e o infeliz rapaz deixou de se chamar pelo seu nome de Edmond ou pelo seu apelido de Dantés e passou a chamar-se o nº  34. 


Capítulo XV

O número 34 e o número 27


            Dantés passou por todos os graus do infortúnio a que estão sujeitos os prisioneiros esquecidos numa prisão.
            Começou pelo orgulho, que é um complemento da esperança e uma consciência da inocência: em seguida princípiou a duvidar da sua inocência, o que não justificava mal as idéias do governador acerca da alienação mental; por fim, caiu do alto do seu orgulho e pediu, não ainda a Deus, mas sim aos homens: Deus é o derradeiro recurso. O infeliz que deveria começar pelo Senhor, só consegue confiar nele depois de esgotar todas as outras esperanças.
            Dantés pediu, pois, que se dignassem tirá-lo da sua masmorra e o metessem noutra, ainda que fosse mais escura e profunda. Uma mudança mesmo desvantajosa, era sempre uma mudança e proporcionaria a Dantés uma distração de alguns dias. Pediu que lhe concedessem o passeio, o ar, livros, instrumentos. Nada
disso lhe foi concedido. Mas não importava, continuava a pedir. Habituara-se a falar ao seu novo carcereiro, embora este fosse ainda, se possível, mais mudo do que o antigo. Mas falar a um homem, mesmo a um mudo, era também um prazer. Dantés falava para ouvir o som da sua própria voz. Tentara falar quando estava
sozinho, mas tivera medo.
            Muitas vezes, quando estava em liberdade, Dantés; fizera um bicho de sete cabeças daqueles amontoados de prisioneiros constituídos por vagabundos, bandidos e assassinos, cujos prazeres ignôbeis
incluem orgias indescritíveis e amizades medonhas. Pois acabou por desejar ser lançado numa dessas enxovias, a fim de ver outras caras além da do carcereiro impassível que se recusava terminantemente a falar. Invejava os trabalhos forçados, com o seu fato infamante, a sua corrente no pé e a sua marca no ombro.
Ao menos os galerianos viviam no meio dos seus semelhantes, respiravam o ar, viam o céu. Os galerianos eram muito felizes.
            Um dia suplicou ao carcereiro que pedisse lhe dessem um companheiro, fosse qual fosse, ainda que esse companheiro tivesse de ser o abade louco de que ouvira falar. Sob a pele do carcereiro, por mais coriácea que fosse, continuava a haver um homem. Este tinha muitas vezes, do fundo do coração, e embora
o seu rosto nada tivesse deixado transparecer a tal respeito, lamentado aquele pobre rapaz para quem o cativeiro era tão duro.
            Transmitiu o pedido do 34 ao governador; mas este, prudente como se fosse um político, imaginou que Dantés pretendia amotinar os prisioneiros, tramar qualquer conspiração, ter o auxílio de um amigo em qualquer tentativa de evasão, e recusou.
            Dantés esgotara o círculo dos recursos humanos. Como dissemos que acabaria por acontecer, virou-se então para Deus.
            Todas as idéias piedosas espalhadas pelo mundo, que buscam os infelizes vencidos pelo destino, vieram então acalmar-lhe o espírito. Recordou-se das preces que a mãe lhe ensinara e encontrou-lhes um sentido que outrora ignorara. Porque para o homem feliz a prece não passa de um conjunto de palavras
monótono e vazio de sentido, até  ao dia em que a dor explica ao infortunado a linguagem sublime com o auxílio da qual ele fala a Deus.
            Rezou portanto, não com fervor, mas sim com raiva. Rezando em voz alta, já se não assustava com as suas palavras. Então, caía em espécies de êxtases. Via Deus, deslumbrante, em cada palavra que
pronunciava. Todos os Atos da sua vida humilde e perdida atribuía-os à vontade desse Deus poderoso, extraía daí ensinamentos, propunha-se tarefas a cumprir e no fim de cada prece insinuava o pedido interesseiro que os homens encontram com muito mais frequência maneira de dirigir aos homens do que a
Deus: “E perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos tem ofendido."
            Mas, apesar das suas preces ferventes, Dantés continuou prisioneiro.
            Então, o seu espírito tornou-se sombrio e formou-se-lhe uma nuvem espessa diante dos olhos. Dantés era um homem simples e sem educação; o passado permanecera para ele coberto com esse véu escuro que só a ciência ergue. Na solidão da sua masmorra e no deserto do seu pensamento, não podia reconstituir os tempos passados, ressuscitar os povos extintos, reconstruir as cidades antigas, que a imaginação  engrandece e poetisa, e que nos passam diante dos olhos, gigantescas e iluminadas pelo togo do céu,
como os quadros babilônicos de Martinn. Ele só tinha o seu passado, tão curto; o seu presente, tão sombrio, e o seu futuro, tão duvidoso: dezenove anos de luz a meditar talvez numa noite eterna! Nenhuma distração podia portanto vir ajudá-lo. O seu espírito enérgico, ao qual nada seduziria mais do que voar através dos tempos, era obrigado a permanecer prisioneiro como uma  águia numa gaiola. Aterrava-se então a uma idéia, à da sua felicidade destruída sem motivo aparente e devido a uma fatalidade inaudita. Encarniçava-se à volta desta idéia, virava-a e revirava-a por todos os lados, devorava-a por assim dizer sofregamente, como no inferno de Dante o implacável Ugolino devora o crânio do arcebispo Roger. Dantés tivera apenas uma fé
passageira baseada no poder; perdeu-a como outros a perdem depois do êxito. Simplesmente, não tirara proveito dela.
            A raiva sucedeu ao ascetismo. Edmond proferia blasfêmias que faziam recuar de horror o carcereiro. Quebrava o corpo contra as paredes da sua prisão. Atribuía com furor as culpas a tudo o que o rodeava, e sobretudo a si mesmo, à menor contrariedade que lhe fizesse experimentar um grão de areia uma palhinha ou um sopro de ar. Então, a carta denunciadora que vira, que lhe mostrara Villefort, em que tocara, acudia-lhe de novo ao espírito e cada linha chamejava sobre a muralha como o “Mane, Thecel, Phares" de Baltasar. Dizia para consigo que fora o ódio dos homens e não a vingança de Deus que o mergulhara no abismo onde se
encontrava. Votava esses homens desconhecidos a todos os suplícios forjados pela sua ardente imaginação e ainda lhe parecia que os mais terríveis eram excessivamente suaves e sobretudo demasiado curtos
para eles. Porque depois do suplicio vinha a morte, e a morte era, senão o repouso, pelo menos a insensibilidade, segundo lhe parecia.
            A calma era a morte e que quem quer punir cruelmente deve recorrer a outros meios diferentes da morte, caiu na imobilidade sombria das idéias de suicídio. Ai daquele que na vertente da desgraça se detém em tão sombrias idéias! E como um desses mares mortos que se estendem como o azul das torrentes puras, mas nos quais o nadador sente os pés se enterrarem cada vez mais numa vasa betuminosa que o puxa para si, o aspira e engole. Uma vez  assim apanhado, se o socorro divino não vem em seu auxílio está  tudo acabado, e cada esforço que tenta o mergulha mais profundamente na morte.
            Todavia, esse estado de agonia moral é menos terrível do que o sofrimento que o precede e talvez do que o castigo que se lhe seguir . É uma espécie de consolação vertiginosa que nos mostra o abismo escancarado e no fundo do abismo o nada. Chegado ai, Edmond encontrou certa consolação nessa idéia. Todos os seus sofrimentos, bem como o cortejo de espectros que arrastavam atrás de si, pareceram sumir-se do canto da sua prisão onde o anjo da morte podia pousar o pé silencioso. Dantés observou com calma
a sua vida passada, com terror a sua vida futura, e escolheu o ponto intermédio que parecia ser um lugar de asilo.
            - Às vezes - dizia então para consigo –, nas minhas viagens longínquas, quando era ainda um homem e esse homem, livre e forte, gritava a outros homens ordens que eram cumpridas, vi o céu cobrir-se, o mar estremecer e bramir, a tempestade formar-se num canto do céu e, como uma  águia gigantesca, bater os dois
horizontes com as suas duas asas. Então sentia que o meu navio não passava de um refúgio impotente, pois o meu navio, leve como uma pena na mão de um gigante, também tremia e estremecia. Não tardava que, acompanhado do barulho medonho das vagas, o aspecto dos rochedos cortantes me anunciasse a morte, e a morte aterrorizava-me. Empregava todos os esforços para lhe escapar e reunia todas as torças do homem e toda a inteligência do marinheiro para lutar com Deus!... Porque então era feliz, porque voltar à vida era voltar à felicidade, porque não chamara aquela morte, não a escolhera, porque, enfim, me parecia duro dormir
naquele leito de algas e seixos, porque me indignava - eu que me julgava uma criatura feita à imagem de Deus - servir depois da minha morte de pasto aos alcatrazes e aos abutres. Mas hoje o caso é diferente: perdi tudo o que podia fazer-me amar a vida, hoje a morte sorri-me como uma ama à criança que vai embalar.
Mas hoje morro como quero, e adormeço exausto e quebrado como adormecia depois de uma daquelas noites de desespero e raiva durante as quais chegava a contar três mil voltas no meu quarto, isto é, trinta mil passos, ou seja cerca de dez léguas.
            Desde que este pensamento germinou no espírito do jovem este tornou-se mais tratável, mais sorridente. Aceitou melhor o leito duro e o pão negro, comeu menos, deixou de dormir e achou quase
suportável aquele resto de existência que tinha a certeza de abandonar quando lhe apetecesse, como deixamos uma peça de roupa velha.
            Havia duas maneiras de morrer. Uma era simples: tratava-se de prender o lenço a um varão da janela e enforcar-se. A outra consistia em fingir comer e deixar-se morrer de fome. A primeira repugnou profundamente a Dantés.
            Criara-se no horror aos piratas, gente que se enforca nas vergas dos navios. O enforcamento era portanto para ele uma espécie de suplício infamante que recusava aplicar a si mesmo. Adotou, pois, a segunda e colocou-a em execução naquele próprio dia.
            Tinham decorrido cerca de quatro anos nas alternativas que relatamos. Ao fim do segundo, Dantés deixara de contar os dias e recaíra na ignorância do tempo de que outrora o tirara o inspetor. 
            Dantés dissera: “Quero morrer", e escolhera o seu gênero de morte. Então, encarara-o bem de frente e, com medo de voltar atrás na sua decisão, jurara a si mesmo morrer assim. “Quando me servirem as refeições da manhã e da tarde", pensara, “atirarei a comida pela janela e parecerá que comi."
            Procedeu como prometera a si próprio proceder. Duas vezes por dia, através da aberturazinha gradeada que só lhe permitia distinguir o céu, lançava fora a comida, primeiro alegremente, depois com reflexão e depois com pesar. Precisou recorrer à lembrança do juramento que fizera a si mesmo para ter a
coragem de prosseguir o terrível desígnio. A fome canina tornava-lhe apetecíveis à vista e tentadores ao olfato aqueles alimentos que antes lhe repugnavam. Às vezes, conservava durante uma hora na mão o prato que os continha, ele olhos cravados no naco de carne ou no peixe infecto, bem como no pão negro e bolorento. Eram
os derradeiros instintos da vida que ainda lutavam nele e que de vez em quando derrubavam a sua resolução. Então, a sua masmorra já lhe não parecia tão sombria e o seu estado parecia-lhe menos desesperado. Ainda era novo; devia ter vinte e cinco anos e restavam-lhe pouco mais ou menos cinquenta anos para viver, ou
seja, duas vezes mais do que já vivera. Durante esse enorme lapso de tempo, quantos acontecimentos poderiam forçar as portas, derrubar as muralhas do Castelo de If e restituir-lhe a liberdade! Então, aproximava os dentes da comida que, Tântalo voluntário, ele próprio afastava da boca. A lembrança do seu juramento acudia-lhe ao espírito e aquela natureza generosa tinha demasiado medo de se desprezar a si mesma para faltar a esse juramento. Gastou, pois, rigoroso e implacável, a pouca existência que lhe restava e chegou um dia em que já não teve torças para se levantar e lançar pela janela o jantar que lhe traziam.
            No dia seguinte já não via e quase não ouvia. o carcereiro julgou tratar-se de uma doença grave; Edmond esperava uma morte próxima.
            O dia passou-se assim. Edmond sentia um vago entorpecimento que não deixava de lhe proporcionar certo bem-estar. Os arrancos nervosos do seu estômago tinham diminuído e os ardores da sede haviam-se acalmado. Quando fechava os olhos via uma quantidade de luzes brilhantes idênticas aos fogos-fátuos que percorrem de noite os terrenos pantanosos. Era o crepúsculo desse pais desconhecido chamado a morte. De súbito, à noite, por volta das nove horas, ouviu um ruído abafado na parede junto da qual estava deitado.
            Tantos bichos imundos tinham vindo fazer barulho na prisão que pouco a pouco Edmond habituara-se a dormir sem que o seu sono fosse perturbado por tão pouco. Mas desta vez, quer porque os seus sentidos estivessem excitados pela abstinência, quer porque realmente o ruído fosse mais forte do que de costume, quer ainda porque naquele momento supremo tudo adquirisse importância, Edmond soergueu a cabeça para ouvir melhor.
            Tratava-se de um arranhar sempre igual que parecia denotar quer uma garra enorme, quer um dente poderoso, quer finalmente a pressão de qualquer instrumento nas pedras.
            Apesar de enfraquecido, o cérebro do jovem foi assaltado por essa idéia banal constantemente presente no espírito dos prisioneiros: a liberdade. Aquele barulho chegava tão precisamente no momento
em que todo o ruído ia cessar para ele que lhe parecia que Deus se mostrava enfim compadecido dos  seus sofrimentos e lhe enviava aquele barulho para o avisar de que se detivesse à beira da sepultura onde o seu pé já vacilava. Quem sabe se um dos seus amigos, um desses entes queridos em que pensara tantas vezes,
não se ocupava dele naquele momento e procurava encurtar a distância que os separava.
            Mas não, Edmond enganava-se sem dúvida e tratava-se de um desses sonhos que pairam à porta da morte.
            Contudo, Edmond continuava a ouvir o ruído. Este durou cerca de três horas e depois Edmond ouviu uma espécie de desmoronamento, depois do qual o ruído cessou.
            Poucas horas mais tarde recomeçou mais forte e mais próximo. Edmond se interessava por aquele trabalho que lhe fazia companhia quando, de súbito, o carcereiro entrou.
            Havia cerca de oito dias que resolvera morrer e quatro que começara a pôr o projeto em execução sem que Edmond dirigisse a palavra àquele homem, não lhe respondesse quando lhe perguntara de que doença julgava sofrer e se virasse para a parede quando o outro o olhara com demasiada atenção. Mas naquele dia o carcereiro poderia ouvir aquele barulho abafado, alarmar-se, pôr-lhe termo e destruir assim, talvez, não sei que esperança, cuja simples idéia fascinava os derradeiros momentos de Dantés, o carcereiro trazia o café da manhã.
            Dantés soergueu-se na cama, engrossou a voz e desatou a falar de tudo quanto lhe veio à cabeça: da má qualidade da comida que o carcereiro trazia, do frio que se rapava naquela masmorra, etc., sempre murmurando e resmungando para ter o direito de gritar mais alto e cansando a paciência do carcereiro, que precisamente naquele dia solicitara para o prisioneiro doente um caldo e pão fresco e lhe trazia esse caldo e esse pão.
             Felizmente, o homem julgou que Dantés delirava, pousou a comida em cima da mesa coxa em que tinha o hábito de a colocar e retirou-se.
            De novo livre, Edmond pôs-se a escutar com alegria.
            O ruído tornara-se tão distinto que naquele momento o jovem já o ouvia sem esforço.
            “Não há dúvida", disse para consigo, “se o ruído continua, apesar de já ser dia, é porque algum pobre prisioneiro como eu trabalha para se libertar. Oh, se estivesse perto dele como o ajudaria!"
            Depois, de repente, uma nuvem sombria passou sobre esta aurora de esperança naquele cérebro habituado à desgraça e que só dificilmente poderia recuperar as alegrias humanas: assaltou-o bruscamente a idéia de que o barulho poderia ser provocado pelo trabalho de alguns operários que o Governo empregasse nas reparações de uma cela contígua.
            Era fácil assegurar-se disso; mas como arriscar uma pergunta?  Claro que era muito simples esperar a chegada do carcereiro, fazê-lo escutar o ruído e ver o rosto que faria. Mas proporcionar-se semelhante satisfação não seria atraiçoar interesses demasiados preciosos por uma satisfação tão curta? Infelizmente a cabeça de Edmond, campânula vazia, estava dominada pelo zumbido de uma idéia. Encontrava-se tão fraco que o seu espírito pairava como um vapor e não conseguia condensar-se à volta de um pensamento. Edmond viu apenas um meio de dar clareza à sua reflexão e lucidez ao seu  julgamento. Olhou para o caldo ainda fumegante que o carcereiro acabava de deixar em cima da mesa, levantou-se, aproximou-se dele cambaleante, pegou na tigela, levou-a aos lábios e engoliu a beberagem que continha com uma indizível sensação de bem-estar.
            Teve então a coragem de ficar por ali. Ouvira dizer que pobres náufragos recolhidos, extenuados pela fome, tinham morrido por haverem devorado vorazmente uma alimentação demasiado substancial. Edmond pousou em cima da mesa o pão que tinha já  quase ao alcance da boca e voltou a deitar-se. Desistira de
morrer.
            Não tardou a sentir a luz entrar-lhe no cérebro. Todas as suas idéias vagas e quase inapreensíveis retomavam o seu lugar naquele tabuleiro de xadrez maravilhoso, onde uma casa a mais talvez seja
suficiente para estabelecer a superioridade do homem sobre os animais. Conseguiu pensar e fortificar o pensamento com o raciocínio.
            Então, disse para consigo:
            “É necessário tentar a experiência, mas sem comprometer ninguém. Se o trabalhador for um operário vulgar, bastará bater na minha parede e imediatamente ele interromperá a sua tarefa para procurar adivinhar quem bate e com que fim bate. Mas se o seu trabalho não for só lícito, mas também encomendado, o retomará imediatamente. Se, pelo contrário, for um prisioneiro, o barulho que eu fizer irá assustá-lo. Receando ser descoberto, interromperá o seu trabalho e só o retomará à noite, quando julgar que todos estarão deitados e dormindo."
            Edmond levantou-se imediatamente de novo. Desta vez as pernas já não lhe vacilavam nem tinha visões de fogos-fátuos. Dirigiu-se para um canto da cela, arrancou uma pedra minada pela umidade e foi bater na parede no mesmo lugar onde o barulho era mais sensível.
            Bateu três vezes.
            Logo à primeira, o barulho cessou como que por encanto.
            Edmond escutou com toda a sua alma. Passou uma, duas horas sem que nenhum novo ruído se ouvisse; Edmond provocara do outro lado da muralha um silêncio absoluto.
            Cheio de esperança, Edmond comeu um pouco de pão e bebeu alguns goles de água. Graças à poderosa constituição de que a natureza o dotara encontrou-se pouco depois como anteriormente.
            Passou o dia e o silêncio manteve-se.
            Anoiteceu e o barulho não recomeçou.
            “É um prisioneiro", disse Edmond para consigo com indizível alegria.
            Desde então a cabeça exaltou-se-lhe e a vida tornou-se-lhe violenta à força de ser ativa.
            A noite passou sem que se ouvisse o menor ruído.
            Edmond não pregou olho.
            Amanheceu; o carcereiro entrou com a comida. Edmond já devorara os alimentos antigos e devorou os novos escutando sem cessar, à espera de um ruído que não voltava, receando que tivesse cessado para sempre, percorrendo dez ou doze léguas na sua masmorra, sacudindo durante horas inteiras os varões de ferro do seu respiradouro, recuperando a elasticidade e o vigor dos seus membros por meio de um exercício esquecido havia muito tempo, dispondo-se enfim a retomar, corpo a corpo, o seu destino  futuro, como faz, estendendo os braços e esfregando o corpo com óleo, o lutador que vai entrar na arena. Depois, nos intervalos desta atividade febril, escutava se o ruído voltava, impacientando-se com a prudência daquele prisioneiro que não adivinhava que fora distraído da sua obra de libertação por outro prisioneiro que tinha, pelo menos, tanta pressa de ser livre como ele.
            Passaram-se assim três dias, setenta e duas horas mortais, contadas minuto a minuto.
            Por fim, uma noite, quando o carcereiro acabava de fazer a sua última visita e Dantés colava pela centésima vez o ouvido à muralha, pareceu-lhe que um abalo imperceptível se repercutia na sua cabeça, encostada às pedras silenciosas.
            Dantés recuou, para acalmar o cérebro agitado, deu algumas voltas na cela e recolocou o ouvido no mesmo lugar.
            Não havia dúvida: fazia-se qualquer coisa do outro lado. O prisioneiro reconhecera o perigo da sua manobra e otara por qualquer outra. Sem dúvida, para continuar a sua obra com mais segurança, substituíra a alavanca pelo escopro.
            Animado por esta descoberta, Edmond resolveu ajudar o  infatigável trabalhador. Começou por afastar a cama, atrás da qual lhe parecia decorrer a obra de libertação, e procurou com os olhos um objeto com o qual pudesse atacar a muralha, arrancar o cimento úmido, desprender finalmente uma pedra.
            Não viu nada. Não tinha faca nem qualquer outro instrumento cortante. De ferro só tinha os varões e quanto a estes já se assegurara muitas vezes que estavam bem presos e não valia a pena
tentar abalá -los.
            Todo o seu mobiliário se compunha de uma cama, uma cadeira, uma mesa, um balde e uma bilha.
            A cama tinha respigas de ferro, mas essas respigas encontravam-se presas à madeira por parafusos. Seria necessária uma chave de fenda para tirar os parafusos e arrancar as respigas.
            Na mesa e na cadeira, nada; o balde tivera noutros tempos uma asa, mas essa asa desaparecera.
            Só havia um recurso para Dantés: quebrar a bilha e com um dos bocados de barro talhado em ângulo meter mãos à obra.   
            Deixou cair a bilha no chão e a bilha voou em pedaços.
            Dantés escolheu dois ou três cacos aguçados, escondeu-os na enxerga e deixou os outros espalhados pelo chão. A quebra da bilha era um acidente tão natural que ninguém se preocuparia com ele.
            Edmond tinha toda a noite para trabalhar; mas na escuridão a tarefa corria mal, pois tinha de trabalhar às apalpadelas e não tardou a sentir que embotava o instrumento informe numa argamassa mais dura. Recolocou, pois, a cama no seu lugar e esperou que amanhecesse. Com a esperança, voltara-lhe também a paciência.
            Durante toda a noite escutou e ouviu o mineiro desconhecido que continuava a sua obra subterrânea.
            Amanheceu e o carcereiro entrou. Dantés disse-lhe que ao beber na véspera pela própria bilha esta lhe escapara das mãos, caíra e partira-se. O carcereiro  foi, resmungando, buscar uma bilha nova, e nem sequer se deu ao incômodo de levar os pedaços da velha.
            Voltou pouco depois, recomendou mais cuidado ao prisioneiro e saiu.
            Dantés escutou com indizível alegria o chiar da fechadura, que antes lhe apertava o coração todas as vezes que se fechava. Ouviu afastar-se o ruído dos passos; depois, quando o ruído se extinguiu, saltou para a cama, que desviou, e à claridade do fraco raio de luz que peneirava na cela pode ver o trabalho inútil que fizera na noite anterior, atacando o corpo da pedra em vez da argamassa que lhe rodeava as extremidades.
            A umidade tornara essa argamassa friável.
            Dantes verificou, com o coração a pulsar-lhe de alegria, que a argamassa se soltava em fragmentos - fragmentos que eram quase átomos é verdade seja... Mas ao cabo de meia hora, porém Dantés já  arrancara pouco mais ou menos um punhado. Um matemático poderia calcular que aproximadamente em dois anos daquele trabalho, supondo que se não encontrasse rocha, seria possível abrir uma passagem de dois pés quadrados e vinte pés de profundidade.
            O prisioneiro censurou-se por não ter empregado naquele trabalho as longas horas passadas, sempre mais lentas, que perdera na esperança, na oração e no desespero.
            Havia cerca de seis anos que se encontrava fechado naquela masmorra: que trabalho, por mais lento que fosse não teria feito!
            Esta idéia deu-lhe novo ardor.
            Em três dias conseguiu, com inauditas precauções, retirar toda a argamassa e pôr a pedra a nu. A muralha era feita de pequenas pedras de construção, no meio das quais, para aumentar a solidez, tinham colocado, a intervalos, grandes blocos de pedra aparelhados. Era uma dessas pedras que quase descarnara e que se tratava agora de fazer sair do seu alvéolo.
            Dantés experimentou com as unhas, mas as unhas eram insuficientes para isso.
            Os cacos da bilha, introduzidos nos intervalos, quebravam-se quando Dantés pretendia utilizá-los como alavanca.
            Passado uma hora de tentativas inúteis, Dantés levantou-se, com o suor da angústia na testa.
            Iria ser detido assim logo ao princípio e teria de esperar, inerte e inútil, que o vizinho, que se esfalfava do seu lado, talvez, fizesse tudo?
            Passou-lhe então uma idéia pelo espírito. Ficou de pé sorrindo. A sua testa úmida de suor secou por si mesma.
            O carcereiro trazia todos os dias a sopa de Dantés numa caçarola de folha-de-flandres. Essa caçarola continha a sua sopa e a do outro prisioneiro, pois Dantés notara que ou estava completamente cheia ou meio vazia, conforme o carcereiro começava a distribuição da comida por ele ou pelo seu companheiro.
            A caçarola tinha um cabo de ferro. Era esse cabo de ferro que Dantés ambicionava e que pagaria, se lhe exigissem em troca, com dez anos de vida.
            O carcereiro deitou o conteúdo da caçarola no prato de Dantés. Depois de comer a sopa com uma colher de pau, Dantés lavava o prato, que servia assim todos os dias.  À noite, Dantés pôs o prato no chão, a meio caminho entre a porta e a mesa. Ao entrar, o carcereiro pôs o pé em cima do prato e partiu-se em mil pedaços.
            Desta vez não havia nada a dizer contra Dantés: fizera mal em deixar o prato no chão, é verdade, mas o carcereiro também não vira onde punha os pés.
            O carcereiro limitou-se portanto a resmungar.
            Em seguida olhou à sua volta para ver onde poderia deitar a sopa; mas a baixela de Dantés limitava-se àquele único prato e não havia por onde escolher.
            - Deixe a caçarola - sugeriu Dantés. - Leve-a quando me trouxer amanhã o café da manhã.
            O conselho ia ao encontro da preguiça do carcereiro, que assim não tinha necessidade de subir, descer e tornar a subir. Deixou a caçarola.
            Dantés estremeceu de alegria.
            Desta vez comeu rapidamente a sopa e a carne que, segundo o hábito das prisões, deitavam na sopa. Em seguida, depois de esperar uma hora para ter a certeza de que o carcereiro não mudava de idéia, afastou a cama, pegou a caçarola, introduziu a ponta do cabo entre a pedra aparelhada liberta de argamassa e as pedras de construção vizinhas e começou a utilizá-la como alavanca.
            Uma pequena oscilação provou a Dantés que as coisas corriam bem.
            De fato, ao cabo de uma hora a pedra estava fora da parede, onde deixaram um buraco de mais de pé e meio de diâmetro.
            Dantés apanhou com cuidado toda a argamassa, transportou-a para os cantos da cela, raspou a terra acinzentada com um dos fragmentos da bilha e cobriu a argamassa de terra.
            Depois, disposto a tirar proveito daquela noite em que o acaso, ou antes, o excelente truque que imaginara, lhe pusera nas mãos um instrumento tão precioso, continuou a cavar com energia.
            Ao amanhecer, recolocou a pedra no buraco, empurrou a cama contra a parede e deitou-se.
            O café da manhã consistia num naco de pão. O carcereiro entrou e deixou-o em cima da mesa.
            - Então, não traz outro prato? - perguntou Dantés.
            - Não - respondeu o carcereiro. - Parte tudo, já partiu a bilha e foi o causador de lhe partir o prato. Se todos os prisioneiros dessem tanta despesa, não sei aonde o Governo havia de ir buscar dinheiro. Deixo-lhe a caçarola, onde lhe deitarei a sopa. Assim, talvez já não parta a sua baixela.
            Dantés ergueu os olhos ao céu e juntou as mãos debaixo do cobertor.
            Aquele pedaço de ferro que lhe deixavam fazia-lhe nascer no coração um impulso de reconhecimento ao Céu mais vivo do que o que alguma vez lhe causara no passado as maiores venturas que experimentara.
            Notara, porém, que desde que começara a trabalhar o prisioneiro já não trabalhava.
            Que interessava, isso não era motivo para interromper a sua tarefa. Se o vizinho não vinha ter com ele, iria ele ter com o vizinho. 
            Trabalhou todo o dia sem descanso. À noite, graças ao seu novo instrumento, tirara da muralha mais de dez punhados de fragmentos de pedra de construção, gesso e cimento.
            Quando chegou a hora de visita, endireitou o melhor que pode o cabo da caçarola e colocou o recipiente no seu lugar habitual. O carcereiro deitou nele a costumada ração de sopa e carne - ou antes, de sopa e peixe, pois aquele era dia de jejum, um dos três dias de jejum semanais a que sujeitavam os  prisioneiros. Seria mais um meio de calcular o tempo, se há muito Dantés não tivesse renunciado a tal cálculo.
            Deitada a sopa, o carcereiro retirou-se.
            Desta vez, Dantés quis ter a certeza se o vizinho deixara realmente de trabalhar.
            Escutou.
            Estava tudo silencioso como durante os três dias em que o trabalho fora interrompido.
            Dantés suspirou. Era evidente que o vizinho desconfiava dele. No entanto, não desanimou e continuou a trabalhar toda a noite. Mas após duas ou três horas de escavar, encontrou um obstáculo: o ferro já não mordia, deslizava numa superfície plana.
            Dantés apalpou com as mãos e reconheceu que atingira uma viga.
            A viga atravessava, ou antes, barrava inteiramente o buraco que Dantés começara.
            Agora era preciso escavar por cima ou por baixo.
            O pobre rapaz nunca pensara em semelhante obstáculo.
            - Oh, meu Deus, meu Deus, pedi-vos tanto que esperava me tivesseis ouvido! - exclamou. - Meu Deus, depois de me terdes tirado a liberdade da vida, meu Deus! Depois de me terdes tirado a calma da morte, meu Deus! Por que me chamastes à existência, meu Deus? Tende piedade de mim e não me deixeis morrer no desespero!
            - Quem fala de Deus e de desespero ao mesmo tempo? - perguntou uma voz que parecia vir de baixo da terra e que, abafada pelo local, chegava aos ouvidos do jovem com um acento sepulcral.
            Edmond sentiu os cabelos eriçarem-se-lhe na cabeça e recuou nos joelhos.
            - Oh, ouvi falar um homem!... - murmurou.
            Havia quatro ou cinco anos que Edmond só ouvia falar o carcereiro, e para um preso o carcereiro não é homem: é uma porta viva ajustada à sua porta de carvalho; é um varão de carne entre os varões de ferro.
            - Em nome do Céu - gritou Dantés –, quem falou, que volte a falar, embora a sua voz me tenha assustado! Quem é o senhor?
            - E o senhor?   - perguntou a voz.
            - Um pobre prisioneiro - respondeu Dantés, que pela sua parte não punha nenhuma dificuldade em responder.
            - De que pais?
            - Francês.
            - O seu nome?
            - Edmond Dantés.
            - A sua profissão?
            - Marinheiro. 
            - Há quanto tempo está aqui?
            - Desde 28 de Fevereiro de 1815.
            - O seu crime?
            - Estou inocente.
            - Mas de que o acusam?
            - De conspirar para regresso do imperador.
            - Como? Para o regresso do imperador?... O imperador já não está no trono?
            - Abdicou em Fontainebleau em 1814 e foi exilado para a ilha de Elba. Mas há quanto tempo está o senhor aqui que ignora tudo isto?
            - Desde 1811.
            Dantés estremeceu. Aquele homem tinha mais quatro anos de prisão do que ele.
            - Bom, não escave mais - disse a voz, falando muito depressa.
            - Diga-me apenas a que altura se encontra a escavação que fez.
            - Rente ao chão.
            - Como está escondida?
            - Atrás da minha cama.
            - Afastaram alguma vez a sua cama do seu lugar desde que o senhor está na cela?
            - Nunca.
            - Para onde dá a sua cela?
            - Para uma passagem coberta.
            - E a passagem coberta?
            - Para o pátio.
            - Pouca sorte! - murmurou a voz.
            - Oh, meu Deus, que diz?! - exclamou Dantés.
            - Digo que me enganei, que a imperfeição dos meus desenhos me levou a resultados errados, que a falta de uma bússola me perdeu, que uma linha de erro no meu plano equivaleu na realidade a quinze pés e que tomei a parede que o senhor abriu pela da cidadela!
            - Mas então iria dar ao mar!
            - Era o que eu queria.
            - E se tivesse conseguido?
            - Deitava-me a nado, alcançava uma das ilhas que rodeiam o Castelo de If, quer a ilha de Daume, quer a ilha de Tiboulen, quer até  a costa, e estava salvo.
            - Conseguiria nadar até  lá?
            - Deus me daria forças. E agora está tudo perdido!
            - Tudo?
            - Sim. Tape o seu buraco, com precaução, não trabalhe mais, não faça nada e espere as minhas notícias.
            - Quem é, ao menos? Ao menos diga-me quem é!
            - Sou... sou... nº  27.
            - Desconfia de mim? - perguntou Dantés.
            Edmond julgou ouvir como que um riso amargo transpor a abôbada e subir até  ele. 
            - Oh, sou um bom cristão! - gritou, adivinhando instintivamente que aquele homem tencionava abandoná-lo. - Juro-lhe por Cristo que mais depressa me deixarei matar do que entrever aos seus carrascos e aos meus a sombra da verdade. Mas em nome do Céu não me prive da sua presença, não me prive da sua voz, suplico-lhe, pois cheguei ao limite das minhas forças e juro-lhe que partirei a cabeça contra a muralha e o senhor será culpado da minha morte.
            - Que idade tem? A sua voz parece a de um rapaz.
            - Não sei a minha idade, porque não contei o tempo desde que estou aqui. O que sei é que ia fazer dezenove anos quando fui preso, em 28 de Fevereiro de 1815.
            - Ainda não completou vinte e seis anos - murmurou a voz. – bom, nessa idade ainda se não é um traidor.
            - Oh, não, não! Juro-lhe - repetiu Dantés. - já lhe disse e repito que mais depressa me deixarei fazer em pedaços do que o atraiçoarei.
            - Fez bem em falar-me; fez bem em pedir-me, porque ia formar outro plano e afastar-me de você. Mas a sua idade tranquiliza-me. Irei ter consigo; espere por mim.
            - Quando?
            - Tenho de calcular as nossas probabilidades. Depois lhe darei sinal.
            - Mas não me abandonará, não me deixará sozinho, virá ter comigo ou me permitirá que vá  ter consigo? Fugiremos juntos, e se não pudermos fugir falaremos, o senhor das pessoas que lhe são queridas e eu das minhas. Decerto tem alguém que lhe é querido?...
            - Estou só no mundo.
            - Então, seremos amigos. Se for novo, serei seu camarada; se for velho, serei seu filho. O meu pai deve ter setenta anos, se ainda é vivo. Não amava mais ninguém a não ser ele e uma moça chamada Mercedes. O meu pai não me esqueceu, tenho a certeza; mas ela, só Deus sabe se ainda pensa em mim. Amá-lo-ei como amava o meu pai.
            - Pois sim, amanhã - disse o prisioneiro.
            Estas poucas palavras foram proferidas com um acento que convenceu Dantés. Não perguntou mais nada, levantou-se, tomou as mesmas precauções com os fragmentos tirados da parede do que as que já tomara com os anteriores e empurrou a cama contra a muralha.
            Desde então, Dantés entregou-se por completo à sua felicidade. Nunca mais estaria só, decerto, talvez até  conseguisse ser livre. Na pior das hipôteses, se continuasse prisioneiro, teria um companheiro. Ora o cativeiro compartilhado não passa de meio cativeiro. Os queixumes em comum são quase preces; preces que se rezam a dois são quase ações de graças.
            Dantés andou durante todo o dia de um lado para o outro na sua cela, com o coração a pular de alegria. De vez em quando, a alegria sufocava-o. Sentava-se então na cama e comprimia o peito com a mão. Ao mais pequeno ruído que ouvia na passagem coberta, saltava para a porta. Uma vez ou duas, o receio de que o separassem daquele homem que não conhecia, mas que no entanto estimava já como um amigo, passou-lhe pela cabeça. Se isso acontecesse, estava decidido: no momento em que o carcereiro afastasse a cama e baixasse  a cabeça para examinar o buraco, partir-lha-ia com a laje em que estava pousada a bilha.
            O condenariam à morte, bem o sabia; mas não morreria de aborrecimento e desespero desde o momento em que aquele ruído miraculoso o restituíra à vida.
            O carcereiro veio à noitinha. Dantés estava na cama, onde lhe parecia que guardava a melhor cobertura inacabada.  Decerto fitou o visitante importuno com olhar estranho, pois o homem disse-lhe:
            - Então, está cada vez mais louco?
            Dantés não respondeu; receava que a emoção da sua voz o atraiçoasse.
            O carcereiro retirou-se abanando a cabeça.
            Quando anoiteceu, Dantés julgou que o vizinho aproveitaria o silêncio e a escuridão para reatar a conversa consigo, mas enganava-se; a noite passou sem que nenhum ruído respondesse à sua febril expectativa. Mas no dia seguinte, depois da visita da manhã, quando afastou a cama da muralha, ouviu três pancadas a intervalos regulares e precipitou-se de joelhos
            - É o senhor? - perguntou. - Estou aqui!
            - O seu carcereiro já foi embora? - perguntou a voz.
            - Já - respondeu Dantés - e só voltará à tardinha. Temos doze horas de liberdade.
            - Posso portanto trabalhar? - insistiu a voz.
            - Pode, sim, e imediatamente, agora mesmo, suplico-lhe.
            Ato contínuo a porção de terra em que Dantes, meio metido na abertura, apoiava as mãos pareceu ceder debaixo dele. Recuou, enquanto uma massa de terra e pedras soltas se precipitava num buraco acabado de, abrir por baixo da abertura que ele próprio fizera. Então, no fundo desse buraco escuro e cuja
profundidade não podia calcular, viu aparecer uma cabeça, ombros e finalmente um homem completo, que saiu com bastante agilidade da escavação praticada.


Capítulo XVI

Um sábio italiano


            Dantés recebeu nos braços o novo amigo tanto e tão impacientemente esperado e puxou-o para a sua janela, a fim de que a pouca luz que penetrava na cela o iluminasse por completo.
            Era um homem baixinho, de cabelos embranquecidos mais pelo sofrimento do que pela idade, olhos penetrantes ocultos sob sobrancelhas espessas já grisalhas e barba ainda preta que lhe descia até  ao peito. A magreza do rosto, sulcado por rugas profundas, e a linha ousada dos seus traços característicos revelavam um homem mais habituado a exercer as suas faculdades morais do que físicas. A testa do recém-chegado estava coberta de suor.
            Quanto ao seu vestuário, era impossível distinguir a sua forma primitiva, pois caía em farrapos. 
            Parecia ter, pelo menos, sessenta e cinco anos, embora certo vigor nos movimentos denotasse que talvez tivesse menos idade do que a que o fazia parecer o longo cativeiro.
            Acolheu com uma espécie de prazer as exclamações entusiastas do rapaz; a sua alma gelada pareceu por um instante aquecer e derreter-se ao contato com aquela alma ardente. Agradeceu-lhe a sua cordialidade com certo calor, apesar de a sua decepção ter sido grande por encontrar segunda masmorra onde julgava
encontrar a liberdade.
             - Antes de mais nada - disse –, vejamos se há maneira de fazer desaparecer aos olhos dos seus carcereiros os vestígios da minha passagem. Toda a nossa tranquilidade futura assenta na ignorância do que se passou.
            Inclinou-se então para a abertura, pegou na pedra, que levantou facilmente apesar do seu peso, e meteu-a no buraco.
            - Esta pedra foi arrancada com muita negligência - declarou, abanando a cabeça.- Não tem ferramentas?
            - E o senhor, as tem? - perguntou Dantés, atônito.
            - Arranjei algumas. Excetuando uma lima, tenho tudo o que preciso: escopro, alicate, alavanca...
            - Oh, gostaria de ver esses produtos da sua paciência e da sua indústria - declarou Dantés.
            - Olhe, para começar aqui tem um formão.
            E mostrou-lhe uma lâmina forte e aguçada, encabada num bocado de madeira de faia.
            - De que fez isto? - perguntou Dantés.
            - De uma das dobradiças da minha cama. Foi com este instrumento que abri todo o caminho que me conduziu aqui: cinquenta pés, aproximadamente.
            - Cinquenta pés! - exclamou Dantés, com uma espécie de terror.
            - Fale baixo, rapaz, fale mais baixo; é frequente escutarem às portas dos prisioneiros.
            - Sabem que estou sozinho.
            - Não importa.
            - Diz que escavou cinquenta pés para chegar aqui?
            - Sim. É, pouco mais ou menos, a distância que separa a minha cela da sua. Simplesmente, calculei mal a minha curva, por falta de instrumento de geometria para estabelecer a minha escala de proporções: em vez de quarenta pés de elipse, encontrei cinquenta. Julgava assim, como lhe disse, chegar à parede exterior, furá-la e atirar-me ao mar. Mas segui ao longo da passagem coberta para onde dá a sua cela, em vez de passar por baixo. Todo o meu trabalho está perdido porque essa passagem dá para um pátio cheio de guardas.
            - É verdade - concordou Dantés. - Mas a passagem só acompanha um lado da minha cela e a minha cela tem quatro.
            - Sim, sem dúvida, mas em primeiro lugar aqui está um que tem como muralha o rochedo. Seriam precisos dez anos de trabalho a dez mineiros munidos de todas as ferramentas próprias para furar
o rochedo. Este deve ficar encostado aos alicerces dos aposentos do governador. Cairíamos nas caves, que fecham evidentemente à chave, e seriamos apanhados. O outro lado da... Espere, para onde da o outro lado? 
            - Esse lado era aquele onde se abria a seteira através da qual entrava a luz - seteira que ia sempre estreitando até  ao momento que dava entrada à luz e pela qual uma criança não conseguiria decerto passar. Além disso, guarneciam-na três ordens de varões de ferro capazes de tranquilizar a respeito de uma evasão por esse meio o carcereiro mais desconfiado.
            Ao mesmo tempo que fazia a pergunta, o recém-chegado ia arrastando a mesa para debaixo da janela.
            - Suba para cima da mesa - disse a Dantés.
            Dantés obedeceu, subiu para cima da mesa e, adivinhando as intenções do companheiro, encostou-se à parede e estendeu-lhe as mãos.
            Aquele que dera como nome o número da sua cela e cujo verdadeiro nome Dantés ainda ignorava, subiu então mais rapidamente do que a sua idade poderia fazer pressagiar, com uma habilidade de gato
ou de lagarto, primeiro para cima da mesa, depois da mesa para as mãos de Dantés e depois das mãos para os ombros, curvado em dois, porque a abôbada da cela o impedia de se endireitar, meteu a cabeça entre a primeira ordem de varões e conseguiu assim ver de cima para baixo.
            Passado um instante, retirou vivamente a cabeça.
            - Oh, oh! - exclamou. - Bem me parecia...
            Deixou-se escorregar ao longo do corpo de Dantés para cima da mesa e da mesa saltou para o chão.
            - Bem lhe parecia o que? - perguntou o rapaz, ansioso, saltando por seu turno atrás dele.
            O velho prisioneiro meditava.
            - Sim, é isso... - disse por fim. - O quarto lado da sua cela da para uma galeria exterior, espécie de caminho de ronda, onde passam as patrulhas e fazem guarda sentinelas.
            - Tem certeza?
            - Vi a barretina do soldado e a extremidade da espingarda e retirei-me precipitadamente com receio de que ele também me visse.
            - E agora? - perguntou Dantés.
            - Bem vê que é impossível fugir pela sua cela.
            - Então... - continuou o rapaz, em tom interrogativo.
            - Então - perguntou o velho prisioneiro –, que seja feita a vontade de Deus!
            E uma expressão de profunda resignação espalhou-se pelo rosto do velhote.
            Dantés olhou aquele homem que renunciava assim e com tanta filosofia a uma esperança alimentada havia tanto tempo. Olhou-o com um espanto laivado de admiração.
            - Quer agora dizer-me quem é? - perguntou Dantés.
            - Oh, meu Deus, quero, se isso ainda lhe pode interessar; agora que já não posso lhe ser útil em nada!
            - Pode me ser útil confortando-me e amparando-me, pois parece-me forte entre os fortes.
            O abade sorriu tristemente.
            - Sou o abade Faria - apresentou-se o prisioneiro - e desde 1811 que me encontro, como sabe, no Castelo de If. Mas primeiro estive três anos  encerrado na Fortaleza de Fenestrelle. Em 1811 transferiram-me do Piemonte para França. Foi então que soube que o destino, que nessa época lhe parecia submisso, dera um filho a Napoleão e que esse filho fora designado no berço rei de Roma. Estava longe de suspeitar então do que você me disse há pouco, isto é‚ que passados quatro anos o colosso seria derrubado. Quem reina agora na França? Napoleão II?
            - Não, Luís XVIII.
            - Luís XVIII, o irmão de Luís XVI! Os decretos do Céu são estranhos e misteriosos. Qual foi a intenção da Providência abaixando o homem que elevara e elevando o que abaixara?
            Dantés seguia com os olhos aquele homem que esquecia por instantes o seu próprio destino para se preocupar assim com os destinos do mundo.
            - Sim, sim - continuou –., é como na Inglaterra: depois de Carlos I, Cromwell; depois de Cromwell, Carlos II, e depois de Carlos II talvez qualquer genro, qualquer parente, qualquer príncipe de Orange. Um stathouder que se fará rei. E então novas concessões ao povo, então uma constituição, então a liberdade! Você verá isso, rapaz - declarou virando-se para Dantés fitando-o com olhos brilhantes e profundos como deviam ser os dos profetas. - Ainda está em idade de o ver e o verá.
            - Sim, se sair daqui.
            - Tem razão - admitiu o abade Faria. - Estamos presos, embora haja momentos em que o esqueço e, porque os meus olhos trespassam as muralhas que me encerram, me julgue em liberdade.
            - Mas por que está preso?
            - Eu? Porque sonhei em 1807 o projeto que Napoleão quis realizar em 1811. Porque, como Maquiavel no meio de todos esses principelhos que faziam da Itália um ninho de reinozinhos tirânicos e fracos, quis um grande e único império, sólido e forte. Porque julguei encontrar o meu César Bórgia num parvo coroado, que simulou compreender para melhor me trair. Era o projeto de Alexandre VI e Clemente VII. Esse projeto nunca
ir a diante, pois empreenderam-no inutilmente e Napoleão não poderá acabá-lo. Decididamente, a Itália está amaldiçoada!
            E o velhote baixou a cabeça.
            Dantés não compreendia como podia um homem arriscar a vida por semelhantes interesses. É certo que conhecia Napoleão por o ter visto e lhe ter falado, ignorava completamente, em contrapartida, quem eram Clemente VII e Alexandre VI.
            - O senhor não é - perguntou Dantés, começando a perfilhar a opinião do carcereiro, que era a opinião geral no Castelo de If - o padre que dizem estar... doente?
            - Que dizem estar louco, é o que quer dizer, não é verdade?
            - Não me atrevia... - confessou Dantés, sorrindo.
            - Sim, sim - continuou Faria, com um riso amargo. - Sim, sou eu que passo por louco; sou eu que divirto há tanto tempo os hóspedes desta prisão, e que divertiria as criancinhas se houvesse crianças na morada da dor sem esperança.
            Dantés permaneceu um instante imóvel e calado.
            - Quer dizer que renuncia a fuga? - perguntou. 
            - Vejo a fuga impossível. E rebelarmo-nos contra Deus tentarmos o que Deus não quer que se realize.
            - Não vale a pena desanimar. Seria também pedir demasiado à Providência querer triunfar à primeira tentativa. Não pode recomeçar em sentido contrário a este?
            - Sabe porventura o que fiz para falar assim de recomeçar? Sabe que levei quatro anos fazendo as ferramentas que possuo? Sabe que há dois anos que raspo e escavo uma terra dura como o granito?
Sabe que tive de descarnar pedras que noutros tempos julgaria impossível remover, que passei dias inteiros nesse labor titânico e que às vezes à noite me sentia feliz quando tinha retirado uma polegada quadrada  dessa velha argamassa, tornada tão dura como a própria pedra? Sabe que para esconder toda essa terra e
todas essas pedras tive de furar a abóbada de uma escada, em cujo tambor todos esses escombros foram pouco a pouco lançados, pelo que agora o tambor está cheio e eu não saberia onde meter nem mais um punhado de pô? Sabe, finalmente, que julgava chegar ao fim de todos os meus trabalhos, que me sentia com a forca exata para executar essa tarefa e que Deus, não só recua esse objetivo como ainda o transporta não sei para onde? Oh, digo-lhe e repito-lhe que daqui em diante não farei mais nada para tentar reconquistar a minha liberdade, visto a vontade de Deus ser que a perca para sempre!
            Edmond baixou a cabeça para não confessar àquele homem que a alegria de ter um companheiro o impedia de compartilhar, como deveria, a dor que experimentava o prisioneiro por não conseguir fugir.
             O abade Faria deixou-se cair na cama de Edmond e Edmond fiou de pé.
            O jovem nunca pensara na fuga. Há coisas que parecem de tal modo impossíveis que nem sequer nos ocorre a idéia de as tentar e que evitamos instintivamente. Furarmos cinquenta pés debaixo de terra; dedicarmos a essa operação três anos de trabalho para chegarmos, se formos bem sucedidos, a um precipício aberto a pique sobre o mar, precipitarmo-nos de cinquenta, sessenta ou talvez cem pés para nos esmagarmos caindo de cabeça sobre qualquer rochedo, se primeiro nos não matar a bala de uma
sentinela; sermos obrigados, se conseguirmos escapar a todos esses perigos, a nadar uma légua - tudo isso seria mais do que suficiente para nos resignarmos, e como vimos Dantés quase levara essa resignação até  à morte.
            Mas agora que o jovem vira um velho agarrar-se à vida com tanta energia e dar-lhe o exemplo das soluções desesperadas, pôs-se a refletir e a avaliar a sua coragem. Outro tentara o que ele nem lhe passara pela cabeça fazer; outro, menos novo, menos forte, menos destro do que ele, arranjara, a poder de habilidade e paciência, todos os instrumentos de que necessitara para essa incrível operação que apenas uma medida mal tirada fizera malograr; ora se outro conseguira tudo isso, nada era impossível a Dantés. Faria furara cinquenta pés; ele furaria cem. Aos cinquenta anos, Faria dedicara três à sua obra; ele, que tinha apenas metade da idade de Faria, dedicar-lhe-ia seis. Faria, abade, sébio, homem de igreja, não receava correr o risco da travessia do Castelo de If para a ilha de Daume, de Ratonneau ou de Lemaire; ele, Edmond, marinheiro; ele, Dantés, ousado mergulhador que muitas vezes fora buscar um ramo de coral no fundo do mar, hesitaria em nadar uma légua? De que tempo precisava para nadar uma légua? Uma hora? Pois bem, não
passara horas inteiras no mar sem pôr pé em terra? Não, não, Dantés não necessitava de ser encorajado pelo exemplo. Tudo o que outro fizesse ou pudesse fazer, Dantés faria.
            O jovem refletiu um instante.
            - Encontrei o que o senhor procurava - disse ao velho.
            Faria estremeceu.
            - Você? - disse, levantando a cabeça com um ar que indicava que se Dantés dizia a verdade o desânimo do seu companheiro não seria de longa duração. - Você? Vejamos, que foi que encontrou!
            - A galeria que furou para vir da sua cela até aqui estende-se no mesmo sentido da galeria exterior, não é verdade?
            - É.
            - E só deve distar dela uns quinze passos?
            - No máximo.
            - Bom, mais ou menos a meio da galeria abrimos um caminho que forme como que o braço de uma Cruz. Desta vez, tirará melhor as suas medidas. Desembocamos na galeria exterior, matamos a sentinela e fugimos. Para que o plano de resultado é preciso apenas coragem, e essa tem-na o senhor; vigor, e esse não me falta. Isto sem falar da paciência, de que já deu provas e eu darei as minhas.
            - Um instante - atalhou o abade. - Você ignora, meu caro companheiro, de que espécie é a minha coragem e como tenciono empregar a minha força. Quanto à paciência, creio ter sido bastante paciente recomeçando todas as manhãs a tarefa da noite e todas as noites a tarefa do dia. Mas então, ouça bem o que lhe digo, rapaz, parecia-me que servia Deus libertando uma das suas criaturas que, estando inocente, não pudera ser condenada.
            - Mas então - perguntou Dantés –, as coisas não estão no mesmo pé? Foi porventura reconhecido culpado desde que me encontrou?
            - Não, mas também não o quero vir a ser. Até  aqui julgava ter de me haver apenas com coisas, mas agora você propõe-me haver-me com homens. Furei uma parede e destruí uma escada, mas não furarei
um peito nem destruirei uma existência.
            Dantés fez um leve gesto de surpresa.
            - Como, podendo ser livre se prenderia com semelhante escrúpulo - perguntou.
            - Tal como você próprio - perguntou Faria. - Por que motivo não agrediu, uma noite, o seu carcereiro com o pé da sua mesa, vestiu as roupas dele e tentou fugir?
            - Porque a idéia não me acudiu - respondeu Dantés.
            - Porque tem tal horror instintivo a semelhante crime, tal horror que nem sequer pensou nele - prosseguiu o velhote.
            - Porque nas coisas simples e permitidas os nossos apetites naturais advertem-nos de que nos não devemos desviar da linha do nosso direito. O tigre, que derrama sangue por natureza, porque é essa a sua condição, o seu destino, só precisa de uma coisa: que o faro o previna de que tem uma presa ao seu alcance.
Salta imediatamente sobre ela, cai-lhe em cima e despedaça-a. É o seu instinto e obedece-lhe. Mas ao homem, pelo contrário, repugna o sangue. Não são de modo algum as leis sociais que repudiam o
assassínio, são as leis naturais. 
            Dantés ficou contuso. Era, com efeito, a explicação do que estava se passando sem ele saber no seu espírito, ou antes, na sua alma, pois há pensamentos que vêm da cabeça e outros que vêm do coração.
            - E depois - continuou Faria –, desde que estou preso, há perto de doze anos, já revi em espírito todas as evasões célebres. Só raramente vi as evasões serem bem sucedidas. As evasões que resultam, as evasões coroadas de pleno êxito, são as evasões meditadas com cuidado e preparadas lentamente. Foi assim que o duque de Beaufort fugiu do Castelo de Vincennes, o abade Dubuquoi do Fort-l'evêque e Latude da Bastilha. Há ainda aquelas que se devem ao acaso; essas são as melhores. Acredite em mim: esperemos
uma oportunidade, e se essa oportunidade se apresentar, aproveitemo-la.
            - O senhor pode esperar - observou Dantés suspirando. - Esse longo trabalho era para si uma ocupação de todos os instantes e quando não linha o seu trabalho para se distrair tinha as suas esperanças para se confortar.
            - Bom, não me ocupava só disso.
            - Que mais fazia?
            - Escrevia ou estudava.
            - Davam-lhe papel, penas e tinta?
            - Não, mas eu os fazia - respondeu o abade.
            - O senhor... o senhor faz papel, penas e tinta?! - exclamou Dantés.
            - Faço.
            Dantés olhou para aquele homem com admiração. Simplesmente, tinha ainda dificuldade em acreditar no que ele dizia. Faria notou essa ligeira dúvida.
            - Quando for à minha cela - disse-lhe o abade –, lhe mostrarei uma obra completa, resultado dos pensamentos, das investigações e das reflexões de toda a minha vida, que meditei à sombra do Coliseu de Roma: ao pé da Coluna de S. Marcos, em Veneza; nas margens do Arno, em Florença, etc., e que estava quase certo de que um dia os meus carcereiros me deixariam tempo para executar entre as quatro paredes do Castelo de If. É um Tratado sobre a Possibilidade de Uma Monarquia Geral na Itália. Dará um grande
volume inquarto.
            - E como o escreveu?
            - Em duas camisas. Inventei um preparado que torna o pano liso e compacto como o pergaminho.- é portanto químico?
            - Um pouco. Conheci Lavoisier e Cabanis.
            - Mas para escrever semelhante obra precisou proceder a investigações históricas. Tinha livros para isso?
            - Em Roma, tinha cerca de cinco mil volumes na minha biblioteca. À força de os ler e reler, descobri que com cento e cinquenta obras bem escolhidas se obtém, senão o resumo completo dos conhecimentos humanos, pelo menos tudo o que é útil a um homem saber. Dediquei três anos da minha vida a ler e reler esses cento e cinquenta volumes, de forma que já os sabia pouco mais ou menos de cor quando fui preso. Na prisão, com um ligeiro esforço de memória, recordei-os por completo. Assim, poderia citar-lhe Tucídides, Xenofonte, Plutarco, Tito Lívio, Tácito, Estrada, Jornandes, Dante,  Montaigne, Shakespeare, Espinosa,
Maquiavel e Bossuet. E só lhe cito os mais importantes.
            - Mas então sabe várias línguas?
            - Falo cinco línguas vivas: alemão, francês, italiano, inglês e espanhol. Com o auxílio do grego antigo compreendo o grego moderno; simplesmente falo-o mal, mas estudo-o neste momento.
            - Estuda-o? - estranhou Dantés.
            - Sim. Fiz um vocabulário das palavras que conheço e as dispus, combinei-as, virei-as e revirei-as de forma a bastarem-me para exprimir o meu pensamento. Sei cerca de três mil palavras, em rigor tudo o que preciso, embora, segundo creio, os dicionários registrem cem mil. Bom, não serei eloquente, mas me farei
compreender às mil maravilhas e isso me basta.
            Cada vez mais atônito, Edmond começava a achar quase sobrenaturais as faculdades daquele homem estranho. Quis apanh -lo em falta em qualquer coisa e continuou:.
            - Mas se não lhe deram penas, como conseguiu escrever esse tratado tão volumoso?
            - Fi-las excelentes, a ponto de serem preferidas às penas vulgares se o material fosse conhecido, com as cartilagens das cabeças dessas enormes pescadas que às vezes nos dão nos dias de jejum. Por isso vejo sempre chegar com grande prazer as quartas-feiras, as sextas-feiras e os sábados, pois me dão a esperança de aumentar a minha provisão de penas, e os meus trabalhos históricos são, confesso-o, a minha mais agradável ocupação. Recuando no passado, esqueço o presente; percorrendo livre e independente a  História, esqueço-me de que estou preso.
            - Mas a tinta? - insistiu Dantés. - Como obtém a tinta?
            - Dantes, havia uma chaminé na minha cela - respondeu Faria. - Essa chaminé foi tapada algum tempo antes da minha chegada, sem dúvida, mas durante longos anos fizera-se fogo nela e todo o interior ficou coberto de fuligem. Dissolvo a fuligem numa porção do vinho que me dão todos os domingos e obtenho uma tinta excelente. Para escrever as notas especiais e que têm necessidade de dar nas vistas, pico os dedos e escrevo com o meu sangue.
            - E quando poderia ver tudo isso? - perguntou Dantés.
            - Quando quiser - respondeu Faria.
            - Oh, imediatamente! - exclamou o rapaz.
            - Nesse caso, acompanhe-me - disse o abade.
            E penetrou na galeria subterrânea, onde desapareceu. Dantés seguiu-o.


Capítulo XVII

A cela do abade


            Depois de passar curvado, mas mesmo assim com bastante facilidade, pela passagem subterrânea, Dantés chegou à extremidade oposta da galeria que  dava para a cela do abade. Aí, a passagem estreitava e oferecia apenas o espaço suficiente para um homem poder deslizar rastejando. A cela do abade era lajeada. Fora levantando uma das lajes colocadas no canto mais escuro que ele começara a laboriosa operação de que Dantés vira o fim.
            Mal entrou e se pôs de pé, o jovem examinou a cela com grande atenção. À primeira vista, não apresentava nada de especial.
            - Bom - disse o abade –, é apenas meio-dia e um quarto e ainda temos aí umas horas diante de nós.
            Dantés olhou à sua volta à procura do relógio em que o abade pudera ver as horas de forma tão precisa.
            - Veja esse raio de luz que entra pela minha janela - disse o abade - e veja depois as linhas que tracei na parede. Graças a essas linhas, que se combinam com o duplo movimento da Terra e a elipse que ela descreve à volta do Sol, sei mais exatamente a hora do que se tivesse um relógio, porque um relógio
desacerta-se, ao passo que o Sol e a Terra nunca se desacertam.
            Dantés nada compreendera desta explicação, pois sempre julgara, ao ver o Sol levantar-se detrás das montanhas e pôr-se no Mediterrâneo, que era ele que andava e não a Terra. O duplo movimento do Globo onde morava e de que no entanto se não apercebia parecia-lhe quase impossível. Em cada palavra do seu
interlocutor via mistérios da ciência tão interessantes de aprofundar como as minas de ouro e diamantes que visitara numa viagem que fizera ainda quase criança a Guzarate e a Golconda.
            - Vamos - disse ao abade –, tenho pressa de examinar os seus tesouros.
            O abade dirigiu-se para a chaminé, deslocou com o formão, que continuava a trazer na mão, a pedra que formava antes a lareira e que ocultava uma cavidade bastante profunda.
            Era nessa cavidade que se encontravam guardados todos os objetos de que falara a Dantés.
            - Que quer ver primeiro? - perguntou-lhe.
            - Mostre-me a sua grande obra sobre a monarquia na Itália.
            Faria tirou do precioso esconderijo três ou quatro rolos de pano, enrolados como folhas de papiro. Eram tiras de pano com cerca de quatro polegadas de largura e dezoito de cumprimento. Essas tiras, numeradas, estavam cobertas de uma escrita que Dantés pode ler, pois fora traçada na língua materna do abade, isto é, o italiano, idioma que, na sua qualidade de provençal, Dantés compreendia perfeitamente.
            - Veja - disse-lhe ele –, está tudo aqui. Há mais ou menos oito dias que escrevi a palavra “fim" no fundo da sexagésima oitava tira. Para as fazer rasguei duas das minhas camisas e todos os lenços que possuía. Se algum dia voltar a ser livre e houver em toda a Itália um editor que se atreva a editá-la a minha reputação está feita.
            - Claro, bem vejo - respondeu Dantés. - E agora mostre-me, peço-lhe, as penas com que escreveu esta obra.
            - Veja - disse Faria.
            E mostrou ao jovem uma hastezinha de seis polegadas de comprimento e da grossura do cabo de um pincel, na extremidade e à volta do qual se encontrava ligada por uma linha uma das tais cartilagens, ainda suja de tinta,  de que o abade falará a Dantés. Era alongada em bico e tendida como uma pena vulgar.
            Dantés examinou-a e procurou com a vista o instrumento com que pudera ser talhada tão corretamente.
            - Ah, sim! - disse Faria. - O canivete, não é verdade? É a minha obra-prima. Fi-lo, assim como esta faca, de um velho castiçal de ferro.
            O canivete cortava como uma navalha de barba. Quanto à faca, tinha a vantagem de poder servir ao mesmo tempo de faca e punhal.
            Dantés examinou os diversos objetos com a mesma atenção com que nas lojas de curiosidades de Marselha examinara noutros tempos, vezes, instrumentos executados por selvagens e trazidos dos mares
do Sul pelos comandantes de longo curso.
            - Quanto à tinta - disse Faria –, já sabe como procedo. Faço-a à medida que preciso dela.
            - Agora há ainda uma coisa que me admira - declarou Dantés - que os dias lhe tenham chegado para fazer tudo isso.
            - Também tinha as noites - respondeu Faria.
            - As noites? Não me diga que é da natureza dos gatos e vê claro durante a noite!
            - Não, mas Deus deu, ao homem a inteligência para o compensar da pobreza dos sentidos. Arranjei luz.
            - Como?
            - Retiro a gordura da carne que me dão, derreto-a e obtenho assim uma espécie de óleo grosso. Olhe, aqui tem a minha vela.
            E o abade mostrou a Dantés uma espécie de lampião semelhante aos da iluminação pública.
            - Mas o lume?
            - Aqui tem duas pedras e pano queimado.
            - E as acendalhas?
            - Simulei uma doença de pele e pedi enxofre, que me deram.
            Dantés pousou os objetos que tinha na mão em cima da mesa e baixou a cabeça, esmagado pela perseverança e pela força daquele espírito.
            - Mas isto não é tudo - continuou Faria. - Não devemos guardar todos os nossos tesouros num único esconderijo. Fechemos este.
            Empurraram a laje para o seu lugar. O abade espalhou um pouco de pô por cima dela e depois passou  o pé para fazer desaparecer qualquer vestígio de solução de continuidade, dirigiu-se para a cama e afastou-a.
            Atrás da cabeceira, oculto por uma pedra que o fechava com uma hermeticidade quase perfeita, havia um buraco, e nesse buraco uma escada de corda de vinte e cinco a trinta pés de comprimento.
            Dantés examinou-a. Era de uma solidez a toda a prova.
            - Quem lhe forneceu a corda necessária a este trabalho maravilhoso? - perguntou Dantés.
            - Primeiro, utilizei algumas camisas que possuía; depois, os lençóis da minha cama, que desfiei durante os três anos de cativeiro em Fenestrelle. Quando me transferiram para o Castelo de If encontrei maneira de trazer comigo esses fios e continuei aqui o trabalho.
            - E nunca descobriram que os lençóis da sua cama não tinham bainha? 
            - Voltava a fazê-la.
            - Com quê?
            - Com esta agulha.
            E o abade abriu um farrapo do seu vestuário e mostrou a Dantés uma haste comprida, aguçada e ainda enfiada, que trazia consigo.
            - Sim - continuou Faria –, primeiro pensei em descravar esses varões e fugir pela janela, que é um bocadinho mais larga do que a sua, como vê, e que teria alargado mais no momento da minha evasão. Mas descobri que a janela dava para o pátio interior e renunciei ao meu projeto por ser demasiado arriscado. No
entanto, conservei a escada para uma circunstância imprevista, para uma dessas evasões de que lhe falei e que o acaso proporciona.
            Embora parecesse examinar a escada, Dantés pensava desta vez em outra coisa. Atravessara-lhe o espírito uma idéia. Aquele homem tão inteligente, tão engenhoso, tão profundo, talvez visse claro nas trevas da sua própria desgraça, onde ele mesmo nunca conseguira distinguir fosse o que fosse.
            - Em que pensa? - perguntou-lhe o abade sorrindo e  tomando o absorvimento de Dantés por uma admiração levada ao mais alto grau.
            - Antes de mais nada penso numa coisa: na soma enorme de inteligência que teve de despender para atingir o fim que se propusera. Que não faria portanto livre?
            – Nada, talvez. Esse extravasamento do meu cérebro se evaporaria em futilidades. É necessário sermos tocados pela desgraça para escavarmos certas minas misteriosas ocultas na inteligência humana; é necessário haver pressão para fazer explodir a pólvora. O cativeiro concentrou num só ponto todas as minhas faculdades que pairavam por aqui e por aí. Entrechocaram-se num espaço acanhado e, como sabe, de choque das nuvens resulta a eletricidade da eletricidade o relâmpago e do relâmpago a luz.
            - Não, não sei nada - disse Dantés, abatido pela sua ignorância.
            - Parte das palavras que profere são para mim palavras vazias de sentido. Não calcula como é feliz por ser assim tão sábio!
            O abade sorriu.
            - Pensava em duas coisas, não era o que dizia há pouco?
            - Era.
            - E deu-me a conhecer a primeira. Qual é a segunda?
            - A segunda é que o senhor me contou a sua vida e não sabe nada a respeito da minha.
            - A sua vida, rapaz, é muito curta para encerrar acontecimentos de qualquer importância.
            - Encerra uma enorme desgraça - declarou Dantés. -  Uma desgraça que eu não merecia. E desejaria, para não voltar a blasfemar contra Deus como fiz algumas vezes, poder atribuir aos homens a minha desgraça.
            - Diz que está inocente do crime que lhe imputam?
            - Completamente inocente, juro sobre a cabeça das duas únicas pessoas que me são queridas: sobre a cabeça de meu pai e sobre a cabeça de Mercedes.
            - Vejamos - declarou o abade, fechando o esconderijo e empurrando a cama para o seu lugar –, conte-me a sua história.
            Dantés contou então o que chamava a sua história e que se limitava a uma viagem à índia e a duas ou três viagens ao Levante. Finalmente chegou à sua  última travessia, à morte do comandante Leclére, ao embrulho entregue por ele para o grande marechal, ao encontro com este, à carta entregue por ele e dirigida ao Sr. Noirtier e finalmente à sua chegada a Marselha, à sua festa de noivado, à sua prisão, o seu interrogatório, à sua detenção provisória no Palácio da Justiça e por último à sua prisão definitiva no Castelo de If.  Chegado a este ponto, Dantés não sabia mais nada, nem mesmo o tempo a que já estava preso. Terminado o relato, o abade refletiu profundamente.
            - Há - disse ao cabo de um instante - um axioma de direito de uma grande profundidade. Voltando ao que lhe dizia há pouco, a menos que os meus pensamentos provenham de uma organização falseada, à natureza humana repugna o crime. Contudo, a civilização moderna deu-nos necessidades, vícios, apetites fictícios, etc., que por vezes conseguem abafar os nossos bons instintos e conduzir-nos ao mal. Daí esta máxima: “Se quereis descobrir o culpado, começai por procurar aquele a quem o crime cometido possa ser útil!" A quem poderia ser útil o seu desaparecimento?
            - A ninguém, meu Deus! Eu era tão insignificante.
            - Não responda assim, porque à resposta falta ao mesmo tempo lógica e filosofia. Tudo é relativo, meu caro amigo, desde o rei que incomoda o seu futuro sucessor até  ao empregado que incomoda o supranumerário. Se o rei morre, o sucessor herda uma coroa; se o empregado morre, o supranumerário herda mil e duzentas libras de ordenado. As mil e duzentas libras de ordenado são a sua lista civil e são-lhe tão necessárias para viver como os doze milhões de um rei. Cada indivíduo, desde o mais baixo ao mais alto
grau da escala social, reúne à sua volta um pequeno mundo de interesses, com os seus turbilhões e os seus  tomos recurvos, como os mundos de Descartes. Simplesmente, esses mundos vão sempre aumentando à medida que sobem. Trata-se de uma espiral invertida que se sustenta na ponta devido a um jogo de equilíbrio. Mas voltemos ao seu mundo. Ia ser nomeado comandante do Pharaon, não ia?
            - Ia.
            - Ia casar com uma bonita moça, não ia?
            - Ia.
            - Alguém tinha interesse em que se não tomasse comandante do Pharaon? Alguém tinha interesse em que não casasse com Mercedes? Responda primeiro à primeira pergunta; a ordem é a chave de todos os problemas. Alguém tinha interesse em que se não tornasse comandante do Pharaon?
            - Não. Todos gostavam muito de mim a bordo. Se os marinheiros pudessem escolher um chefe, estou certo de que escolheriam a mim. Apenas um homem tinha um motivo para me querer mal; tempos antes discutira com ele e desafiara-o para um duelo que ele recusara.
            - Ora aí está! Como se chamava esse homem?
            - Danglars.
            - Que era a bordo?
            - Guarda-livros.
            - Se tivesse se tornado comandante o conservaria no seu lugar?
            - Não, se isso dependesse de mim, pois julgara notar algumas incorreções nas suas contas.
            - Muito bem. Agora outra pergunta: alguém assistiu à sua última conversa com o comandante Leclére?
            - Não, estivemos sós.
            - Mas alguém poderia ouvir a conversa?
            - Podia, porque a porta estava aberta. E até ... espere... sim, sim, Danglars passou precisamente no momento em que o comandante Leclére me entregava o embrulho destinado ao grande marechal.
            - Bom, estamos no bom caminho - declarou o abade. - Levou alguém a terra consigo quando aportou à ilha de Elba?
            - Ninguém.
            - Entregaram-lhe uma carta?
            - Entregaram, o grande marechal.
            - Que fez dessa carta?
            - Meti-a na carteira.
            - Tinha portanto a carteira consigo? Como é que o marinheiro podia trazer no bolso uma carteira destinada a guardar uma carta oficial?
            - Tem razão, a carteira estava a bordo.
            - Portanto, foi só a bordo que meteu a carta na carteira?
            - Foi.
            - De Porto Ferraio a bordo, como levou a carta?
            - Na mão.
            - Quando subiu a bordo do Pharaon todos viram que levava uma carta?
            - Sim.
            - Danglars como os outros?
            - Danglars como os outros.
            - Agora escute bem, reuna todas as suas recordações: lembra-se dos termos em que estava redigida a denúncia?
            - Oh, perfeitamente! Reli-a três vezes e todas as palavras me ficaram na memória.
            - Repita-ma.
            Dantés concentrou-se um instante.
            - Ei-la textualmente:
            O Sr. Procurador régio é avisado por um amigo do trono e da religião de que um tal Edmond Dantés, imediato do navio Pharaon chegado esta manhã de Esmirna depois de escalar Nápoles e Porto Ferraio, foi encarregado por Murat de entregar uma carta ao usurpador e pelo usurpador de entregar outra carta ao comitê bonapartista de Paris.
            Ter-se-á a prova do seu crime prendendo-o, pois encontrar-se-á essa carta com ele ou em casa do pai, ou no seu camarote a bordo do Pharaon.
            O abade encolheu os ombros.
            - É claro como a água - observou. - Só um homem dotado de um coração muito ingênuo e muito bom, como você, não adivinharia imediatamente a tramóia. 
            - Acha? - perguntou Dantés. - Oh, seria uma grande infâmia!
            - Como era a letra habitual de Danglars?
            - Uma bonita letra cursiva.
            - E a da carta anônima?
            - Inclinada para trás.
            O abade sorriu.
            - Disfarçada, não é verdade?
            - Muito perfeita para ser disfarçada.
            - Um momento.
            Pegou na pena, ou antes, no que chamava assim, molhou-a na tinta e escreveu com a mão esquerda, num pano preparado para o efeito, as duas ou três primeiras linhas da denúncia.
            Dantés recuou e olhou quase com terror o abade.
            - Oh, é espantoso como essa letra se parece com a outra! - exclamou.
            - Porque a denúncia foi escrita com a mão esquerda. Observei uma coisa - continuou o abade.
            - Qual?
            - Todas as letras traçadas com a mão direita são diferentes, todas as letras traçadas com a mão esquerda assemelham-se.
            - Portanto, já viu tudo, já adivinhou tudo?
            - Continuamos?
            - Oh, sim, sim!
            - Passemos à segunda pergunta.
            - Às ordens.
            - Alguém estava interessado em que você não casasse com Mercedes?
            - Sim! Um rapaz que a amava: Fernand.
            - Não é um nome espanhol?
            - Ele era catalão.
            - Acha que ele era capaz de escrever a carta?
            - Não! Esse se limitaria a dar-me uma facada.
            - Claro, está na natureza espanhola: um assassínio, sim; uma covardia, não.
            - De resto - continuou Dantés –, ignorava todos os pormenores consignados na denúncia.
            - Você não os revelou a ninguém?
            - A ninguém.
            - Nem mesmo à sua amante?
            - Nem mesmo à minha noiva.
            - Foi Danglars.
            - Oh, agora tenho certeza disso!
            - Espere... Danglars conhecia Fernand?
            - Não... Sim... Recordo-me...
            - De quê?
            - Na antevéspera do meu casamento viu-os sentados juntos em uma mesa debaixo do caramachão do Tio Pamphile. Danglars estava com ar amistoso e brincalhão e Fernand pálido e nervoso.
            - Estavam sozinhos?
            - Não, tinham consigo um terceiro companheiro, muito meu conhecido, que sem dúvida se juntara a eles, um alfaiate chamado Caderousse. Mas este estava já bêbado. Espere... espere...Como não me lembrei disto? Junto da mesa onde bebiam encontrava-se um tinteiro, papel e penas...
            Dantés levou a mão à testa e exclamou:
            - Oh, os infames, os infames!
            - Quer saber mais alguma coisa? - perguntou o abade rindo.
            - Quero, claro que quero! Uma vez que o senhor aprofunda tudo, vê claro em todas as coisas, quero saber por que motivo só fui interrogado uma vez, porque não me deram juízes e como fui condenado sem julgamento.
            - Oh, isso é um pouco mais grave! - exclamou o abade. - A justiça tem escaninhos sombrios e misteriosos em que é difícil penetrar. O que fizemos até  aqui relativamente aos seus dois amigos não
passou de uma brincadeira de crianças. A esse respeito, terá de me dar indicações mais precisas.
            - Pronto, interrogue-me, pois na verdade o senhor vê mais claro na minha vida do que eu próprio.
            - Quem o interrogou? Foi o procurador régio, o substituto ou o juiz de instrução?
            - Foi o substituto.
            - Era novo ou velho?
            - Novo: vinte e sete ou vinte e oito anos.
            - Bom, ainda não corrompido, mas já ambicioso - comentou o abade.
            - Quais foram as suas maneiras para consigo?
            - Mais afáveis do que severas.
            - Contou-lhe tudo?
            - Tudo.
            - E as suas maneiras mudaram no decurso do interrogatório?
            - Alteraram-se apenas por um instante, quando leu a carta que me comprometia. Pareceu acabrunhado com a minha desgraça.
            - Com a sua desgraça?
            - Sim.
            - Tem certeza de que era a sua desgraça que o preocupava?
            - Pelo menos deu-me uma grande prova da sua simpatia.
            - Qual?
            - Queimou a única peça que me podia comprometer.
            - Qual? A denúncia?
            - Não, a carta.
            - Tem a certeza?
            - O fez diante de mim.
            - Estranho... Esse homem poderia ser maior celerado do que você imagina.
            - Palavra de honra que está me assustando! - exclamou Dantés. - Estará o mundo povoado de tigres e crocodilos?
            - Está. Simplesmente os tigres e os crocodilos de dois pés são mais perigosos do que os outros.
            - Continuemos, continuemos.
            - Com muito gosto. Queimou a carta, diz você?
            - Sim, dizendo-me: “Como vê, só existe esta prova contra você e eu destruo-a." - Essa conduta é demasiado sublime para ser natural.
            - Parece-lhe? 
            - Tenho certeza. A quem era endereçada a carta?
            - Ao Sr. Noirtier, Rua Coq-Héron, nº  13, em Paris.
            - Pode presumir que o seu substituto tivesse algum interesse em que a carta desaparecesse?
            - Talvez: porque me fez prometer duas ou três vezes, no meu interesse, dizia ele, não falar a ninguém na carta, e obrigou-me a jurar que não pronunciaria o nome inscrito no endereço.
            - Noirtier... - repetiu o abade. - Noirtier... Conheci um Noirtier na corte da antiga rainha da Etrúria, um Noirtier que fora girondino durante a Revolução. Como se chamava o seu substituto?
            - Villefort.
            O abade desatou a r ir.
            Dantés olhou-o estupefato.
            - Que tem o senhor? - perguntou.
            - Vê esse raio de luz? - inquiriu o abade.
            - Vejo.
            - Pois bem, agora é tudo mais claro para mim do que esse raio transparente e luminoso. Pobre criança, pobre rapaz! E esse magistrado foi bom para você?
            - Foi.
            - Esse digno substituto queimou, destruiu a carta?
            - Sim.
            - Esse honesto fornecedor do carrasco obrigou-o a jurar que nunca mais pronunciaria o nome de Noirtier?
            - Obrigou.
            - Esse Noirtier, pobre cego, sabe quem era esse Noirtier? Esse Noirtier era o pai dele!
            Um raio que tivesse caído aos pés de Dantés e cavado um abismo no fundo do qual se abrisse o Inferno, teria produzido efeito menos rápido, menos elétrico, menos esmagador, do que aquelas palavras inesperadas. Levantou-se e agarrou a cabeça com as mãos, como se quisesse impedi-la de rebentar.
            - Seu pai! Seu pai! - gritou.
            - Sim, seu pai, que se chama Noirtier de Villefort - acrescentou o abade.
            Então uma luz fulgurante atravessou o cérebro do prisioneiro e tudo o que até  ali lhe parecera obscuro foi de súbito iluminado por uma claridade deslumbrante. A perguntas de Villefort durante o interrogatório, a carta destruída, o juramento exigido, a voz quase suplicante do magistrado que, em vez de ameaçar, parecia implorar, tudo lhe veio à memória. Soltou um grito e cambaleou um instante como um homem ébrio. Depois, correu para a abertura que conduzia da cela do abade à sua dizendo:
            - Oh, preciso estar só para pensar em tudo isso!
            Mal chegou à sua masmorra atirou-se para cima da cama, onde o carcereiro o encontrou à tardinha, sentado, de olhos fixos e as feições contraídas, imóvel e mudo como uma estátua.
            Durante as horas de meditação que entretanto tinham passado como segundos tomara uma terrível resolução e fizera um formidável juramento.
            Uma voz arrancou Dantés ao seu devaneio; a do abade Faria que, tendo recebido por sua vez a visita do carcereiro, vinha convidar Dantés para jantar com ele. A sua qualidade de louco reconhecido e sobretudo de louco divertido valia ao velho prisioneiro alguns privilégios, como o de receber pão um pouco mais branco e uma garrafinha de vinho no domingo. Ora era justamente domingo e o abade vinha convidar o seu jovem
companheiro a compartilhar o seu pão e o seu vinho.
            Dantés seguiu-o. Todas as linhas do seu rosto se tinham recomposto e retomado o seu lugar habitual, mas com uma rigidez e uma firmeza, se assim se pode dizer, que denotavam ter tomado uma resolução. O abade olhou-o fixamente.
            - Estou aborrecido por te-lo ajudado nas suas investigações e por ter dito o que disse - confessou.
            - Porquê? - perguntou Dantés.
            - Porque lhe infiltrei no coração um sentimento que lá não havia: a vingança.
            Dantés sorriu.
            - Falemos de outra coisa - pediu.
            O abade olhou-o mais um instante e abanou tristemente a cabeça. Depois, como lhe pedira Dantés falou de outra coisa. O velho prisioneiro era um desses homens cuja conversação, como a das pessoas que muito sofreram, continha numerosos ensinamentos e encerrava sempre um interesse sempre renovado. Mas como não era egoísta, aquele infeliz nunca falava das suas desgraças.
            Dantés escutava todas as suas palavras com admiração. Umas correspondiam a idéias que já possuía e a conhecimentos que faziam parte da sua condição de marinheiro, mas outras referiam-se a coisas desconhecidas e, como as auroras boreais que iluminam os navegadores nas latitudes austrais, mostravam ao jovem paisagens e horizontes novos iluminados por clarões fantásticos. Dantés compreendeu o prazer que experimentaria uma pessoa inteligente em acompanhar aquele espírito elevado nas alturas morais, filosóficas ou sociais em que tinha o hábito de se lançar.
            - Devia ensinar-me um bocadinho do que sabe - declarou Dantés -, quanto mais não fosse para não se aborrecer comigo. Parece-me agora que deve preferir o isolamento a um companheiro sem educação nem cultura como eu. Se concordar com o que lhe peço, comprometo-me a nunca mais lhe falar de fugir.
            O abade sorriu.
            - Infelizmente, meu filho, a ciência humana é muito limitada e depois de lhe ensinar as matemáticas, a física, a história e as três ou quatro línguas vivas que falo, saberia tanto como eu. Ora toda esta ciência não levaria mais de dois anos a passar do meu espírito para o seu.
            - Dois anos! - exclamou Dantés. - Acha que poderia aprender todas essas coisas em dois anos?
            - Na sua aplicação, não; nos seus princípios, sim. Aprender não é saber. Há os sabichões e os sábios. Uns são fruto da memória, os outros da filosofia.
            - Mas não se pode aprender a filosofia?
            - A filosofia não se aprende; a filosofia é a reunião das ciências adquiridas com o talento que as aplica. A filosofia é a nuvem deslumbrante em que Cristo pousou o pé para subir ao Céu.
            - Vejamos, o que me ensinará primeiro? - perguntou Dantés. Tenho pressa de começar, sede de ciência.
            - Tudo! - respondeu o abade.
            Com efeito, logo naquela noite os dois prisioneiros estabeleceram um plano de educação que começaram a executar no dia seguinte. Dantés possuía uma memória prodigiosa e uma facilidade de
concepção extrema. A disposição matemática do seu espírito habilitava-o a compreender tudo através do cálculo, enquanto a poesia do marinheiro corrigia tudo o que pudesse haver de excessivamente material na demonstração, reduzida à secura dos números ou à retidão das linhas. Sabia já, aliás, o italiano e um bocadinho de grego moderno, que aprendera nas suas viagens ao Oriente. Com estas duas línguas, não tardou a compreender sem demora o mecanismo de todas as outras, e ao cabo de seis meses começava a falar espanhol, inglês e alemão.
            Como dissera ao abade Faria. Quer porque a distração que lhe proporcionava o estudo substituísse nele a ânsia da liberdade, quer porque fosse, como já vimos rígido observador da sua palavra, nunca falava de fugir e os dias passavam para ele rápidos e instrutivos. Passado um ano, era outro homem.
            Quanto ao abade Faria, Dantés notava que, apesar da distração que a sua presença trouxera ao seu cativeiro, entristecia de dia para dia. Uma idéia pertinaz e constante parecia assediar-lhe o espírito. Caía em profundos alheamentos, suspirava involuntariamente, levantava-se de súbito, cruzava os braços e passeava sombrio à volta da cela.
            Um dia parou de repente no meio de um desses passeios centenas de vezes repetidos que fazia à roda da cela e exclamou:
            - Ah, se não houvesse sentinela!...
            - Só haverá sentinela se o senhor quiser - observou Dantés, que lhe seguira o pensamento através da caixa craniana como através de um cristal.
            - Já lhe disse que me repugna um assassínio.
            - E no entanto esse assassínio, se fosse cometido, sê-lo-ia pelo instinto da nossa conservação, por um sentimento de defesa pessoal.
            - Não importa, não o cometeria.
            - Mas em todo o caso pensa nele?
            - Sem cessar, sem cessar - murmurou o abade.
            - E descobriu um meio, não descobriu? - disse vivamente Dantés.
            - Descobri, se fosse possível pôr na galeria uma sentinela cega e surda.
            - Será cega e surda! - respondeu o rapaz, num tom resoluto que assustou o abade.
            - Não, não! - gritou. - Impossível.
            Dantés quis levá-lo a falar mais a tal respeito, mas o abade abanou a cabeça e recusou.
            Passaram três meses.
            - Você é forte? - perguntou um dia o abade a Dantés.
            Sem responder, Dantés pegou no formão, torceu-o como uma ferradura e endireitou-o.
            - Seria capaz de se comprometer a só matar a sentinela em último caso? 
            - Seria, palavra de honra.
            - Então - disse o abade –, poderemos executar o nosso projeto.
            - De quanto tempo precisaremos para o pôr em prática?
            - De um ano, pelo menos.
            - Quando começamos a trabalhar?
            - Imediatamente.
            - Está vendo? Com isso tudo já perdemos um ano! - exclamou Dantés.
            - Acha que o perdemos? - perguntou o abade.
            - Oh, perdão, perdão! - desculpou-se Edmond, corando.
            - Caluda! - atalhou o abade. - O homem nunca passa de um homem, e você é ainda um dos melhores que conheci. Veja, aqui está o meu plano.
            O abade mostrou então a Dantés um desenho que fizera: era a planta da sua cela, da cela de Dantés e da galeria que ligava uma à outra. A meio da galeria abrira uma passagem estreita semelhante às que se usavam nas minas. Essa passagem serviria para os dois prisioneiros se deslocarem debaixo da galeria
onde passeava a sentinela. Uma vez chegados aí, praticariam uma grande escavação e soltariam uma das lajes que formavam o pavimento da galeria. Em dado momento, a laje se abateria debaixo do peso do
soldado, que desapareceria engolido pela escavação. Dantés se precipitaria sobre ele no momento em que, ainda aturdido da queda, o soldado não poderia se defender, o amarraria, amordaçaria, então ambos passariam por uma das janelas da galeria, desceriam ao longo da muralha exterior com o auxílio da escada de corda e fugiriam.
            Dantés bateu palmas e os seus olhos cintilaram de alegria. O plano era tão simples que devia dar certo.
            Os mineiros deitaram mãos à obra no mesmo dia, com tanto mais ardor quanto é certo o trabalho suceder a um longo repouso e, segundo todas as probabilidades, não ser mais do que a continuação do pensamento íntimo e secreto de cada um.
            Nada os interrompia exceto a hora a que ambos eram forçados a regressar às suas celas para receber a visita do carcereiro. Aliás, tinham adquirido o hábito de distinguir, pelo ruído imperceptível dos passos, o momento em que o homem descia e nunca nem um, nem outro fora apanhado de surpresa. A terra que
extraíam da nova galeria, e que acabaria por encher a antiga, deitavam-na pouco a pouco e com inauditas precauções por uma ou outra das duas janelas da cela de Dantés ou da cela de Faria. Pulverizam-na com cuidado e o vento da noite levava-a para longe sem deixar vestígios.
            Dedicaram mais de um ano a este trabalho executado com um escopo, uma faca e uma alavanca de madeira como únicos instrumentos. Durante esse ano, e sem deixarem de trabalhar, Faria continuou a instruir Dantés, falando-lhe ora numa língua ora noutra, ensinando-lhe a história das nações e dos grandes homens que deixavam de vez em quando atrás de si um desses rastros luminosos chamados glôria. O abade, homem do mundo e da alta sociedade, tinha além disso, nas suas maneiras, uma espécie de majestade melancólica de que Dantés, graças ao espírito de assimilação de que a natureza o dotara, soube extrair a polidez elegante que lhe faltava e os modos aristocráticos que habitualmente só se adquirem no convívio com as classes
elevadas ou no contato com homens superiores. 
            Ao cabo de quinze meses o buraco estava aberto. A escavação era feita por baixo da galeria. Ouvia-se passar e repassar a sentinela, e os dois trabalhadores, forçados a esperar uma noite escura e sem luar para tomar a evasão ainda mais segura, só tinham um receio: que o chão, demasiado delgado, abatesse por
si mesmo debaixo dos pés do soldado. Obviou-se a esse inconveniente colocando como suporte uma espécie de vipazinha encontrada nos alicerces. Dantés estava ocupado a colocá-la quando ouviu de súbito o abade Faria, que ficara na cela do rapaz, onde se ocupava por seu turno a aguçar uma cavilha destinada a segurar a escada de corda, chamá-lo em tom angustiado. Dantés regressou rapidamente e deu com o abade de pé no meio da cela, pálido, com a testa coberta de suor e as mãos crispadas.
            - Oh, meu Deus! - gritou Dantés. - Que aconteceu, que tem o senhor?
            - Depressa, depressa! - atalhou o abade. - Escute.
            Dantés olhou o rosto lívido de Faria, os seus olhos rodeados por um círculo azulado, os seus lábios brancos e os seus cabelos eriçados, e ficou tão impressionado que deixou cair no chão o escopo que tinha na mão.
            - Mas que se passa? - gritou Edmond.
            - Estou perdido! - respondeu o abade. - Ouça-me. Vou ser atacado por um mal terrível, talvez mortal. O acesso aproxima-se, sinto-o. Já uma vez me atacou no ano anterior à minha prisão. Para este mal só há um remédio, o que lhe vou dizer. Corra depressa à minha cela e retire o pé da cama. O pé é oco e encontrará  dentro dele um frasquinho de cristal meio cheio de um licor vermelho. Traga-o. Ou antes, não, não poderia ser
surpreendido aqui. Ajude-me a regressar à minha cela enquanto disponho ainda de algumas forças. Quem sabe o que acontecerá durante o tempo que durar o acesso?
            Sem perder a cabeça, apesar de ser enorme a desgraça que o atingia, Dantés desceu a galeria arrastando o seu infeliz companheiro atrás de si e conduziu-o, com infinita mágoa, até  à extremidade oposta. Logo que entrou na cela do abade deitou-o na cama.
            - Obrigado - agradeceu o abade, tremendo tanto como se acabasse de sair de água gelada. - O mal aproxima-se e vou cair em catalepsia. É possível que não faça nenhum movimento, que não solte nem um gemido, mas também é possível que espume, me retese e grite. Procure que não ouçam os meus gritos. Isso é importante, pois nesse caso talvez me mudassem de cela e ficaríamos separados para sempre. Quando me vir imóvel, frio e morto, assim dizer, somente nesse instante, note bem, me descerrar  os dentes com a faca e deitar na boca oito a dez gotas desse licor. Talvez depois volte a mim.
            - Talvez?! - gritou dolorosamente Dantés.
            - Socorro! Acudam-me! - gritou o abade. - Estou morrendo...
            O acesso foi tão súbito e tão violento que o pobre prisioneiro nem sequer teve tempo de acabar a frase começada. Passou-lhe uma nuvem pela testa, rápida e escura como as das tempestades no mar, a crise dilatou-lhe os olhos, torceu-lhe a boca e congestionou-lhe as faces. Agitou-se, espumou, gritou. Mas tal como ele próprio recomendara, Dantés abafou-lhe os gritos debaixo do cobertor. O ataque durou duas horas. Então, mais inerte do que uma massa, mais pálido e frio do que o mármore, mais quebrado do que uma cana calcada aos pés, caiu, retesou-se ainda numa derradeira convulsão e ficou lívido. 
            Edmond esperou que a morte aparente invadisse o corpo e gelasse até ao coração. Nessa altura; pegou na faca, introduziu a lâmina entre os dentes do abade, descerrou com infinito cuidado os maxilares contraídos, contou uma após outra dez gotas do licor vermelho e esperou.
            Passou uma hora sem que o velhote fizesse o mais pequeno movimento. Dantés receava ter agido demasiado tarde e olhava-o, com as mãos enterradas no cabelo. Por fim, surgiu uma leve coloração nas faces do abade, os seus olhos, que tinham permanecido constantemente abertos e  átonos, recuperaram a
expressão, saiu-lhe da boca um suspiro fraco e tez um movimento.
            - Salvo! Salvo! - gritou Dantés.
            O doente ainda não podia falar, mas estendeu com visível ansiedade a mão para a porta. Dantés escutou e ouviu os passos do carcereiro. Eram sete horas e Dantés nem tivera oportunidade de calcular o tempo.
            O rapaz saltou para a abertura, introduziu-se nela, recolocou a laje por cima da cabeça e regressou à sua cela.
            Um instante depois a porta abriu-se e o carcereiro encontrou, como de costume, o prisioneiro sentado na cama.
            Mas assim que ele virou costas, assim que o ruído dos seus passos desapareceu na galeria, Dantés, devorado pela inquietação, retomou, sem pensar em comer, o caminho que acabara de percorrer e,  levantando a laje com a cabeça voltou a entrar na cela do abade.
            Este recuperara os sentidos, mas continuava estendido, inerte e sem forças, na cama.
            - Não esperava tornar a vê-lo - disse a Dantés.
            - Porquê? - perguntou o rapaz. - Pensou que eu morreria?
            - Não, mas como está tudo pronto para a fuga contava que fugisse.
            O rubor da indignação coloriu as faces de Dantés.
            - Sem o senhor?! gritou. - Julgou-me realmente capaz disso?
            - Agora verifico que me enganei - declarou o doente. - Ah, estou muito fraco, muito quebrado, completamente exausto!
            - Coragem, as suas forças voltarão - animou-o Dantés, sentando-se junto da cama de Faria e pegando-lhe nas mãos. O abade abanou a cabeça.
            - Da última vez - disse - o ataque durou meia hora e depois dele tive fome e levantei-me sozinho. Hoje, não consigo mexer a perna nem o braço e tenho a cabeça nublada, o que prova um derramamento cerebral. À terceira vez ficarei inteiramente paralítico ou morrerei Ato contínuo.
            - Não, não, sossegue que não morrerá. Esse terceiro ataque, se o tiver, o encontrará livre. Nós o salvaremos como desta vez, e melhor do que desta vez, pois teremos todos os meios necessários para isso.
            - Meu amigo - perguntou o velho –, não se iluda. A crise que acaba de me atacar condenou-me a prisão perpétua: para fugir é necessário poder andar.
            - Pois bem, esperaremos oito dias, um mês, dois meses se for preciso. Entretanto, as suas forças voltarão. está tudo preparado para a nossa fuga e temos a liberdade de poder escolher a hora e o momento. No dia em que se sentir com forças suficientes para nadar, nesse dia poremos o nosso projeto em prática. 
            - Nunca mais nadarei - perguntou Faria. - Este braço está paralisado, não por um dia, mas sim para sempre. Levante-o você mesmo e veja o que pesa.
            O rapaz levantou o braço, que voltou a cair, insensível, e soltou um suspiro.
            - Está agora convencido, não é verdade, Edmond? - perguntou Faria. - Acredite que sei o que digo. Desde o meu primeiro ataque deste mal que não tenho deixado de refletir. Esperava-o,  trata-se de uma herança de família: o meu pai morreu na terceira crise e o meu avô também. O médico que me preparou este
licor, nem mais nem menos do que o famoso Cabanis, predisse-me o mesmo destino.
            - O médico enganou-se! - contrapós Dantés. - Quanto à sua paralisia, não me preocupa: colocarei-o nas costas e nadarei segurando-o.
            - Criança - disse o abade. - É marinheiro, é nadador, deve portanto saber que um homem carregado com semelhante fardo não daria cinquenta braçadas no mar. Deixe de se iludir com besteiras que num sequer enganam o seu excelente coração. Ficarei aqui até soar a hora da minha libertação, que só pode ser agora a da morte. Quanto a si, fuja, parta! É novo, desembaraçado e forte. Não se preocupe comigo, restituo-lhe a sua palavra.
            - Está bem - declarou Dantés. - está bem. Nesse caso, também ficarei.
            Em seguida, levantou-se e estendeu solenemente a mão por cima do velho.
            - Pelo sangue de Cristo, juro só o deixar depois da sua morte. Faria observou aquele jovem tão nobre, tão simples e tão digno e leu-lhe no rosto, animado pela expressão da mais pura dedicação, a sinceridade do seu afeto e a lealdade do seu juramento.
            - Seja - disse o doente. - Aceito, obrigado.
            Depois, segurando-lhe na mão:
            - É possível que seja recompensado por essa dedicação tão desinteressada - disse-lhe. - Agora, como eu não posso e você não quer fugir, devemos tapar o subterrâneo aberto por baixo da galeria. O soldado pode descobrir ao marchar, pela sonoridade dos seus passos, que o lugar está minado, chamar a atenção de um inspetor e então seríamos descobertos e separados. Encarregue-se dessa tarefa, em que infelizmente não posso ajudá-lo. Trabalhe toda a noite, se for preciso, e só volte amanhã de manhã depois da visita do carcereiro. Terei uma coisa importante para lhe dizer.
            Dantés pegou na mão do abade, que o tranquilizou com um sorriso, e saiu com a obediência e o respeito que votava ao seu velho amigo.


Capítulo XVIII

O tesouro


            Quando Dantés regressou no dia seguinte de manhã à cela do seu companheiro de cativeiro encontrou Faria sentado, com ar calmo.
            Debaixo do raio de sol que se insinuava através da janela estreita da cela,  segurava aberto na mão esquerda - a única, recordamos, cujo uso lhe restava - um bocado de papel ao qual o hábito de ser enrolado num delgado volume imprimira a forma de um cilindro rebelde a estender-se.
            O abade mostrou sem dizer nada o papel a Dantés.
            - Que é isto? - perguntou o rapaz.
            - Veja bem - disse o abade, sorrindo.
            - Por mais que olhe - perguntou Dantés - vejo apenas um papel semiqueimado em que estão traçados caracteres góticos com uma tinta estranha.
            - Este papel, meu amigo - disse Faria –, posso agora confessar-lhe tudo, porque já o pus à prova, este papel é o meu tesouro, do qual a partir de hoje lhe pertence metade.
            Um suor frio cobriu a testa de Dantés. Até  àquele dia e durante muito tempo evitara falar com Faria a respeito daquele tesouro, origem da acusação de loucura que pesava sobre o pobre abade. Com a sua delicadeza instintiva,  Edmond preferira não tocar nessa corda dolorosamente vibrante, e pela sua parte Faria calara-se.
            O rapaz tomara o silêncio do velho por um regresso à razão, mas agora, aquelas poucas palavras escapadas a Faria depois de uma crise tão penosa pareciam anunciar uma grave recaída de alienação
mental.
            - O seu tesouro? - balbuciou Dantés.
            Faria sorriu.
            - Sim - respondeu. - De todos os pontos de vista você é um nobre coração, Edmond, e compreendo pela sua palidez e pelo seu estremecimento o que se passa em si neste momento. Não, sossegue, não estou louco. O tesouro existe, Dantés, e se não me foi dado possuí-lo, você o terá. Ninguém quis ouvir nem acreditar porque me julgavam louco; mas você, que deve saber que não estou, ouça-me e acredite-me depois se quiser.
            “Valha-me Deus", disse Edmond para consigo, “recaiu! Só me faltava esta desgraça."
            E depois, em voz alta:
            - Meu amigo - disse a Faria –, o seu ataque talvez o tenha fatigado; não quer descansar um bocadinho? Amanhã, se quiser, ouvirei a sua história, mas hoje só desejo tratar de si. Aliás - continuou sorrindo –, temos assim tanta pressa de um tesouro?
            - Muita, Edmond! - respondeu o velho. - Quem sabe se amanhã ou depois de amanhã, talvez, não terei o terceiro ataque? Lembre-se de que então tudo estaria acabado! Sim, é verdade, tenho pensado muitas vezes com um prazer amargo nessas riquezas que fariam a fortuna de dez famílias e perdidas para esses homens que me perseguiram. Esta idéia servia-me de vingança e eu a saboreava lentamente, de noite, na minha masmorra, e no desespero do meu cativeiro. Mas agora que perdoei ao mundo graças a você, agora
que o vejo jovem e cheio de futuro, agora que penso em tudo o que pode resultar para si de felicidade depois de semelhante revelação, receio qualquer demora e temo não ter tempo de assegurar a um proprietário tão digno como você a posse de tantas riquezas ocultas.
            Edmond virou a cabeça suspirando.
            - Persiste na sua incredulidade, Edmond - prosseguiu Faria. - A minha  voz não o convenceu? Vejo que quer provas. Pois hem, leia este papel que ainda não mostrei a ninguém.
            - Amanhã, meu amigo - respondeu Edmond, a quem repugnava prestar-se à loucura do velho. - Julguei que tínhamos combinado só falar disso amanhã.
            - Falaremos amanhã, mas leia este papel hoje.
            “É melhor não irritá-lo", pensou Edmond.
            E pegando o papel, a que faltava metade, sem dúvida consumida pelo fogo em qualquer acidente, leu:
            Este tesouro, que pode ascender a dois de escudos romanos, no canto mais a da segunda abertura, o qual lego e cedo em propádeiro.
            25 de abril de 1498

            - Então? - perguntou Faria quando o rapaz terminou a leitura.
            - Mas - respondeu Dantés - só vejo aqui linhas truncadas, palavras sem sentido. Os caracteres estão interrompidos pela ação do tempo e são ininteligíveis.
            - Para você, meu amigo, que os lê pela primeira vez, mas não para mim que matei a cabeça a estudá-los durante muitas noites, reconstituí cada frase e completei cada pensamento.
            - E acredita ter descoberto esse sentido interrompido?
            - Estou certo disso, como você mesmo verificará. Mas primeiro ouça a história deste papel.
            - Silêncio! - exclamou Dantés. - Passos!... Aproximam-se...Vou-me embora... Adeus!
            E Dantés, feliz por escapar da história e da explicação que só serviriam para lhe confirmar a desgraça do amigo, deslizou como uma cobra pela estreita galeria, enquanto Faria, a quem o terror restituíra uma espécie de atividade, empurrava com o pé a laje e a cobria com uma esteira, a fim de ocultar à vista a solução de continuidade que não tivera tempo de fazer desaparecer.
            Era o governador que, tendo sabido pelo carcereiro do acidente de Faria, vinha assegurar-se pessoalmente da sua gravidade.
            Faria recebeu-o sentado, evitou qualquer gesto comprometedor e conseguiu ocultar ao governador a paralisia que já ferira de morte metade da sua pessoa. O seu receio era que o governador, compadecido dele, o quisesse meter numa cela mais saudável e o separasse assim do seu jovem companheiro. Felizmente isso não aconteceu e o governador retirou-se convencido de que o seu pobre louco, pelo qual experimentava no fundo do coração certa simpatia, tivera apenas uma ligeira indisposição.
            Entretanto, sentado na cama com a cabeça entre as mãos, Edmond procurava ordenar os seus pensamentos. Em Faria era tudo tão racional, tão grande e tão lógico desde que o conhecia que não podia compreender tão suprema sensatez sob todos os aspectos aliada ao desatino sob um único. Era Faria que estava enganado acerca do seu tesouro ou era toda a gente que estava enganada acerca de Faria?
            Dantés permaneceu na sua cela durante todo o dia, sem ousar voltar à do amigo. Procurava adiar assim o momento em que adquiriria a certeza de que o abade estava louco. Tal convicção seria horrível para ele.
            Mas para a noite, depois da hora da visita rotineira, Faria, não vendo aparecer o rapaz, tentou transpor o espaço que o separava dele. Edmond estremeceu ao ouvir os esforços dolorosos que fazia o velho para se arrastar: a perna estava inerte e só se podia ajudar com o braço. Edmond viu-se obrigado a puxá-lo para si,
porque de contrário jamais poderia sair sozinho pela estreita abertura que desembocava na cela de Dantés.
            - Estou aqui, impiedosamente encarniçado na sua perseguição - declarou com um sorriso radiante de benevolência. - Julgou que podia escapar à minha magnificência, mas enganou-se. Ora ouça.
            Edmond viu que não podia recuar. Ajudou o velho a sentar-se na cama e colocou-se junto dele no banquinho.
            - Como sabe - principiou o abade –, eu era o secretário, o familiar, o amigo do cardeal Spada, o último dos príncipes deste nome. Devo a esse digno fidalgo toda a felicidade que tive nesta vida. Não era rico, embora as riquezas da sua família fossem proverbiais e eu tenha ouvido dizer: “Rico como um Spada." Mas
ele, como a voz pública, não tinha nada em que basear essa fama de opulência. O seu palácio foi o seu paraíso. Eduquei-lhe os sobrinhos, que morreram, e quando ficou só no mundo restituí-lhe, por meio de uma submissão absoluta aos seus desejos, tudo o que fizera por mim havia dez anos.
            " A casa do cardeal em breve deixou de ter segredos para mim. Vi muitas vezes Sua Eminência trabalhar, compulsar livros antigos e remexer avidamente na poeira dos manuscritos de família. Um dia, quando lhe censurava as suas vigílias inúteis e a espécie de abatimento que se lhes seguia, olhou-me sorrindo amargamente e abriu-me um livro com a história da cidade de Roma. Aí, no vigésimo capítulo, que tratava da vida do Papa Alexandre VI, havia as seguintes linhas que nunca mais pude esquecer: As grandes guerras da Romanha estavam terminadas. César Bórgia, que concluíra a sua conquista, necessitava de dinheiro para comprar a Itália toda inteira. O papa necessitava igualmente de dinheiro para acabar com Luís XII, rei de França, ainda terrível apesar dos seus últimos reveses. Impunha-se portanto fazer uma boa especulação, o que era difícil nesta pobre Itália enfraquecida."
            " Sua Santidade teve então uma idéia: resolveu nomear dois cardeais. Escolhendo duas das grandes personagens de Roma, dois ricos sobretudo, eis o que lucrava o Santo Padre com a especulação: antes de mais nada, podia vender os altos cargos e os empregos magníficos que os dois cardeais possuíssem; além disso, podia contar vender por preço vantajosíssimo os dois chapéus."
            " a especulação tinha ainda uma terceira parte, que em breve aparecerá. O papa e César Bórgia arranjaram primeiro os dois futuros cardeais: Jean Rospigliosi, que só por si detinha quatro das mais
altas dignidades da Santa Sé, e César Spada, um dos mais nobres e ricos romanos. Tanto um como outro pressentiam o preço de semelhante favor do papa, mas eram ambiciosos...  Arranjados os cardeais, César não tardou a encontrar compradores para os seus cargos.
            "Daí resultou que Rospigliosi e Spada pagaram para ser cardeais e que outros oito pagaram para ser o que eram anteriormente os dois novos cardeais. Deste modo, entraram oitocentos mil escudos nos cofres dos especuladores.
            - Passemos à última parte da especulação, que já é tempo. Depois de cumular de lisonjas Rospigliosi e Spada e de lhes conferir as insígnias do cardinalato, o papa, certo de que para liquidarem a dívida não fictícia do seu reconhecimento deviam ter reunido e realizado a sua fortuna para se fixarem em Roma - o papa e César Bórgia convidaram para jantar os dois cardeais.
            - O caso deu origem a um debate entre o Santo Padre e o filho. César achava que se podia utilizar um dos meios que tinha sempre à disposição dos seus amigos íntimos, a saber: em primeiro lugar a famosa chave com a qual se pedia a certas pessoas que abrissem determinado armário. A chave tinha uma pontinha de ferro, negligência do operário. Quando se fazia força para abrir o armário, cuja fechadura estava emperrada, a pessoa picava-se nessa pontinha e morria no dia seguinte. Havia também o anel de cabeça
de leão que César metia no dedo quando dava certos apertos de mão. O leão mordia a epiderme dessas mãos distinguidas e a mordedura era mortal ao cabo de vinte e quatro horas.
            " César propôs portanto ao pai quer que mandassem os cardeais abrir o armário, quer que dessem a cada um um cordial aperto de mão, mas Alexandre VI respondeu-lhe: Não olhemos a um jantar tratando-se desses excelentes cardeais Spada e Rospipliosi. Qualquer coisa me diz que recuperaremos esse dinheiro. Aliás, esqueceis, César, que uma indigestão se declara imediatamente, enquanto que uma picada ou uma mordedura só resultam passado um dia ou dois.
            - César rendeu-se a este raciocínio e por isso os cardeais foram convidados para Jantar.
            - Puseram. a mesa na vinha que o papa possuía perto de S. Pedro de Liens, encantadora habitação que os cardeais conheciam bem devido à sua fama.
            - Rospigliosi, deslumbrado com a sua nova dignidade, preparou o estômago e compôs a sua melhor expressão. Spada, homem prudente e que amava apenas o sobrinho, jovem capitão diante de quem se
abria um futuro risonho, pegou em papel e numa pena e fez o seu testamento.
            - Em seguida mandou dizer ao sobrinho que o esperasse nas imediações da vinha, mas parece que o criado o não encontrou.
            - Spada conhecia o hábito dos convites. Desde que o cristianismo, eminentemente civilizador, trouxera os seus progressos até Roma, já não era um centurião que vinha da parte do tirano dizer: César quer que morras, mas sim um legado a latere que, de boca sorridente, vinha comunicar da parte do papa: Sua
Santidade deseja que janteis com ele.
            - Spada partiu por volta das duas horas para a vinha de S. Pedro de Liens. O papa já o esperava. A primeira pessoa que Spada viu foi o sobrinho, ricamente vestido, muito gracioso, ao qual César Bórgia prodigalizava lisonjas. Spada empalideceu, e César, que lhe deitou um olhar cheio de ironia, deixou transparecer que tudo previra, que a cilada estava bem armada.
            - Jantaram. Spada só pudera perguntar ao sobrinho: "Recebestes o meu  recado?" O sobrinho respondeu que não e compreendeu perfeitamente o valor da pergunta. Mas era demasiado tarde, pois
acabava de beber um copo de excelente vinho que lhe servira o copeiro do papa. Spada viu no mesmo instante aproximar-se outra garrafa, de que lhe oferecerem liberalmente. Uma hora mais tarde, um médico declarava ambos envenenados por cogumelos venenosos. Spada morreu no limiar da vinha e o sobrinho expirou à sua porta fazendo um sinal que a mulher não compreendeu.
            - César e o papa apressaram-se a devassar a herança, a pretexto de procurarem os documentos dos defuntos. Mas a herança consistia nisto: um bocado de papel em que Spada escrevera: "Lego ao meu
sobrinho bem-amado as minhas arcas e os meus livros, entre os quais o meu belo breviário de cantos de ouro, desejando que guarde essa recordação do seu tio afetuoso."
            - Os herdeiros procuraram por toda a parte, admiraram o breviário, fizeram mão baixa nos móveis e admiraram-se que Spada, homem rico, fosse efetivamente o mais miserável dos tios. Tesouros, nenhum, exceto os tesouros de ciência encerrados na biblioteca e nos laboratórios.
            - Mais nada. César e o pai procuraram, remexeram e espionaram, mas não encontraram nada, ou pelo menos encontraram muito pouca coisa: talvez um milhar de escudos, peças de ourivesaria e aproximadamente outro tanto de dinheiro em prata. Mas o sobrinho tivera tempo de dizer à mulher, ao chegar: "Procura entre os papéis do meu tio; há um testamento autêntico."
            - Procuraram talvez ainda mais ativamente do que os augustos herdeiros, mas em vão. Tudo se resumia a dois palácios e uma vinha atrás do Palatino. Mas naquela época os bens imóveis possuíam um valor medíocre e por isso os dois palácios e a vinha ficaram na posse da família como indignos da capacidade do papa e do filho.
            - Os meses e os anos passaram Alexandre VI morreu envenenado, como sabe por engano; César, envenenado ao mesmo tempo que ele, mudou apenas de pele como uma serpente, e na nova o veneno deixou malhas semelhantes às que se vêem na pele dos tigres. Finalmente, obrigado a deixar Roma, viria a morrer obscuramente numa escaramuça noturna e quase esquecida da história.
            - Depois da morte do papa e do exílio do filho todos esperavam ver a família retomar a vida principesca que levava no tempo do cardeal Spada; mas não foi assim. Os Spadas mantiveram-se numa abastança duvidosa, um mistério eterno caiu sobre o sombrio caso e a opinião pública declarou que César, melhor político do que o pai, empalmara ao papa a fortuna dos dois cardeais. Digo dos dois porque o cardeal Rospigliosi, que não tomara qualquer precaução, foi completamente espoliado.
            Faria interrompeu-se, sorrindo, e observou:
            - Até  agora, isto não parece ter-lhe interessado muito, não é verdade?
            - Oh, meu amigo, parece-me, pelo contrário, que leio uma crônica cheia de interesse! - respondeu Dantés. - Continue, peço-lhe.
            - É o que vou fazer. A família habituou-se à obscuridade. Os anos passaram. Dos descendentes, uns foram soldados, outros diplomatas; estes sacerdotes, aqueles banqueiros; uns enriqueceram, outros acabaram de se arruinar. Chego ao último da família, àquele de quem fui secret rio, ao conde de Spada. 
            - Ouvira-o lamentar-se muitas vezes da desproporção da sua fortuna com a sua categoria e aconselhara-o a colocar os poucos bens que lhe restavam em rendas vitalícias. Ele seguiu o meu conselho e
duplicou assim os seus rendimentos.
            - O famoso breviário permanecera na família e era o conde de Spada quem o possuía. Tinham-no conservado de pais para filhos, pois a cláusula estranha do único testamento encontrado transformara-o
numa autêntica relíquia guardada em supersticiosa veneração na família. Era um livro iluminado com as mais belas figuras góticas, e tão pesado, de ouro, que um criado é que o levava sempre diante do cardeal nos dias de grande solenidade.
            - Perante documentos de todos os gêneros - títulos, contratos, pergaminhos, etc. - guardados nos arquivos da família e todos provenientes do cardeal envenenado, pus-me por meu turno, como vinte servidores, vinte intendentes e vinte secretários que me tinham precedido, a compulsar os maços formidáveis
constituídos por essa papelada. Mas, apesar da atividade e do cuidado com que me dedicava às minhas pesquisas, não encontrava absolutamente nada. No entanto. Lera e até  escrevera uma história exata e
quase efemerídica da família dos Bôrgias, com a única finalidade de me assegurar se a fortuna desses príncipes aumentara à data da morte do meu cardeal César Spada, mas apenas notei a adição dos bens do cardeal Rospijoíiosi, seu companheiro de infortúnio.
            - Estava portanto quase certo de que a herança não aproveitara nem aos Bórgias nem a família, mas sim ficara sem dono, como esses tesouros dos contos árabes que dormem no seio da terra sob a guarda de um gênio. Espiolhei, conferi e calculei milhares e milhares de vezes os rendimentos e as despesas da família
durante trezentos anos. Tudo foi inútil: eu fiquei na minha e o conde de Spada na sua miséria.
            - O meu patrão morreu. Da sua renda vitalícia excetuara os seus documentos de família, a sua biblioteca constituída por cinco mil volumes e o seu famoso breviário. Legou-me tudo isso, juntamente
com um milhar de escudos romanos que possuía em dinheiro, com a condição de mandar dizer missas anuais e de organizar uma árvore genealógica e uma história da sua casa, o que fiz escrupulosamente...
            - Tranquilize-se, meu caro Edmond, aproximamo-nos do fim.
            - Em 1807, um mês antes da minha prisão e quinze dias depois da morte do conde de Spada, em 25 de Dezembro - já vai compreender por que motivo esse dia memorável me ficou na memória -, relia pela milésima vez aqueles papéis, que arrumava, pois o palácio pertencia então a um estrangeiro e eu ia deixar Roma para me instalar em Florença, levando comigo uma dúzia de milhares de libras que possuía, a minha biblioteca e o meu famoso breviário, quando, cansado daquele estudo assíduo, maldisposto devido a um
almoço bastante pesado que comera, deixei cair a cabeça nos braços e adormeci. Eram três horas da tarde.
            - Acordei quando o relógio deu seis horas.
            - Ergui a cabeça e vi-me mergulhado na escuridão mais profunda. Toquei para que me trouxessem luz, mas ninguém apareceu. Resolvi então servir-me a mim mesmo. Seria, de resto, um hábito de filósofo que acabaria por adquirir. Segurei com uma das mãos uma vela já preparada e com outra procurei, à falta  de fôsforos que não havia na caixa, um papel que contava acender num resto de chama que dançava na lareira. Hesitava, porém receando, nas trevas pegar num papel precioso em vez de num papel inútil, quando me lembrei de ter visto no famoso breviário, que estava pousado na mesa a meu lado, um papel velho todo amarelecido da parte de cima, que parecia servir de sinal, e que atravessara os séculos conservado no seu lugar pela veneração dos herdeiros. Procurei às apalpadelas essa folha inútil, encontrei-a, torci-a e,  chegando-a à chama mortiça, acendi-a.
            - Mas como que por magia, à medida que o fogo subia debaixo dos meus dedos, vi saírem do papel branco e aparecerem na folho rostocteres amarelados. Então, o terror apoderou-se de mim. Apertei o papel nas mãos, abafei o fogo, acendi a vela diretamente na lareira, reabri com indizível emoção a carta amarrotada e reconheci que uma tinta misteriosa e simpática traçara aquelas letras, somente visíveis ao contato com o
calor forte. Pouco mais de um terço do papel fora consumido pela chama.
            Era o papel que você lera esta manhã. Releia-o, Dantés. Depois de o reler, completarei as frases interrompidas e o sentido incompleto. Faria calou-se e estendeu o papel a Dantés, que desta vez releu
avidamente as seguintes palavras traçadas com uma tinta ruça, semelhante à ferrugem:
           
            Hoje, 25 de Abril de 1498, ten
            Alexandre VI, e receando que, não
            deseje herdar de mim e me re
            e Bentivoglio, mortos envenenados,
            meu herdeiro universal, que es
            por o ter visitado comigo, isto é nas
            ilha de Monte-Cristo, tudo o que pos
            drarias, diamantes e jóias; que só
            pode ascender a dois mil
            encontrar  levantando a vigésima roch
            enseadazinha do leste, em linha recta. Foram praticadas
            nessas grutas; o tesouro está no canto mais a
            o qual tesouro lhe lego e cedo em prop
            único herdeiro.
            25 de Abril de 1498.

            CES

            - Agora - prosseguiu o abade - leia este outro papel. E apresentou a Dantés segunda folha com outros fragmentos de linhas.
            Dantés pegou-lhe e leu:
            do sido convidado para jantar por Sua Santidade
            contente com ter-me obrigado a pagar o chapéu,
            serve o destino dos cardeais Crapara
            declaro ao meu sobrinho Guido Spada,
            condi num lugar que conhece 
            gratas da pequena
            suo em lingotes ouro amoedado, pe
            eu conheço a existência desse tesouro, que
            hões de escudos romanos aproximadamente, e que
            a a partir da
            duas aberturas
            fastado da segunda,
            riedade plena como meu

            AR SPADA.

            Faria não despregava dele o olhar ardente.
            - E agora - declarou quando ouviu que Dantés chegara a última linha - junte os dois fragmentos e julgue por si mesmo.
            Dantés obedeceu. Uma vez juntos, os dois fragmentos davam o seguinte conjunto:
           
            Hoje, 25 de Abril de 1498 ten... do sido convidado para jantar por Sua Santidade... Alexandre VI e receando que não...contente com ter-me obrigado a pagar o chapéu ... deseje herdar de mim e me re... serve o destino dos cardeais Crapara.... e Bentivoglio, mortos envenenados... declaro ao meu sobrinho Cuido Spada...meu herdeiro universal que es... condi num lugar que conhece... por o ter visitado comigo, isto é nas... grutas da pequena ilha de Monte-Cristo tudo o que pos... suo em lingotes ouro amoedado pe... drarias diamantes e jóias; que só... eu conheço a existência desse tesouro que... pode ascender a dois mil...hões
de escudos romanos aproximadamente, e que... encontrará levantando a vigésima rocha... a a partir da... enseadazinha do leste, em linha reta. Foram praticadas... duas aberturas...nessas grutas: o tesouro está no canto mais a... fastado da segunda,... o qual tesouro lhe lego e cedo em prop... riedade plena como meu... único herdeiro.

            25 de Abril de 1498.

            CES... AR SPADA.

            - Então compreende agora? - perguntou Faria.
            - Era a declaração do cardeal Spada e o testamento procurado havia tanto tempo? - inquiriu Edmond, ainda incrédulo.
            - Sim, mil vezes sim!
            - Quem o reconstituiu desta maneira?
            - Eu, que, com o auxílio do fragmento restante, adivinhei o resto calculando o comprimento das linhas pelo do papel e penetrando no sentido oculto por meio do sentido visível, tal como nos orientamos num subterrâneo por um raio de luz vindo de cima.
            - E que fez quando julgou ter adquirido essa convicção?
            - Quis partir e parti imediatamente, levando comigo o princípio da minha grande obra sobre a unidade de um reino de Itália. Mas havia muito tempo que a Polícia imperial me trazia debaixo de olho, pois nesse tempo, ao contrário do  que pretendeu depois, quando lhe nasceu um filho, Napoleão queria a divisão das províncias. Por isso, a minha partida precipitada, por motivos que a Polícia estava longe de adivinhar quais
fossem, despertou as suas suspeitas e prenderam-me no momento em que embarcava para Piombino. Agora - continuou Faria, olhando Dantés com expressão quase paternal –, agora, meu amigo, sabe tanto como eu a este respeito. Se alguma vez fugirmos juntos, metade do meu tesouro é seu; se eu morrer aqui e você conseguir fugir sozinho, pertence-lhe na totalidade.
            - Mas - objetou Dantés, hesitante - esse tesouro não terá neste mundo algum possuidor mais legítimo do que nós?
            - Não, não, sossegue; a família extinguiu-se por completo. De resto, o último conde de Spada nomeou-me seu herdeiro. Legando-me o breviário simbôlico, legou-me o que ele continha. Não, não, sossegue: se conseguirmos deitar a mão a essa fortuna, poderemos gozá-la sem remorsos.
            - E o senhor diz que o tesouro vale...
            - Dois milhões de escudos romanos, mais ou menos treze milhões na nossa moeda.
            - Impossível! - exclamou Dantés, assustado com a enormidade da verba.
            - Impossível porquê? - prosseguiu o velho. - A família Spada era uma das mais antigas e poderosas famílias do século XV. De resto nesse tempo, em que não havia qualquer espécie de especulação ou indústria, as acumulações de ouro e jóias não eram raras, e ainda hoje há famílias romanas que morreram de fome ao pé de um milhão de diamantes e pedrarias transmitidos vinculativamente, por não lhe poderem tocar.
            Edmond julgava sonhar; pairava entre a incredulidade e a alegria.
            - Guardei durante tanto tempo este segredo para consigo - continuou Faria - primeiro para o experimentar e depois para o surpreender. Se nos tivéssemos evadido antes do meu ataque de catalepsia, lê-lo-ia conduzido a Monte-Cristo. Agora - acrescentou com um suspiro - será você quem lá me levará. Então,
Dantés, não me agradece?
            - Esse tesouro pertence-lhe, meu amigo - declarou Dantés pertence-lhe só a si, e eu não tenho nenhum direito a ele. Não sou seu parente.
            - Você é meu filho, Dantés! - gritou o velho. - Você é o filho do meu cativeiro, pois o meu estado condena-me ao celibato. Deus o enviou para confortar ao mesmo tempo o homem que não podia ser pai e o prisioneiro que não podia ser livre.
            E Faria estendeu o braço que lhe restava ao rapaz, que se lhe agarrou ao pescoço chorando.


Capítulo XIX


O terceiro ataque

            Agora que o tesouro que fora durante tanto tempo objeto das meditações do abade podia assegurar a felicidade futura daquele que Faria amava  realmente como filho, duplicara ainda de valor a seus olhos. Todos os dias se referia ao montante do tesouro e explicava a Dantés tudo o que com treze ou catorze milhões de fortuna um homem podia, nos tempos modernos, fazer de bem aos seus amigos. E então o rosto de Dantés ensombrava-se, pois vinha-lhe à memória o juramento de vingança que fizera e pensava pela sua parte quanto nos tempos modernos um homem com treze ou catorze milhões de fortuna podia também fazer de mal aos seus inimigos.
            O abade não conhecia a ilha de Monte-Cristo, mas Dantés conhecia-a. Passara muitas vezes diante dela, pois a ilha ficava situada a vinte e cinco milhas da Pianosa, entre a Côrsega e a ilha de Elba, e até    em cima uma vez. A ilha era, sempre fora e ainda é completamente deserta. Trata-se de um rochedo de forma quase cônica que parece ter sido trazido por qualquer cataclismo vulcânico do fundo do abismo à superfície do mar.
            Dantés traçava o mapa da ilha a Faria e Faria dava conselhos a Dantés acerca dos meios a empregar para encontrar o tesouro.
            Mas Dantés estava longe de ser tão entusiasta e sobretudo tão confiante como o velho. Claro que estava agora plenamente convencido de que Faria não se estava louco, e a forma como chegara à descoberta que levara a crer na sua loucura aumentava ainda mais a sua admiração por ele; mas também não podia acreditar que esse tesouro, supondo que tivesse existido, ainda existisse, e embora não visse o tesouro como uma quimera, via-o pelo menos como perdido.
            Entretanto, como se o destino quisesse tirar dos prisioneiros a sua última esperança e fazer-lhes compreender que estavam condenados a prisão perpétua, nova desgraça os atingiu: a galeria da beira-mar, que havia muito tempo ameaçava ruína, fora reconstruída. Tinham reparado os alicerces e tapado com
enormes blocos de rocha o buraco já meio entulhado por Dantés. Sem essa precaução que, recordemo-nos, fora sugerida ao rapaz pelo abade, o seu infortúnio teria sido ainda muito maior, pois descobririam a sua tentativa de evasão e sem dúvida os separariam. Uma nova porta, mais forte e inexorável do que as outras, teria se fechado sobre eles.
            - Como vê dizia o rapaz com suave tristeza a Faria –, Deus quer-me roubar até  o mérito do que o senhor chama ainda dedicação por si. Prometi-lhe ficar eternamente consigo e nada me impede agora de cumprir a minha promessa. O tesouro não será mais meu do que seu, pois nem um nem outro sairemos
daqui. De resto, o meu verdadeiro tesouro, meu amigo, não é o que me esperava debaixo das rochas enegrecidas de Monte-Cristo, mas sim a sua presença, o nosso convívio de cinco ou seis horas por dia, apesar dos nossos carcereiros; são os clarões de inteligência com que me iluminou o cérebro, as línguas vivas que me implantou na memória e que aí desabrocham com todas as suas ramificações filológicas. As
várias ciências que me tornou tão fáceis de aprender dada a profundidade do conhecimento que possui delas e a clareza de princípios a que as reduziu, é que constituem aquilo em que me fez rico e feliz. É esse o meu tesouro. Acredite no que lhe digo e conforme-se: tudo isso vale mais para mim do que toneladas de ouro e caixas de diamantes, mesmo que não fossem problemáticas como as nuvens que vemos de manhã pairar sobre o mar, que as pessoas tomam por terras firmes e que se evaporam, se volatizam e se desvanecem à medida que se aproximam delas.  Tê-lo junto a mim o maior tempo possível, ouvir a sua voz eloquente enriquecer o meu espírito, retemperar-me a alma, tornar todo o meu ser capaz de grandes e terríveis coisas se alguma vez for livre, enchê-lo tão bem que o desespero a que estava prestes a entregar-me quando o conheci não encontrou mais lugar em mim, é essa a minha fortuna. E uma fortuna nada quimérica, uma fortuna que lhe devo e que é bem real, uma fortuna que nem todos os soberanos da Terra, mesmo que fossem Césares Bórgias, conseguiriam me roubar.
                        Assim tiveram os dois infortunados, senão dias felizes, pelo menos dias que passaram com tanta rapidez como os que se seguiram. Faria, que durante tão longos anos guardara o segredo do tesouro, não se cansava agora de falar dele. Como previra, ficara paralítico do braço direito e da perna esquerda e perdera quase toda a esperança de os utilizar. Mas continuava a sonhar para o seu jovem companheiro uma
libertação ou uma evasão que lhe permitisse fruir o tesouro por ambos. Com receio de que a carta se  perdesse, obrigara Dantés a decorá-la, e Dantés sabia-a da primeira à última palavra. Destruíra então a segunda parte, pois assim, mesmo que alguém se apoderasse da primeira, não conseguiria adivinhar o seu verdadeiro sentido. Às vezes, Faria passava horas inteiras a dar instruções a Dantés, instruções que lhe
seriam úteis no dia da sua libertação. Uma vez livre, no dia, na hora, no minuto em que se visse liberto, só deveria ter um único pensamento: alcançar Monte-Cristo fosse como fosse e ficar sozinho, sob um pretexto que não desse margem a suspeitas, e uma vez lá, uma vez sozinho, procurar encontrar as grutas maravilhosas e revistar o local indicado. (O local indicado, recorde-se, era o canto mais afastado da segunda abertura.)
            Entretanto, as horas passavam, senão rápidas, pelo menos suportáveis. Como dissemos, Faria, sem ter recuperado o uso da mão e do pé, recuperara toda a lucidez da sua inteligência e, além dos  conhecimentos morais a que já nos referimos em pormenor, ensinara pouco a pouco ao seu jovem companheiro a arte paciente e sublime do prisioneiro, que de nada sabe fazer qualquer coisa. Estavam portanto sempre ocupados, Faria com medo de envelhecer, Dantés com medo de se recordar do seu passado quase extinto e que já só pairava no mais recôndito da sua memória como uma luz longínqua perdida na noite. Tudo corria assim como nessas existências onde o infortúnio nada perturbou e que se escoam maquinais e calmas sob o olhar da Providência.
            Mas sob essa calma superficial havia no coração do rapaz, e talvez também no do velho, muitos impulsos contidos, muitos suspiros abafados, que vinham de cima quando Faria ficava sozinho e Edmond regressava à sua cela.
            Uma noite, Edmond acordou sobressaltado, julgando ter ouvido chamar por si.
            Abriu os olhos e tentou traspassar a densidade das trevas. O seu nome, ou antes, uma voz gemebunda que procurava articular o seu nome, chegou-lhe aos ouvidos.
            Ergueu-se na cama, com o suor da angústia a cobrir-lhe a testa, e escutou. Não havia dúvida, os gemidos vinham da cela do companheiro.
            - Meu Deus! - murmurou Dantés. - Terá  ...?
            Afastou a cama, tirou a pedra, meteu pela galeria e chegou à extremidade oposta. A laje estava levantada.
            À luz da candeia informe e vacilante de que já falamos, Edmond viu o  velho pálido, ainda de pé, agarrado à cama. Tinha o rosto arrepanhado pelos horríveis sintomas que já conhecia e que tanto o tinham assustado quando os vira pela primeira vez.
            - Pronto, meu amigo! - disse Faria, resignado. - Compreende, não é verdade? Não preciso lhe ensinar mais nada!
            Edmond soltou um grito doloroso e, perdendo por completo a cabeça, correu para a porta gritando.
            - Socorro! Socorro!
            Faria teve ainda forças para o deter pelo braço.
            - Silêncio, ou estará perdido! - disse. - Pensemos apenas em você, meu amigo, em lhe tornar o seu cativeiro suportável ou a sua fuga possível. Precisaria de anos para refazer sozinho tudo o que fiz aqui, e que seria destruído imediatamente quando os nossos guardiões soubessem do nosso entendimento. De resto,
esteja tranquilo, meu amigo, a masmorra que vou deixar não ficará muito tempo vazia; outro desgraçado virá  ocupar o meu lugar. A esse aparecerá como um anjo salvador. Talvez seja jovem, forte e paciente como você e possa ajudá-lo na fuga, ao passo que eu a dificultaria. Deixar de ter um meio cadáver agarrado a si e a paralisar-lhe todos os movimentos. Decididamente, Deus faz enfim qualquer coisa por você: dá-lhe mais do que lhe tira e já é tempo de eu morrer.
            Edmond pode apenas juntar as mãos e gritar:
            - Oh, meu amigo, meu amigo, cale-se!
            Depois, recuperando a energia por um instante abalada por aquele golpe imprevisto e a coragem abatida pelas palavras do velho, disse:
            - Oh, se já o salvei uma vez, também o salvarei segunda!
            E levantou o pé da cama, donde tirou o frasco ainda um terço cheio de licor vermelho.
            - Veja, ainda resta alguma desta beberagem salvadora. Depressa, depressa, diga-me o que devo fazer desta vez. Há novas instruções? Fale meu amigo, eu o escuto.
            - Já não há esperança - respondeu Faria abanando a cabeça. - Mas não importa, Deus quer que o homem que criou no coração do qual enraizou tão profundamente o amor à vida faça tudo o que puder para conservar essa existência às vezes tão penosa e tão querida sempre.
            - Claro, claro! - exclamou Dantés. - E eu o salvarei, garanto-lhe!
            - Pois sim, experimente. O frio apodera-se de mim. Sinto o sangue afluir-me ao cérebro. Este terrível tremor que me faz bater os dentes e parece desconjuntar-me os ossos começa a sacudir-me todo o corpo. Dentro de cinco minutos o mal se manifestará  e dentro de um quarto de hora só restará de mim um cadáver.
            -Oh!-exclamou Dantés, com o coração pungido de dor.
            - Proceda como da primeira vez, só com a diferença de que não esperar  tanto tempo. Todas as fontes da vida se encontram já secas e a morte - continuou mostrando o braço e a perna paralisados - terá de se encarregar apenas de metade da sua tarefa. Se depois de me deitar doze gotas na boca, em vez de dez, vir que não volto a mim, deite o resto. Agora leve-me para a cama, porque já não consigo ficar de pé.
            Edmond tomou o velho nos braços e deitou-o na cama. 
            - Agora, amigo, única consolação da minha vida miserável - disse Faria –, você que o Céu me deu um pouco tarde, mas enfim que me deu, presente inestimável que lhe agradeço, no momento de nos separarmos para sempre desejo-lhe toda a felicidade, toda a prosperidade que merece. Meu filho, abençoo-o!
            O rapaz ajoelhou e encostou a cabeça à cama do velho.
            - Mas sobretudo, ouça bem o que lhe digo neste momento supremo: o tesouro dos Spadas existe. Deus permite-me que não haja mais para mim distância nem obstáculo. Vejo-o no fundo da segunda gruta; os meus olhos traspassam as profundezas da terra e ficam deslumbrados com tanta riqueza. Se conseguir fugir, lembre-se de que o pobre abade que todos julgavam louco não o era. Corra a Monte-Cristo, aproveite a nossa fortuna, aproveite-a pois já sofreu bastante.
            Um estremecimento violento interrompeu o velho. Dantés levantou a cabeça e viu que os olhos do abade se injetavam de vermelho; diria-se que uma onda de sangue acabava de lhe subir do peito à cabeça.
            - Adeus! Adeus! - murmurou o velho, apertando convulsivamente a mão do rapaz. - Adeus!
            - Oh, ainda não, ainda não! - gritou Dantés. - Não nos abandone, meu Deus, socorra-o... ajude-o... eu...
            - Silêncio! Silêncio! - murmurou o moribundo. - Que não nos separem se você conseguir me salvar!
            -Tem razão. Oh, sim, sim, esteja tranquilo que o salvarei!  De resto, embora sofra muito, parece sofrer menos do que da primeira vez.
            - Não se engane! Sofro menos porque há em mim menos força para sofrer. Na sua idade tem-se fé na vida, é privilégio da juventude crer e esperar. Mas os velhos vêem mais claramente a morte. Ei-la... vem aí... acabou-se... a vista foge... a razão abandona-me... A sua mão, Dantés!... Adeus!... Adeus!
            Erguendo-se num derradeiro esforço em que reuniu todas as suas faculdades:
            - Monte-Cristo! Não se esqueça de Monte-Cristo!
            E voltou a cair na cama.
            A crise foi terrível: membros contorcidos, pálpebras inchadas, uma espuma ensanguentada, um corpo sem movimentos, foi tudo o que restou naquele leito de dor em vez do ser inteligente que nele se deitara pouco antes.
            Dantés pegou a candeia e colocou-a na cabeceira da cama, numa pedra saliente e onde a sua luz trêmula iluminava com um reflexo estranho e fantástico aquele rosto descomposto e aquele corpo inerte e rígido.
            Com os olhos fixos, esperou intrepidamente o momento de administrar o remédio salvador.
            Quando julgou chegado esse momento, pegou na faca, descerrou os dentes do abade, que ofereceram menos resistência do que da primeira vez, contou uma após outra dez gotas e esperou. O frasco continha ainda pouco mais ou menos o dobro do que deitara.
            Esperou dez minutos, um quarto de hora, meia hora e nada mexeu. Trêmulo, com os cabelos eriçados e a testa gelada de suor, contava os segundos pelas pulsações do seu coração.
            Pensou então que era tempo de tentar a última experiência. Aproximou o  frasco dos lábios roxos de Faria e, sem necessidade de lhe descerrar os maxilares, que tinham ficado abertos, despejou lodo o licor que ele continha.
            O remédio produziu um efeito galvânico. Um tremor violento sacudiu os membros do velho, os seus olhos abriram-se com expressão assustadora, soltou um suspiro que mais parecia um grito e em seguida todo aquele corpo trêmulo voltou pouco a pouco à imobilidade.
            Somente os olhos permaneceram abertos.
            Passaram meia hora, uma hora, hora e meia. Durante esta hora e meia de angústia, Edmond, inclinado sobre o amigo com a mão no seu coração, sentiu sucessivamente aquele corpo arrefecer e as pulsações do coração, cada vez mais abafadas e profundas, extinguirem-se.
            Por fim, nada sobreviveu; o derradeiro batimento do coração cessou, o rosto enlivideceu e os olhos ficaram abertos, mas o olhar morreu.
            Eram seis horas da manhã, o Sol começava a romper e os seus raios mortiços invadiam a masmorra e faziam empalidecer a luz prestes a extinguir-se da candeia. Reflexos estranhos passavam pelo rosto do cadáver, dando-lhe de vez em quando aparências de vida. Enquanto durou aquela luta do dia e da noite, Dantés ainda pode duvidar; mas logo que o dia levou a melhor compreendeu que estava sozinho com um cadáver.
            Então, apoderou-se dele um terror profundo e invencível. Não se atreveu mais a apertar aquela mão que pendia fora da cama, nem ousou mais pausar os olhos naqueles olhos fixos e brancos que tentou várias vezes, mas inutilmente, fechar, e que se reabriam sempre. Apagou a lamparina, escondeu-a cuidadosamente
e fugiu, tendo o cuidado de colocar o melhor possível a laje por cima da cabeça.
            Aliás, era tempo, pois o carcereiro aproximava-se.
            Desta vez começou a sua visita por Dantés. Depois de sair da sua cela, dirigiu-se para a de Faria, a quem ia levar o café da manhã e roupa.
            Nada indicava no homem que tivesse conhecimento do que acontecera. Saiu.
            Dantés foi então dominado por uma indizível impaciência de saber o que se iria passar na cela do seu pobre amigo. Voltou portanto a entrar na galeria subterrânea e chegou a tempo de ouvir as exclamações do carcereiro, que pedia socorro.
            Não tardaram a entrar os outros carcereiros. Em seguida ouviram-se os passos pesados e regulares habituais dos soldados, mesmo fora do serviço. Atrás dos soldados chegou o governador.
            Edmond ouviu o ruído da cama ao sacudirem o cadáver. Ouviu também o governador ordenar que lhe jogassem água no rosto e depois, vendo que apesar disso o prisioneiro não voltava a si, mandara chamar o médico.
            O governador saiu. Aos ouvidos de Dantés chegaram algumas palavras de compaixão de mistura com risos de troça.
            - Pronto, pronto - dizia um –, o louco foi juntar-se aos seus tesouros. Boa viagem!
            - Com todos os seus milhões, nem sequer tem com que pagar a mortalha - dizia outro.
            - Oh, as mortalhas do Castelo de If não são caras - acrescentou terceira voz. 
            – Como se trata de um padre, talvez façam alguma despesa com ele - observou um dos primeiros interlocutores.
            - Nesse caso, terá as honras do saco.
            Edmond escutava, não perdia uma palavra, mas não compreendia grande coisa do que se dizia. As vozes não tardaram a extinguir-se e pareceu-lhe que os homens tinham deixado a cela.
            Contudo, não se atreveu a entrar; Podiam ter deixado algum carcereiro guardando o corpo.
            Manteve-se portanto calado, imóvel e contendo a respiração. Passada uma hora, aproximadamente, o silêncio foi quebrado por um ruído fraco, que foi aumentando.
            Era o governador que voltava, acompanhado do médico e de vários oficiais.
            Fez-se um momento de silêncio. Era evidente que o médico se aproximava da cama e examinava o cadáver. As perguntas não tardaram a começar.
            O médico descreveu a doença a que o prisioneiro sucumbira e declarou que estava morto. Perguntas e respostas sucediam-se com uma despreocupação que indignava Dantés. Parecia-lhe que todos deviam experimentar pelo pobre abade parte da atenção que lhe dedicava.
            - É para mim muito desagradável o que acaba de me anunciar - disse o governador, respondendo à certeza manifestada pelo médico de que o velho estava realmente morto. - Era um prisioneiro pacato, inofensivo, divertido com a sua loucura e sobretudo fácil de guardar.
            - Oh - acrescentou o carcereiro –, poderia até não o guardar por completo! Se deixaria ficar cinquenta anos aqui, garanto, sem procurar fazer uma única tentativa de evasão.
            - No entanto - prosseguiu o governador –, creio que seria conveniente apesar da sua convicção (não é que duvide da sua ciência, mas para salvaguardar a minha própria responsabilidade), assegurar-nos se o prisioneiro está realmente morto.
            Reinou um instante de silêncio absoluto durante o qual Dantés, sempre à escuta, deduziu que o médico examinava e palpava pela segunda vez o cadáver.
            - Pode ficar tranquilo - disse então o médico. - está morto, sou eu quem lhe garante.
            - Como sabe, senhor - insistiu o governador –, em casos semelhantes a este não nos contentamos com um simples exame. A despeito de todas as aparências, queira portanto concluir a sua missão cumprindo as formalidades prescritas na lei.
            - Mandem aquecer os ferros - determinou o médico. - Mas na verdade é uma precaução absolutamente inútil.
            A ordem de aquecer os ferros fez estremecer Dantés.
            Soaram passos apressados, ouviu-se ranger a porta, algumas idas e vindas interiores e pouco depois um dos carcereiros voltou e disse:
            - Aqui está o braseiro com um ferro.
            Reinou então um momento de silêncio e em seguida ouviu-se o rechinar das carnes que queimavam e cujo cheiro pesado e nauseabundo transpôs até  a parede atrás da qual Dantés escutava horrorizado. 
            Quando o cheiro a carne humana carbonizada lhe feriu as narinas, o suor brotou da testa do rapaz e este julgou ir desmaiar.
            - Como vê, senhor, está bem morto - declarou o médico. - Esta queimadura no calcanhar é decisiva. O pobre louco está curado da sua loucura e liberto do seu cativeiro.
            - Não se chamava Faria? - perguntou um dos oficiais que acompanhavam o governador.
            - Chamava e, segundo pretendia, tratava-se de um velho nome. Aliás, era muito culto e bastante cordato, até é em tudo o que não dissesse respeito ao seu tesouro. Mas quando se tratava deste, forçoso é reconhecê-lo, era intratável.
            - É aquilo a que chamamos monotonia - informou o médico. - Alguma vez tiveram razão de queixa dele? - perguntou o governador ao carcereiro encarregado de trazer a comida ao abade.
            - Nunca, Sr. Governador - respondeu o carcereiro. - Nunca por nunca ser! Pelo contrário: antes até  me divertia muito com as suas histórias, e um dia em que tinha a minha mulher doente deu-me uma receita que a curou.
            - Ah, ah!...-exclamou o médico. - Ignorava que tivesse nele um colega. Espero, Sr. Governador - acrescentou rindo –, que o trate em conformidade.
            - Claro, claro, esteja descansado que será delicadamente amortalhado no saco mais novo que conseguirmos arranjar. Está satisfeito?
            - Devemos cumprir essa última formalidade na sua presença, senhor? - perguntou um carcereiro.
            - Sem dúvida, mas andem; não posso ficar nesta cela durante todo o dia.
            Ouviram-se novas idas e vindas. Um instante depois chegou aos ouvidos de Dantés um ruído de
pano amarrotado, a cama rangeu nas molas, passos pesados como os de um homem que levanta um fardo soaram no lajedo e em seguida a cama rangeu de novo sob o peso que nele depositavam.
            - Esta noite - disse o governador.
            - Haverá missa? - perguntou um dos oficiais.
            - Impossível - respondeu o governador. - O capelão do castelo pediu-me ontem licença para fazer uma viagenzinha de oito dias a Hyêres e até  ele voltar não haverá serviço religioso para nenhum dos meus prisioneiros. O pobre abade, se não fosse tão apressado, teria o seu funeral.
            - Ora, ora! - exclamou o médico com a impiedade habitual na gente da sua profissão. - Ele era padre: Deus terá em consideração o seu estado e não dará ao Diabo o prazer de lhe enviar um sacerdote.
            Uma gargalhada secundou a graça.
            Entretanto, a operação de amorta      lhamento prosseguia.
            - Esta noite! - repetiu o governador quando os homens acabaram.
            - A que horas? - perguntou um carcereiro.
            - Por volta das dez ou onze.
            - Velarão o morto?
            - Para quê? Fechem a cela como se estivesse vivo e pronto.
            Então, os passos afastaram-se, as vozes foram enfraquecendo, o ruído da porta, com a sua fechadura barulhenta e os seus ferrolhos rangedores, fez-se ouvir e um silêncio mais triste do que o da solidão, o silêncio da morte, invadiu tudo, incluindo a alma enregelada do jovem.
            Então, levantou lentamente a laje com a cabeça e lançou um olhar investigador à cela. A cela estava vazia. Dantés saiu da galeria.

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